Régia amenidade

À primeira vista, no esplendor da Idade Média não havia lugar para a candura e a intimidade. Entretanto, como nos mostra Dr. Plinio a seguir, esta foi a época em que os homens mais sentiram sua intimidade com Deus.

 

Há um aspecto da Idade Média continuamente desfigurado pela detração da Revolução: quando vemos altos castelos com torres, ameias, barbacãs, fosso e ponte levadiça, temos, naturalmente, a ideia de um edifício construído para a luta. E, como os castelos são, juntamente com as igrejas, o principal tipo de edifício que restou da Idade Média, elaboramos facilmente a ideia de que essa época foi de uma gravidade extraordinária, uma seriedade admirável, uma compostura perfeita.

Uma era histórica na qual todo mundo, perpetuamente, estava numa atitude recolhida, tendente ao sublime e, por isto mesmo, tendente ao severo. E dessa concepção deduzimos que na Idade Média não cabia um sorriso, uma alegria, uma manifestação de contentamento; que aquela magnífica apresentação hierática, eu diria quase decorativa, dos personagens medievais, excluía certa intimidade, bondade, abertura de alma.

Sorriso da vida de todos os dias

Nada é mais falso do que isso. Quem conhece o bê-á-bá a respeito da Idade Média sabe dos grandes festins que a caracterizaram. Não só os festins aristocráticos nos castelos e nas residências reais, mas também as grandes festas populares, em que, por exemplo, nas praças públicas da cidade, algumas fontes jorravam vinho horas seguidas, por conta do Rei ou do senhor feudal; ou, mais modestamente, jorravam leite; em que se levavam bois inteiros para a praça pública, onde eram organizados churrascos, em torno dos quais a população dançava. E, para terminar a festa, o senhor do lugar jogava peças de ouro a mancheias para o povo, que as apanhava para fazer compras no pequeno comércio dos arredores, sobretudo de comes e bebes.

Entretanto, havia mais do que essa alegria magnífica das festas. Existia um sorriso da vida de todos os dias, uma beleza inocente e cândida do contato das almas nas ocasiões normais da vida, que podemos apreciar bem nas iluminuras medievais.

E, às vezes, também nos vitrais que, com cores estupendas, nos apresentam as cenas mais modestas. Por exemplo, um boi puxando um arado e um camponês que vai jogando as sementes. Mais adiante, um grupo de mulheres que lavam roupa e as batem sobre umas pedras colocadas junto a um rio.

Depois, um copista, homem do povo, sentado junto a uma janela com vitral colorido, e que está copiando um texto qualquer. Junto dele, um vasinho bem medieval, pequenino, do qual sai uma só flor enorme, que não se sabe como fica em pé ali; e na frente um “lirião”, colhido em não sei que jardim maravilhoso. Céus claros, azuis de anil, nos quais voam aves de cores brancas, ou variegadas, em voos também bonitos. Cercas modestas de agricultura, não apenas magníficos jardins, fileiras de legumes e de outras plantações, mas tudo apresentado com um colorido tão bonito e tão real ao mesmo tempo, que se percebe com que cores interiores a alma inocente do homem medieval via as coisas.

Pompa e amenidade

O mesmo se dava com a piedade. Naquele tempo, a Igreja Católica, como sempre fez, realizava cerimônias magníficas e com pompa extraordinária, sobretudo nas grandes catedrais, em cujos vitrais penetrava a luz do Sol enquanto a Missa se desenrolava na capela-mor da igreja, com belos paramentos, o órgão tocando, o povo ajoelhado, o incenso perfumando todo o templo.

Dir-se-ia que nessa pompa não caberia intimidade. Mas é o contrário. Se houve época em que os homens sentiram a sua intimidade com Deus, a misericórdia, a bondade, a afabilidade, essa época foi a Idade Média. E mil contos dessa época histórica, alguns talvez fantasiados, mas muitos deles, no total, verdadeiros, celebram, por essa forma, a extraordinária amenidade de Deus, de seus Anjos e Santos, sobretudo de Nossa Senhora, Rainha de todas as virtudes, e, portanto, Rainha também da materna e régia amenidade para com seus fiéis.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/11/1976)
Revista Dr Plinio 164 (Novembro de 2011)

A primeira Comunhão

Na manhã do dia 19 de novembro de 1917, o jovem Plinio recebia por primeira vez a Sagrada Comunhão. Ao longo de sua vida, inúmeras vezes recordaria ele, com profunda devoção eucarística, aquela data que lhe era sobremaneira cara. Evoquemos uma dessas suas reminiscências:

 

A atmosfera que cercava as primeiras Comunhões no meu tempo de menino era muito especial e foi toda ela organizada segundo a doutrina e a mentalidade do grande São Pio X, o Papa das primeiras Comunhões. Antes de São Pio X, a tendência corrente era de que as pessoas só fizessem a primeira Comunhão quando estivessem inteiramente adultas, de maneira tal que era frequente o fato de que comungassem pela primeira vez ao se casar. O noivo e a noiva esperavam essa ocasião para fazer a primeira Comunhão, pela ideia de que esta é uma coisa muito sagrada; e julgava-se que as crianças não deviam se aproximar dela porque não tinham critério para comungar com o respeito e a devoção necessários.

Mais importante é a inocência do que a capacidade de pensar

Foi São Pio X que colocou a questão em termos diferentes. Segundo ele, não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, mas sim que grau de inocência ela tem; porque se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade de pensar, não deveríamos batizar a criança nos primeiros dias depois de seu nascimento.

A criança não pensa, mas o Batismo é uma ocasião para a comunicação de graças extraordinárias, que vão ficar vivendo nela para que, logo no limiar de sua vida de pensamento, comece pensando bem; já seus primeiros passos são fortalecidos pela graça do Batismo. Por causa disso a Igreja batiza as crianças logo depois do nascimento.

O mesmo se pode dizer com relação à Sagrada Comunhão. Desde que a criança tenha a ideia, saiba distinguir entre hóstia e pão, compreenda que a hóstia é feita da mesma matéria que o pão; mas que, pronunciadas as palavras da Consagração, há uma transubstanciação, uma mudança de substância do pão e do vinho, e passa a estar ali presente verdadeiramente, em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, Nosso Senhor Jesus Cristo. Então, se a criança compreende isso e cumpre as necessárias condições, pode comungar, porque ela está na sua inocência.

Trajes de primeira Comunhão

São Pio X quis, e se executou no tempo dele, que a festa da primeira Comunhão fosse muito solene. Eram ornamentadas as igrejas, os altares, as crianças iam vestidas com trajes especiais de primeira Comunhão.

Lembro-me de que as meninas iam trajadas de noivas: vestido branco até aos pés e véu, grinalda, flores, sapatos, tudo de cor branca, porque eram inteiramente inocentes e virginais e caminhavam de encontro ao seu Salvador.

E os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto as posses de seus pais o permitiam. Por causa disto, os pais — não necessariamente muito ricos, mas que possuíam certa largueza — mandavam fazer roupa especial para os meninos, que, no meu tempo de infância, era a cópia da roupa oficial usada em solenidades por uma das escolas mais famosas do mundo: o Colégio Eton, na Inglaterra.

E no braço esquerdo colocava-se uma fita que formava um laço em cujas pontas havia uns pingentes dourados. O branco da fita simbolizava a castidade, a virgindade daquele menino, e os pingentes dourados possivelmente representassem a Fé.

No próprio dia da primeira Comunhão, recolhimento e não festa

No dia da primeira Comunhão se fazia uma festa em casa. A recepção da Eucaristia era de manhã e a festa à tarde. A família de quem fez a primeira Comunhão convidava os parentes e amigos, mais ou menos da mesma idade. Então compareciam vinte, trinta crianças numa festa enorme onde se servia chocolate — que era tido como uma maravilha; hoje o chocolate se tornou comum — não com creme “chantilly”, mas com clara de ovo. São Paulo ainda era uma cidade tão primitiva que não conhecia creme de “chantilly”. Então vinham aquelas montanhas de clara de ovo batida em cima do chocolate e as crianças devoravam aquilo. Havia também frutas, doces, sanduíches, sorvetes, refrescos.

Terminado isto, se fazia uma correria pelo jardim da casa. À noite, ia-se dormir, depois de ter rezado.

Dona Lucilia, que organizou a primeira Comunhão dos filhos dela e de uma sobrinha que morava conosco em casa, filha de uma irmã dela, entendeu que desse modo a preparação não estaria bem feita. Se a festa fosse realizada no dia da primeira Comunhão, por causa da natureza da imaginação infantil, haveria o risco de a criança amanhecer pensando mais na festa do que no Santíssimo Sacramento.

Nós tivemos um curso de preparação com um padre que dava as aulas só para nós três — os filhos dela e uma sobrinha —, explicando a Doutrina Católica e a História Sagrada.

Depois de examinados e tendo sido verificado que sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma primeira Comunhão da Paróquia de Santa Cecília. Havia muitas crianças, vestidas de acordo com os níveis econômicos dos pais, que eram naturalmente os mais variados. Algumas estavam ricamente trajadas, portando, por exemplo, as meninas, livro de oração todo forrado, interna e externamente, com madrepérola ou até com pérolas na bordadura; e os meninos, livro impresso em várias cores e muito bonito; além disso, tinham lindos rosários.

Então, com o afeto e o cuidado que era todo dela, Dona Lucilia nos chamou alguns dias antes da primeira Comunhão e nos avisou como seria o programa. Ela disse o seguinte: “Vocês devem entender que a festa não vai ser no dia da primeira Comunhão. Nesse dia vocês não vão estudar nem trabalhar, será um feriado. Vocês devem ficar o tempo inteiro fazendo coisas tranquilas, pequenos brinquedos calmos, rezando, procurando lembrar-se do que se deu com vocês, andando dentro da casa de um local para outro — a residência era muito grande —, mas não podem ir ao jardim nem ficar olhando pelas janelas. Têm que estar olhando dentro de casa, para concentrar o pensamento no Santíssimo Sacramento”.

Papel com a relação dos pecados

A preparação feita com muito cuidado pelo padre, as explicações de Dona Lucilia que completavam as aulas do sacerdote e, depois, esse aviso nos fizeram ver bem como era sério o passo que íamos dar; e evidentemente próprio a determinar em nós todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu tinha nove anos de idade, tomei muitíssimo a sério o que ela disse e fiz o propósito de observar esse recolhimento.

Fiz a primeira Confissão tão seriamente que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados, anotei uma lista deles para confessá-los ao padre. Quais seriam os pecados de um menino de nove anos? Podemos imaginar.

Entrei no confessionário e o padre ouviu a minha confissão.

Quando cheguei em casa, pouco tempo depois, mexendo nos bolsos não encontrei o papel contendo a relação de meus pecados.

Então, eu disse a Dona Lucilia:

— Mamãe, preciso ir à igreja para pegar o meu papel, porque se alguém ficar com a lista dos meus pecados, estou perdido.

Ela percebeu logo que era coisa de criança, mas ficou até satisfeita vendo como eu tinha tomado a sério a minha primeira Confissão.

Enquanto ela falava comigo sobre isso, uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, muito piedosa, chamada Madalena, estava dobrando umas roupas para colocá-las num armário. Mas naturalmente prestava atenção na conversa de Mamãe comigo e ouviu o que eu falei.

A Madalena disse então o seguinte:

— Ah! eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Dona Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio.

Fiquei ultrajadíssimo, mas notei que Mamãe não tomou isso ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E vendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato.

A Madalena foi à igreja e não encontrou a lista. Com certeza um sacristão ou alguém que limpava a igreja jogou fora aquele papel. Não sei que pecados estavam ali anotados; devo ter dito alguma mentirinha, faltado com o respeito a papai e mamãe, mas eram pecados que eu não deveria ter feito e precisava pedir perdão a Deus.

O traje do Colégio Eton

Tive também que experimentar o famoso Eton, para ver se caía bem. Durante toda a vida, tive um desagrado de experimentar roupa: o alfaiate punha uns alfinetes, depois marcava com giz. O homem fez aqueles ajeitamentos e chegou à conclusão que o Eton estava muito bom. Foi também a opinião de Dona Lucilia, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eton mal cortado. O alfaiate seria muito bem tratado, receberia um bom pagamento pelo trabalho sob a condição de estar perfeito. Mamãe achou que estava perfeito.

O vestir o Eton deu-me muita alegria. Não sei se entrava alguma vaidade pelo meio, mas eu me considerava muito importante com aquele traje. Tinha a sensação de que ficara de repente mais velho e, portanto, mais capaz de me impor ao respeito dos outros.

Na noite que precedeu a primeira Comunhão eu tive um sonho. Porém um sonho muito singular, porque eu via Nosso Senhor em pé junto à porta de uma casa bem branca, iluminada por dentro com uma luz muito clara. Ele vestia uma túnica branca e uma capa vermelha, me olhava e abria os braços para mim.

Isso não tinha nada de comum com uma visão porque, no meu sonho, a casa na qual estaria Nosso Senhor era um enorme doce de coco, todo revestido de branco. Sendo preciso notar que jamais gostei de doce de coco; e que se me fizessem um doce de coco branco ou vermelho, ou de qualquer cor, eu não comeria. Portanto, vê-se que não foi uma coisa mandada pela Providência, mas um sonho natural de uma criança que está, isto sim, tomando profundamente a sério a Comunhão que vai receber.

Grande veneração para com a Igreja Católica

No dia seguinte, minha irmã, minha prima e eu fomos cedo à Igreja de Santa Cecília, cada um levando uma vela, pois em determinado momento da Missa eram acesas as velas de todas as crianças. Havia fiscalização, naturalmente, porque de repente pegava fogo no véu de uma menina… Tudo era muito organizado.

Afinal começou a Missa, cantada, um tanto longa, na qual eu me lembro de que prestei muita atenção, sem entender bem o que era a Missa. Eu sabia tratar-se de uma oração da Igreja, mas de que era a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, na qual se dava a transubstanciação, eu tinha certa noção, mas não tão clara quanto seria desejável. Sem embargo disto, vendo que era uma cerimônia da Igreja, e pela enorme veneração que eu tinha para com a Igreja, assisti à Missa muito atento e rezando.

Na hora da Comunhão, eu entrei na fila dos meninos e, graças a Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e rezei bastante. Depois, naturalmente, terminou a cerimônia e cada criança foi para casa com os seus.

Preparação para resistir à revolução “hollywoodiana”

Alguém dirá: “Mas que primeira Comunhão pobre! Nós esperávamos muito mais graças, algum milagre”.

A minha vida não tem milagres. Ela sempre se fez de piedade, atenção, vontade de cumprir perfeitamente os Mandamentos da Lei de Deus, os Mandamentos da Igreja; fazer vencer a Igreja sobre a Revolução e implantar o reino de Nossa Senhora na Terra.

Então, do que serviu a primeira Comunhão?

Ela foi a primeira de uma série de Comunhões e, sobretudo, preparou a minha alma para algo de especial: quando eu tive o meu primeiro contato com a revolução “hollywoodiana”, imperando no recreio do Colégio São Luís, ofereci resistência. Uma resistência muito dolorida, mas forte e decidida. Eu não me lembro, graças a Deus, de ter tido a menor dúvida: “É preciso ir para a frente até ao fim”. Não cedi em nada e aqui estou.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1994)
Revista Dr Plinio 164 (Novembro de 2011)

 

Peregrinando dentro de um olhar

Fisionomia igual não conheço. Tenho-a bem diante de mim, e, movido pelo hábito inveterado de tudo observar e explicar para meu próprio uso, fito-a com atenção. E de repente percebo que entro dentro dela.

Que tal peregrinar dentro de um olhar…

Sim, essa fisionomia única como que deflui da face e especialmente dos olhos. Envolve-me no ambiente que ela cria. Ao mesmo tempo, convida-me a entrar fundo no seu olhar.

— Que olhar! Nenhum é tão límpido, tão franco, tão puro, tão acolhedor. Em nenhum se penetra com tal facilidade. Contudo, nenhum também apresenta profundidades que se perdem em tão longínquo horizonte. Quanto mais dentro desse olhar se caminha, tanto mais ele atrai para um indescritível ápice interior e profundo.

— Que ápice? — O estado de alma que eu seria tentado a dizer cheio de paradoxo, se a palavra “paradoxo”, da qual tanto se abusa na linguagem corrente, não me morresse nos lábios por desrespeitosa.

Faça uma peregrinação dentro de um olhar…

Toda perfeição — diz a Escola — resulta do equilíbrio de contrários harmônicos. De nenhum modo é um equilíbrio precário entre contradições flagrantes (e, dizendo-o, penso nesta pobre paz, esclerosada e vacilante, que o mundo contemporâneo procura preservar à custa de tantas concessões e tantas vergonhas), mas uma harmonia suprema entre todas as formas de bem.

É precisamente este vértice, no qual todas as perfeições se conjugam, que vejo erguer-se no fundo desse olhar. Vértice incomparavelmente mais alto do que as colunas que sustentam o firmamento. Vértice do alto do qual um imperativo cristalino, categórico, irresistível exclui toda forma de mal, por mais leve e miúdo que seja.

Pode alguém passar a vida inteira caminhando dentro desse olhar, sem jamais tocar nesse vértice. — Caminhada inútil? — Não. Dentro desse olhar não se anda; voa-se. Não se passeia; faz-se peregrinação.

Aquela montanha sagrada, súmula de todas as perfeições criadas, o peregrino, sem jamais alcançá-la, cada vez a vê mais claramente à medida que voa em direção a Ela.

Ao longo desta peregrinação da alma, o olhar no qual voa, já não o envolve, apenas. Mas penetra nele. Quando o peregrino cerra os olhos, julga vê-lo à maneira de luz no mais profundo de si mesmo. Tenho impressão de que, se durante toda a vida, ele for fiel nesse vôo, quando cerrar definitivamente os olhos, esta luz brilhará no fundo de sua alma por toda a eternidade.

O olhar é a alma da fisionomia. — Que fisionomia essa, que tenho diante de mim! A um tolo, pareceria inexpressiva. A um observador destro ela manifesta uma plenitude de alma maior do que a História, porque toca na eternidade. Maior do que o universo, porque espelha o infinito.

A fronte parece conter cogitações que, a partir de um Presepe e a terminar em uma Cruz, abarcam todo o acontecer humano.

A face toda, o nariz, cuja linha possui um “charme” “mais belo do que a beleza” segundo diz o poeta, os lábios silenciosos, mas que dizem tudo a todo momento, parecem louvar a Deus em cada criatura segundo as características de cada uma; e pedir a Deus por toda miséria como se estivesse a condoer-se das peculiaridades de cada uma delas… Estes lábios têm uma eloquência perto da qual a de Demóstenes ou a de Cícero não seriam senão barulheira. — O que dizer da cútis: nívea? — O qualificativo diz tudo e não diz nada. Pois, para descrevê-la seria preciso imaginar um níveo que deixasse reluzir em sua profundidade, com discrição infinita, todos os matizes do arco-íris, e com isso mesmo inspirasse na alma de quem a contempla todos os encantos da pureza.

Que olhar! Peregrine dentro deste olhar

Sim, peregrinei neste olhar tão cheio de surpresas. E, inesperadamente, percebo que o olhar peregrina ao mesmo tempo dentro de mim. Pobre e misericordiosa peregrinação, não de esplendor a esplendor, mas de carência a carência, de miséria a miséria. É só abrir-me a ele que, para cada defeito, ele me oferece um remédio, para cada obstáculo uma ajuda, para cada aflição uma esperança.

Mas, afinal, quem tenho diante de mim? — Uma imagem de madeira como tantas outras, sem nenhum valor artístico especial.

É só fitá-la, entretanto, que, sem mover-se, sem a mínima transformação, essa Imagem começa a fazer luzir todos esses esplendores.

— Como? — Não sei também.

Se crês na descrição que fiz, convido-te a que faças por tua vez esta magnífica peregrinação dentro do olhar da Virgem. Se não crês, vem ver; melhor convite eu não poderia te fazer.

Reza então por ti. Reza pela Santa Igreja conturbada e atormentada como nunca. E por esse enorme Brasil de Maria.

 

(Plinio Corrêa de Oliveira, Folha de São Paulo)

Porte régio e virginal

Certa noite, uma belíssima imagem de Nossa Senhora das Graças, de tamanho natural, foi transportada para o auditório onde Dr. Plinio fazia conferências aos membros do Movimento por ele fundado. Diante dessa imagem, ele teceu as considerações que a seguir reproduzimos.

 

Não me lembro de quando vi, pela primeira vez na minha vida, uma representação de Nossa Senhora das Graças. Mas na minha mais tenra infância — oito, nove, dez anos — já esse sorriso expresso na imagem me acompanhava. Não como algo no qual eu pensasse de modo ininterrupto, mas à maneira de uma recordação: alguma coisa que vi e ficou na minha memória, na minha veneração, no meu afeto, sem que constituísse objeto contínuo de minhas cogitações. De vez em quando, vejo essa invocação, encontro uma imagem, uma estampa, uma medalhinha, ou alguma outra coisa que me fala de Nossa Senhora das Graças.

Revelações a Santa Catarina Labouré

Não tenho palavras para lhes exprimir com que cuidado tomei conhecimento das revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, cujo texto li com uma atenção com que um tabelião não leria uma escritura pública. Quer dizer, palavra por palavra, pormenor por pormenor, procurando entender, observar e compor bem o conjunto de fatos que caracterizaram aquelas revelações. Evidentemente, não houve uma ocasião em que, estando em Paris, eu não fosse mais de uma vez à Rue du Bac(1), onde se deram as aparições.

Tudo isto está presente em meu espírito, mas, como dizia, não é objeto de uma cogitação contínua. Entretanto, nunca aconteceu que, olhando para uma imagem, estampa, figura de Nossa Senhora das Graças, ou simplesmente para o verso da Medalha Milagrosa — onde tem aquele “M” com o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria —, eu não sentisse, de modo muito distante, muito vago, ou muito próximo, o que a imagem a qual estamos contemplando diz de um modo tão esplêndido.

Como sinto e como se me afigura a imagem de Nossa Senhora das Graças?

Descrição da imagem

Há nela dois aspectos que se completam: Ela está simplicíssima, seu traje não comporta um adorno. A imagem foi concebida de tal maneira que as dobras de seu manto são todas muito bonitas, caem muito bem, mas é o traje de uma dama, de uma mãe de família qualquer, de Belém, de Nazaré, de Jerusalém, naquele tempo, apresentando-se na simplicidade de sua vida cotidiana. Ela possui uma túnica e sobre esta um manto; e outro manto que cobre a cabeça e os ombros. Tudo o mais simples possível.

Entretanto, há qualquer coisa que incute um profundo respeito e nos faz notar que a pessoa representada veio de muito alto. De uma altura que é o Céu, mas do ápice do Céu; acima d’Ela está apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além do respeito, a imagem incute uma veneração que não se sabe como exprimir! Será a virginalidade do rosto? A fisionomia é indiscutivelmente virginal, todo o porte é virginal. Será o régio? Não houve rainha que tivesse tanta majestade. Para fazer uma comparação inadequada: a encantadora Maria Antonieta fica reduzia às proporções de uma boneca de pano perto d’Ela.

Mas, de outro lado, tão presente, tão íntima, tão afagante! Tem-se a impressão de que se Ela nos olhasse, algo do Céu apareceria.

Benignidade, benevolência, doçura

Ela está na atitude de quem olha para a pessoa que estivesse aos seus pés, rezando. E estende as mãos, como quem diz: “Persuada-se! Sou Eu mesma, estou aqui para ajudá-la, favorecê-la e cumulá-la de graças”.

Fica-nos também a impressão de que as mãos acabam de entregar presentes magníficos, e a pessoa foi beneficiada com dons não provenientes desta Terra, e que, evidentemente, são graças.

Da imagem se evola uma benignidade, uma benevolência, uma doçura à maneira de um sorriso. Ela propriamente não sorri, mas tem um comprazimento que eu chamaria de “trans-sorriso”. Alguém que fosse sorrir não estaria em condições de exprimir tudo quanto há nesta imagem. É, ao pé da letra, um “trans-sorriso”, algo que vai além de toda expressão.

E o gesto das mãos parece nos dizer: “Vinde, pedi mais, desejai mais, Eu vos darei tanto quanto pedirdes! Aproximai-vos, não tenhais medo, sou Eu mesma que vim aqui para estar convosco!”

Em meio às mil batalhas, preocupações e aflições, pormenores e providências, e ao fragor — não recuo diante da palavra — das angústias de que nosso caminho está cheio, não é possível termos um repouso melhor do que parar, olhar para a imagem de Nossa Senhora das Graças e, compreendendo tudo isso, pensar: “Ah, então nessa guerra onde é preciso realizar o irrealizável, vencer o invencível, ter forças que não sabemos de onde vêm, necessitamos ter uma enorme confiança porque, nas horas oportunas, Nossa Senhora virá, nos sorrirá e nos ajudará!”

Virá, não necessariamente à maneira de uma visão. É uma grande graça ter uma visão, mas notar numa imagem essas coisas, ter conhecimento de uma graça que nos toca nessas horas e sentir esse orvalho dentro da alma, isto já é tudo.

Graças sobrenaturais e auxílios de toda espécie

Creio que, neste sentido, a invocação é muito acertada: “Nossa Senhora das Graças”. Quer dizer, Nossa Senhora que concede graças. Mas o que quer dizer “graças”? O termo tem dois sentidos: um é o sentido da graça sobrenatural, que é o favor dos favores, o dom gratuito ao qual não temos direito, mas que Nosso Senhor Jesus Cristo nos conseguiu do alto da Cruz, e que Ela esparge, por ser a Medianeira de todas as graças. É graça sobrenatural por onde temos Fé, Esperança e Caridade, e as virtudes cardeais.

Mas são também auxílios de toda espécie, por vezes favores pessoais, personalíssimos, terrenos, os quais desejamos muito em ordem a Ela, para fazer sua vontade, para servir a Causa d’Ela, para lutar por Ela, pedidos por nós com insistência, e que Maria Santíssima acaba concedendo de modo, muitas vezes, inesperado. Na curva de um caminho, na dobra de uma angústia, de repente, surge o favor. Às vezes, não vem automaticamente, demora, e parece suceder o contrário. Mas no fim percebemos que, quando vem, vem mesmo, e com tanta plenitude que somos recompensados de modo superabundante.

Essa é a impressão comovedora que esta imagem me causa. De um modo mais intenso, até, do que tive na própria Rue du Bac, onde, entretanto, encontram-se relíquias tão preciosas: ali está sepultada Santa Luísa de Marillac — fundadora da Congregação religiosa à qual pertenceu Santa Catarina Labouré —; estão os restos mortais desta Santa para quem Nossa Senhora apareceu; a capela da aparição na qual está exposta à veneração dos fiéis a cadeira na qual a Santíssima Virgem sentou-Se para falar com Santa Catarina Labouré, que permaneceu tão perto da Mãe de Deus a ponto de apoiar os cotovelos sobre os joelhos d’Ela.

Será algum predicado natural da escultura? Meramente natural não pode ser, porque aquilo que é ocasião de um ato de amor a Nossa Senhora não pode ser meramente natural. Pode haver algo de natural ali que sirva de ocasião, mas o amor a Ela é sobrenatural, vem de uma graça. Sem uma ação sobrenatural da graça, não seríamos capazes sequer de pronunciar piedosamente os nomes de Jesus e de Maria. Tudo quanto diz respeito à Fé e à vida da Fé, vem do sobrenatural.

A alvura da imagem

Há algum desígnio de Maria Santíssima por onde Ela torna mais sensível essa graça, quando se olha para esta imagem de Nossa Senhora das Graças? Não um intuito arbitrário, pois a palavra “arbitrário” aqui toma a má conotação de “caprichoso” — a Rainha da Sabedoria não tem nada de caprichoso —, mas algo que é um desígnio d’Ela, que nós não conhecemos. É possível; e se for realmente, eu agradeço muito.

O fato positivo é que não tenho possibilidade de olhar para esta imagem sem que, de um modo mais intenso ou menos, não me sinta enormemente propenso a lutar ainda mais, mas com uma forma de refrigério, de luz e de tranquilidade que são peculiares. E que me vêm da ideia de que Ela acaba de distribuir muitas graças e oferece ainda mais.

Eu não posso deixar de ligar isso à alvura extraordinária da imagem. Esse branco corresponde à cor da alma de Nossa Senhora. A inocência da “Sancta Virgo Virginum” — que é inocente sem comparação com nada e com ninguém, acima de tudo, exceto de Nosso Senhor Jesus Cristo — se exprime nesse branco de um modo maravilhoso. Mas também a generosidade, a bondade. Ela dá tudo porque tem as intenções mais alvas possíveis, em relação a todo mundo. Ela quer conceder, quer ser generosa. É verdadeiramente magnífico!

Anéis com pedras preciosas

Não poderíamos encerrar este comentário sem uma palavra a respeito dos anéis. Em suas revelações, Santa Catarina Labouré conta que Maria Santíssima tinha em seus dedos muitos anéis, como usavam as senhoras daquele tempo. Ela quis aparecer assim. E os anéis eram dotados de diversas pedras coloridas, das quais partiam raios de luz. Entretanto, algumas pedras, embora luminosas, não ejetavam luz.

Então Santa Catarina Labouré, com a liberdade que possuía com Nossa Senhora, perguntou-Lhe por que algumas daquelas pedras não reluziam. E Ela deu esta resposta que me impressionou muito: “São as graças que não me foram pedidas. Se pedirem essas graças, Eu darei. Então o reluzimento dos anéis aumentará.”

Poderíamos nos perguntar: para nós, quantos anéis estão por reluzir ainda, e quantos já reluziram? O “thau”(2) que anel será? Existem anéis com uma pedra preciosa em torno da qual estão cravejadas outras pedras preciosas. Quantas pedras preciosas cercarão o “thau”? Que anel soberbo será ele? Nós o contemplamos o bastante para que ele reluza com toda a sua plenitude? Ou seja, pedimos muito a Maria Santíssima para que realmente o “thau” nos venha na abundância que desejamos?

Pedir, pedir, pedir, suplicar, implorar! “Pedi e recebereis, batei e a porta vos será aberta…”(3) Isso se aplica à imagem; Nossa Senhora, a bem dizer, está com as portas abertas, como quem diz: “Meus filhos, vós não pedistes do lado de fora, não batestes na porta; então Eu  a abri e aqui estou. Aqui estão meus anéis. Vinde, meus filhos, e aproximai-vos!”

Ao cabo de um dia com dificuldades, um refrigério incomparável

Imaginem, assim, qual foi a minha impressão, entrando neste auditório, ao encontrar de um modo inteiramente inesperado esta imagem. E me perguntei: “Por que eu estava tão longe de pensar nisso?” E vieram-me à mente várias pequenas razões: em primeiro lugar, o peso e o risco do transporte, que é a menor das razões: “Se esta imagem se danifica, se quebra um dedo ou um pouco do manto, que coisa perigosa!”

Mas, depois, também a ideia de que a imagem representa a Rainha, a qual não se move. Ela atrai a Si; dir-se-ia que a Rainha não vai atrás de ninguém.

Sem dúvida, entrou algo de meus hábitos mentais. Eu sou muito estático e imagino as coisas como sempre permanecendo, não se movendo. Sou bastante contínuo, e a ideia de transportar uma imagem assim, parece-me qualquer coisa difícil de conceber.

Tudo isso junto concorreu para que a mim fosse uma verdadeira, enorme e agradabilíssima surpresa encontrar aqui esta imagem. Uma surpresa que veio ao cabo de um dia com dificuldades, problemas e perspectivas de toda ordem, dando-me esse refrigério que é incomparável, e uma emoção que eu não quis esconder. Fiquei realmente gratíssimo!

O Paraíso de Deus

Depois, pensando melhor, será que a Rainha não vai atrás de seus súditos? Ela não é Mãe do Bom Pastor, que deixa noventa e nove ovelhas e sai à procura de uma? Por que não supor que a imagem d’Ela seja deslocada por filhos muito devotos para que um outro filho a veja? E, assim, todos A amarem, A festejarem, A glorificarem e A celebrarem juntos? Isso é tão adequado, tão magnífico!

Eu rezo frequentemente, sobretudo no momento da Comunhão, pedindo a graça de levar minha devoção a Nossa Senhora absolutamente tão longe quanto a Doutrina Católica permita. Não desejo ir um milímetro além disso, mas quero levá-la até o último ponto onde caiba dentro da Doutrina Católica. E isso representa um céu, porque o homem não consegue sondar com o olhar o firmamento da devoção a Ela.

Tomemos em consideração que Ela é chamada por São Luís Grignion de Montfort “o Paraíso de Deus”. Quer dizer, na felicidade eterna e perfeitíssima que Deus tem em Si mesmo, quis ter Maria Santíssima como seu Paraíso. Compreendemos, assim, qual é a elevação e quais são os dons d’Ela, e até onde deve ir a nossa admiração e nosso amor Àquela a Quem, num certo sentido da palavra, o próprio Deus admira, e que Ele criou para ter o gosto de admirar.

Imagens existentes no quarto de Dona Lucilia

No oratório de minha mãe em minha casa, colocada sobre uma peanha, há uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. À frente, em um nível mais baixo, há três imagens: uma de marfim, dada a ela por um padrinho de casamento, que por coincidência era também juiz, e a quem mamãe chamava de “meu juiz”. Não conheci este homem e nem sei seu nome. E tampouco ela sabia de que santa era aquela imagem. Mas a conservava por respeito, por saudades.

Há também uma imagem do Menino Jesus, e depois, correspondendo à mão direita da imagem do Sagrado Coração de Jesus, uma imagem de Nossa Senhora das Graças.

Por seu estilo, esta última parece ter sido feita antes de meu nascimento, pois é da mesma escola da imagem do Sagrado Coração de Jesus, que é certamente anterior ao meu nascimento. Portanto, desde a minha primeira infância foi uma das imagens de Nossa Senhora das Graças para a qual olhei.

Eu vi Dona Lucilia rezar muitas vezes para essas imagens, com muita devoção, muita atenção, muita confiança. Sem acontecer nada de milagroso ou de extraordinário, eu notava uma consonância entre ela e a imagem do Sagrado Coração de Jesus, mais ou menos como se Ele estivesse refletindo-Se nela. E havia também uma consonância, quando mamãe rezava para a imagem de Nossa Senhora das Graças. E cada vez que ela a osculava, eu tinha a impressão de que toda essa doçura se refletia também em mamãe. E, no modo de ela rezar, punha aquilo ao nosso alcance.

Alguém poderia me perguntar: “Mas se é assim, por que o senhor não tira aquela imagem daquele oratório e a põe ao alcance dos seus olhos continuamente?”

A resposta é: Não se deve estar a provocar coisas de modo contínuo. Quando minha mãe morreu, a imagem estava lá. Inúmeras vezes, durante minha vida, eu a olhei. Mas acho que não a devo tirá-la de lá. Ela está onde mamãe a deixou quando faleceu, tendo ali passado grande parte de sua vida. Eu nunca vou ao quarto sem olhar para a imagem e rezar um pouco. Mas não seria homem de, por assim dizer, forçar a continuidade da graça, pondo uma imagem de Nossa Senhora das Graças diante dos meus olhos, e dizendo: “Agora eu Vos agarrei”. Não é do meu gênero. Há imponderáveis que levam a uma outra atitude. É o que eu teria a dizer.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/10/1981)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)

 

1) Nome da rua onde se encontra o Convento das Filhas da Caridade, em Paris, França.

2) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir em favor da Igreja e da implantação do Reino de Maria.

3) Cf. Mt 7, 7.

Para alcançar a emenda de meus defeitos

Ó Senhora, Vós sois a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Mãe de todos os homens e, portanto, também a minha Mãe! Eu serei, talvez, o último dos filhos, mas Vós sois a mais alta e a mais excelsa de todas as mães. Se meus pecados são um abismo, a vossa compaixão é uma montanha muito maior do que esse abismo.

Sei que minhas preces, por si mesmas, não valem nada. Mas se o coração da mãe está sempre aberto a perdoar, amar e afagar, quanto mais o vosso, que sois a Mãe das mães! Assim, não desprezeis essas súplicas, mas atendei-as favoravelmente, pois Vos estou pedindo como filho. Alcançai-me a emenda de meus defeitos.

Sei, ó Mãe, que nunca deixareis de olhar com boa vontade para o filho que pede a vossa assistência. Por isso Vos imploro com insistência: tende pena de mim e arrancai–me de meus pecados. Assim seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 21/9/1991)

Nossas obrigações para com a Cruz

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo escrito por São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta esta grave advertência do santo: quem quiser ser um autêntico Amigo da Cruz, deve fugir do mundanismo que o conduzirá por um caminho de perdição, oposto ao da perfeição e santidade para o qual foi chamado.

 

São Luís Grignion de Montfort assim continua a sua Carta:

Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tornardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?

Justificadas apreensões de um Santo

Nestas perguntas transparece intensamente o espírito de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma em consideração os Amigos da Cruz como pessoas eleitas por Deus para um alto chamado. De outro lado, porém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista das condições em que estas pessoas vivem, São Luís manifesta suas  apreensões. Donde formular questões como esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”

Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Portanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadeiro desejo e vontade de assim vos tornardes com a graça de Deus”, etc.?

A formulação empregada por ele é muito apropriada e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que possui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu chamado. Este será considerado igualmente um verdadeiro Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz

Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim como pode haver dois graus de perfeição religiosa no cumprimento de uma vocação.

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformidade do membro de uma ordem com sua respectiva regra. Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ainda neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou, por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um elevado grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele, da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par das graves exigências que a regra lhe impõe.

O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devoção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últimos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pensar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdição? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e segura, e na realidade conduz à morte?”

A expressão “sem pensar”  é curiosa,  e insinua bem o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o homem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, embora não seja inteiramente consciente — e, portanto, não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses Amigos da Cruz.

Censura aos que cedem à concupiscência do mundo

Continua ele:

Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habitantes da Terra (Ap 8, 13), grita‑vos amorosamente, estendendo‑vos os braços: separai‑vos, meu povo (Nb 16, 21). Separai‑vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho, separai‑vos dos mundanos, malditos por minha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11).

Importa compreender bem a razão dessas fortes censuras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo.

Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiritual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscências que inclinam o homem para o pecado e o afastam de Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a santidade deve combater.

No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ainda se revestia de uma aparência elevada e nobre, característica do Ancien Régime prévio à Revolução Francesa, mas que preparou largamente a irrupção desta no cenário europeu. Se tomarmos gravuras que representam burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ainda pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela circunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, considere-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e já não se o distingue mais do nobre, não só porque os trajes se igualaram, mas também por causa da atitude. Nivelaram-se. E o mundanismo revolucionário que impregnava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da sociedade, putrefazendo-a por completo.

Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, atiçadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas. Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.

Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, devemos limpar nossas almas de qualquer laivo de mundanismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de laicista e de fundamentalmente contrário à sabedoria, nos costumes do mundo.

Contagiabilidade da virtude contra o vício

Continua São Luís Grignion:

Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (Sl 1, 1).

Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama: “Feliz o homem que (…) não se assenta entre os escarnecedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta última expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer dizer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o pecado e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual este se instala e aí faz luzir sua “glória”.

Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, 8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas senão as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vosso modelo (Mt 17, 5).

Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, levada a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo.

Por outro lado, é também interessante notar que no meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimentos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu modo contra a decadência generalizada do ambiente em que viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da contagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposição anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversibilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma virtude séria e profunda praticada de um lado repercute no outro. Assim, havendo na Vandeia ou na Bretanha daquela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetivamente separados do mundo, ainda que não conhecessem os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a possibilidade de perseverança, de santificação e de vitória destes últimos no meio dos deleites e das delícias da corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria

Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica personalidade, poderemos ver quanta retidão, compostura, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o trono, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Romano Alemão.

Creio que essa situação só se tornava possível por esse trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava entre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da corte, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afirma, se multiplica e conquista as almas.

Abraçar a Cruz em união com o Divino Redentor

Prossegue São Luís Grignion:

Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o mundo (Jo, 16, 33)?

Conforme o ensinamento de todos os grandes autores, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é suportável quando carregada em união com Nosso Senhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aquele que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças necessárias para aceitá‑la.

É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for elevado, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divino Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquirimos forças para segui-Lo.

E não nos esqueçamos de que essas graças e essas forças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssima, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e coroado de espinhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/6/1967)

Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

 

Súplica da despretensão e do enlevo

Ó Maria, Esposa Imaculada do Espírito Santo, dai-me a graça de ver os imponderáveis da Criação, de me enlevar por eles, e de ser impelido por um amor desinteressado à contemplação das perfeições que a alma humana possui pela natureza e pela graça.

Fazei-me subir dessa consideração à da natureza angélica e puramente espiritual, e, por fim, à de vosso Divino Filho que, na sua humanidade santíssima, é o ápice e a síntese de toda a Criação.

Fazei-me, em seguida, por um voo ainda mais possante de despretensão e de enlevo, fixar a minha mente na consideração da própria essência divina, da qual toda a Criação é imagem ou semelhança, de maneira que, analisando depois as criaturas, possa antegozar o Céu, preparando-me desse modo para entrar nele e Vos louvar por toda a eternidade. Amém.

 

A mais bela coroa do mundo

Ao analisar com muita admiração a Coroa do Império Austríaco, Dr. Plinio nos faz sentir um dos últimos perfumes exalados pela Civilização Cristã e mostra que ela é uma coroa que nasceu não de um mero planejamento, mas de um sonho!

 

A meu ver a coroa imperial da Áustria é a mais bela coroa que existe.

Mandada fazer por Rodolfo II(1) para ser propriedade pessoal dele, depois passou a pertencer ao tesouro do Sacro Império Romano Alemão. Quando este foi extinto, as potências reunidas por ocasião do Tratado de Viena(2) resolveram entregar ao Imperador da Áustria, Francisco I, o tesouro dos imperadores do Sacro Império. Então o novo Império Austríaco, que era uma espécie de continuação do Sacro Império Romano Alemão, tomou esta coroa como sendo a dos imperadores da Áustria.

Caráter intrinsecamente sacral do Império Austríaco

A mim me parece que ela exprime magnificamente a índole, conforme a expressão francesa, “le génie” da Casa d’Áustria, nos aspectos em que ela corresponde à graça.

A coroa é de um valor inapreciável. Ela tem um quê de mitra, exprimindo bem o caráter intrinsecamente sacral do Império Austríaco, continuador do Sacro Império Romano Germânico. É de linhas suaves, enquanto que a coroa carolíngia é mais hirta. Esta é quase uma carícia materna. Ao mesmo tempo é riquíssima, com uma quantidade enorme de ouro, pedras preciosas e pérolas, constituindo uma magnífica coleção.

Ela possui uma cruz do tipo oriental, com as pontas formando trevo. Em cima foi colocada uma safira de tamanho descomunal, muito bonita, a qual significa o nexo entre o Sacro Império e o Céu. É uma gota de Céu posta no alto da coroa. A safira incrustada tem qualquer coisa de fábula!

Essa coroa tem todos os elementos para se fazer uma análise à luz do maravilhoso.

Para mim, o que encanta nela são as duas fileiras de pérolas laterais, que se abrem para cima e formam um todo; isso significa uma espécie de soberania. Para dizer tudo numa palavra só: essas sociedades antigas tinham entidades secundárias que, numa determinada linha, possuíam uma soberania até em relação ao Imperador. Neste sentido, se chamavam cortes soberanas, estados soberanos, vivendo dentro do próprio Estado. Eram determinados valores que tinham uma afirmatividade pessoal e se deviam ver na arquitetura do Estado, mas não se deixavam sorver pelo Estado.

Agradam enormemente esses dois lados, que se apresentam meio entreabertos, para se compreender como esses todos são distintos dentro do “unum”. Justificando um pouco a ideia de que o alemão e o francês são as duas metades do mundo, as quais se completam desta maneira sem se fundirem, em cuja fenda, não de guerra, mas de distinção, se sente melhor a força do pedúnculo. E isto se exprime muito bem nessa coroa, que eu acho rica em sentidos de toda ordem; uma coroa arquetípica.

A meu ver, esta é a coroa! Nela a Civilização Cristã moribunda exalou um dos seus últimos perfumes. O rude, presente aqui, não está nem sequer disfarçado, mas banhado pela safira. Eu considero essa coroa uma verdadeira obra-prima!

Possui esmaltes lindos, com um papel cromático que as pedras preciosas não possuem, e lhe dá uma característica própria. Não tem o requintado francês, mas é uma coisa que voa acima. Se a compararmos com outras coroas, pode-se dizer que essa é o seu pleno “épanouissement”(3). Essa é a coroa por excelência, não há coisa igual.

Percebe-se nessa coroa muita bondade, própria de um reino paterno, uma joia perfeita. É a trans-esfera(4), a águia bicéfala voando.

Dignidade, bondade, esplendor, conforto e força

A coroa de Luís XV é uma maravilha, mas comparada com a coroa austríaca…

Eu a considero como a coroa mais bonita do mundo.

Por quê?

Por uma razão muito simples.  É que, olhando-a, tenho a impressão da beleza total, insuperável e dificilmente igualável.  Logo, tem de ser a mais bonita do mundo. A inteligência de não fazer dessa coroa um capacete todo fechado de metal, mas deixar aparecer dentro um gorro de veludo muito bonito, bem arranjado… Acho essa abertura ideal. Por cima do veludo passa uma espécie de arco, que toca numa ponta e se abre de um modo bonito. Ela tem algo de oriental. Aliás, percebe-se também o papel do sonho nessa coroa; não é uma coroa que se planeja, sonha-se com ela. É uma coisa diferente.

Eu a considero a obra-prima em matéria de coroa.

Ela é austera?

É preciso ver o que se entende como austeridade; se é seriedade, gravidade, creio não haver dúvida de que ela é austera.

O que essa coroa tem de muito interessante é qualquer coisa de materno. Um súdito que olha para essa coroa, e entenda que ela é feita para governá-lo, se sente protegido.

Essa coroa é a imagem de um estado de espírito que abrange não apenas um aspecto, mas toda a mentalidade de um homem. Esse homem sonhou para si um estado de espírito de dignidade, de bondade, de esplendor, de conforto e de força; é o Céu na Terra para ele. E depois ele mandou executar o trabalho.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 13/5/1982,  6/6/1992 e 19/7/1992)

 

1) Rodolfo II de Habsburg (1552-1612). Arquiduque da Áustria, Imperador germânico, Rei da Hungria e da Boêmia, filho de Maximiliano II.

2) Conferência entre embaixadores das grandes potências europeias, realizada na capital austríaca, entre 2 de maio de 1814 e 9 de junho de 1815, cuja intenção era a de redesenhar o mapa político do continente europeu após a derrota da França napoleônica.

3) Do francês: desabrochar.

4) Assim denominava Dr. Plinio as realidades situadas em um plano metafísico, acima das realidades terrenas.

Oração: São Nuno de Santa Maria

Sobre São Nuno de Santa Maria, nome que o Condestável Nuno Álvares Pereira tomou em religião como religioso carmelitano, o Gal. Silveira de Mello, no livro “Os Santos Militares”, diz o seguinte:

“As primeiras atividades militares de Nuno Álvares Pereira foram, no seu dizer, simples escaramuças nas fronteiras de Portugal. Jovem impetuoso, revelou-se logo exímio condutor de seus homens. Certa ocasião, os castelhanos fizeram um desembarque com cerca de 250 homens para estabelecer uma cabeça de praia que facilitasse o desembarque. Nuno, de guarda nessa hora, não possuía senão dois pelotões de 60 homens que o acompanhavam. O chefe português podia opor-se ao desembarque do escalão inimigo, mas exporia a inferioridade numérica de seus homens. Preferiu atacar os castelhanos fora da praia, mas grande parte de sua gente intimidou-se. O inimigo desembarcou sem encontrar resistência e avançou em posição de ataque.

“Nuno, ajudado de poucos cavaleiros audaciosos, fez frente à primeira leva dos inimigos. Atacou-os com fúria, acometendo-os à lança e à pata de cavalo. Quebrando a lança, puxa da espada; o cavalo que montava cai ferido e prende, na queda, a perna do cavaleiro. Os castelhanos aproveitam do incidente e atacam. Vendo o chefe em perigo, os companheiros avançam em seu socorro. Entusiasmam-se os lusos, a princípio indecisos. Nuno não se ferira, protegido que fora pela armadura e pelo escudo. Entra na luta com novo ânimo, luta essa de quatro contra um. Mas aos portugueses vale o denodo do capitão. Os inimigos perdem terreno, debandam, são perseguidos e poucos se põem a salvo.

“A 15 de agosto de 1243, Nuno foi admitido na Ordem Carmelitana com o nome de Nuno de Santa Maria. Foi grande religioso, como fora grande soldado. Encontrou no convento um sacerdote que antes da ordenação fora também soldado e o servira. À sua passagem, o monge terciário … ia beijar-lhe o hábito em respeito à sua dignidade. Por seu lado, o sacerdote carmelita declarava que uma das grandes honras de sua vida fora ter sido pajem do Condestável.

“No último ano de sua vida, em 1431, alquebrou-se o velho guerreiro. O rei D. João foi vê-lo e ao abraçá-lo pela derradeira vez, chorou como quem se despede do melhor amigo. Quando percebeu que sua hora era chegada, Nuno pediu que lhe fosse lida a Paixão do Senhor, segundo São João. Expirou suavemente às palavras …

“Epitáfio de Nuno de Santa Maria: Aqui repousa aquele Nuno, Condestável, fundador da Casa de Bragança, general exímio, depois monge bem-aventurado, o qual, sendo vivo, desejou tanto o Reino do Céu que mereceu, após a morte, viver eternamente na companhia dos santos. Pois, após numerosos troféus, desprezou as pompas e fazendo-se humilde de príncipe que era, fundou, ornou e dotou esse templo.”

Num Canto dos Lusíadas Camões exalta a figura do grande herói português, quando este incita os fidalgos lusos à resistência:

“Atai as mãos a vosso vão receio, que eu só resistirei ao jugo alheio. Eu só com meus vassalos e com esta – Dizendo isso arranca meia espada – Deterei da força dura e infesta – A terra nunca de outrem subjugada. Em virtude do rei, da pátria… – Da lealdade já por vós negada – Deterei não só esses adversários – Mas quanto a meu rei for necessário.”

A grandeza camoniana!…

Os episódios aqui narrados são todos eles de grande significação, tanto a batalha árdua de Nuno Álvares Pereira, quanto depois a sua atuação no convento, e aquela linda reciprocidade de respeito entre ele e o sacerdote.

Ele que como simples donato, quando via passar o sacerdote se levantava e o sacerdote que fora pajem dele, que se honrava em ter sido pajem dele e que sentia uma profunda emoção de respeito quando via D. Nuno Álvares Pereira passar…

O espírito católico se compraz em reconhecer a superioridade  e naquele tempo, ele se exprimia numas manifestações de mútua reverência, de mútuo respeito, de mútua admiração, que faziam crescer ainda mais os valores da Civilização Cristã.

Nós tivemos oportunidade de comentar, há algum tempo atrás, o encontro de Santo Ângelo, carmelita, com São Francisco de Assis e São Domingos, em Roma. E a tradição segundo a qual os três santos teriam caído de joelhos uns diante dos outros. É essa efusão de mútua veneração que não se resolve em igualdade, mas se resolve em profunda humildade.

É aqui que se vê bem o esplendor da Civilização Cristã.

Os senhores vêem no ardor da luta de Nuno Álvares como deve lutar o verdadeiro católico. O verdadeiro católico não é o sentimental que não tem o senso da guerra, mas, pelo contrário, Nuno Álvares lutava como os senhores acabam de ver, empenhando-se inteiramente e comunicando a coragem aos outros.

Vejam o verdadeiro católico como é: como era o venerável Nuno Álvares.

Pela revelação que contém da santidade da coisa, muito bonita também é a despedida do rei. Naquele tempo as pessoas não tinham medo de morrer e embora não houvesse o diagnóstico inexorável de certas radiografias de hoje, as pessoas muitas vezes pressentiam a morte. Quando pressentiam a sua morte, iam se despedir. E as pessoas que recebiam a visita de despedida achavam aquilo natural: entrava, conversava, tomava chá, depois, na hora de sair, despedia mesmo. Também depois não se viam mais antes de morrer.

Era a época da cortesia, em que as pessoas até para morrer, morriam com polidez, com elegância. Pois, quando se trata de sair da terra — a gente fazendo uma visita para despedir porque vai viajar —, por que não vai fazer uma visita para despedir quando vai morrer, quando essa é a grande viagem? E depois é preciso dar um bom conselho para um, para outro; por justiça, se deve um agradecimento. Então, a gente vai fazer o agradecimento. Para outro é porque a gente estima e quer rever mais uma vez antes de morrer.

E então o rei e ele se reviram. O rei chorou, abraçaram-se, depois cada um seguiu o seu destino. E naturalmente São Nuno de Santa Maria morreu e no céu rezou pelo rei. É a época da elegância. Os senhores vejam a elegância das maneiras, a polidez das maneiras como se interpenetrava com a piedade e dava à piedade uma excelência própria, porque foi um costume de alta elegância que foi embebido de piedade, e dava à piedade uma beleza especial essa forma de separação antes de morrer, com essa nobreza, com essa tranqüilidade e com esses olhos postos no céu.

E aí os senhores têm uma visão dos esplendores da Civilização Cristã, a propósito da vida de São Nuno de Santa Maria.

De maneira que aqui fica uma oração: Que Nossa Senhora e o Bem-aventurado Nuno Álvares nos obtenha precisamente essa coragem de que ele deu o exemplo e que Camões tão bem soube cantar.

Plinio Corrêa de Oliveira –  Extratos da conferência de 5/11/1966

Cidade florida, alegre e risonha – II

Amenidade, beleza e alegria de viver, numa época que, segundo Karl Marx, foi a idade de ouro do operariado europeu.

 

Vemos em Rothenburg uma pequena praça pública, na qual se entra por meio de um largo arco — sempre os tais arcos com torres — para permitir um trânsito abundante. Junto às fontes, vivacidade e ornato A primeira coisa que o passante percebe é uma fonte.

Era muito frequente, na Idade Média, a ideia de que a fonte deveria ter qualquer coisa de monumental, precisava ser bonita e não uma simples torneira de água. Por quê? Porque a água era rara, as casas ainda não havia água encanada, as pessoas iam recolhê-la na fonte, que era um ponto central de vida na cidade. As pessoas das classes média e baixa da sociedade — muitas vezes as próprias donas de casa —, iam pegar água na fonte com um jarro grande que elas levavam, em geral, em cima da cabeça. Mas enquanto enchiam um, dois, três jarros — e elas pagavam alguém para levá-los; é um arranjo de senhoras —, ficavam conversando. E era o ponto de mexerico da cidade. Os homens nunca iam pegar água na fonte, somente as mulheres. E elas faziam futrica e intrigas, contavam coisas, etc.; as senhoras boas exerciam apostolado e levavam pessoas para a igreja.

Então, para tornar mais alegre a vida dos habitantes, a Prefeitura, que era eleita por eles, mandava construir um ornamento na fonte. Observamos ali um ornamento um pouco pós-medieval: uma bonita coluna, cercada com um gradeado também agradável, um monumentozinho em cima, o qual representa uma criatura humana que está em pé — talvez seja Nossa Senhora — e a fonte que serve para esse bairro da cidade.

Notem as casas altas com os tetos em forma de “V”. Qual é a razão disso? No inverno, para não acumular neve nos tetos — que é muito pesada e os faz ruir —, estes são dessa forma para que a neve escorregue e vá para o chão. Que o solo fique cheio de neve não importa, o problema é salvar o teto das casas.

Como, entre a base e o alto do teto, havia um espaço coberto muito grande, eram feitos andares. Esses são prédios de apartamentos de classe média baixa — mais da classe baixa do que da média; qui é um ambiente mais simples do que o da primeira praça que vimos. Os prédios são menos bonitos, exceto aquele que se vê no fundo, o qual deveria ter provavelmente uma utilização municipal ou eclesiástica, do município ou de uma paróquia da Diocese de Rothenburg.

As flores e as folhas

Numa outra fotografia, percebe-se que é verão e nota-se uma coisa característica das cidades alemãs, que lhes dá um encanto especial: é serem floridas. Ao longo das paredes, jarros de flores que ornam — quando elas florescem — a cidade muito alegre, risonha, onde se mostra, também nas cortininhas, a alegria de viver do povinho. É típico de casa alemã, mesmo muito modesta: cortininha bem arranjadinha e, quando chega o verão, põem-se do lado de fora jarras com gerânios e outras flores de cores vivas. E fazem concurso para saber quem expôs as flores mais  ivas. E isto constitui um ponto de amor-próprio que atrai toda a atenção da cidade, e concentra as conversas e a atenção deles em coisas inocentes, bonitas, que elevam, educam, e não têm nada do cinema e da TV moderna.

Tenho a impressão de que aquela torre é de uma igreja, porque no ápice dos torreõezinhos me parece haver cruzes. E, provavelmente, no cume do telhado central deve existir uma cruz ainda mais evidente. Tem algo indefinido de edifício religioso. Será talvez a torre da principal igreja da cidadezinha.

Em outra fotografia nota-se a beleza da vegetação da Europa. Nossa vegetação sul-americana, centro-americana, tem coisas lindíssimas, mas Deus a cada qual concedeu as suas coisas. À América do Sul, e creio que também à do Norte, o Criador deu lindas flores. Deu-as também, em alguma medida, à Europa: as tulipas da Holanda, por exemplo, são qualquer coisa de maravilhoso, mas o que  nós não temos como eles são as folhas maravilhosas.

Comparemos as folhas que estamos habituados a ver em nossas cidades, com essas que são verdadeiras exposições de pedras preciosas. As folhas são de um colorido bonito, meio douradas, e tem-se a impressão de que cada uma delas é uma pedra preciosa. São finas e o sol as atravessa; por causa disso, quando se olha, tem-se a impressão de que o astro rei mora dentro delas. São muito bonitas na primavera, mas a sua beleza muitas vezes é maior no outono, quando elas ficam velhas. É um fenômeno com poucos exemplos na natureza: quando a velhice enfeita.

No inverno, quando começam a cair, essas folhas têm uma cor de “champagne”, de vinho, cores fantásticas; várias vezes estando na Europa tive vontade de fazer uma coleção de folhas, para mostrar aqui em São Paulo. Mas não foi possível, eu não tinha tempo, porém vontade não faltava.

Vejam como todo esse arvoredo, aquém e além do muro externo da cidade, faz um ambiente maravilhoso. Tudo isso enfeita as velhas pedras e a torre da catedral ou da paróquia. Forma um  ecanto lindo!

Povo muito alegre, expansivo e comunicativo

Em outra fotografia vemos a beleza assombrosa do inverno, com a neve. Tem-se a impressão de que as árvores são feitas de cristal; são, portanto, lindíssimas! Nesse edifício mais baixo, nota-se que a neve cobriu o teto e se acumulou a ponto de revesti-lo inteiramente. Fica agradável de ver e, apesar da ideia de frio que esta neve dá, tem-se  ma sensação de aconchego e faz supor ali dentro uma lareira acesa, na qual se queimam troncos de árvores com uma resina perfumada, junto à qual se encontra, sentado numa grande poltrona de couro, um homem lendo um daqueles livros escritos em pergaminhos colossais,  fumando um cachimbo e gozando o seu domingo.

O prédio à esquerda, com aquele balcão, pertence à Prefeitura. Embaixo, desenvolvem-se danças tradicionais onde moços e moças da cidade se dão as mãos e cantam. Vê-se a alegria inocente de  udo isso, com trajes moralizados. É a alegria medieval.

Aqui podemos observar uma rua de Rothenburg. As casas não são palácios, mas residências simples. É uma cena agradável de olhar e nos dá, muito ao vivo, uma ideia do que seria uma cidade medieval em dia de festa popular. O povo alemão é muito alegre, expansivo, comunicativo. E quando, em torno da cerveja, estão reunidos muitos alemães, eles cantam. Não por ficarem bêbados, as por estarem bem nutridos e alegres.

Não existe uma coisa que esteja em desordem; tudo bem arranjado e bonito. A decoração da parte de cima das casas é feita só com madeira, mas madeira entalhada; nada disso é rico, tudo é simples. Vemos como o bom gosto da classe popular pode formar uma vida plebeia digna. Assim eram, por exemplo, os móveis populares medievais. Não eram fabricados para reis, nem para  ondes ou barões; contudo, eram entalhados à mão, e hoje custariam uma fábula por serem muito raros. Uma verdadeira beleza! Por espantoso que seja, eu termino citando Marx. Karl Marx, o fundador do comunismo, numa história que ele faz do operariado na Europa, diz isto: “A idade de ouro do operariado europeu foi a Idade Média!” Isso os revolucionários não afirmam. Por quê?  porque a Revolução é mentirosa quando fala e até quando se cala; essa é a Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira – Revista Dr Plinio 200 (Novembro de 2014)