Grandeza incomparável do sacrifício

Devido ao pecado original, o homem, mesmo inocente, tem necessidade de fazer sacrifício. E no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado, era preciso a ascese? Dr. Plinio julga que sim, pois seria um ato ordenativo do homem, em estado de prova.

 

Considerando o sacrifício na perspectiva da Doutrina Católica, parece-me que ele não tem o caráter de mera expiação, mas de um reconhecimento da supremacia de Deus, pelo fato de serem consumidas em honra d’Ele coisas que Ele mesmo deu ao homem, por onde este reconhece implicitamente que privar-se daquilo e dar ao Criador afirma a superioridade d’Ele em relação a todas as coisas.

Sacrifício de dedicação

Cornélio a Lápide(1) distingue o sacrifício de dedicação e de expiação, no Antigo Testamento.

Analisemos o que significa essa dedicação.

Uma criança pode ver, pendente numa árvore, uma fruta muito bonita; corre, apanha-a e a oferece ao pai ou à mãe. É propriamente um sacrifício de dedicação que a criança faz. Isso que parece muito razoável pode ser desdobrado em aspectos.

Um aspecto é: a criança renuncia à fruta para dar aos pais. O que significa essa renúncia? Há nisso um ato de ascese, mas não é a principal nota do ponto de vista da dedicação que se deve considerar. No homem nascido sem pecado original, essa ascese não pareceria necessária, porque o homem tinha um inteiro domínio de si mesmo. Portanto, vigorava a ideia de que aquela fruta tão excelente, melhor conviria a uma pessoa mais excelente. Representaria uma forma de justiça colher aquela fruta tão linda e dá-la a uma pessoa tão bela. Esta seria uma dedicação.

Creio que é esse o espírito com que muitas pessoas colhem flores para oferecer nos altares de Nossa Senhora. Por exemplo, ornar um altar para o “mês de Maria”: uma pessoa pode colocar nisso uma intenção de reparação, mas não é o intuito comum, e que esteja próxima e imediatamente na natureza do ato. O que está nisso é a noção de que à Santíssima Virgem, sendo a Flor da Criação, fica bem que as flores muito bonitas estejam postas junto a Ela, por assim dizer porque “similis simili gaudet”(2). Então, junto Àquela que poderia ser chamada, por algum lado, “Flor das flores” convém colocar flores.

Sacrifício de louvor

Entra também outro aspecto metafísico, que me parece mais bonito e mais importante, por onde há uma afirmação do Absoluto. Aquelas coisas são lindas, mas passageiras; e convém que elas, no que têm de passageiro e contingente, sejam oferecidas a Deus, que é eterno e Absoluto.

Essa destruição do transitório e do contingente em honra do eterno e do Absoluto fica meio implícita na natureza. E é uma grande verdade que o homem tem vontade de explicitar, e Deus deixa a cargo do homem fazer a explicitação. O desejo de explicitar o que Deus pôs implícito leva o homem a dizer: “Vós que sois Absoluto, eu a Vós entrego tal coisa, porque me destes o domínio sobre ela. E a destruo em vossa honra, porque a Vós, que sois o Criador de tudo, compete que se Vos honre, destruindo algo do que criastes”. É uma espécie de homenagem ao próprio Criador, a Quem se homenageia, em parte, em alguns aspectos, destruindo, mostrando que Ele merece aquela destruição.

Da parte psicológica do homem, entra nessa destruição um reconhecimento efetivo do Absoluto.

Contudo, para o homem concebido no pecado original, entra um reconhecimento de caráter necessariamente ascético, pois o ser humano tem tal tendência a se apegar e a dar àquilo que é contingente o valor que ele daria ao Absoluto que, para corrigir este defeito e desagravar a Deus dessa tendência a que tantos homens cedem, é preciso sacrificar alguma coisa para dizer: “Eu cheguei ao ato concreto e, assim, esmaguei internamente a minha tendência a ver isso como uma coisa absoluta.”

É preciso notar que isto é um aspecto muito importante, mas que não está na essência do ato praticado. Há o sacrifício, portanto, de louvor, que é o sacrifício do amor. O louvor é a voz do amor. A adoração, o louvor, o sacrifício de louvor se exprimem assim.

Deus, como Causa exemplar

Aliás, o Ofício Divino — recitado, por exemplo, segundo o estilo beneditino — tem o sentido do louvor a Deus, que o religioso faz cantando de um modo belo um texto adequado que O louva com suas próprias palavras, porque quase tudo é tirado da Escritura; e, quando não é da Bíblia, é da Igreja. Ademais, louva-O também com um cerimonial bonito, objetos e órgãos bonitos, numa igreja bonita, etc. A organização do belo para louvar é um predicado eminentemente beneditino e, de fato, seria necessário que, no seu conjunto, a Igreja Católica tivesse algo especialmente voltado para isso.

Tal modo de proceder é perfeito e condiz com outro aspecto da questão, formando uma espécie de geminação onde se tem o equilíbrio perfeito. Esse sacrifício de louvor pode dirigir-se a Deus como Causa eficiente, final, e também como Causa exemplar. E, enquanto Causa exemplar, nós podemos oferecer ao Criador coisas criadas por Ele, e semelhantes a Ele pela conexão com Ele. E, neste sentido, por exemplo, um grande abade beneditino pode constituir uma abadia magnífica, sem ceder nada a um luxo emoliente, mas para louvor a Deus como Causa exemplar de todo o belo na Criação.

O luxo pode ter uma nota de sacrifício

Até uma pessoa como Salomão, antes do pecado, que lembrava muito a Deus como Causa exemplar, poderia cercar-se de todo aquele luxo virtuosamente, louvando o Criador como Causa exemplar e dizendo: “Vede em mim como Deus é grande!”

Este constitui o elogio certo, mas arriscado, de muita forma de grandeza e de beleza, indispensável para uma civilização considerada no seu total. Então, por exemplo, eu creio bem que o Louvre de São Luís deveria ter, por vários aspectos, muito luxo. Este luxo deve ser visto assim.

Isso tem a nota do sacrifício no seguinte sentido: são riquezas que foram desviadas do uso do rei para simbolizar, perante Deus, uma determinada perfeição que lembra a Ele. Seria, por exemplo, o luxo da Sainte-Chapelle, mas poderia ser o luxo da pompa real, enquanto mostrando o rei como representante de Deus, ou da pompa papal, enquanto manifestando no Papa o Vigário de Nosso Senhor.

A meu ver, esta é a melhor resposta à crítica protestante ao luxo eclesiástico. O protestante diz: “É para o gáudio do padre que se usa isso.” A resposta é: “O padre de fato goza muito pouco disso, mas se gozasse era um aspecto secundário. O importante é que Deus seja glorificado também nisso”.

Entretanto suporia, para manutenção do equilíbrio nesse próprio louvor, que o homem fizesse rebaixamentos, atos de humildade e de ascese que compensassem isso, para que o equilíbrio se apresentasse perfeito.

Então, se eu imaginasse, por exemplo, um rei que fosse um Salomão da Cristandade, resplandecente com todo o brilho da realeza, mas que na Sexta-Feira Santa, na hora de adorar a Cruz, fosse a pé e descalço, em trajes de penitente, flagelando-se, de maneira que todo o povo visse que de fato sua intenção sincera era de se humilhar diante de Deus. Esse homem realizaria um equilíbrio admirável das duas coisas, e que seriam duas formas de sacrifício que se completam, formam um carrilhão. E nesse carrilhão há a harmonia perfeita.

Quando numa civilização falta ou míngua uma dessas formas de sacrifício, ela não é completa.

Necessidade da ascese até no Paraíso terrestre

Restaria saber como seria no Paraíso terrestre, caso não tivesse havido o pecado original e a consequente expulsão do homem.

Parece-me que não haveria a penitência, porque os homens não tinham pecado, mas existiria o que dizíamos há pouco do sacrifício de louvor, da doação, da entrega, pelo reconhecimento de que Deus é Absoluto e perfeito.

No que diz respeito à presença da ascese no Paraíso terrestre, uma vez que o homem se encontraria ali em estado de prova, é patente que ele seria tentável. Isso me inclina a pensar que, para prevenir essa tentação e oferecer um corretivo para algo que não era o pecado original, mas uma possibilidade de pecar, uma determinada ascese pareceria ser necessária. Não se trataria, portanto, de uma expiação, mas de um ato ordenativo do homem, porque naquilo em que ele era tentável havia a raiz de algo que poderia propender para a desordem.

Estamos, pois, em presença de uma hipótese que poderia dar ao sacrifício de louvor certo caráter preventivo da tentação.

Propriamente no sacrifício de louvor de que eu estava falando, o gáudio supremo que tem aquele que oferece o sacrifício é uma espécie de estremecimento de alma diante do fato de que, oferecendo alguma coisa que se destrói, ele pratica um ato que, aparentemente, na ordem natural não é razoável, e encontra sua razão de ser apenas no caráter de dádiva “inútil”, “desarrazoada” Àquele que é Absoluto. E desta maneira se afirma com louvor — e com o único louvor adequado — o caráter absoluto d’Ele, e o nosso reconhecimento deste caráter absoluto. Nisto entra exatamente uma espécie de ósculo do contingente no Absoluto, que é uma atitude totalmente desinteressada, realizada por ser Ele Quem é.

A doação supõe o sacrifício feito como que gratuitamente, diante do mero fato de que Deus é Deus, mais nada.

Sacrifício desinteressado

Este é o estado de espírito com que se deve morrer. Na hora da morte, a pessoa deve aceitá-la como sacrifício merecido pelo pecado original e pelos seus pecados atuais. Pode até oferecer pela Cristandade, por outros interesses, o que Nossa Senhora quiser, mas acrescentaria um elemento altíssimo se dissesse só isto: “Por serdes Vós Quem sois, eu me ofereço!”

Então, o fazer-se pequeno é o único modo, a garantia única que o homem tem de que todas as grandezas construídas por ele não deem em vanglória. Por quê? Porque terá atendido à exigência dessa ordem metafísica mais profunda, que é o sacrifício desinteressado.

Aliás, tenho a impressão de que no sacrifício de Isaac entrava isso: era um sacrifício tributado a Deus porque Ele quis o filho único de Abraão, que disse: “Bem, Vós quereis esta hóstia de louvor, que é meu filho inocente. Vós o tendes!”

Algo disso parece-me estar presente também na resposta de Nosso Senhor à objeção de Judas contra Santa Maria Madalena, quando esta lavava os pés do Divino Mestre com um perfume muito valioso: “Por que não se vendeu este perfume por 300 denários para dá-los aos pobres?” (Jo 12, 5) — reclamava Judas. Ao responder: “Deixai-a; ela conservou esse perfume para o dia da minha sepultura! Pois sempre tereis pobres convosco, mas a Mim nem sempre tereis.” (Jo 12, 7), Jesus dava a entender que não se deve deixar de prestar a Deus o sacrifício desinteressado, de puro louvor, sob o pretexto de acabar com a pobreza.

Essa atitude de abnegação tem seu reflexo nas relações humanas. Também a perfeição da amizade vem do fato de alguém ser capaz de fazer uma coisa dessas por outrem que mereça. Por exemplo, estou com uma pessoa que é santa e vejo que vão matá-la. Posso substituir-me ao santo, para ser morto eu e não ele, pela seguinte razão: “Não toque naquele que é uma obra-prima de Deus!” A primeira ideia é a incolumidade daquele que é obra-prima de Deus, para continuar a dar glória a Ele. Eu, pecador, desapareço dentre os viventes, mas consegui que o santo continuasse a existir. É uma coisa muito bonita!

A autêntica imolação deve ser total

Também me parece que na humilhação bem aceita está o sacrifício voluntariamente realizado. Esta necessária humilhação diante de Deus absoluto traz consigo uma passageira, transitória, mas efetiva como que destruição de si próprio, por onde, além do lado expiatório, o indivíduo faz por amor o que ele faria da flor que ele ofereceria a Nossa Senhora. Ele como que se destrói, pondo-se até abaixo do que é, para fazer consigo o que realizaria com a flor.

Este ato, por ser como que uma destruição, produz sofrimento nesta Terra, dado o pecado original. De algum modo, o mais humilde dos homens realiza isso num espírito de sofrimento. Porque, por mais santo que ele seja, tem uma parte ruim, não consentida, que sofre com a humilhação.

Como seria no Paraíso terrestre, para o homem concebido sem pecado? Ele se apequenar ao ponto de ser um nada diante de Deus, não traria revolta? Isso é muito misterioso.

Vê-se que com satanás, em determinado momento, o fato de sentir-se não pequeno, mas “apenas” o primeiro dos grandes da corte de Deus e não o próprio Deus, trouxe uma inconformidade, e esta participa da dor. Portanto, vejo de um modo um tanto nebuloso como seria este fenômeno na natureza angélica.

Entretanto, mesmo para o homem concebido sem pecado original, se esse aniquilamento não chegasse efetivamente ao último limite de si mesmo e reservasse qualquer coisinha, ele não seria autêntico.

Há atitudes em que a imolação só é autêntica quando é total. Foi o que, em última análise, Deus quis de Jó, quando permitiu que o demônio o tentasse.

É nessa perspectiva que tomam toda a beleza coisas que a “heresia branca”(3) admira sem considerá-las debaixo deste ponto de vista. Então, por exemplo, um de nós tem um inimigo leproso e faz por ele um determinado benefício, humilhando-se inenarravelmente diante do opositor, que ainda responde com um desaforo. Tal ato, visto somente como o considera a “heresia branca” — ou seja, a pena do leproso e o leproso que não tem compaixão de mim — não manifesta toda a sua profundidade. O fundo está na pessoa ter-se apequenado de tal maneira que chegou a sofrer isto. Aí, nesse sentido do apequenamento que viemos expondo, o sacrifício tem uma grandeza incomparável. Mas isso a “heresia branca” não considera, porque tem horror à perspectiva de grandeza e de seriedade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1984)
Revista Dr Plinio 211 (Outubro de 2015)

 

1) Jesuíta e exegeta flamengo (* 1567 – † 1637).

2) Do latim: o semelhante alegra-se com o semelhante.

3) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.–––

Opto pelo Sagrado Coração de Jesus

Ainda menino, em suas cogitações a respeito do contraste entre dois mundos e duas mentalidades, Dr. Plinio viu-se diante de uma alternativa, cuja escolha orientaria toda a sua existência. Nossa Senhora o ajudou a fazer a opção certa e a adotar o verdadeiro caminho.

 

Quem me conhece pode ter a impressão de que sou compreensivo e sinto atração apenas pela classe aristocrática, e que não dou importância, não tenho zelo, estima nem desvelo pelas outras classes. Porque quando falo a respeito da classe aristocrática tenho um fogo especial, e isso indica certamente uma preferência; e em vez de uma “opção preferencial pelos pobres”, decorreria daí uma “opção preferencial pelos nobres”.

A vida em torno da Igreja do Coração de Jesus

Para verem o quanto essa impressão não é verdadeira, conto a tentação que para mim chegou a constituir o antigo Largo do Coração de Jesus(1).

Eu tinha entre 10 e 13 anos. A primeira nota que esse Largo apresentava era de muito pouco movimento, porque naquele tempo o automóvel ainda era artigo de luxo e não constituía transporte para qualquer pessoa com um pouquinho de conforto, como é atualmente. Por causa disso, o número de automóveis que transitavam por lá era bem menor do que hoje. Também não havia ônibus, o transporte coletivo era o bonde.

Uma linha de bonde percorria a Rua Barão de Piracicaba, que atravessa o Largo do Coração de Jesus. Os bondes iam e vinham, mas eram também raros, pois a população da cidade era pequena.

Por isso, o Largo era, antes de tudo, muito tranquilo e, eminentemente, habitado por uma pequena burguesia ou um proletariado aburguesado, com uma camada de operários — suponho que filhos de imigrantes — que tinham feito algum dinheirinho e comprado casinhas em torno daquele local.

Toda essa gente formava quase uma vida de aldeia muito aconchegada, em torno da igreja a qual, para a São Paulo daquele tempo, parecia enorme, com aquela torre muito alta que também parecia colossal, cujo carrilhão, ao meio-dia e às seis horas da tarde, tocava a melodia: “Louvando a Maria, o povo fiel, a voz repetia, de São Gabriel: Ave, ave, ave Maria…” Uma canção popular muito simpática e respeitável.

A atenção se voltava, então, para a imagem do Sagrado Coração de Jesus dourada, em cima da torre, com os braços abertos, indicando a receptividade do Coração d’Ele para todo o mundo. Aquele som enchia a praça.

Tinha-se a impressão de cada badalada ser uma nota de cristal que, quebrando-se em mil pequenas bolhas, penetrava em tudo.

Busto de Dom José de Camargo Barros

No centro do Largo há um busto do Bispo Dom José de Camargo Barros, que se tornou célebre por ter participado do naufrágio de um navio de passageiros chamado “Sirius”, vindo da Europa para o Brasil. Ele era um prelado de São Paulo e viajava com um colega de Pindamonhangaba(2), que fora sagrado bispo por São Pio X e nomeado arcebispo de um Estado do Norte do Brasil.

Em certo momento houve o naufrágio, e o número de salva-vidas era insuficiente para os passageiros. Dom José de Camargo Barros ficou com um salva-vidas, mas, não havendo outro para o futuro arcebispo, exigiu que este, absolutamente, aceitasse o seu. Ele o tomou e, com isso, conseguiu sobreviver ao naufrágio. Mas Dom José de Camargo Barros morreu.

Fizeram-lhe, então, no alto de uma coluna, um busto que a meu ver não dá a ideia de seu “martírio”, mas de um bispo muito bem assentado na vida, plácido, olhando o movimento que passa. Mas tinha-se a impressão de que, quando os sons das badaladas desciam sobre a praça e se multiplicavam sob a forma de bolhazinhas de luz e de cristal, Dom José de Camargo Barros, do alto de seu pedestal, dava uma bênção.

Quando anoitecia, às vezes pelas seis horas, a farmácia chamada “Farmácia Coração de Jesus” — o armazém parece que se denominava “Empório Coração de Jesus”, tudo se chamava “Coração de Jesus” ali em volta; eram outros tempos… — tinha, como em geral nas farmácias daquele tempo, uns globos de cristal enormes com matéria corante, vermelha, verde, azul, dourada, e atrás um foco de luz; aquilo formava uma luz ampliada que a mim, assaz colorista, impressionava muito; eu achava interessante ver aqueles focos de luz.

Bênção do Santíssimo Sacramento

Um pouco mais tarde, o sino do Coração de Jesus, que soava todas as horas, começava a dar outro sinal: era a bênção do Santíssimo Sacramento.

Quem estivesse no Largo poderia ver certo número de moradores que, das casas em volta, vinham chegando para a bênção. Formavam propriamente aquilo que se poderia chamar o “beatério”, o conjunto de beatos e beatas que caminhavam muito devagarzinho, conversando uma conversota que nunca acabava e nem se interrompia.

As beatas, senhoras sofridas na vida, com uns “xalezinhos”, uns arranjinhos, de quem tem suas economias… Os beatos, ou era gente que não trabalhava mais e vivia de rendazinhas, ou ainda exercia um trabalhinho metódico, pequenininho, que os esmagava um pouquinho mais a cada dia. Via-se que eles estavam sujeitos a um processo de achatamento, com o tempo iam ficando mais baixinhos, sumidinhos, as roupas mais rapadinhas, mas com a alminha contente e a vidinha arranjada.

Quando chegava a hora marcada, entrava o padre na igreja, expunha o Santíssimo, começava o “Tantum ergo” e por fim dava a bênção, enquanto tocava o sino; era um momento de muito recolhimento, muita piedade e elevação espiritual.

Depois, todos saíam. Tratava-se de um mundo que não era o meu, fechado para mim, mas eu queria saber como era e, por isso, ficava prestando atenção neles.

Sempre me interessou soberanamente a análise, a observação da vida. Saber como é esse, aquele, como vive, como pensa, para onde vai, como se relaciona com aquele, com aquela, com aquilo, como aconteceu tal coisa, como vai acontecer… Isso me atraía a atenção fabulosamente!

Não sei o que pensariam daquele menino curioso. Eu não contava a ninguém em casa, porque julgariam extravagância dedicar-me a essas cogitações sociais.

Eu percebia que, quando os beatos e as beatas entravam, eles eram como descrevi, mas quando deixavam a igreja, saíam com uma dimensão de ­alma muito maior. Certos reservatórios interiores de resignação, de sublimidade, de elevação de espírito, estavam reabastecidos até o dia seguinte.

O Sagrado Coração de Jesus os tinha dessedentado, a rogos de Nossa Senhora Auxiliadora, e eles saíam super-saciados; e se desfaziam na bruma ainda violácea do dia que estava se pondo.

A alta classe rural tradicional de São Paulo

E o menino curioso ia sozinho para casa fazendo reflexões… Eu andava três ou quatro quarteirões e chegava a minha casa, onde encontrava um outro mundo, que não o da pequena burguesia do Largo do Coração de Jesus.

Aos domingos, na Missa das onze horas, o aspecto do público da igreja era inteiramente diferente. As pessoas que, mais ou menos, representavam uma aristocracia local em São Paulo frequentavam essa Missa.

Viam-se chegar os bonitos automóveis, as senhoras de idade madura em bonitas toilettes, muitos dos homens ainda usando fraque e cartola por homenagem a Deus, Senhor de todas as coisas, a Quem eles iam visitar.

Quando eu era bem pequeno, meu pai com frequência ia de fraque à Igreja do Coração de Jesus. Ele dizia que em Pernambuco chamavam o fraque “a roupa de ver a Deus”.

Era um mundo em que aparecia muito do antigo donaire, algo de corte dessa espécie de aristocracia constituída pela alta classe rural tradicional de São Paulo.

Havia uma rua limítrofe que marcava o começo do mundo da antiga aristocracia rural: um mundo europeizado, aberto às ideias novas, com bastante dinheiro, e até luxo, com preocupações de progresso para si mesmo, de conforto, etc.; e com toda a agitação política, mundana, cultural, toda a alegria, todo o tom “hollywoodiano” que caracterizava aquele tempo.

Antipatia pelo jazz e amor ao órgão

O jazz era o grande escândalo sonoro de então. É preciso dizer que antipatizei com o jazz desde o primeiro momento em que o ouvi, assim como amei o órgão desde que tomei consciência de sua existência.

Meu ambiente doméstico era um misto de órgão e de jazz. A tradição, que inegavelmente havia, tocava o órgão. Mas assim como as badaladas desciam no Largo Coração de Jesus, também as cacofonias do jazz cobriam o mundo e entravam também na residência da Rua Barão de Limeira, 77, onde havia espíritos “aggiornati”(3) segundo o jazz, e outros ajustados à tradição, entre os quais Dona Lucilia e eu.

Eu estava inserido em toda aquela sarabanda, à qual não se pode negar certo brilho e o deleite da vida. E eu era sensível a esse brilho e a esse deleite. Quer dizer, a vida com luxo, as viagens para a Europa em navios-palácio com salões de dois andares, o turismo pelo Velho Continente, o palacete enorme em São Paulo, automóveis de luxo vindos da Europa, dos Estados Unidos…

Tudo isso me atraía muitíssimo, mas constituía um polo de atração inteiramente diferente do Largo Coração de Jesus. E, sem cogitar de minha vocação — pois eu ainda não tinha noção dela —, do ponto de vista meramente individual, cheguei a me pôr esta pergunta:

“O que me convém mais para levar uma vida agradável: integrar-me nesse mundo agitado e brilhante, mas trabalhoso, ou no mundo do Largo Coração de Jesus, nessa vidinha, vivendo à luz ou à sombra do Santuário, sem aventuras nem riscos, nem problemas, nem complexidades; simplesmente afundar-me no anonimato, destacando-me do meu meio como uma figura que some e afunda na penumbra agradável do Largo Coração de Jesus?”

Seriamente hesitei entre uma coisa e outra. De tal modo a atração nobiliárquica não é uma mania em mim, que os meus lados fracos ter-me-iam levado a me afundar na vidinha: “Ah! deixe ‘correr o marfim’… Eles que se arranjem! Vou levar uma vida sossegada, rezando e depois fazendo mais ou menos nada. Para que fazer alguma coisa? Desde que eu viva bem, nada mais me incomoda!”

O que me impediu de me deixar levar por essa hipótese foi uma noção do dever. Volto a dizer, não era a ideia da vocação, que ainda não se tinha esboçado em meu espírito; mas a noção de que cada pessoa que levasse consigo um nome histórico, e se afundasse nessa bruma, era como uma estrela que se apagaria no céu. Embora seja menos trabalhoso para uma estrela afundar na bruma a ficar cintilando pelos séculos dos séculos, a obrigação da estrela é cintilar.

Eu, Plinio Corrêa de Oliveira, tinha o direito de me afundar? Não! Essa opção, eu a exerci, portanto, não em virtude de uma ideia de comodismo, de vantagens, de prazer, mas do dever, vencendo o meu pendor naturalmente indolente.

Aristocracia paulista: trato cerimonioso e mobiliário das residências

Eu notava, entretanto, também nas pessoas da aristocracia, o conflito de duas influências. De um lado, a velha tradição portuguesa, muito afim em alguns pontos com a tradição francesa, pela qual a nota distintiva do homem educado era uma seriedade amável, até afável, mas principalmente seriedade. Secundariamente, como um ornato complementar, vinham a afabilidade e a amabilidade.

De maneira que se víssemos um desses senhores ou uma dessas senhoras andando sozinhos na rua, a fisionomia que faziam era séria, de quem estava cônscio de sua importância.

Se um menino ou um rapaz conhecido deles passasse perto, tinha a obrigação de cumprimentá-los, tirando o chapéu. O senhor respondia amavelmente o cumprimento, com um sorriso e erguendo discretamente seu chapéu-coco.  Às vezes puxava uma conversa, sempre composta e cerimoniosa: “Como vão os seus? Ouvi dizer que a Dona tal está adoentada… Já melhorou? Será que vamos nos encontrar de novo este ano em tal estação de águas? Eu gostaria tanto… Diga lá em casa…”

Por mais afável que tivesse sido a conversa, ao final, novo cumprimento tirando os chapéus de parte a parte. Quando o senhor, e mesmo as senhoras, tinham mais intimidade, batiam ligeiramente com a ponta dos dedos nos ombros do mais jovem, o que representava, simbolicamente, um abraço.

Esse trato cerimonioso encontrava seu correlato no ambiente e no mobiliário das residências.

Toda casa que se prezasse tinha um salão com móveis dourados estilo Luís XIV, XV, XVI, ou um pouco mais longe, Luís XIII, e a parede revestida de damasco, ou de papel vindo da Europa, também dourados, ou painéis de damasco de outras cores. Lustres de cristal.

Se as posses da família permitiam, o hall era de mármore. Cortinas de damasco, sedas, veludos, quadros a óleo, tapetes felpudos que abafavam o som de quem entrava nas salas.

Mesmo na intimidade do lar, o modo de as pessoas se dirigirem umas às outras era repleto dessa seriedade. Até a brincadeira era com um tom cheio de respeito, o qual constituía uma espécie de atmosfera de gás ou de líquido, no qual a vida inteira estava imersa.

Influência de Hollywood

Entretanto, tudo isso se foi abrindo para a influência de Hollywood. As músicas tocadas pelos discos nas vitrolas, as canções que se cantarolavam, as senhoras dedilhavam no piano ou os rapazes executavam no violino, tudo isso era “hollywoodiano”.

O resultado era a difusão de uma gargalhada superficial, agitada, estridente e sem significado profundo. Porque a influência de Hollywood era a da gargalhada, da brincadeirada, da semi-imoralidade sedenta da imoralidade completa, da aventura sôfrega: “cowboy”, tiros no teto, motocicletas, torcidas…

Eu percebia essas duas influências que se combatiam. Aquela seriedade sacral de outrora ia sendo enxotada pela superficialidade trivial, adoradora da máquina, do dinheiro, da corrupção. Tinha que dar na civilização moderna.

Muitas daquelas pessoas respeitáveis, que estavam com seus filhos e netos na Missa pela manhã, iam levá-los na sessão de cinema, à tarde.

Observei o seguinte: quando se encontravam na Missa do Sagrado Coração de Jesus, todo o lado tradicional deles vinha à tona e os dominava; quando estavam no cinema, ficavam cheios do espírito de Hollywood.

De onde me vinham ideias meditadas no meu silêncio, como esta: “Se esse aspecto tradicional floresce na Igreja do Coração de Jesus e em outras igrejas de São Paulo — aonde às vezes também vou à Missa —, mas não se desenvolve no cinema, há uma relação de aliança, de afinidade entre esse ambiente, essa Religião e esse lado bom; e existe uma relação, não de aliança, mas de antagonismo, entre a Igreja e esse lado ruim que se patenteia quando eles vão ao cinema”.

Para ilustrar esse pensamento, imaginemos o jazz sendo tocado na Igreja do Coração de Jesus. Uma blasfêmia! Ou um órgão executando música religiosa, para acompanhar certas fitas de cinema: parava o órgão ou a fita, porque os dois não iam juntos!

Donde eu concluía haver no cinema um princípio hostil ao Sagrado Coração de Jesus, enquanto que na vida tradicional, um princípio que procede d’Ele.

Eu olhava em torno de mim e pensava: “Que reação teriam essas pessoas se eu lhes dissesse que estou cogitando isso? Afirmariam que não é assim, que não estou entendendo nada, que esse antagonismo não se põe…” Porque eles não queriam fazer a opção, a escolha e, portanto, não desejavam confessar o antagonismo. O resultado é que eles deixavam a parte boa ser devorada pela má, como um câncer.

Eu dizia no meu íntimo: “Opto pelo Sagrado Coração de Jesus!”

Horror ao mofo e desejo de uma alegria sã e casta

Por tê-Lo conhecido e me deixado modelar por Ele, tanto quanto minha miséria permitia, eu estranhava uma coisa dissonante de Nosso Senhor. Por isso também, eu reconhecia n’Ele a regra a ser seguida qualquer que fosse o sacrifício, a batalha. E o critério para diferenciar o bem e o mal, a verdade e o erro, é estar consonante com o Sagrado Coração.

Isso é um ato de adoração, de devoção e supõe, evidentemente, rezar a Ele, visitar sua imagem na igreja d’Ele, tê-Lo em vista na imagem d’Ele em minha casa, e dirigir-me a Nosso Senhor por meio da Mãe d’Ele. Quer dizer, ser devoto, devotíssimo de Nossa Senhora, como canal necessário para chegar até Ele.

Estou cônscio, deliciosamente cônscio, até o fundo de minha alma, de que eu nunca teria chegado a nada disso se não fosse a intercessão de Nossa Senhora.

O que aconteceu com alguns outros que conheci, aparentemente grandes rezadores? De manhã, rezavam num manual, mas não tinham suficiente amor para, na hora do cinema, estar se lembrando d’Aquele a Quem tinham rezado; e evitavam a opção. Logo, cada vez mais a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tornava-se uma fórmula, e a entrega à mentalidade do cinema, uma realidade.

Havia, ademais, um problema na dualidade jazz e tradição. É que a tradição aparecia tristonha, incapaz de suscitar alegria, vida, verdadeiro espírito de luta e algo que não fosse mofo. Era preciso um ato de Fé para acreditar que essa tradição tinha inspirado coisas como as Cruzadas, de tal maneira ela estava carregada de mofo.

Como a única forma de alegria estereotipada era a “hollywoodiana”, não havia uma fórmula para dar escoamento psicológico ao júbilo, para o qual a alma tem tendência, senão os padrões “hollywoodianos” daquele tempo. Por isso, para um católico, ser alegre era uma espécie de infidelidade. Em sentido contrário, ser tradicional, fiel à Igreja de sempre, parecia trazer como corolário ser tristonho, abatido. E eu tinha horror ao mofo e a tudo quanto não é vida.

Quando entrei para o Movimento Mariano, uma das metas que tive foi de fazer sentir que eu não renunciava nem um pouco à alegria sã e casta de viver.

Está assim, de um modo muito sumário, narrado, tanto quanto me é possível, um dos itinerários de minha alma rumo ao Sagrado Coração de Jesus. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1985)
Revista Dr Plinio 199 (Outubro de 2014)

 

1) Situado no Bairro Campos Elíseos, zona central de São Paulo.

2) Município da Região Metropolitana do Vale do Paraíba, ao Norte do Estado de São Paulo.

3) Do italiano: atualizados. Aqui tem o sentido de “estar na moda”.

Senhor, dai-me forças que Vos seguirei!

Para conseguir o Reino de Maria —­ o grande ideal de sua vida — Dr. Plinio compreendia ser necessária muita dor, a fim de que a impiedade reinante no mundo atual fosse derrotada. Assim como o Redentor derramou todo o seu Sangue para esmagar o demônio, ele estava disposto a sofrer tudo para que, em união com os padecimentos de Cristo, fosse alcançada a vitória de Nosso Senhor sobre os ímpios.

 

Após o pecado de nossos primeiros pais, o gênero humano poderia ter sido exterminado com a precipitação de Adão e Eva no inferno. Porém, Deus não quis isso, mas sim que seu plano primitivo em relação aos homens, seres intermediários entre os Anjos e os animais, se realizasse, fosse perpetuada a ordenação do universo como Ele a havia concebido, e se operasse, em certo momento, a maravilha da Encarnação do Verbo.

Era preciso que a dor e a derrota fossem o preço da grande vitória

Com efeito, Ele quis precisar de um Homem que tivesse um mérito infinito, para expiar pelo pecado de Adão e de Eva. Então, Deus Pai decretou:

“A natureza humana, na qual a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade irá se encarnar, padecerá tudo. Ela sofrerá, será derrotada, esmagada, crucificada e liquidada aos olhos dos homens, até o momento glorioso da Ressurreição. Mas pelo valor infinito deste sofrimento, será esmagado Satanás e se abrirão para os homens as portas do Céu. Desta mesma estirpe maculada dos filhos de Adão nascerá a Virgem imaculada que, por obra do Espírito Santo, dará à luz o Imaculado por excelência, Jesus Cristo, meu Filho, no qual haverá a união hipostática. Oh! maravilha! Isto Eu farei porque Jesus resolveu sofrer até o fim. O sofrimento, a derrota, o padecimento d’Ele serão a minha vitória sobre a morte, o demônio e o pecado.

“O gênero humano vai padecer, vai pecar. Mas virá um dia em que uma Virgem nascerá. E essa Virgem, concebida sem pecado, pedirá que venha o Messias. E o que ninguém alcançou, Ela alcançará, e o que Ela não imagina se dará: o Messias será concebido, por obra do Espírito Santo, das entranhas puríssimas dessa Virgem, e esse Messias, com o consentimento e o oferecimento d’Ela, será sacrificado no alto da Cruz. Derrota espetacular! Derrota tremenda! Ela O receberá morto sobre os joelhos e presidirá a cerimônia fúnebre por onde o cadáver d’Ele, recortado de golpes, de pancadas, de dilacerações, será coberto das ervas aromáticas, que, segundo o rito judaico, devem acompanhar os corpos dos mortos na sepultura. Ela O seguirá até lá e, depois, ficará num isolamento misterioso, enquanto Ele estiver no isolamento do seu sepulcro. Três dias depois, Jesus ressuscitará num esplendor único e começará a série de vitórias. O demônio ficará arrasado!”

Era preciso, portanto, que Um resolvesse sofrer, expiar, tomar ares de derrotado, de repudiado pelos acontecimentos, pelas circunstâncias, e que a dor e a derrota d’Ele fossem o preço para a grande vitória de Deus.

Taça de dor oferecida a Nossa Senhora

Desde então, nunca deixou de haver na Igreja, ao longo de toda a sua História, almas que se oferecessem na aparência da derrota, da humilhação, das demoras inexplicáveis, dos desmentidos esmagadores de suas esperanças, vertendo, com isso, o sangue de suas almas. Mas Deus quer esse sangue para vencer as batalhas que Ele trava.

E se o Reino de Maria brilhar, como nós temos certeza que brilhará, e o demônio for esmagado, estejamos certos de que contribuíram para isso os nossos padecimentos, ao longo de todas essas décadas: os meus velhos sofrimentos e os vossos jovens sofrimentos. Tudo isso somado terá contribuído para preencher uma taça de dor que nós entregaremos a Nossa Senhora, quando chegar o último momento de sofrer, e dissermos:

“Mãe, tudo quanto é produzido por nós, apresentado a Deus sem ser por Vosso intermédio, não vale nada. Mas, oferecido por meio de Vós, vale tudo. Aqui está tudo quanto nos pedistes: todo o suor, todo o sangue, todas as lágrimas que enchem, de sobejo, essa taça. Condescendei em sorrir para tanta dor! Dignai-Vos abençoar e purificar isso que, se não passar por Vós, não tem condições para agradar a Deus. Sorri para essa oferenda, ó Mãe, purificai-a e apresentai-a ao vosso Filho!”

Nesse momento em que Maria Santíssima Se voltar para Jesus e disser “Filho, a última gota foi posta por eles, a última perfeição foi posta por Mim”, o som de um gongo simbólico percorrerá todas as vastidões dos Céus e da Terra e começará o triunfo.

”Christianus alter Christus”

O último sangue que o homem tem que verter, e que de fato verte, é o mais precioso que ele dá. É por essa razão que eu tenho tanta devoção ao episódio de Nosso Senhor transfixado pela lança de Longinus. Ele tinha derramado todo o seu Sangue, mas queria — por um desígnio insondável — dar mais. E havia ainda algum soro no interior de seu Corpo Sagrado, e esse soro, misturado com uns restos de Sangue, precisava ser vertido. Então, aquele soldado vem e crava a lança no Sagrado Coração, e jorram Sangue e água.

É a última barbaridade, a última tortura, a última dor, o último Sangue. É o perfume mais magnífico, a doação suprema, a entrega mais esplêndida. É aquilo que mais deixou os Anjos encantados no Céu, e Nossa Senhora, ao mesmo tempo rompida de dor, mas extasiada de admiração na Terra.

Esta dor, este sofrimento é o contributo para tudo quanto nós esperamos. E se é preciso que eu sofra, aqui estou, como vítima à maneira do Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. “Christianus alter Christus”: o cristão é um outro Jesus Cristo. Se é meu dever unir meus padecimentos aos sofrimentos divinos d’Ele, eu aceito! Descarregue-se em mim a dor, se for necessário! Eu me ofereço como vítima e digo: “Senhor, se o raio de vossa cólera tem que cair sobre minha inocência para comprar a vossa vitória sobre os ímpios, que caia Senhor, mas vencei-os!”

Foi preciso que o Cordeiro de Deus, puríssimo além de toda expressão possível de pureza, fosse morto para expiar pelos pecadores infames. O mérito do Sangue do Cordeiro, por assim dizer, deu a Deus o direito de resgatar das garras do demônio aquilo que não se lhe tiraria mais. E, desse modo, o demônio foi esmagado. Mas o Altíssimo quer que demos o nosso sangue junto com o d’Ele. Deus quis que nosso Rei, o Rei de toda a glória, Se apresentasse na hora da vitória coberto de chagas, de dores. Um dos profetas pôde dizer que o Redentor Se tornara como um leproso, e que do alto da cabeça até a planta dos pés, por causa da Paixão, não havia n’Ele uma parte do Corpo que estivesse sã.

Então, Nosso Senhor sofreu por mim, e eu não sofrerei por Ele? Que horror!

A alegria de participar do grande desfile inaugural do Reino de Maria

Quando o padre celebra a Missa — esse símbolo me encanta! —, após colocar o vinho no cálice, verte nele uma gota de água. Qual a razão de ser dessa água, se é o vinho que vai ser transubstanciado? Ela representa os sacrifícios dos homens, unidos ao sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ao misturar-se com o vinho, aquela água forma com ele uma só substância; ela, de si, não poderia ser matéria para a transubstanciação, mas unida ao vinho transubstancia-se em Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Assim também os nossos sofrimentos, unidos aos de Nossa Senhora e aos de Nosso Senhor, adquirem o mérito que nunca teriam, e como tais se apresentam diante de Deus, que quer essa gota de água e nos pede: “Meu filho, não é uma gota, mas um tonel, pois é tudo o que há em ti. Sento-Me à tua cabeceira e te digo: Queres dar-Me?”

Como dizer “Senhor, não”?!  A única resposta possível é: “Senhor, quanta bondade de terdes pensado em mim! Eu inteiro sou vosso; dai-me forças que Vos seguirei!”

Vemos, portanto, a beleza dessa espera que padecemos. Enquanto essa espera se dá, nós estamos comprando a vitória. Talvez não entendamos, mas a Fé nos ensina que isso é assim. E quando chegar a hora da vitória, Nosso Senhor, na sua glória, Nossa Senhora, magnífica no reluzimento de sua realeza, sorrirão para nós e dirão: “Meus filhos, vós bem sabeis que sangue entrou nisso! Lembrai-vos de tal hora, de tal momento, de tal ocasião? Tudo isso ajudou para comprar agora este triunfo. Vinde,  Nós vos associamos à nossa glória!”

Qual será, então, a alegria daqueles que, pela própria dor, compraram a promulgação do Reino de Maria? A participação no grande desfile inaugural do Reino de Maria! Não há palavras que indiquem isso suficientemente.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1983)
Revista Dr Plinio 187 (Outubro de 2009)

 

O primeiro ato de amor

Não há maior sujeição nesta Terra do que a de uma criança à sua mãe no ventre materno. E, durante nove meses consecutivos, Nosso Senhor quis pertencer inteiramente a Nossa Senhora! Jesus, o esperado das nações, o Homem‑Deus, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, quis sujeitar-se a Maria!

Sendo perfeitíssimo desde o primeiro instante, quando seu corpo começou a se constituir Nosso Senhor começou a pensar; começando a pensar, começou a orar e, conhecendo perfeitamente de que Mãe era Filho, Ele certamente disse a Ela uma palavra de amor. Pode‑se calcular qual foi essa primeira palavra de amor d’Ele para Nossa Senhora, e qual foi a resposta d’Ela, sentindo o carinho que Lhe vinha do Filho de Deus?

Que riqueza de alma era preciso ter para responder adequadamente a esse primeiro carinho! Que noção dos matizes! Que noção das situações! Que perfeita disponibilidade de alma para corresponder a tudo perfeitamente, e oferecer a Ele esta primícia incomparável: o primeiro ato de amor que o gênero humano Lhe oferecia!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/3/1984)

Coragem e elegância

Embora seja uma nação de língua e herança alemãs, a Áustria tem características próprias, valores e tradições que muito a diferenciam de sua vizinha germânica. Enquanto esta é mais guerreira e afeita à expansão de suas fronteiras por meios nem sempre pacíficos, aquela é mais diplomática. Não que o povo austríaco careça de grandes combatentes e heróis na sua história, mas o traço  propriamente distintivo de sua personalidade é, sem dúvida, a diplomacia.

A tal ponto que o lema da expansão da dinastia austríaca — a célebre Casa dos Habsburgs — escrito em latim, reduzia-se a estas vogais: “A, E, I, O, U: Austriæ est imperare orbe universo” (cabe à Áustria imperar no mundo inteiro). O modo de alcançar tal objetivo era também expresso em latim: “Gerant alia bella, tu, felix Austria, nube”; o que em português significa: “Os outros que façam guerras; tu, Áustria feliz, casa-te”.

Essa requintada diplomacia que lhe granjeava importantes conquistas no cenário político, era completada por um grande senso de sacrifício, uma superior disciplina sobre si mesma, uma  extraordinária seriedade no conduzir seus interesses nacionais e internacionais. No meio de toda essa habilidade política, nunca deixou de haver muita  delicadeza, gentileza, elegância e  perfeito senhorio da situação. E não só no campo diplomático brilharam as qualidades austríacas. Outra magnífica expressão delas, vamos encontrar, por exemplo, na Escola de Equitação de Viena, cujas exibições, admiradas em toda a terra, perpetuam as tradições desse glorioso passado.

Fundada no século XVI, essa escola nasceu no tempo em que a cavalaria era determinante nos combates bélicos. Ora, para que o homem fosse de fato eficaz na guerra, como cavaleiro, devia ter um completo domínio do cavalo, conjugado ao total governo de si mesmo. Dessa maestria na guerra derivaram as competições equestres, e quando estas já se haviam tornado banais, surgiu a ideia de ensinar o cavalo a fazer movimentos elegantes como passos de dança. Era, por assim dizer, o creme dos cremes da arte de combater, à qual o austríaco soube comunicar sua distinção, sua categoria e amabilidade.

Os cavaleiros se apresentam numa atitude irrepreensível, nobre, distinta e elegante. Mas, de homens bastante sérios para enfrentarem uma guerra e nela sobressaírem por sua coragem, se a isso  os conclamar o dever patriótico. Homens que poderiam ser guerreiros, vestidos com todo o refinamento, sem qualquer espécie de arma, ali estão apenas para fazer com que seus cavalos executem graciosos passos de dança.

Entram solenemente numa arena que mais parece uma sala de palácio preparada para espetáculos, com arquibancadas e camarotes adornados de veludos e pingentes, lindos lustres de cristal  deitando reflexos prestigiosos em todo o ambiente. Flores variegadas perfumam as galerias, e aqui e ali, faixas brancas e vermelhas lembram as cores da Áustria.

Uma vez na arena, a primeira preocupação dos cavaleiros é de saudar o povo que, encantado e lisonjeado, aplaude calorosamente. Em seguida têm início os exercícios sucessivos de disciplina:  cavalos se adiantam, recuam, se reúnem para depois se separarem, andam, trotam, saltam, dançam…

Durante todo o espetáculo, as atitudes dos animais são próprias a agradar o espectador, como se estivessem num salão. O cavalo tem todas as cortesias, gentilezas e atenções de um fidalgo:  levanta-se, trota com leveza, inclina-se, enfim, demonstra no âmbito da sua espécie todas as maneiras de uma pessoa bem educada. “Os animais são uns colossos”, dir-se-á. E o são. Porém, incomparavelmente mais dignos de elogio são os cavaleiros, pois reduzir a brutalidade do cavalo ao mimo do salão é uma obra-prima semelhante à de educar um homem para se sobressair na   sociedade. E essa proeza os cavaleiros realizam, sob a admiração e o entusiasmo da platéia.

Termina a exibição, o povo está de pé, aplaudindo os cavaleiros que recebem a ovação impassíveis, porque é da maior categoria não fazer gestos de agradecimentos. Dali a pouco eles se retiram e  desaparecem, deixando o sorriso de satisfação e enlevo impresso nas faces dos espectadores. O que se viu neles? Aquele mesmo senso de direção, de sacrifício, a calma para poder ser amável,  agradável e gentil, característicos do bom diplomata, do político fino e do homem educado, como são os expoentes da nobreza e do povo austríacos.

É a maneira de ser deles, que completa e se harmoniza com as peculiaridades e atributos de outros povos europeus, como o espanhol, por exemplo, do qual nasceram a ousadia e a coragem dos  toureiros. Se deixasse de haver Espanha ou Áustria, seria uma perda irremediável para a Europa e o mundo. As duas personalidades se compensam, e a composição de ambos os aspectos resulta  numa espécie de pleno da alma humana, que verdadeiramente alegra. É o garbo, a galhardia, o desassombro, o esplendor da serenidade e da varonilidade que enfrenta o perigo; e, ao mesmo  tempo, a disciplina e a gentileza… Predicados que se completam, frutos da civilização cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Uma ilustre conquista de Nosso Senhor Jesus Cristo

Ser um autêntico Amigo da Cruz significa nutrir na alma um particular amor aos valores sobrenaturais, e ter sempre em vista esta subida verdade: fomos engendrados durante a Paixão de Cristo; mil dores e gemidos precederam nosso nascimento, que se deu através da chaga aberta no flanco do Redentor. Dr. Plinio prossegue suas considerações sobre o opúsculo escrito por São Luís Grignion de Montfort.

 

Como vimos em nossa última exposição, São Luís Grignion estabelecia certas características fundamentais do autêntico Amigo da Cruz, entre elas, o possuir um espírito metafísico, desapegado dos interesses terrenos e voltado primordialmente para os valores sobrenaturais.

Cumpre formar as almas no amor às verdades metafísicas

Ora, para se ter esse feitio de alma é necessário uma formação católica que cultive, com seriedade, o amor às verdades metafísicas, que proporcionará ao fiel uma sólida disposição para abraçar a Cruz e o sofrimento. Infelizmente, tal formação não é corrente, e essa lacuna traz como funesta conseqüência, entre outras, o fato de pessoas se subtraírem às aulas de catecismo e abandonarem prematuramente a prática da religião. Afirmar, pura e simplesmente, que elas rejeitaram a ascese e por isso se expõem ao risco da condenação eterna, é um julgamento sumário.

Ponderemos. Foi-lhes explicada a doutrina da Igreja sobre as virtudes católicas em toda a sua importância e magnitude? Por outro lado, mostraram-lhes até onde chega a degradação dos vícios? Ou apenas se lhes falou dos Dez Mandamentos, com referências concisas, sem explanações complementares?

Quer dizer, há portanto toda uma ascese para se amar a Cruz, a qual, ao longo dessas exposições, à medida que o texto o favorece, procuramos apontar.

São Luís Grignion nos deu, até aqui, dois pressupostos para se tornar um Amigo da Cruz. O primeiro consiste na ternura diante dos padecimentos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. Segundo, acima lembrado, o espírito metafísico por onde a pessoa se destaca da consideração das realidades meramente palpáveis e dirige seu pensamento para o invisível, para os bens sobrenaturais. Quem quiser se formar na escola dos Amigos da Cruz deve, pois, cultivar esses traços de alma.

Indivíduos particularmente chamados

Continuemos a analisar as palavras de São Luís Grignion:

Um Amigo da Cruz é uma ilustre conquista de Jesus Cristo crucificado no Calvário, em união com sua Santa Mãe…

Faço notar, uma vez mais, que em toda a Carta, São Luís escreve “Amigo da Cruz” com A e C maiúsculos, pois ser membro dessa sociedade por ele fundada é uma “ilustre conquista de Jesus Cristo”. Ou seja, Nosso Senhor conquistou cada um particularmente, derramando seu Sangue para que este e aquele fossem mais chamados e recolhidos no cenáculo dessa instituição. E — belíssima característica de São Luís Grignion — a referência nunca esquecida a Nossa Senhora:

…em união com sua Santa Mãe. É um Benoni ou Benjamin, filho da dor e da destra…

Refere-se aos dois nomes dados ao último filho de Jacó: o primeiro por sua mãe, Raquel, o outro por seu pai (Gn 35, 18). “Filho da dor e da destra”, bonita expressão, indicativa de traços da própria alma de São Luís Grignion de Montfort. Com efeito, embora ele não explique, entre a destra e a dor há certa correlação. Pode-se entrever que a dor propicia méritos para o indivíduo se tornar um filho da destra, isto é, um filho que é direito, sério, honrado, objeto de especial preferência. Não há destra sem dor, e toda dor santa tem algo de destra.

Filhos da dor, cobertos pelo Sangue de Cristo

… gerado em seu dolorido Coração, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu Sangue.

Eis uma comparação em extremo contundente, própria a surpreender as almas superficiais. Imaginemos um marquês do Ancien Régime(1), trajado com roupas vistosas e de espírito frívolo, a quem São Luís Grignion afirma que deveria “ser gerado no dolorido Coração de Jesus, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu Sangue”… A superficialidade do nobre receberia um duro golpe!

Pois outro não é o paralelo estabelecido pelo santo. Ele compara o nascimento do filho da destra, ou seja, do Amigo da Cruz, à gestação e ao parto dolorosos de uma criança; no caso, vindo à luz em meio ao sofrimento, através do Coração de Cristo aberto por uma lança. Aí nasceram os especialmente chamados, que vêm à Terra cobertos pelo Sangue do Redentor. São filhos da dor, da agonia e da morte, e não do prazer. Nasceram para as sublimidades dessas perspectivas e não para a frivolidade. Seu feitio de espírito é o oposto ao do homem mundano, que deseja viver apenas para a fruição das transitórias alegrias terrenas.

Esteio da mentalidade de um autêntico católico

Importa termos sempre em vista essa subida verdade: fomos engendrados durante a Paixão de Cristo. Mil dores e gemidos precederam nosso nascimento. Este se deu tragicamente, através da chaga do lado de Nosso Senhor, provocada pela lança de Longinos. Portanto, onde a última gota de água, o último sangue, a derradeira oblação, a extrema generosidade se fizeram notar. Compreende-se, assim, a diferença entre essa visualização e o mundanismo.

Recordo-me de que nas antigas cerimônias de Semana Santa, durante a Via Sacra se cantava: “Pelas lágrimas de Maria, tende de nós compaixão; por vossa última agonia, tende de nós compaixão; Jesus, perdão, perdão”. Nesse hino as pessoas se compraziam em considerar a luminosa e sublime tristeza de Nosso Senhor, e ao ouvi-las cantando, eu pensava comigo mesmo: “Embora muitos não estejam compenetrados, o fato de entoarem esse cântico lhes dá uma tal ou qual participação no valor daquilo que a letra da música exprime”. Ou seja, participavam do amor à Cruz de Cristo.

Reafirmo, portanto: nada em matéria de pensamento de vida interior vale qualquer coisa se não proceder desse sofrimento, do ato sacrifical de Nosso Senhor no alto da Cruz e de nossa gestação dolorosa aí realizada. Isto constitui o esteio da mentalidade de um autêntico católico. Todos os santos foram assim. E todos somos chamados a nos enternecer com a Paixão de Nosso Senhor, com sua Sagrada Face ensanguentada, desfigurada, machucada.

Mortos para o mundo, a carne e o pecado

Continua São Luís Grignion:

Dada a sua extração sangrenta, ele [Amigo da Cruz] só respira cruz, sangue e morte ao mundo, à carne e ao pecado, para estar totalmente oculto aqui na Terra com Jesus Cristo em Deus.

Trata-se, pois, da atitude em face dos adversários da Cruz, isto é, o mundo, a carne e o pecado. Além disso, refere-se o Santo à passagem da epístola de São Paulo aos colossenses: “estais mortos, com efeito, e vossa vida é toda oculta em Deus com Jesus Cristo” (Cl 3, 3). É uma metáfora com a qual ele indica que devemos morrer para as coisas materiais e carnais, utilizando-nos destas apenas na medida em que favorecem nossa união com Deus, e não para os meros deleites que podem nos proporcionar.

Enfim, um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou antes, um Jesus Cristo, de maneira que possa, em verdade, dizer: “vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vive em mim” (Ga 2, 20).

Magnífica afirmação de São Luís Grignion, mostrando-nos o Amigo da Cruz como um porta-Cristo, ao mesmo tempo que nos faz essa soberba promessa de apostolado: aonde vai o Amigo da Cruz, este leva Nosso Senhor consigo. Portanto, sua evangelização se reveste de uma suprema eficácia.

Vê-se, assim, uma vez mais, a grande necessidade de formar as pessoas para compreenderem o atrativo da Cruz, amá-la e, desse modo, deixarem Nosso Senhor Jesus Cristo viver nelas. E isto supõe uma profunda gravidade de alma, contrária a tudo quanto podem pensar os espíritos superficiais.

 

(Continua em próximo artigo)

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 3/6/1967)

1) Período da história da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa.

 

Santo Abércio, o fulminante

Para imitar o Divino Redentor, deve o santo ser sempre um derrotado? Ao comentar alguns dos extraordinários feitos de Santo Abércio, Dr. Plinio responde a esta pergunta e delineia o perfil do autêntico católico, mesmo quando sobre este se abate a derrota.

Tenho em mãos uma ficha a respeito de Santo Abércio, bispo e confessor, extraída de uma obra do Padre Emmanuel D’Alzon(1), fundador dos agostinianos assumpcionistas.

Destruindo ídolos e exorcizando possessos

Numa zona da atual Turquia, elevava-se outrora a cidade de Hierápolis, dedicada a Apolo e evangelizada por São Paulo. Ao subir ao poder Marco Aurélio, em 161, era Bispo de Hierápolis, Abércio, já conhecido por suas virtudes. Um acontecimento, contudo, ia tornar esse Bispo um nome particularmente famoso. O novo Imperador incrementou o culto aos ídolos e, como Hierápolis era cidade consagrada, cresceu o número de procissões aos deuses pagãos.

Abércio sofria muito com isso. E certa noite, enquanto dormia, foi despertado por um Anjo que lhe entregou uma vara e lhe disse:

— Levanta-te, é hora! Com essa vara vai derrubar os falsos deuses que iludem o povo.

Sem delongas, ele correu ao templo, agora silencioso, e com seu instrumento lançou ao chão Apolo, Hércules, Diana, Vênus, e os estraçalhou.

Os sacerdotes e guardas acorreram, por causa do tremendo ruído, e viram, surpresos, o Bispo.

— Ide, afirmou ele, dizei aos magistrados e ao povo de Hierápolis que seus deuses, empanturrados de carne e embriagados de vinho, rolaram uns sobre os outros e se fizeram em mil pedaços. Juntai agora esses destroços, que eles talvez sirvam para algum entulho!

E retirou-se sem que ninguém ousasse tocá-lo. Foi dar aulas a alguns discípulos, como fazia todas as manhãs.

Entretanto, vozes começaram a se ouvir pedindo sua morte. Pagãos furiosos o procuraram e, ao encontrá-lo, avançaram para exterminá-lo. Mas foram detidos por três possessos, famosos na cidade, que se atiraram ante o Bispo, mordendo-se e uivando. A multidão deteve-se, fixando os olhos em Abércio, cuja nobreza e doçura a enchia de admiração, ao mesmo tempo em que as contorções daqueles infelizes a aterrorizava.

O Bispo ergueu as mãos e disse:
— Deus Todo-Poderoso, Pai de Jesus Cristo, cuja misericórdia ultrapassa infinitamente a malícia dos homens, eu Vos suplico: livrai esses infortunados das cadeias de Satanás para que todo esse povo Vos reconheça como Deus verdadeiro.

Com seu bastão, já vencedor dos ídolos, tocou os três possessos, que caíram inanimados aos seus pés. Ele os ergueu salvos e os enviou para suas casas.

Ante esse espetáculo, a multidão a uma só voz gritou:
— O Batismo! O Batismo! O Deus de Abércio é o verdadeiro Deus!

O exército salvo por um milagre

Santo Abércio teve sua fama difundida por toda a Ásia após esse fato. De regiões longínquas vinham procurá-lo. Possuindo o dom dos milagres, várias vezes favoreceu maravilhosamente a família de Marco Aurélio, inclusive libertando sua filha, a Princesa Lucila, de uma possessão diabólica. Era estimado pelo Imperador que, entretanto, nunca se converteu.

No fim da vida, Santo Abércio recebe uma missão muito especial, que foi a de consolar os cristãos na Síria, então muito perseguidos. Após exaustivas viagens, algumas igrejas quiseram fazer-lhe doações em dinheiro. Como ele recusasse, os cristãos não se conformaram em não lhe manifestar concretamente sua gratidão. Um católico de família ilustre propôs, então, prestar ao santo um outro tipo de homenagem. Dar a Abércio o título de “Igual aos Apóstolos”. Acrescentaram-lhe então, o nome grego de Isapóstolos.

É interessante acrescentar que tendo Santo Abércio recebido um aviso sobre sua morte, escolheu sua sepultura e fez gravar em mármore uma inscrição bem detalhada. Ao ser descoberto esse túmulo, no século XIX, tais dizeres comprovaram vários fatos históricos, que historiadores céticos haviam negado. Um dos mais interessantes é o que se refere a um acontecimento da vida de Marco Aurélio:

Seu exército, cercado num desfiladeiro, ia perecer de sede e fome. Seus soldados, torturados, chegavam a abrir as veias e beber o próprio sangue. Marco Aurélio, que então perseguia os cristãos, teve a ideia de recorrer ao verdadeiro Deus. Procurou por soldados cristãos e, indignado, verificou que eram muito numerosos, principalmente porque ali havia toda uma legião cristã, de Melitene. Os soldados invocaram o Todo-Poderoso e, nesse momento, relâmpagos caíram como chamas sobre os bárbaros, enquanto uma chuva benfazeja reanimou os romanos. Marco Aurélio deu a essa legião de Melitene o nome de “Legião Fulminante”. O senado romano, na coluna que mandou erguer em homenagem ao fato, atribui o milagre a Júpiter.

Erro muito grave: julgar que todo santo é sempre um derrotado

Nota-se nessa ficha a resposta a uma pergunta que a leitura da vida de tantos santos suscita.

Com efeito, os hagiógrafos se comprazem, e a muito justo título, em mostrar que o santo é um sofredor, compreende que essa Terra é um vale de lágrimas, a vida é o caminho da cruz e que é preciso levar a cruz até o alto do Calvário, seguindo Nosso Senhor Jesus Cristo. E por causa disso, na história dos santos, muitas vezes acentuam com especial ênfase o lado do sofrimento. E como a derrota é um dos grandes sofrimentos desta vida, naturalmente eles destacam também as derrotas.

E disso se depreende, de um modo geral — para um espírito que não esteja suficientemente advertido —, a ideia de que o santo é necessariamente um derrotado. E que não ser sempre um derrotado, esmagado, não estar sempre por baixo, não sofrer de uma espécie de inferioridade diante do adversário, é não ser verdadeiramente santo.

De onde nasce o tipo de católico amolecido e sentimental, que tem uma espécie de escrúpulo de se sentir triunfante, vitorioso, que julga uma impiedade alguém ser combativo, inclusive em relação ao demônio.

Na realidade, muitas vidas de santos são uma série de derrotas; outras, embora não o sejam, têm na derrota, entretanto, sua característica mais sublime. De fato, na vida do católico nesta Terra, muitas vezes a aceitação do insucesso se impõe como um modo de se unir a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas daí se tirar a conclusão de que é inerente à santidade estar sempre derrotado, em posição de inferioridade, há um erro muito grave. A começar pelo fato de que o verdadeiro santo, mesmo quando perseguido, derrotado, não sofre nenhuma forma de complexo, e muito menos ainda o de inferioridade em relação ao adversário. O modelo de todos os santos é Nosso Senhor Jesus Cristo, e Ele morreu sobranceiro e divinamente majestoso no alto da Cruz.Um homem que esmaga a impiedade.

Mas há certas vidas de santos em que esse sentido da vitória, do triunfo, se realça de uma maneira particular.

É o que podemos notar de um modo sensível na vida extraordinária desse santo. Vemos que ele tem todas as qualidades de um homem habitualmente triunfante, e que esmaga a impiedade com a sua virtude, sua coragem, levando a impiedade de roldão.

Notem o primeiro fato interessante: ele sofria muito pelo fato de que havia na cidade na qual morava, Hierápolis, um grande número de ídolos, e por isso ele rezou muito a Deus. Ele não sofreu porque lhe faltava algo na sua vida particular. Nem sequer a ficha trata da existência particular dele, mas da causa de Deus em Hierápolis, e mostra como ele não encontrava alegria nem satisfação porque a glória do Altíssimo estava calcada aos pés nessa cidade.

Remédio: sentindo a desproporção entre os ídolos que ele quer abater e as suas próprias forças, o santo recorre à oração. E através desta vem a solução.

Ele é acordado por um Anjo de quem recebe uma vara milagrosa. Vai ao templo, que está naturalmente vazio durante a noite, e toca com a vara os ídolos que estão eretos em alguns altares. Os ídolos rolam pelo chão e fazem um barulho tremendo. O que se concebe, porque esses ídolos eram muito maiores do que o tamanho natural de um homem, e sempre esculpidos em pedra.

Podemos imaginar o barulho que haveria de fazer, numa pequena cidade romana do tempo de Marco Aurélio, durante a noite, quatro ídolos grandes que caem no chão com tanta força que se espatifam. Entram os sacerdotes, e então há cenas que mereceriam figurar num teatro.

Filme sobre Santo Abércio

Vou dizer mais: se algum dia devêssemos fazer um filme ou espetáculo de televisão, a vida de Santo Abércio seria o tema.

Primeira cena: À noite, um templo de beleza clássica, no qual penetra um pouco de luar e uma coruja ou morcego esvoaça no recinto. Surge Abércio sozinho, com grande túnica branca, manto lançado sobre os ombros, segurando na mão a vara e rezando. Ele para no limiar do templo e olha com santo ódio. Depois diz: “Em nome de Deus Todo-Poderoso e para a glória de Maria Santíssima…” Caem os quatro ídolos e se espatifam no chão.

Imaginem a majestade e a dignidade do gesto! Os ídolos tinham tanta massa que uma forte pancada não os derrubaria, mas por uma força sobrenatural eles vacilam e caem. E o olhar de Abércio, vendo os ídolos se espatifarem…

Segunda cena: Na vaga claridade do amanhecer, vêm correndo ao templo os sacerdotes, com tochas, e encontram Abércio calmo, que os enfrenta cara a cara.
Pasmos, eles perguntam:

— Que fez este homem? Como ele se justificará deste sacrilégio?
Abércio, então, se justifica daquele “sacrilégio” por uma “blasfêmia”:
— Juntem este entulho e podem jogar no lixo! São deuses empanturrados de carne e vinho. Não valem nada! Vejam se ao menos para o lixo servem…

E o santo sai lentamente, enquanto os sacerdotes ficam olhando para aquele homem que se retira como uma aparição.

É um prenúncio do grande triunfo de Constantino, uma espécie de antegozo da época em que o paganismo vai ser esmagado definitivamente, e será instaurado o Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Depois disso, o que ele faz? Nada que seja gabar-se por seus próprios feitos. Vai com toda a calma retomar sua função de professor; senta-se e começa a dar aula para os alunos.

Representou a vitória e a glória de Deus na Terra

Fato curioso, a calúnia começa a trabalhar. Alguns dos alunos, para os quais os sacerdotes haviam contado o ocorrido, difamam Abércio. O ódio cresce em torno dele e, talvez, através das janelas da sala em que lecionava, ele ouvisse murmúrios e sinais desse ódio.

Sereno, tranquilo, terminada a aula, ele sai e defronta-se com a multidão. Podemos imaginar o que é uma população trabalhada pela calúnia, efervescente, com alguns bruxos pelo meio:
— Pega, é aquele homem! Derrubou os ídolos! Onde já se viu?!

E Abércio, calmo, sobranceiro:
— O que é?

O povo olha para ele, e é tal a superioridade, a maravilha, a harmonia da natureza e da graça, sobretudo uma tal plenitude de superioridade da graça que se encontrava no santo, que todos ficam pasmos.

Alguns procuram ainda sublevar a multidão:
— Apedreja, apedreja!

Mas outros respondem:
— Fiquem quietos, não façam barulho! Vamos ouvir o que ele tem a dizer.

Cheios de raiva, os caluniadores veem a população dispersar-se lentamente, comentando:
— Realmente, Abércio é um grande homem! Ele nos deteve a todos pelo espetáculo de sua superioridade! Nele há qualquer coisa de celeste, a qual vale mais que todos os nossos deuses.

E o feito de Abércio fica famoso. Depois de Deus ter querido que tantos morressem como mártires, de um modo infamante, o Altíssimo quis que esse santo representasse a vitória e a glória d’Ele na Terra.

Com Santo Abércio, a Igreja alcança a sua primeira vitória sensível.

Depois disso, a fama dele se espalha por toda a Ásia e chega aos ouvidos do Imperador, cuja filha estava possessa. E o Imperador deve ter ouvido falar daqueles três possessos libertos por Santo Abércio. Cena também lindíssima: Durante aquela confrontação com o povo, ele expulsa os demônios como quem manda embora lacaios asquerosos, ou como quem condena ao cárcere demagogos infectos.

O Imperador manda pedir a Santo Abércio que cure a Princesa. E ele a curou.

Temos, então, a confrontação deste grande santo não mais com a população, mas com Marco Aurélio, considerado um pináculo da sabedoria romana e o receptáculo de todos os ensinamentos morais dos grandes mestres do paganismo.

Vitorioso, fulminante e humilde

Acontece que Marco Aurélio, dentro dessa manifestação da veracidade da Religião Católica, não se converte e mostra bem o que ele é: um pagão empedernido no paganismo e de má-fé. Entretanto, há uma coisa ainda mais digna de nota e que se dá com a “Legião Fulminante”, a qual se encontrava num estado verdadeiramente desesperador. Os legionários estavam na iminência de morrer de sede e fome, e chegaram a romper suas veias para beberem o próprio sangue. Pedem o auxílio de Santo Abércio, em nome de quem acontece um milagre: há, de um lado, uma intempérie que derrota o adversário e, de outro, uma chuva benfazeja que cai sobre a legião, a qual recebe assim a água necessária para continuar adiante.

Marco Aurélio e o Império Romano deveriam considerar que a legião era fulminante?

De fato haviam caído raios sobre o adversário. Mas quem os fulminara não fora a legião — nem tinham raios nas mãos para fulminar! —, e sim Santo Abércio.

Eles deveriam, portanto, ter chamado Abércio “o Santo Fulminante”, que passou a vida inteira fulminando.

Pelo contrário, a maldade do paganismo: para a legião que ia morrer miseravelmente como um bando de ratos, se não fosse o santo, eles levantam uma coluna no Fórum romano em louvor de Júpiter.

Com isso Santo Abércio passa para a História mostrando o paganismo desmascarado, e a pequenez de espírito do mundo pagão, mesmo no que ele tinha de mais grandioso, isto é, o Império e o exército romano. Ele passa fulminando todas essas grandezas pagãs, e vai diretamente para a honra dos altares.

Nós deveríamos chamá-lo de “Santo Abércio, o Fulminante”. Sempre que, em nossa vida, queiramos ser fulminantes, à maneira deste santo, mas ao mesmo tempo humildes, atribuindo toda a glória a Nossa Senhora, saibamos recorrer a Santo Abércio!

De tal maneira essa figura e essa biografia me entusiasmam, que se tivéssemos neste momento alguma sede, serviço ou sala para inaugurar, eu gostaria que se chamasse “Santo Abércio, o Fulminante”. Porque realmente é com esse nome — “Santo Abércio, o Vitorioso e o Fulminante” — que ele deve passar para a História da Igreja.

Fica, assim — tantos séculos depois —, oferecida à fronte majestosa dele esse cognome, deixando de lado a paródia ridícula da “Legião Fulminante”.

Para finalizar este comentário, eu diria: “Santo Abércio, fulminante e humilde, tornai-nos fulminantes e humildes como vós!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1972)

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida obra.

A liberdade e a virtude

Membros de uma civilização diametralmente oposta ao conceito medieval de liberdade, os homens hodiernos são levados a considerar a escravidão de amor a Nossa Senhora, proposta por São Luís Grignion de Montfort, como algo vergonhoso. Servindo-se dos ensinamentos de Leão XIII na encíclica “Libertas praestantissimum”, Dr. Plinio mostra como a verdadeira liberdade consiste em cumprir seriamente o próprio dever.

 

Quando estudamos a Idade Média, encontramos uma observação que os historiadores fazem cada vez com mais frequência: a comparação entre o direito medieval e o direito moderno. Conforme as leis modernas, o direito fundamental é de um homem sobre coisas, e coisas que valem dinheiro. Então, posso dizer: “Eu sou dono desta mesa; a família é proprietária deste prédio”. O ponto sobre o qual recai o direito é o objeto.

A única relação que não visa diretamente coisas, mas envolve o poder de pessoa sobre pessoa, é o direito de família. A relação entre esposo e esposa, pais e filhos, pode ter repercussões patrimoniais, mas de si não é uma relação patrimonial. O esposo tem o direito ao afeto, à fidelidade da esposa. O mesmo tem a esposa em relação ao esposo; são direitos pessoais, assim como o pai tem um direito sobre o filho, e este possui um direito em relação ao pai. São direitos que têm aspectos econômicos, mas não se cifram nisto. Trata-se de bens que não se aquilatam em dinheiro; são bens de alma.

Alguém perguntará: “E a relação patrão-empregado?” O patrão tem o direito não sobre o empregado, mas ao trabalho do empregado. O empregado vende o trabalho, o patrão compra o trabalho, a tal ponto que se fala em mercado de trabalho. Quer dizer, o trabalho é tratado — aliás, é uma coisa errada — como uma mercadoria. Este é o sentido do direito moderno.

Como os medievais concebiam o direito

Na Idade Média, o direito, de alto a baixo da sociedade, era concebido noutro plano. O principal liame jurídico era de uma pessoa sobre a outra, e não de uma pessoa sobre as coisas. Havia também o direito de uma pessoa sobre uma coisa, mas era num plano secundário. A principal questão do direito era de uma pessoa sobre outra.

Como isto se realizava? Havia três classes sociais: o clero, a nobreza e o povo.

O clero tem um direito sobre o povo, quer dizer, um direito de ser ouvido, ser seguido, ser venerado pelo povo; e também o direito de ser mantido pelo povo. Uma vez que um homem seja padre para o bem do povo, é natural que o povo lhe sustente, mas esses são aspectos secundários. O principal direito do clero é sobre as almas; o direito da Igreja se exerce sobre as almas, o que não se avalia em dinheiro; não é uma mercadoria, mas um vínculo de ordem religiosa.

Os nobres têm um direito sobre os plebeus. Não é principalmente o direito de fazer o plebeu trabalhar, mas o direito ao afeto e à fidelidade do plebeu. Este deve amar o nobre como o filho ama seu pai. Mas o plebeu tem o direito à proteção e ao afeto do nobre. De maneira que ele deve ser amado pelo nobre como o filho é amado pelo seu pai. Quer dizer, há um vínculo que os medievais chamavam de fidelidade, pelo qual um acreditava no outro, cumpriam as obrigações de parte a parte e assim estruturavam a vida.

Outrora os empregados quase pertenciam às famílias para as quais trabalhavam

Temos muito vagas reminiscências disto nos dias de hoje; restam coisas e situações de outrora. Creio que quase todos terão ouvido falar de empregados tão fiéis que ficavam trabalhando na família durante vinte, trinta anos; depois, o empregado tornando-se velho, a família o mantinha até morrer, obtinha colocação para seus filhos e netos, resolvia toda a situação da família dele. Quer dizer, o empregado ficava meio pertencente à família. Era uma espécie de adoção.

Eu mesmo vi ainda minha avó, que era do tempo da escravatura, conversando com uma antiga escrava negra. Minha avó era uma senhora muito imponente, bonita; apesar da distância muito grande entre ambas, havia familiaridade, bondade. Essa negra já estava velha e incapaz de fazer qualquer coisa; ela entrava em nossa casa, sentava-se perto de minha avó, e uma contava para a outra casos de antigamente; tinham fatos para contar a perder de vista, de gente que elas haviam conhecido; e repetiam os casos. Enquanto viveu, ela possuía a bolsa da minha avó à vontade.

De fato, tinha sido ali criado um embricamento de alma por onde a minha avó não tinha o direito de chegar para aquela mulher e dizer: “Quer saber de uma coisa? Pela legislação trabalhista eu sou desobrigada de você!” Existia entre elas uma relação viva e recíproca.

Essa negra tinha os seus pecúlios, ela não dependia propriamente de minha avó. Esta lhe dava dinheiro como presente e para apuros, ajuda etc. Mas quando não havia criados, ou alguém estava doente em casa, bastava mandar um recado: “Diga à fulana que venha aqui, pois eu estou precisando”. Não passava pela cabeça da antiga escrava de não vir. E ela não tinha o direito de não ir. Havia um direito de minha avó à fidelidade dela e um direito dela a esse carinho materno de minha avó, que valia muito mais do que a legislação do trabalho, do que dinheiro ou qualquer coisa.

Atmosfera de afeto risonho e distendido

É um vínculo à maneira de um vínculo de família, que se estabelecia entre essas pessoas e criava uma relação, a qual não era imposta pelas leis revolucionárias, liberais, mas valia muito mais do que as leis. Possuía outra solidez, porque quando uma relação chega a este ponto, podia-se modificar a lei que a relação permanecia. Tenho certeza que as duas nunca pensaram em lei trabalhista; se falássemos para elas a respeito de leis, nem entenderiam bem; era a antiga escrava e a antiga dona, amigas, está acabado, o negócio está feito.

Naturalmente, a família dos patrões tem sempre as características que não são as da família dos empregados, mas nisto existia uma atmosfera de afeto risonho, distendido, de que hoje em dia quase não se tem mais noção.

Era um direito de uma pessoa sobre a outra. Sobre o que da outra pessoa? O afeto, a dedicação, o carinho.

Sistema patriarcal vigente na época dos antigos coronéis do interior

Houve outro exemplo de relação desse tipo. Todos devem ter ouvido falar dos antigos coronéis do interior. Eram, em geral, fazendeiros com propriedades grandes e que protegiam uma série de pequenas cidades próximas ou dentro da fazenda.

Então, era o coronel que resolvia os problemas. Se alguém estava muito doente, o coronel sabia qual era o médico a ser procurado. Se um queria saber onde mandar o filho estudar, o coronel é que escolhia a escola. Se dois brigavam porque queriam casar com uma terceira, o coronel é quem resolvia o problema. Era o sistema patriarcal.

Todo mundo ia atrás do coronel, e na hora das eleições votavam em quem o coronel mandava. Quer dizer, era uma espécie de sindicato, mas sem o aspecto odioso de certo sindicalismo; era um sindicato afetivo.

E o coronel tinha escuderia. Quantos casos eu conheço de coronéis que, na hora do perigo, chamavam três, quatro capangas, e lhes dizia: “Vamos para o perigo!” Os capangas iam e expunham a vida pelo coronel.

Mas se o capanga precisasse de qualquer coisa, o coronel lhe dava. Ele garantia a região, por mais difícil que fosse. Era um pacto para a vida e para a morte, com um reflexo financeiro, é verdade; entretanto, o principal era o afeto que estabelecia um laço de obediência, de dependência, de proteção e de dedicação.

O binômio obediência-proteção caracterizava as relações na sociedade medieval

Em todas essas relações encontramos este binômio: de um lado, o direito de mandar e a obrigação de proteger; de outro lado, o direito de ser protegido e a obrigação de obedecer. É a relação pai e filho.

Essa relação existia entre os nobres e os plebeus. E também entre os nobres: a do nobre de grau menor em relação ao de maior grau. E também entre os plebeus. Nas corporações de artesãos havia três graus: o companheiro, o aprendiz e o mestre. Eles se protegiam uns aos outros. Mantinham uma fidelidade que era meio patriarcal e durava a vida inteira.

Podemos dizer, então, que à civilização da Idade Média caberia o título de “civilização da obediência”. Quer dizer, toda a hierarquia, todas as relações sociais eram estabelecidas na base de obediência, proteção e até dedicação. Obediência-proteção era o grande binômio que caracterizava as relações na sociedade medieval.

Civilização da igualdade e da autossuficiência

As relações da sociedade de hoje, igualitária, são completamente baseadas num outro princípio, o da igualdade completa de todos os homens, que tem uma consequência, na qual as pessoas não prestam atenção: se todos os homens são iguais, todos são autossuficientes. Resultado: nenhum tem razão para proteger o outro. É evidente.

Se dois indivíduos têm, por exemplo, os ouvidos igualmente bons, e um diz para o outro:

— Você quer prestar bem atenção para ouvir o que está dizendo o rádio do vizinho?

— Não. Para que existe orelha? Ouça você!

Quer dizer, não há razão para este pedido, uma vez que os ouvidos são igualmente bons.

Se todos os homens são iguais, todas as inteligências são iguais — porque é isto que a igualdade supõe —; portanto, os vínculos de auxílio, de proteção, de dependência, não têm razão de ser.

Então, como consequência, toda obediência, toda dependência é um sinal de insuficiência e, portanto, uma coisa da qual a pessoa deve envergonhar-se. E o ideal é o homem inteiramente livre, bastando-se completamente a si próprio para fazer tudo quanto ele quer. Este é o padrão do homem. Dessa forma nós estamos na civilização da igualdade, na civilização do “cada um carrega o peso do próprio corpo”. Quer dizer, não há vínculos entre as pessoas.

Atualmente a relação de patrão e empregado é uma relação trabalhista. Diz o patrão ao empregado: “Eu tenho capital e você tem trabalho. Eu lhe dou capital, aqui está tanto; você me dá trabalho, que vale tanto. O mais arranje com o Instituto de Aposentadoria e Pensões”. Ou seja, não converso com você, nem me interesso por sua pessoa, eu compro o seu trabalho.

A mesma coisa se passa no relacionamento do empregado com o patrão: “Eu do senhor quero o ordenado; saber como o senhor se chama, que problema tem em casa, se está aborrecido, precisando de alguma coisa, não me interessa, vá às favas! Eu quero o meu dinheiro no fim do mês. Dado o dinheiro, o senhor tome o seu caminho e eu tomo o meu”.

Quer dizer, é a civilização da autossuficiência e da independência completa.

Entre esses dois critérios passou a Revolução Francesa, que fez esta afirmação: “Toda dependência é uma vergonha, pois diminui o homem na sua dignidade. O homem não deve ser alienado, ou seja, não deve estar dependendo de um alheio”.

Reflexos causados pela civilização da liberdade

Daí encontrarmos grande estranheza quando se fala da escravidão de amor a Nossa Senhora. Porque a ideia da escravidão parece a própria ideia da vergonha. Em última análise, o que quer dizer “escravidão de amor a Nossa Senhora”?

A primeira vez que li esta expressão “escravidão de amor” — todos veem que eu não era nada revolucionário —, confesso que tive um calafrio: “Ficar escravo de Nossa Senhora? Bem, é Nossa Senhora, mas… escravo? Que futuro singular se delineia diante de mim!”

Depois de ler o “Tratado”(1), eu achei a escravidão à Santíssima Virgem uma coisa simplesmente fenomenal. Mas de início tive um arrepio.

A civilização da liberdade cria em nós reflexos que nos tornam um tanto surpreendente esta escravidão de amor a Nossa Senhora. Então, devemos considerar o fundo do problema. Ou seja, no que consiste a escravidão de amor à Virgem Maria; depois, se uma escravidão, ainda que a Nossa Senhora, é uma vergonha para um homem; se a obediência, a dependência é uma vergonha para um homem; o que devemos entender por obediência e dependência.

A escravidão na Antiguidade

Então, primeiro ponto: o que é a escravidão de amor? São Luís Grignion de Montfort explica isto muito bem. A escravidão entre os antigos era imposta. O pai tinha o direito de vender o seu filho como escravo. Era imposta, portanto, pelo pátrio poder; imposta pelos reis que podiam vender seus súditos; mas, sobretudo, imposta pela guerra. Quando um país ganhava a guerra contra outro, todos os súditos do país vencido passavam a ser escravos do vencedor. Por exemplo, se Roma ganhasse uma batalha numa guerra contra Atenas, todos os atenienses ficavam escravos de Roma. Esta mandava vir para Roma os que ela quisesse, e ordenava que os restantes fossem trabalhar em outros lugares. O vencido de guerra era um escravo.

São Luís Grignion explica bem que não é esta a escravidão de amor. A escravidão de amor é um vínculo de dependência que aceitamos em relação a Nossa Senhora porque A amamos. Quer dizer, nós A queremos tanto, temos n’Ela tal confiança que desejamos fazer tudo quanto Ela quer, como um escravo quer fazer tudo quanto o seu senhor deseja. Mas é uma dependência de amor, não é imposta pelo despotismo, pela força; é imposta pelo amor.

União nas cogitações e nas vias de Nossa Senhora

Nossa Senhora é a Rainha do Céu e da Terra. Se eu tiver todas as cogitações de Maria Santíssima, fizer tudo quanto Ela quer que eu faça, estou unido à Virgem Maria. E se a minha vida for continuamente assim, eu sou um escravo de Nossa Senhora. Mas sou escravo de amor porque, pelo amor que tenho à Santíssima Virgem, eu resolvi fazer isto. Nossa Senhora tem este direito e eu resolvi atender ao direito d’Ela.

Quer dizer, é uma alta, uma transcendental união de almas que por esta forma se exprime, mas que desabrocha de fato numa obediência: porque Ela pensa, eu penso; Ela quer, eu quero; Ela deseja que eu faça, eu faço. Eu dependo d’Ela em tudo.

Como isto se dá em concreto? Se eu quero pensar como Nossa Senhora, devo pensar como a Igreja. Se eu quero querer o que Maria Santíssima quer, eu devo querer o que a doutrina da Igreja me ensina que devo querer. Se eu quero fazer o que Nossa Senhora quer que eu faça, devo fazer aquilo que o meu espírito católico me indica que eu faça. Por esta maneira eu serei escravo de amor de Nossa Senhora.

Ensinamento de Leão XIII sobre a liberdade

Agora, trata-se de perguntar se é uma vergonha uma pessoa depender de tal maneira de Nossa Senhora; e, mais profundamente, se a obediência, a dependência, é uma vergonha; se a doutrina liberal a respeito disto, segundo a qual toda dependência é uma vergonha, é uma doutrina verdadeira ou falsa. Vejamos o que nos diz a Doutrina Católica sobre isto.

Leão XIII expõe este assunto numa encíclica muito bonita: “Libertas praestantissimum”. É uma encíclica muito técnica, doutrinária. Vou tentar pô-la ao alcance dos presentes neste auditório, o menos tecnicamente possível.

Consideremos um exemplo. Eu tenho a possibilidade de viajar de automóvel: inutilmente, só para me distrair, ou de ir para a minha casa a fim de, cumprindo o meu dever, descansar.

Segundo o mundo liberal de hoje, eu exerço a minha liberdade fazendo o que é agradável, indo passear. O dever me obriga a fazer o que eu não gosto; é uma limitação de minha liberdade. E a minha liberdade consiste, portanto, em fazer o maior número de atos que eu ache agradáveis, que me atraiam.

Em sentido contrário, se eu cumprir o dever em tudo, não sou livre; a canga do dever limita a minha liberdade.

Leão XIII nos ensina exatamente o contrário, expondo uma doutrina muitíssimo bonita, que para a compreendermos, tomemos fatos que até se passam fora da ordem humana.

O voo da gaivota e a trajetória do cometa

Uma das coisas de que eu gosto mais de ver, na beira-mar, é gaivota voar. É uma beleza: ela levanta voo, quando a gente pensa que a gaivota “esqueceu” o mar, ela mergulha! Pega um peixe e sai com ele no bico; fica feliz durante algum tempo pairando, se deixando levar pelo vento, descansando e comendo. Quando acabou de comer, ela está rapinando outro peixe no fundo do mar; efetua voos bonitos, com elegância.

Imaginemos que uma criança, por exemplo, conseguisse apanhar com as mãos uma gaivota e a segurasse na hora de levantar voo. Dir-se-ia que a criança de algum modo tolheu a liberdade da gaivota. Por quê? Porque está no primeiro impulso natural, ordenado, da gaivota, alimentar-se com os peixes que Deus fez para serem alimentos dela. Deus criou os animais de tal maneira que uns são feitos para serem alimentos de outros; portanto, a gaivota cumpre a ordem universal levantando voo, espairecendo e gozando aquele ar de um modo magnífico, e depois comendo peixes.

Um bicho não tem direito, e a liberdade é um direito. Mas dir-se-ia que a como que liberdade da gaivota foi cerceada.

Suponhamos que uma pessoa pudesse, por exemplo, com essas bombas supermodernas, interceptar o caminho de um cometa, e fizesse com que ele, sem se desintegrar, caísse na Terra. Teríamos a impressão de que a “liberdade” do cometa foi restringida, porque ele estava em sua trajetória bonita, natural, elegante, querida por Deus. O caminho natural, o caminho próprio — notem bem a expressão — o caminho da ordem, próprio ao cometa, foi interrompido por alguém. Um cometa não tem direitos, mas dir-se-ia que foi cerceada a como que liberdade do cometa.

A virtude é a liberdade, e o pecado, a escravidão

Então, diz Leão XIII, assim é também a criatura humana. Há uma porção de verdades que o homem vê. Por exemplo, é evidente que ele deve obediência aos seus pais e às autoridades constituídas; que ele não pode matar o próximo, nem ferir ou espancá-lo; que não pode caluniar o próximo, não pode mentir; que não pode se apropriar da mulher do próximo.

O homem pela sua natureza quer fazer essas coisas, porque o primeiro movimento da alma humana, o mais imediato, é de seguir o bem. De maneira que o homem quer praticar o bem, como a gaivota quer dar seu voo. E a liberdade do homem consiste em seguir este movimento, como a liberdade da gaivota consiste em dar o seu voo inteiro.

Entretanto, surge algo que diminui no homem a possibilidade de praticar o bem. É a tentação. Ele sente um peso que o leva para o outro lado. Esclarece Leão XIII: Qual é o efeito próprio da tentação? É diminuir a liberdade do homem.

Os homens seriam muito mais livres se não fossem tentados. A virtude é a liberdade. A tentação, o pecado, são o contrário da liberdade. Nós seríamos muito mais livres, como a gaivota no ar, se não fôssemos tentados.

A verdadeira liberdade consiste em cumprir o dever

Portanto, afirma Leão XIII, o homem verdadeiramente livre não é aquele que faz tudo quanto lhe passa pela cabeça, inclusive o mal, mas é o homem que aceita o seu primeiro impulso bom, o segue sempre e não admite embaraços que venham tolher este impulso. A verdadeira liberdade está no dever.

Volto, então, ao exemplo que eu citava há pouco.

Ao sair daqui eu poderia ter — não estou mais na idade de fazer isto — uma vontade desordenada de ficar andando de automóvel, sem rumo definido, pela cidade. Quantos rapazes fazem isto! Mas a minha consciência me mostra que devo descansar. Serei verdadeiramente livre se seguir o movimento natural de minha alma para o repouso. E escravo se me deixar arrastar pelo vício. De maneira que eu não serei livre se for passear; serei livre se eu cumprir meu dever. Esta é a verdadeira noção de liberdade.

Vemos que isto é muito verdadeiro, mas “bolostroca” a noção liberal completamente. Porque o conceito liberal cai por terra. O liberalismo fica reduzido a frangalhos diante deste conceito que entretanto é evidente.

Eu insisto com mais um exemplo. Um homem vê que ele se encoleriza com um outro, e que não lhe deveria dizer uma palavra ríspida; seria contra os interesses dele porque, inclusive, digamos, iria perder um bom negócio. Mas ele não se contém e diz a palavra ríspida.

Qual é o homem verdadeiramente livre? É o que, para fazer o bom negócio, se domina e não desagrada o outro, ou aquele que é ríspido, ainda que não queira, e perde o bom negócio? O primeiro é o livre, o segundo, o escravo.

Daí existir esta expressão corrente, de que todos já devem ter ouvido falar: “escravo do vício”. Por exemplo, escravo de jogo. Um de nós, pelo favor de Nossa Senhora, pode não pôr o seu patrimônio no jogo. Mas um jogador, que gasta seu patrimônio no jogo, não é o senhor, mas o escravo do jogo.

Então, a verdadeira liberdade consiste em praticar o dever. Não há um homem mais livre do que aquele que obedece às leis e às autoridades justas. Esta é a primeira noção que devemos fixar.

Saber consultar…

Há uma segunda noção, desenvolvida por Leão XIII, que é a seguinte.

Se eu me analiso a mim mesmo, constato que posso encontrar muitas verdades, fazendo uso de minha inteligência. Mas percebo também que há muitas verdades as quais outros notam melhor do que eu; e, às vezes, pessoas menos inteligentes do que eu percebem melhor certas coisas.

Daí o fato de que, às vezes, numa conversa, um indivíduo muito inteligente diz uma coisa, e um outro bem menos inteligente afirma: “Fulano, você notou tal coisa?” Espanto, ele não tinha notado. Por quê? Porque Deus nos fez de tal maneira que cada pessoa vê umas tantas coisas que nenhuma outra vê.

Então, chego à seguinte conclusão: se eu noto que outros veem coisas que eu não sou capaz de ver; se a minha liberdade consiste em ver a verdade inteira, em atender ao meu apetite de verdade, eu deveria saber consultar aqueles que são mais capazes do que eu para ver certas coisas, e seguir a opinião deles de preferência à minha. É evidente. Porque assim eu realizo o meu apetite de conhecer a verdade inteira.

Por essa razão se recorre a técnicos, a especialistas, a pessoas que têm muita experiência da vida, muita elevação de pensamento, que são capazes de, em certas emergências, dar um caminho para a vida que, por nós mesmos, não encontraríamos.

É a coisa mais natural do mundo. O homem verdadeiramente livre pede conselho, aceita ser influenciado para tornar-se mais livre, a fim de poder realizar aquilo que ele quer, no fundo: conhecer a verdade inteira.

…e ser dirigido pelos mais capazes

Há mais. Todo homem que não seja um “mega” debandado, compreende que quando se trata de se julgar a si próprio, ele muitas vezes é parcial; julga-se benevolamente. Quantas vezes um outro diz uma coisa a meu respeito, que me incita a prestar atenção e pensar: “Noto que ele me disse uma coisa que eu não tinha querido ver em mim!”

Em muitas ocasiões isto se deu, por exemplo, de minha mãe para comigo. Ela me dizia: “Meu filho, preste atenção em tal coisa!” E isto ocorreu até o fim de sua vida. Quando não tinha o que dizer, ela reclamava que eu tomava água em goles excessivos, e me dizia que fazia mal para a saúde, o que, aliás, parece ser verdade.

Às vezes, saindo de meu apartamento, eu descia correndo a escada; ela olhava e advertia: “Não desça depressa demais, meu filho; não convém”. E tinha razão, pois de repente poderia haver um acidente. Eu já era um homem formado, mas ela poderia dizer coisas que eu não atinaria por mim.

De maneira que um homem que queira ser inteiramente livre, quer dizer, atender ao seu impulso completo para a verdade e para o bem, aceita ser dirigido, ser controlado por outro mais capaz. Dessa forma, ele dá uma prova magnífica de sua liberdade.

Alguém indagará: “Mas não é uma carência da parte dele?” É. Imaginemos um homem que tem uma perna desconsertada, e quer subir uma ladeira; e, servindo-se de um apoio, com enorme esforço sobe a ladeira. Ele não dá mais prova de força de vontade do que outro que sobe a ladeira naturalmente? Dá.

Assim também temos que subir a ladeira da virtude. Muitas vezes precisamos de nos apoiar na bengala ou na muleta do conselho ou da autoridade de um outro. Aceitando esse auxílio, damos prova de força de vontade maior do que de um outro que julga não precisar de ajuda. É uma carência que dá ocasião à manifestação de uma força de vontade ainda maior.

Compreendemos assim que o próprio fato de ser mandado é a mais alta forma de liberdade.

A mais cristalina e mais sublime forma de liberdade

Temos, então, a consequência: na civilização da obediência ou da virtude, os homens sabiam o que podiam, mas também conheciam o que não podiam. Portanto, viviam de um misto de dependência e independência.

A civilização da pseudo liberdade é a civilização do vício. Cada um faz aquilo que acha agradável, mas o resultado é que fica escravo de todos os vícios. E a nossa pseudo liberdade de hoje resultou numa verdadeira escravidão. Assim se pode chegar aos maiores crimes e às maiores abjeções. Quis, é livre, fez. Disso decorre que a forma suprema de liberdade é aceitar a autoridade daqueles que nos ajudam a fazer aquilo que nós queremos, ou seja, a verdade e o bem.

Portanto, não há forma mais cristalina e mais sublime de liberdade do que sermos escravos de Nossa Senhora. O auge da dignidade humana é ser escravo de Maria Santíssima, porque significa fazer em tudo aquilo para onde as nossas melhores apetências nos encaminham.

Assim, quando formos nos consagrar a Nossa Senhora, devemos ter um espírito amoroso de autoridade. Quer dizer, compreendendo a função da autoridade, da obediência; e compreendendo que, fazendo-nos tão pequenos diante d’Ela, realizamos uma coisa sublime, altamente dignificante. Assim, devemos nunca nos envergonhar de obedecer, de seguir um outro, porque exatamente aí está a mais alta dignidade do homem.

O cruzado e o hippie

Alguém perguntará: “Mas Dr. Plinio, e aqueles guerreiros medievais tão ardorosos, tão combativos, os pares de Carlos Magno, aqueles homens tremendamente varonis, eles eram assim?”

Precisamente isto forma o homem capaz de uma epopeia, ou seja, que tem uma vontade tão firme que ele diz: “A verdade eu a quero até o fim e de qualquer jeito; o bem eu o quero até o fim e de qualquer jeito. Então vou me esforçar de todos os modos para conhecer a verdade e o bem. Mas, conhecendo minha falibilidade, vou fazer este ato de epopeia de não resolver tudo pela minha cabeça, mas de consultar o ensinamento da Igreja Católica, que vale mais do que está em minha cabeça. E, portanto, ter certeza daquilo que penso porque a Igreja assim ensina; esta certeza é muito maior do que a certeza que eu tenho pelo fato de pensar por mim mesmo, porque é uma Igreja divina, infalível, que me ensinou”.

E continua: “Eu quero fazer o que devo, mas a minha vontade é fraca, ela erra; então vou seguir aqueles que têm a missão dada por Deus de me mandar fazer aquilo que eu devo. E ainda que possa parecer um disparate, um absurdo, desde que não seja pecado, eu estarei mais certo de fazer o que desejo, que é o bem, fazendo a vontade daqueles que mandam em mim, do que agindo de acordo com a minha cabeça”.

Isto é uma forma de força de vontade que fazia com que aqueles cruzados — todos eles vassalos uns dos outros e, em última análise, vassalos do rei, obedientes como nenhum homem moderno é — tivessem dez quintilhões de vezes mais liberdade do que esses hippies que vemos perambular pelas ruas.

A nossa ufania é de sabermos obedecer. E obedecer por um ato de suprema força de vontade, não por moleza, como quem diz: “Ah!… ele pode zangar-se comigo; por isso vou fazer o que ele quer”. Não é por moleza, mas por essa suprema energia que devemos obedecer.

Como homens tão humildes construíram monumentos tão altivos?

Termino com um fato narrado por Montalembert(2), na introdução da vida de Santa Isabel da Hungria.

Ele conta que um xeque árabe tinha sido aprisionado pelos cruzados e passeava pela França; estava preso sob palavra. Naquele tempo havia uma coisa chamada honra; daí palavra de honra. E o indivíduo preso sob palavra de honra não fugia mesmo.

Então o xeque olhava as catedrais etc.; chegando provavelmente a uma abadia, onde estavam alguns irmãos leigos, perguntou: “Quem a construiu?” Apontando os irmãos leigos, foi-lhe respondido: “Foram eles”. Ele olhou-os e disse: “Mas como homens tão humildes podem construir monumentos tão altivos?”

Acho isso uma verdadeira beleza. As grandes almas altivas são aquelas que conhecem a glória de obedecer.

Aí estão alguns pensamentos que devemos ter quando nos consagrarmos como escravos de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/4/1973)

 

1) Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, da autoria de São Luís Grignion de Montfort.

2) Charles de Montalembert, 1810­-1870.

São Pedro de Alcântara: personificação da penitência

Devido à explosão de orgulho e sensualidade promovida pela Renascença, havia no século XVI uma tendência geral das pessoas em procurar o gozo da vida e abominar a penitência. São Pedro de Alcântara enfrentou essa onda, e brilhou na Santa Igreja pelo seu espírito de mortificação levado até a sublimidade.

São Pedro de Alcântara era um santo sumamente penitente, a própria personificação da penitência na Igreja Católica, no século XVI. A respeito do caráter penitente deste religioso, podemos tecer algumas considerações.

Espírito de contemplação e de penitência, na sociedade civil

Na Santa Igreja Católica, nem todos são chamados a ser contemplativos, mas para que todos aqueles que vivam no século tenham a medida de contemplação necessária, cumpre haver algumas Ordens que levem o espírito de contemplação tão longe quanto possível. Essas Ordens dão uma espécie de sustentação à nota contemplativa que deve caber na vida comum de todos os homens, que querem realmente se santificar.

É muito expressivo que o próprio São Francisco de Assis tenha fundado a Ordem Terceira dos Frades Menores, para pôr cobro à generalização do desejo das pessoas, no século XIII, de entrarem para a Ordem franciscana. Tantos eram os que queriam ser franciscanos, que o século corria o risco de ficar abandonado. Então, para que o espírito franciscano pudesse florescer no mundo, ele fundou a Ordem Terceira que foi uma espécie de padrão para a fundação depois de Ordens Terceiras em outras famílias religiosas.

O que se diz da contemplação, pode-se afirmar da penitência também. Não há a possibilidade de todos os homens praticarem as penitências que os grandes santos penitentes fizeram, nem isso seria desejável. Se todos quisessem praticá-las, a Igreja poria um freio a isso.

Deve haver uma certa medida de penitência na vida quotidiana do homem comum, que quer seriamente se santificar; e os grandes santos penitentes, os grandes santos sofredores são exatamente aqueles que mantêm nos outros, pelo exemplo e pelo deslumbramento da penitência que praticaram, o espírito de penitência necessário.

A este título, são pilares da Igreja porque, como o sal que evita a podridão, eles conservam esse espírito na sociedade civil, nas Ordens religiosas não especialmente consagradas à penitência, no clero secular e nos mais altos degraus da Hierarquia eclesiástica.

E isto fez São Pedro de Alcântara numa época na qual o espírito de penitência era abominado, a Renascença estava tomando conta do mundo e, exatamente em virtude daquela explosão de orgulho e de sensualidade à qual me refiro em meu livro “Revolução e Contra-Revolução”(1), havia uma tendência universal para fazer da vida uma larga série de prazeres, até transformá-la num ininterrupto gozo.

Duas formas de penitência

Por penitência entendemos, antes de tudo, as doenças, os infortúnios, os desastres, as humilhações a que os outros nos sujeitam, as incompreensões, todas as coisas que nos fazem sofrer, permitidas por Deus ou que Ele manda e das quais não podemos fugir.

Além disso, existem as penitências voluntárias que impomos a nós mesmos por amor de Deus. A ladainha do Cardeal Merry del Val(2) sugere muitas penitências assim, implicitamente. “Que os outros possam ser louvados e eu desprezado, Jesus, dai-me a graça de desejá-lo!” Quer dizer, se tendo a oportunidade de ser honrado e não há glória especial de Deus nisso, faço uma bonita penitência apagando-me e permitindo que outros sejam honrados para, por esta maneira, eu sofrer, desapegar-me de alguma coisa, dar glória a Deus, Nosso Senhor.

Paradoxalmente, essas duas formas de penitência contêm em si a realização da promessa do Divino Salvador, pela qual aquele que deixasse tudo por amor a Ele receberia o cêntuplo nesta Terra e, depois, a vida eterna.

Se prestarmos bem a atenção, notaremos o seguinte: há uma categoria de almas na Terra que são felizes, e outra de almas infelizes. É feliz, alegre, cheia de bom humor, a alma que compreende o papel do sofrimento na vida. Quando lhe acontece um infortúnio, não toma isso como um “bicho de sete cabeças”, não se revolta, não se apavora, mas compreende que o próprio de nossa condição humana é sofrermos. E que seria uma coisa sem precedentes, sem explicação, não sofrermos frequentemente muitas coisas.

Quando uma alma assim recebe um sofrimento, ela sofre mesmo, mas sem frigir, não começa a “fritar”. Sofre achando aquilo natural, entendendo que a razão de ser do homem nesta Terra é de dar glória a Deus, e isso não se consegue sem sofrimento. Por essa forma, é normal que soframos e podemos aguentar o infortúnio.

Almas esquecidas de si mesmas, voltadas para Deus e a Santa Igreja

Tendo firmeza e decisão, o sofrimento cai sobre nós e o aguentamos como Nosso Senhor Jesus Cristo aguentou a Cruz. Às vezes até caindo sob o peso dela, porém nunca se desesperando nem tentando abandoná-la — achando que está lhe acontecendo um absurdo, mas compreendendo que aquilo faz sentido, tem razão de ser —, levantando-se de novo e carregando a cruz.

As almas assim são, antes de tudo, dotadas de bom gênio, nativamente ou pela força que se impuseram a si mesmas. Quando se lhes faz algo de mau, elas estão prontas a perdoar. Quando se lhes manda alguma coisa, estão prontas a obedecer. Quando alguém se esquece delas, não tomam isso em linha de conta. São almas que estão longe de serem insensíveis. Mas têm isto de particular: são sensíveis para o bem, mas não para o mal que se lhes faz.

Essas são as almas que saltam na defesa da causa da Igreja, caso os princípios sejam atingidos. Porque quem se esquece de tal maneira de si mesmo pode ter amor aos princípios. São, portanto, as almas doutrinárias, que sabem o que é a procura do absoluto, convictas de que na vida a única coisa que vale é defender as coisas que são, afinal de contas, a semelhança de Deus na Terra e por causa disso, mais do que tudo, a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, a qual compendia em si todos esses valores.

O sofrimento é a lei da vida

Pelo contrário, uma alma que não se tenha compenetrado de que o sofrimento é a lei da vida, vive sofrendo. Porque cada coisa desagradável que lhe acontece é para ela uma aberração. Ela anda na rua, por exemplo, e tropeça, resmunga contra o calçamento; toma um táxi e o motorista não entende o caminho, ela acha um absurdo ter que explicar para o chauffeur como chegar ao destino; faz um passeio e, por mais que durante a viagem desfrutasse tudo do melhor — a hospedagem, um palácio; a comida, um banquete —, se teve algum enfado com companhias pouco interessantes, já é o suficiente para considerar frustrado o passeio. Por quê? Porque a pessoa imagina o seguinte:

“O normal, o banal é que me corra tudo perfeito. É a mínima das obrigações da vida para comigo. Alguma coisa que tenha saído de errado é um contrassenso. Como isso foi me acontecer?! Não entendo, não posso aceitar! Revolto-me!”

Às vezes, uma pessoa assim apresenta fisionomia muito alegre. Mas, vai-se ver por detrás e se nota uma tensão contínua, porque ela está, a todo o momento, com pânico de acontecer alguma coisa que seja um sofrimento. E, por outro lado, como os padecimentos vão surgindo, o indivíduo fica mais ou menos como um sujeito que tem a toda hora um pernilongo pousando em cima dele.

Quando não é pernilongo, é uma pedrada ou um tiro… Então a pessoa julga-se como uma espécie de tiro ao alvo, com os mil sofrimentos que lhe vêm sucedendo. Resultado: é a pior vida possível. Há um tipo de homem infenso à penitência porque julga estar nesta vida só para gozá-la, e não se preocupa com mais nada. Por isso, não quer aceitar a virtude e as dificuldades que ela traz consigo e, portanto, recusa toda e qualquer forma de sacrifício.

Uma segunda modalidade, que vem disfarçada com aspecto de virtude e, por isso, nos ilude mais facilmente, apoia-se na seguinte ideia: “Os sofrimentos necessários para não pecar eu aceito; porém, nenhum outro. Tenho o direito de gozar minha vida e quero fruí-la inteiramente, pois ela me foi dada para ser desfrutada. Eu me limito a não pecar; quanto ao mais, vivo completamente folgado”.

Quem pensa assim, na grande maioria dos casos, não se mantém fora do pecado e acaba por sucumbir nele, porque é um desvio completo da ideia da finalidade desta vida, que não consiste em que nós apenas gozemos dentro dos limites da virtude. A vida nos foi dada para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo. E, entre os serviços que podemos prestar ao Criador, um dos mais insignes, sobretudo em nossa época, é lutar por Ele. Servir, amar e lutar por Deus em toda medida do possível: é para isso que existimos.

Soldados da Igreja militante

Quer dizer, a vida não nos foi dada para o prazer, mas para o heroísmo, para a luta. E devemos considerar um ou outro prazer que nós nos proporcionemos apenas como uma coisa transitória, para descansar e recomeçar a batalha.

Para saber se o prazer é bom ou mau, devo julgá-lo de acordo com este critério: se terminado um determinado deleite, estou mais disposto à luta, à seriedade, à mortificação, esse prazer é bom; se, pelo contrário, fico mais mole ou menos desejoso de seriedade e de coisas elevadas, então esse deleite é ruim.

Todo prazer, todo descanso não é senão um interstício para servimos melhor a Nossa Senhora. Mas, como filhos da Igreja militante, nossa finalidade é de lutarmos a vida inteira, e de aguentarmos todas as aridezes e dificuldades da vida combatente.

Imaginem um soldado que esteja sentado na trincheira, num momento de intervalo de luta, olhando para o campo: “Que bonito esse campo, que lugar pitoresco onde foi aberta essa trincheira!”
Alguém diz para ele:

— Fulano, você tem que se preparar para a luta de amanhã!
— Ah, eu não! Esse negócio de avançar, passar o dia inteiro lutando, não! Cumpro o meu dever mínimo de soldado, sem desertar nem trair em favor do inimigo. Não entrego um palmo de território nacional.

Com um homem assim perdem-se todas as guerras!

Ora, somos soldados da Igreja militante e devemos ter em mente que a vida nos foi dada não para o prazer, mas para o dever.

As almas com espírito de mortificação, que compreendem quanto é natural sofrer, estão aclimatadas ao sofrimento como no seu ambiente próprio. Elas podem até gemer e pedir a Deus que afaste delas a dor, mas considerando normal passarem por padecimentos. Essas recebem o cêntuplo nesta vida, e até mais do que isso.

Intrepidez e iniciativa na luta contra o mal

Aqueles que procuram fugir da dor sofrem muito mais. Não há coisa pior do que a vida empregada exclusivamente para o prazer. O gozo meramente terreno, sobretudo quando é imoral, não passa de uma ilusão. Nos primeiros momentos dá uma satisfação pseudoinebriante, mas depois não resta mais nada a não ser a frustração.

Verdadeiramente, o papel do sofrimento bem aceito é o de dar esta alegria, esta serenidade que os antigos chamavam consolação, em meio a uma nobre tristeza.

Se analisarmos bem a realidade, veremos que nos povos onde mais se busca o prazer e mais se foge do sofrimento, há maior número de psicoses. Naqueles em que há menos procura de prazer e mais resignação com o sofrimento, existe mais força, mais consolação.

São Pedro de Alcântara e outros santos penitentes nos dão exemplos, para admirarmos até o último extremo da admiração — termos uma dessas venerações que nos varam a alma de lado a lado — aqueles que sofrem; mas que sofrem com grandeza, com resignação, com entusiasmo.

Uma das mais profundas e importantes formas de sofrimento é aguentar a luta contra o mal. E não apenas aguentar, mas ter espírito de intrepidez e de iniciativa nessa luta, o espírito militante de um São Miguel Arcanjo, de espada na mão, pronto a ser o primeiro em todas as batalhas, a dizer “não” a todos os adversários da Fé. Esse ânimo de heroísmo e de intrepidez, enfrentando todos os trabalhos e todas as lutas, é a fina ponta do espírito de sofrimento.

É, sobretudo, isso que devemos querer ao pedirmos o espírito de penitência, o senso da mortificação, sem os quais não se pode ter o desejo das coisas espirituais nesta Terra nem das coisas celestes. Peçamos, então, a São Pedro de Alcântara que no-los alcance.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/10/1964 e 19/10/1965)

1) Parte I, Cap. III, 2. B.
2) Publicada na Revista Dr. Plinio n. 107, p. 13.

Inefável sorriso

O Divino Mestre nos convida a segui-Lo no caminho do Calvário, carregando nossa cruz. Caminho de lutas, de deveres e trabalhos por amor a Deus. Porém, para o fazermos, cumpre que O sigamos passo a passo, pondo nossos pés onde Jesus pôs os d’Ele, ou seja, na mais estreita e íntima união com o Redentor.

E tal só alcançaremos se, ao longo desse caminho, para auxiliar a nossa fraqueza, consolar os nossos corações, sentirmos que sobre nós paira aquilo que há de mais doce no Céu e na Terra, depois da clemência do próprio Deus — o sorriso inefável de Maria Santíssima.

(Extraído de conferência em 11/4/1964)