Na Anunciação, grandeza e humildade de Maria

Como já o temos afirmado, engana-se quem pensa que os temas preferidos de Dr. Plinio eram de natureza social e política. Seriam, então, os históricos e os culturais? Ou os puramente filosóficos? Nenhum desses. Conquanto seja verdade que navegava por todos eles com desembaraço, discernimento e sabedoria — disto é prova o rico leque de  matérias publicadas nesta revista — os temas com os quais especialmente se regalava eram de índole teológica: a infinitude das perfeições de Deus, as relações entre as três  Pessoas divinas, o Sagrado Coração de Jesus, a santidade da Igreja Católica, etc.

Em conferências que mais pareciam meditações em voz alta, tinha ele predileção em discorrer sobre a Mãe de Deus. Agradava-lhe imaginar, por exemplo, como teriam sido as trocas de olhares entre Jesus e Maria, na gruta de Belém, na casa de Nazaré, no Calvário, no primeiro encontro após a Ressurreição. Ou conjecturar sobre as cogitações que povoavam a alma de Nossa Senhora nas várias circunstâncias de sua vida.

E quais terão sido os pensamentos d’Ela na Anunciação? Sobre este tema, oferecemos nestas páginas ao leitor algumas considerações feitas por Dr. Plinio:

A Anunciação é a festa em que celebramos este fato culminante da história do mundo: Deus, através do Arcanjo São Gabriel, comunica a Nossa Senhora que a Segunda  Pessoa da Santíssima Trindade haveria de assumir nossa natureza, a fim de resgatar o gênero humano.

As circunstâncias em que se realizaram esses eternos desígnios do Altíssimo não poderiam ser mais singelas nem mais maravilhosas.

Em sua modesta casa de Nazaré, uma Virgem, há pouco desposada com um varão igualmente virgem, encontrava-se imersa em subidas contemplações. De modo muito piedoso e razoável, supõe-se que Maria, com base no Antigo Testamento, procurava meditar e imaginar como seria o Messias, de cuja mãe desejava ser a mais dedicada das  servas.

Pode-se conjecturar que, ao completar Ela no seu espírito a composição da figura do Salvador, apareceu-Lhe o Anjo dirigindo-Lhe as célebres palavras: “Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo; bendita és Tu entre as mulheres”.

E Maria se perturbou, perguntando-se o que significava aquela saudação. Um Anjo tão eminente, tão extraordinário, aparecer a Ela, tão pequena! (a seus próprios olhos), e   chamá-La “cheia de graça”? Ela estava, então, repleta dos dons divinos? “Bendita sois Vós entre as mulheres”, quer dizer que, em meio a todas as filhas de Deus que houve, há e haverá até o fim dos tempos, Ela seria a bendita por excelência? Existiam tantas mulheres santas no Antigo Testamento, e quantas outras ainda viriam pela história afora, e justamente Ela era a escolhida? Na sua humildade, Maria ficou perplexa: “Como é isto? É um Anjo que está falando, mas não compreendo como suas palavras se podem aplicar a mim”.

O celeste mensageiro, por sua vez, responde de forma curiosa, pois assim começa: “Não temas, Maria”. O que indica que Ela manifestara um certo temor. Mas, concebida sem  pecado original, sem ter sombra da menor imperfeição, como poderia Nossa Senhora ter medo de São Gabriel e do que este Lhe dizia?

Na verdade, na presença de um Anjo, e sobretudo na de um Arcanjo, a criatura humana está colocada diante de um ser de tal densidade que este lhe causa não pequeno susto. Anjos houve que, aparecendo a homens, foram por estes tomados como o próprio Deus. E Nossa Senhora, na sua sensibilidade imaculada e perfeita, sentiu essa presença angélica de forma impressionante.

Além disso, recebendo aquela saudação inusitada, prenúncio dos altíssimos planos do Senhor para com Ela, pode-se bem conceber que em sua humildade tenha temido não   dar cabo da extraordinária missão que Lhe seria confiada.

Perplexidade e receio que só aumentaram, quando São Gabriel, a princípio tranquilizando-A, prosseguiu no seu anúncio: “Não temas, Maria, porque achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás em teu seio, e darás à luz um Filho…”, etc.

Ela havia feito voto de virgindade perpétua e, segundo a tradição católica, entendera- se com São José para que ambos permanecessem fiéis aos seus propósitos de castidade  perfeita até o fim da vida. Entretanto, chega-Lhe agora da parte de Deus um aviso que contraria de frente seus mais entranhados anseios. Nova indagação: “Como se fará  isso?”

O Anjo Lhe explica ser a vontade de Deus que d’Ela nasça o Messias, concebido pela ação do próprio Espírito Santo no seu claustro imaculado. Tudo se esclarece. A serenidade e a paz reinam no coração da Santíssima Virgem, que pronuncia então esta frase admirável: “Ecce ancilla Domini; fiat mihi secundum verbum tuum” — “Eis a Escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra!”

Quer dizer, esse anúncio era uma palavra vinda de Deus, da qual Ela não podia duvidar. Assim sendo, estava inteiramente à disposição. E desse diálogo, cuja beleza e simplicidade nos deixam abismados, resultou a Encarnação do Verbo!

Mãe de Deus, Esposa do Espírito Santo

Com efeito, a maior parte dos intérpretes afirma que, às palavras “Eis aqui a Escrava do Senhor…”, nesse preciso momento, pela ação do Espírito Santo, Jesus foi concebido no seio puríssimo de Maria.

Quem pode imaginar a fisionomia esplendorosa d’Ela, nessa hora em que a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade se tornou seu Esposo, e Ela engendrou o Menino Jesus?!

A adoração que teve pelo Divino Filho, logo no primeiro instante em que, de seu sangue e carne virginais, Ele começou a ser formado? Maravilha tanto mais inimaginável  quanto Jesus, Homem-Deus perfeitíssimo, assim que passou a viver encarnado em Maria, conheceu-A e amou com uma insondável dileção. E os dois começaram a se querer num mútuo amor que durará por toda a eternidade.

Oh assombroso convívio de almas! Por outro lado, devemos considerar o relacionamento d’Ela com o Espírito Santo, seu Divino Esposo. Em geral, no ato dos desponsórios,  costuma o marido oferecer à sua consorte um presente tão rico e magnífico quanto esteja ao alcance de suas posses. Pensemos então no valor das prendas com que o Todo-Poderoso terá adornado a alma de sua fidelíssima Esposa! Que acúmulo de graças e de esplendores! Mais ainda. A partir do Mistério da Encarnação, Nossa Senhora passou a receber d’Ele orientações, diretrizes, atos de amor e consolações de uma sublimidade indizível, que tinham nexo com as relações entre Ela e Deus Pai, entre Ela e seu  adorável Filho. Assim se estabeleceu um convívio altíssimo, em que Maria era, a um título único e muito especial, a Filha do Pai Eterno, a Mãe do Verbo Encarnado e a    Esposa do Divino Espírito Santo.

Virgindade, humildade e grandeza

Analisado esse comércio de almas entre Nossa Senhora e a Santíssima Trindade, voltemos nossos olhos para as virtudes e predicados marianos que transparecem de modo  singular na Anunciação.

Em primeiro lugar, a pureza. Ela é a Virgem das virgens, e o foi antes, durante e depois do parto, não perdendo sua integridade um só instante. E todo o procedimento d’Ela  durante o fato da Encarnação revelou-se perfeitamente virginal.

De outro lado, consideremos a humildade de Nossa Senhora; como Ela se fez pequena em toda a medida, ao se ver abençoada pelo Altíssimo de uma forma tão extraordinária. Era Ela quem Deus havia destinado, desde todo o sempre, para ser sua Mãe, porque A julgou digna de semelhante missão. Ele preparou a alma e o corpo  d’Ela, para que em tudo fosse inteiramente proporcionada — tanto quanto o pode ser uma criatura humana — à honra da maternidade divina. Porém, Ela que era digna por  excelência, não fazia de si uma alta ideia, nem se deixava levar por conceitos enfatuados de sua própria pessoa. Não! Pelo contrário, ficou perturbada, pois julgava aqueles elogios feitos pelo Anjo inteiramente descabidos para Ela. Mas, bastou que São Gabriel Lhe convencesse de que tal anúncio vinha de Deus, para Nossa Senhora se submeter.

Assim, da humildade e da pureza conjugadas em Maria Santíssima, resultou sua aceitação dos desígnios do Pai Eterno a respeito de seu Divino Filho.

Terceiro predicado a se ressaltar: no momento em que concebeu o Verbo Encarnado, Ela inteira foi elevada a uma condição superior a todos os Anjos e a todos os Santos  reunidos. Ou seja, se somássemos toda a santidade que houve, há e haverá em todos os Anjos e Santos, desde o começo até o fim do mundo, e comparássemos esse resultado  com a perfeição de Nossa Senhora, Ela se mostraria incomparavelmente mais santa do que toda essa montanha de virtude que Deus foi suscitando na Igreja ao longo dos  séculos!

O que significa não podermos ter noção de qual foi e é a grandeza espiritual da Santíssima Virgem. Se Moisés, ao suplicar a Deus a graça de poder vê-Lo, ouviu esta resposta:  “Tu não me podes ver, porque, se me vires, morrerás”, somos levados a cogitar no que nos aconteceria, se nos fosse dada a suprema felicidade de contemplar nesta vida a face  de Nossa Senhora, com todo o seu esplendor e formosura. Quem sabe, não morrer íamos também…

Na Paixão de Jesus, outro “fiat mihi” Agora, a esse momento de submissão e grandeza de Maria, no início da existência terrena de Jesus, corresponde outro ato de suma  humildade d’Ela — não menos grandioso — quando seu Divino Filho estava prestes a expirar na Cruz. Ele viera ao mundo a fim de resgatar as criaturas humanas do pecado, obter- lhes o perdão do Pai, e abrir novamente as portas do Céu. Essa augusta missão do Filho de Deus estava presente no fundo de quadro das meditações de Nossa  Senhora, e Ela provavelmente compreendeu que a Anunciação do Anjo comportava tudo isto: as promessas, o futuro, a glória, mas também o preço da glória: a dor!

Assim, chegado o tempo da Paixão, Deus quis o consentimento da Santíssima Virgem para que o Filho d’Ela fosse imolado, e Ela mesma O oferecesse como vítima expiatória por nossas culpas. Se outros fossem os desejos de Nossa Senhora, Jesus não sofreria a morte, Deus o libertaria das mãos de seus inimigos, e sua vida teria um rumo diverso.

Contudo, a humanidade não seria resgatada. Por isso Nossa Senhora consentiu no holocausto do Divino Redentor. Ela O contemplava estertorando na Cruz, Ela o ouvia exalar esse brado lancinante: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”, e aceitava que tudo isso acontecesse, para o gênero humano ser redimido e as almas poderem entrar na bem-aventurança eterna.

Como era desígnio de Deus que Ela quisesse, Ela quis! E foi este o seu outro “ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum”, de extrema e verdadeira beleza.

Imitemos Nossa Senhora da Anunciação

Para encerrar, recolhamos um fruto concreto dessas reflexões. Encarnando-se no seio de Maria Santíssima, no momento da Anunciação, Jesus se deu a Ela com um tal amanhecer de alma, com um espírito tão cheio de louçania, que não se tem palavras para descrever a felicidade que nesse dia inundou a pessoa de Nossa Senhora.

As promessas eram superlativas! Nada menos que o resgate do gênero humano. Entretanto, o próprio fato da Redenção, com os sacrifícios indizíveis que comportaria para  Mãe e Filho, indica bem como caminham as promessas de Deus: passam pelas esperanças mais alegres e pelos desmentidos aparentes mais terríveis. E a alma tem de ir se  habituando às promessas, às alegrias e aos pretensos desmentidos, como o fez Nossa Senhora. Ela disse “sim” a tudo, e dessa inteira submissão Lhe adveio toda a sua gloriosa  dignidade.

Pois a verdadeira glória consiste, antes de qualquer coisa, em aceitar e fazer sempre a vontade de Deus.

Eis a conseqüência que para nós devemos tirar: nos momentos de alegria e, sobretudo, nos de dor e provação, saibamos imitar Nossa Senhora, dizendo “sim” aos desígnios de  Deus a nosso respeito.

À maneira de uma gota de orvalho em que se reflete o sol, saibamos espelhar em nós as virtudes de Nossa Senhora da Anunciação, isto é, sejamos humildes, pequenos, mas  fortes, puros e confiantes. Que do entusiasmo de nossa pureza, de nossa força e de nossa confiança partam contínuos atos de amor e glorificação a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Maria e à Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Santo Agostinho – Águia de Hipona

A águia, no momento em que está levantando seu voo, é muito bonita.

Porém, ainda mais belo é o pensamento humano, quando expresso de tal modo que se possa perceber o seu voo. Assim é Santo Agostinho: em seus ímpetos de alma, mostra um voo incomparável.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Inocência e estado de espírito

Fazendo novas explicitações a respeito de um tema que lhe era tão caro, a inocência, Dr. Plinio mostra como ela gera um estado de espírito do qual procede a história de um homem, de uma instituição, de uma nação e até mesmo de uma época, como por exemplo, a Idade Média, cuja autenticidade dependeu da fidelidade ao estado de espírito irradiado a partir da pessoa e obra de São Bento.

 

Segundo a boa doutrina, vistas as coisas como elas devem ser, acho que tudo quanto o homem tem realizado na Terra procede originalmente daquilo que, em linguagem comum, se chama estado de espírito.

Estado de espírito sereno, matriz da qual todo o resto procede

Há um estado de espírito inicial a partir do qual nasce uma série de critérios para ver e analisar as coisas, rejeitar umas e aceitar outras, e depois batalhar contra umas e a favor de outras, construir algumas e demolir outras. Há um critério fundamental no homem, que parte desse primeiro estado de espírito.

O que chamo aqui o estado de espírito?

É a inocência vista na posição tomada por ela quando contempla as mais altas verdades que é chamada a contemplar. Mas é um estado de alma tranquilo, sereno, uma espécie de matriz fundamental, central, da qual todo o resto parte.

Desse estado de espírito procede depois a história de um homem, de uma instituição, de uma nação. A História do mundo pode proceder sucessivamente disso. Mas, quando o homem toma esse estado de espírito originário?

Vou descrever em profundidade esse assunto, o quanto eu consiga.

Uma ideia de conjunto…

Um homem, por exemplo, que está andando, fazendo, mexendo etc., em certos momentos, sem se dar conta, ele deita um olhar de conjunto sobre as coisas. Eu tenho pouca oportunidade de ver isso hoje, porque os meios de transporte públicos são mais velozes e fechados do que os antigos bondes. Mas se via muito no tempo em que na cidade de São Paulo existiam bondes completamente abertos. Havia muito menos trânsito e esses veículos andavam devagar, de modo que os passageiros ficavam dentro deles durante um longo tempo. E eu gostava enormemente de ver o bonde passar e analisar as pessoas que nele estavam.

Em frente à minha casa — situada na esquina da Rua Barão de Limeira com Alameda Glete — havia uma linha regularmente movimentada. E ali era um ponto de parada importante para a São Paulo daquele tempo. As janelas de algumas salas de minha casa davam diretamente para a rua, de maneira que quando eu tinha tempo e conseguia estar sozinho ficava olhando os bondes passarem, pararem e seguirem de novo naquele vagar.

Na maior parte dos bancos desses veículos havia dois, três ocupantes muito largados, e o bonde ia avançando, com seu ruído característico, sobre os trilhos de ferro. Os passageiros não tinham o que fazer e, em pouco tempo, deixavam de olhar para as margens da rua, porque aquela sucessão de coisas era mais ou menos igual, e ficavam pensando num assunto qualquer. Essas são as horas em que vêm as ideias mais variadas à cabeça, e às vezes uma ideia de conjunto.

…que culmina em Deus

Quando o espírito é inocente os temas mais ou menos se revertem uns nos outros formando a ideia de conjunto. A pessoa se volta para si mesma e deixa falar aquela apetência que ela tem de um certo “unum”, de um certo estado de espírito. Então ela examina, se lembra desta ou daquela coisa, mas por associação de imagens, sem fixar o espírito. Depois se recorda também do que era o contrário, faz um certo contraste, mas aos pedacinhos. Não é nada raciocinado, em ordem como se fossem soldados marchando. Imaginemos cardumes de peixes no mar: as ondas vão e vêm, e eles as acompanham. Assim também o pensamento humano, mesmo quando é reto, flutua em certas horas.

Em certo momento, quando o homem encontrou, mediu, sentiu bem um ponto e o relacionou com vários outros, antes de essa ideia se tornar inteiramente nítida, ele adquire a respeito da vida uma visão geral na qual considera os aspectos favoráveis e contrários. É a hora em que o homem forma o conjunto de afinidades e de repulsas em torno de um determinado assunto.

Depois vem a análise desse conjunto em relação ao que está fora dele. Surge, então, de modo por vezes indefinido, a ideia de Deus. Nem sempre se pensa claramente n’Ele, tanto mais que não se ensina às pessoas que, quando isso vem ao espírito, é a própria ideia de Deus que está mais próxima e se trata de colher. Aquilo fica assim, no lusco-fusco, mas de fato é a ideia de Deus.

Uma alma em ogiva: séria, sólida, recolhida, procurando sempre subir

Se disséssemos a um homem neste estado de espírito que o Céu é como se costuma pintar em certos quadrinhos, ele teria uma vontade muito maior de ir para o paraíso terrestre do que para esse Céu tão pouco atraente. Porque neste último ele sente a morada de todo mundo, mas não a sua própria. Ora, o Céu é a morada de todos, mas também a morada individualíssima de cada um. E é preciso sentir ambas as coisas.

Suponhamos alguém com apetência por certa forma de seriedade que abrange esses vários aspectos da vida e se compraz em notar a grandeza, a majestade, a distinção, bem como a lógica interna que eles têm. Esta pessoa se toma a sério e se respeita a si própria. Dir-se-ia que é uma alma em ogiva, séria, sólida, pensativa, levando tudo para cima, calma, pesando e analisando tudo de modo inflexível, muito propensa a se recolher e estando disposta a redarguir os que afirmam o contrário deste estado de espírito, ou mesmo a usar de qualquer meio legítimo de luta para fazer triunfar a verdade contra o erro. Mas isso sem agitação, sem trepidação, sem excitação, com naturalidade.

Torres que convidam para o sonho

Dão essa impressão, sobretudo, certas catedrais medievais.

Outro dia comentei com um membro de nosso Movimento um desenhozinho a bico de pena — feito pelo famoso Viollet-le-Duc(1) e publicado numa revista — da Catedral de Notre-Dame, vista um pouco de lado e imaginada de cima para baixo; era fruto de uma grande reflexão. E eu gostava de ver Notre-Dame toda feita de seriedade, gravidade, estabilidade, pensamento, grandes considerações das linhas gerais, mil pormenores e detalhes harmônicos, panorama, mas as torres vão para o céu.

Tão magnificamente se dirigem para o céu, que nenhum artista se atreveu a completar aquelas torres, porque só quem planejou tem alma para completá-las. E as torres estão ali, ao mesmo tempo tragicamente incompletas, mas fazendo cada um imaginar, no subconsciente e segundo o seu próprio feitio, torres ideais. Dir-se-ia que aquelas torres terminam num pontilhado, de acordo com o espírito de cada um. De maneira que se nos dissessem: “Olha, sabe de uma novidade? Completaram as torres de Notre-Dame!” Tomaríamos um susto: “Será que completaram errado?” Ou seja, não de acordo com aquele pontilhado que, subconscientemente, fazemos olhando aqueles dois magníficos fragmentos de torre, que nos convidam para o sonho.

O ”bimbalhar” do Castelo de Saumur e a estabilidade contemplativa de Notre-Dame

Esse estado de espírito que acabei de descrever, tão fundamentalmente católico, eu o encontro refletido em parte na Basílica de São Pedro e em outros edifícios civis e religiosos. Eu elogio tanto o Castelo de Saumur(2), que é magnífico e do qual gosto imensamente. Mas esta grande seriedade ele não tem. Ele termina, não num bimbalhar de sinos, mas num bimbalhar de cores, de flechas, meio festivo. E este estado de espírito que descrevo não é inimigo da festa, mas olha a festa de cima.

Enquanto para o comum dos homens a festa é o epílogo das coisas, para este estado de espírito ela é apenas um dos aspectos da vida. Há muito mais do que isso: a grande estabilidade contemplativa, satisfeita, disposta a qualquer luta. E eu a vejo maximamente expressa em Notre-Dame.

Sainte-Chapelle: uma das refrações de Notre-Dame

Alguém dirá: “Mas e a Sainte-Chapelle?”

São vitrais lindos, encantadores, é uma “bonbonnière” feita para ter almas em seu interior e não bombons; é o que pode haver de magnífico. Mas não noto na Sainte-Chapelle esse estado de espírito solene e único. Ela é admirável! Já lhes contei que quando entrei na Sainte-Chapelle foi a única vez em minha vida que me lembro de ter tido uma surpresa tão agradável que exclamei: “Ah! Eu não imaginava tanta beleza!”

Pois bem, esse estado de espírito é uma das refrações de Notre-Dame.

Não sei explicar o que eu sentia dando a volta em Notre-Dame! É certo que me vinham ao espírito aquelas palavras da Escritura: “Cidade de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro”(3). Ela é a igreja de uma beleza perfeita, alegria do mundo inteiro.

Ponto de partida da Idade Média

Tenho certas razões para afirmar que esse estado de espírito foi o ponto de partida da Idade Média, a qual foi ela mesma na medida em que cavalgou, rezou, lutou, construiu rumo a isso. E tudo o que contemplamos de belo no mundo medieval se reduz a esse estado de espírito. Quando algo não o possui, está em discrepância com a Idade Média.

Então, a armadura do cavaleiro, a coroa de um rei, o “pulchrum” de uma aldeia, a estabilidade de uma corporação, a majestade de um castelo, enfim qualquer coisa medieval é um dos estados de espírito secundários, derivados deste grande estado de espírito central.

E julgo que este estado de espírito viveu e se expandiu a partir de Cluny(4). E mais remotamente a partir da pessoa de São Bento.

Peguei nesgas deste estado de espírito no mosteiro de São Bento em São Paulo. Numa tarde, estando lá com dois membros de nosso Movimento, tivemos uma impressão singular de que a Igreja de São Bento revivia inteira. A impressão que eu tinha era essa: aqui há esse estado de espírito.

Passeando dentro de um olhar

E no atual Jardim São Bento(5), todos ou quase todos os nomes de ruas são ligados à história beneditina no mundo ou no Brasil, por exemplo, Rua Dom Domingos de Silos. Trata-se do velho abade Dom Domingos que conheci bem e era um homem respeitável. Esse bairro era uma antiga chácara, na qual estive várias vezes. Por cima da vegetação tropical pairava esse estado de espírito.

Estive neste prédio(6), no tempo em que era observatório astronômico. Olhei o prédio por alto e pensei com meus botões: “Aqui está mais uma construção feita com material moderno e que, provavelmente, polui este ambiente sacral e antigo que existe aqui”.

Havia também um lago de uma água estagnada e pensativa, com mil folhinhas as quais vinham não sei de que raízes do solo e faziam com que o lago parecesse de esmeralda. Creio já ter falado aos presentes a respeito do olhar azul de dois beneditinos alemães que moravam aqui e eram irmãos leigos, muito direitos, sérios, pensativos. Lembro-me de que, certa vez, dirigindo-me a um deles, eu lhe disse qualquer coisa. Ele parou de trabalhar — eram carpinteiros —, olhou-me como a um ser vindo não sei de onde, deu uma resposta em duas ou três palavras amáveis, mas de fim de conversa, e continuou no trabalho dele. Pensei: “Eu passeei dentro de um olhar; nunca isso me sairá do espírito”.

Transcorreram os anos. Quando pela primeira vez venho visitar este prédio, enquanto sendo uma sede nossa, sou tomado pela mesma impressão que me davam o Mosteiro em São Paulo, o contato com um ou com outro beneditino, com coisas beneditinas que tenho conhecido ao longo de minha vida, as biografias de São Bento e de Santa Escolástica que eu li. É aquele mesmo estado de espírito.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/5/1981)

Revista Dr Plinio 180 (Março de 2013)

 

1) Eugène Viollet-le-Duc (1814-1879). Arquiteto francês, famoso restaurador de edifícios medievais.

2) Ver “Revista Dr. Plinio”, n. 53, Agosto/2002, p. 31.

3) Cf. Sl 48, 3.

4) Mosteiro beneditino cuja ação e influência exerceram um papel fundamental na formação da Cristandade medieval.

5) Bairro nobre da zona norte de São Paulo onde a Ordem Beneditina possuía propriedades até fins da década de 1940.

6) Uma das sedes do Movimento onde Dr. Plinio realizou a presente exposição.

Regalos da vida burguesa

Creio que em poucos países do mundo a vida burguesa, no que esta possui de legítimo e digno, atingiu graus de desenvolvimento tão expressivos como sucedeu na Alemanha, com o igual florescimento de valores próprios a ela: bom senso, pudor, recato, estabilidade, continuidade, o equilíbrio das coisas bem ordenadas desta Terra.

Tomemos, por exemplo, as construções nas pequenas cidades burguesas esparsas pela Alemanha, datadas da Idade Média, muitas conservando ainda hoje seus pitorescos aspectos de outrora.

Em geral, o andar térreo formava uma espécie de hall aberto, solidamente sustentado por um madeirame trabalhado de modo discreto, porém com uma certa distinção de linha. O corpo do edifício se erguia em duas saliências que se projetavam sobre a rua. No último andar se guardavam as relíquias da família, as velhas cadeiras de balanço da bisavó, arcas e baús de diferentes tamanhos contendo antigos enxovais, objetos deste ou daquele parente, etc.

Se procurássemos penetrar naquele interior, digamos estendendo nossa vista pelas janelas adentro, teríamos uma sensação que condiz à vida burguesa, isto é, a de intimidade. Encontraríamos a mãe, robusta e saudável como boa alemã, vestida de seu avental colorido, com seu chapéu ingênuo e a travessa de salsichas na mão; os filhos também corados e alegres, à espera do almoço nutrido, enquanto o pai prolonga o cochilo na sua poltrona confortável.

É o prazer da intimidade, do móvel cômodo, do ar tépido, da luz tamisada que deixa entrar a realidade externa, do “cortinadozinho”, dos objetos próximos uns dos outros, todo um ambiente que favorece ao homem seu descanso do trabalho manual. Quando chega o verão, abrem-se todas as janelas, depositam migalhas nos parapeitos para atrair os passarinhos: estes vêm, comem, e o alemão se encanta e se alegra com a fartura das aves. Preparam-se vasos de gerânios — os célebres gerânios da Alemanha! — e é todo um colorido que passa a enfeitar as fachadas das casas, as extensões das ruas.

Tudo isso é uma construção do mundo burguês germânico, que me apraz comentar, pois se reveste de qualidades e belezas intensas. Sem dúvida, devemos censurar o abuso do que o francês pitorescamente chama de “chacunnière”: o “lugarzinho” de cada um explorado ao extremo do apego. Porém, que se tenha um recanto preferido, arranjado de acordo com nosso gosto peculiar, para o qual sempre nos voltamos quando é questão de um verdadeiro repouso, quem o pode condenar? Quem nunca ansiou por um “recantozinho” desses? E quem, habitando numa daquelas casas da Alemanha medieval, não gostaria de ter uma boa poltrona para descansar?

Afinal, é a existência lícita, honesta, sem pretensões, da família legítima, constituída segundo o sacramento. É a casa onde o esplendor da vida familiar se manifesta na sua trivialidade. É a dignidade do comum, onde a pessoa pode recolher-se, isolar-se e, proporcionando silêncio ao corpo, permitir ao espírito começar a meditar. Não é o conforto do preguiçoso, afundando-se na almofada e ele todo se amolecendo. Pelo contrário, todo esse ambiente burguês alemão recende algo de varonil, e por isso mesmo, dessas casas, em épocas de guerra, saíram os melhores combatentes do mundo. Em tempo de paz, comedores de pão, tocadores de flauta e violino…

Eis a maravilhosa harmonia dessa situação. Eis os regalos da intimidade da vida burguesa, autenticamente vivida. Ela atrai ao recolhimento, ao repouso, mas prepara o homem para o trabalho e para a luta. Ele pode estar comodamente sentado em sua poltrona ou ajoelhado num oratório ao lado dela. O interior da casa, sem conduzir diretamente à oração, cria agradáveis condições para que o espírito se sinta convidado à reflexão e à prece. E ele se alegra.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José – Modelo de castidade e de força

Para se formar uma ligeira ideia de quem foi São José, dever-se-ia tomar a Divina Face do Santo Sudário de Turim e deduzir, à maneira de suposição, a fisionomia moral do homem escolhido para ser o pai adotivo de Quem tem aquele rosto sagrado, do homem que foi o esposo da Mãe d’Ele, Aquela que era a sede da Sabedoria e o espelho da  Justiça.

Pai do Leão de Judá e consorte de Nossa Senhora, São José teria de ser um modelo de fisionomia sapiencial, modelo de castidade e de força. Um varão de santidade  inimaginável, a quem coube a sublime missão de governar o Filho de Deus e a Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira

São José

Depois de Maria Santíssima, São José foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade. Brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma  espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade.

Este homem humilde foi chamado a participar de acontecimentos dos quais decorreram os mais notáveis fatos da história do mundo. Pela sua admirável correspondência à graça, São José colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção e, desse modo, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino  Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Plinio Corrêa de Oliveira

Feérico supérfluo

Ao se discorrer sobre a ordem de coisas ideal para a existência de um povo e de uma civilização, acredito dever-se-ia fazer uma distinção entre duas espécies de benemerência dos que contribuem para essa boa ordenação: a dos que asseguram e tornam abundante o indispensável, e a dos que asseguram e requintam o supérfluo.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

Serão, talvez, duas formas de dar glória a Deus, cada qual no seu âmbito — o “necessarista” e o “superfluista” ou “requintista”.

Para se calçar esse pensamento é preciso tomar como base a tese de que o supérfluo na verdade é indispensável, ou seja, tem de se fazer presente no quotidiano do homem, e este deve notá-lo pelo menos nos seus semelhantes, pois do contrário a vida terrena lhe parecerá por demais estreita, asfixiante.

Como, porém, via de regra o supérfluo é preterido em favor do necessário, procura se tornar exímio em qualidade, a fim de se valorizar e, vez ou outra, levar a palma. Ele se requinta, torna-se mais enfeitado, mais ornado, ou se reveste de simplicidade mais impressionante, enfim, engendra mil maneiras de o requinte se mostrar tal.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

Esse conceito me parece superiormente ilustrado pelo exemplo do “Fabergé”, célebre joalheiro da corte imperial russa no final do século XIX e início do XX. Era o ourives do supérfluo, e o encanto deslumbrante de suas peças consistia no esmero da superfluidade.

De sangue francês, levou consigo para o mundo russo o charme característico de suas origens e com ele fecundou seu talento de gênio para confeccionar jóias que são verdadeiros bibelôs de sonhos. Os mais conhecidos são os famosos Ovos de Páscoa que o Czar encomendava para presentear a Czarina e outros familiares. Com a repetição do gesto em anos sucessivos, a “moda” de oferecer os ovos “Fabergé” se espalhou pela Europa da “Belle Époque” (portanto, até 1914, quando eclodiu a Primeira Grande Guerra), constituindo um requinte da civilização daquele tempo.

– Sts Peter and Paul Fortress – st petersburg – Russia

A capacidade inventiva do artífice era inesgotável, e a cada elaboração surgia uma nova maravilha, uma joia mais aprimorada, algumas feéricas, reluzindo nas suas cores sedutoras, nos seus materiais preciosos, diferentes, lavorados com extrema categoria. Ovos que se abrem e deixam ver no seu interior outro bibelô ainda mais rico e belo; ovos que são relógios, este com um pequeno galo que assinala as horas, aquele com um único ponteiro em forma de esguia serpente; outros esmaltados, com pinturas que retratam paisagens da Rússia imperial; e ainda os que trazem fotografias dos membros da família do Czar, e os que simplesmente se revestem de ouro.

Todos de pequenas proporções, como devem ser para comportar a dose de “raffiné” e de rico que possuem. Maiores, perderiam em beleza e distinção.

E todos procuram e logram despertar o maravilhamento. O maravilhamento do supérfluo.

 

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira

(Extraído de conferência em 23/3/1990)

A civilização da admiração

A tendência para a elevação e o sobrenatural dava ao homem medieval especial facilidade para admirar e venerar a Deus Nosso Senhor. Tal estado de alma não pode ter sido privilégio de outrora; ao contrário, Deus o quer e exige de todos os fiéis, ao longo de toda a História.

 

Quando estudamos a História da Idade Média, analisamos sobretudo os personagens mais característicos daquela época: Carlos Magno, São Luís, São Fernando, São Tomás de Aquino e, de modo eminente, São Gregório VII. Entretanto, também no geral da população daquele período havia um espírito de fé eminente.

No auge da era medieval, a Cristandade era compacta e homogênea e encontrava-se em sua época mais feliz. Havia, como em todos os tempos, pecadores esparsos, interessados em fruir o seu próprio pecado, porém não obstinados em derrubar o edifício espiritual da Civilização Cristã.

Naquela era histórica, o espírito de Fé moldava a maneira de pensar e de viver do homem, tornando sua mentalidade fundamentalmente diversa do homem contemporâneo. Como se exprimia a mentalidade medieval?

Dois movimentos ascensionais

Suponhamos um copista que possuísse uma sineta para chamar o empregado, e um canivete para cortar o pergaminho e outros materiais.

Se o cabo da sineta fosse feio, ele, quando desse acordo de si, estaria com o canivete esculpindo-o de maneira a torná-lo belo.

Quanto ao canivete, ele se comprazia em fazer com que a lâmina fosse afiada, de modo a aparecer inteiramente a beleza do metal, e o cabo não fosse apenas prático, mas também bonito. Assim, no cabo do canivete ele esculpia um santo; e no alto da sineta uma cruz.

Quando ia escrever algo, ele não se limitava a fazer letras legíveis, mas pensava em compor uma iluminura desenhando, dentro da primeira letra, um pássaro voando, ou um santo rezando com halo de santidade, ou um Rosário entrelaçado nas letras.

Ou seja, os mais humildes homens do povo manifestavam, continuamente, uma tendência para o mais perfeito, mais santo e mais belo. Uma espécie de insaciabilidade temperante, uma pressão saudável e contínua da alma para o melhor, debaixo de todos os pontos de vista, nunca se contentando com aquilo que tem, mas procurando algo superior; era, portanto, uma tendência para a elevação.

Devido a esta contínua procura do mais belo, existia a ideia de que, acima dos seres visíveis, havia seres invisíveis, mais nobres e mais belos do que os visíveis. E, no alto da pirâmide destes seres espirituais estava Deus, a suma Perfeição. Então, dois movimentos ascensionais: um para melhorar as coisas terrenas, na procura da perfeição delas, e outro para, através das coisas terrenas, caminhar até Deus.

O maravilhamento é a postura de alma necessária a todo homem

Isso significava, na alma do homem medieval, uma tendência fundamental para o elevado, e uma necessidade profunda de conhecer continuamente coisas que lhe provocassem admiração.

Daí as canções de gesta, que eram a glorificação dos grandes heróis da Cristandade. E também as lendas a respeito da vida de santos, que constituíam a glorificação deles. A “Légende Dorée”, de Jacques de Voragine, por exemplo, tem magnificência nesse sentido.

Essa tendência corresponde ao contínuo estímulo comunicado por Deus à Criação. Não julguemos ser esse estado de alma necessário apenas aos medievais. Esta é a orientação de alma que, em virtude do primeiro Mandamento, Deus quer e exige de todos os fiéis.

Podemos ver isso em dois campos: a ordem natural e a ordem sobrenatural. Na ordem natural, temos o universo. Por mais que o examinemos, não encontramos um ponto que não seja suscetível de aprofundamento. E no extremo desse aprofundamento, não achamos nada que não nos cause uma espécie de maravilhamento. O universo foi construído por Deus para que o conhecimento dele conduza a atos de admiração.

Consideremos, por exemplo, a coisa mais terra a terra: a pata de uma rã. A rã é um bicho prosaico e sua pata é feia. Mas se um cientista vai estudá-la, ele encontra ali dentro uma ordenação em razão da qual acaba concluindo o que o artista nunca concluiria: é admirável a pata de uma rã. O artista dirá que é hedionda a pata de uma rã, mas o cientista afirmará: “Neste hediondo há uma maravilha!”

Na pata de uma rã, na ponta de uma grama, na estrutura de uma formiga, no céu material, nos astros, por toda parte encontramos algo admirável. Quer dizer, o universo incita o homem a prestar atenção em seu Criador fazendo atos de maravilhamento.

O “émerveillement”, o maravilhar-se, o admirar é a postura de alma necessária a todo homem; é o ponto terminal da peregrinação em toda espécie de seus estudos ou elucubrações, seja no campo artístico, científico ou cultural.

Maravilhas da Igreja Católica, Apostólica, Romana

E, bem no centro desse universo, que é um convite contínuo à admiração, há a ordem sobrenatural, a Igreja Católica, Apostólica, Romana, na qual isso também se verifica. Nas menores coisas da Igreja Católica, se as analisarmos bem, encontraremos verdadeiras maravilhas.

Tomo o mais corrente dos exemplos: o meio inventado pela Igreja para chamar os fiéis à oração, o sino colocado no alto de uma torre. Tão prático, mas quanta maravilha! A Ave-Maria que é tocada na aurora ou na hora do pôr do Sol, que maravilha! Os sinos que repicam alegremente para anunciar a Missa, que maravilha! Os sinos que dobram finados, quando o cadáver entra no templo para receber a bênção, que maravilha!

Há certas coisas feitas pela Igreja com tanta naturalidade, que ninguém se lembra de as achar bonitas; é preciso prestar atenção. Por exemplo, o modo pelo qual a Igreja trata o pecado e o pecador. Entra numa igreja um caixão, com um cadáver, carregado pela família do morto. Todo mundo, com respeito, comenta: “Coitado, era tão bom, antes de morrer abençoou os filhos, recebeu os Sacramentos, despediu-se da esposa.” De repente o coro canta: “Requiem aeternam dona ei, Domine, et lux perpetua luceat ei”. É a dúvida da Igreja: ele deve ter, pelo menos, pecados veniais para pagar, e o normal é que passe por um Purgatório bem ardente. “Meu Deus, dai-lhe o descanso eterno, e que a luz perpétua brilhe para ele”. E depois o coro entoa: “Requiescat in pace”, e embaixo todos respondem: “Amen”. É o modo pelo qual a Igreja convida à humildade e ao reconhecimento da realidade do pecado no homem, que ela está honrando dessa forma. Nota-se aí um equilíbrio fantástico.

Na Idade Média, a moda consistia em imitar os mais perfeitos

Dir-se-ia serem coisinhas dentro da vida da Igreja; mas essas “coisinhas” são sóis, e indicam que a Esposa de Cristo nos convida continuamente a uma impostação de alma ávida de admirar tudo, quer na ordem natural, quer na ordem sobrenatural.

Qualquer indivíduo que passa pela rua e possui a glória de ser batizado deve ser ávido de admiração. O homem de espírito católico tem esta tendência a procurar em tudo coisas admiráveis e não é invejoso. Encontrando alguém admirável, ele se alegra e dá graças a Deus; elogia, aplaude aquele alguém e procura torná-lo conhecido. Ele não é igualitário, não procura colocar-se no nível dos outros, mas deseja que quem é superior a ele receba mais, e seja mais glorificado.

Essa era a tendência de espírito existente durante a Idade Média.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/2/1977)

Revista Dr Plinio 168 (Março de 2012)

Delicadeza e severidade

Creio que uma das características fundamentais do homem da Idade Média era possuir um estado de espírito afeito aos longos e serenos recolhimentos, durante os quais sua alma deambulava, com todas as suas possibilidades e faculdades, por todas as espécies de realidades. E sem nunca manifestar a menor complacência para com o mal, observava as várias formas de bem, na sua imensa diversidade, amando-as todas, nas suas diferenças, flexibilidades, elasticidades e contradições aparentes. A partir dessa contemplação, ele era capaz de todas as formas de ternura, paciência, delicadeza, suavidade, como operação prévia, entre outras, para ser capaz também de todas as formas de santa e necessária austeridade.

O medieval podia, portanto, com essa serenidade e esse equilíbrio, com posição imensamente compreensiva diante das diferentes formas de bem, tirar uma conclusão: “Essas variedades me conduzem à certeza plena de que existe, para além delas, o absoluto, Deus Nosso Senhor, Criador de todas as coisas”.

Expressões de um espírito assim reluzem nas obras da Idade Média, nas iluminuras e esculturas que nos apresentam tantas figuras e personagens daquela época, imbuídas de uma profunda tranquilidade: o carpinteiro serrando uma madeira, uma borboleta esvoaçando em torno de uma flor, um raio de sol que incide sobre  um cordeirinho a pastar no prado maravilhoso.

Noutras imagens, tem-se o riacho correndo sob uma pontezinha, um cisne que passa, a trepadeira que cai junto à janela de uma casinhola que parece feita de pão de mel, e em cujas flores brincam as abelhas. Tratam-se de símbolos de formas de bem que devem nos deliciar, e que se harmonizavam e constituíam um conjunto equilibrado com virtudes aparentemente opostas, como a fortaleza e a severidade.

A alma medieval, contemplando o fato miúdo da vida cotidiana, detinha-se, encantava-se, deleitava-se com tudo e fazia inteiramente suas todas as formas de bem. Ao mesmo tempo, excluía com vigor o que era mal e contrário àquilo que admirara.

Por essa atitude, chegava a outra conclusão: “Estou aberto, enlevado e propenso à admiração diante de qualquer forma de bem. Ficaria inconsolável se a menor dessas manifestações de beleza conforme à Beleza absoluta desaparecesse da face da Terra. E repudio, com inteira firmeza, o que lhes seja contrário e intente eliminá-las do mundo”.

A meu ver, soube o homem da Idade Média, no auge de seu florescimento espiritual, praticar de modo exemplar essa espécie de admiração e amor omnímodos para com todas as formas de bem, e deduzir dessa atitude uma extrema recusa ao mal que procurava acabar com aquelas maravilhas.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 23/9/1974)

Revista Dr Plinio 132 (Março de 2009)

Santo Eulógio – Lutou como um leão

Em todas as perseguições sofridas pela Igreja, existiram duas correntes entre os católicos: a do heroísmo e da acomodação. Santo Eulógio, mártir, lutou valentemente contra os acomodatícios, tendo uma forma de coragem mais meritória do que a própria coragem do martírio.

 

A respeito de Santo Eulógio, diz o Martirológio Romano:
Santo Eulógio foi presbítero e mártir, e na perseguição dos sarracenos foi açoitado, esbofeteado e degolado à espada, em consequência de sua intrépida e gloriosa confissão de Cristo. Foi quem descreveu o martírio de vários santos de Córdoba, durante esta cruel perseguição. Século IX.

Perseguido pelos muçulmanos e pelos cristãos acomodados

Em Rohrbacher(1) encontram-se os seguintes dados biográficos sobre este Santo:
No ano de 850, desencadeou-se em Córdoba violenta perseguição muçulmana contra os cristãos. Dentre as várias vítimas destaca-se o sacerdote Eulógio, pertencente a uma das famílias mais consideradas da cidade, e que escreveu os combates gloriosos daqueles que morreram pela fé. Será o defensor de vários cristãos que se apresentaram voluntariamente ao martírio, e por isto foram criticados como temerários.

Os muçulmanos, espantados de ver tantos cristãos correr ao martírio, temeram uma revolta e o fim de seu domínio. O califa Abdéramo reuniu os conselheiros e ficou resolvido que prenderiam ou matariam quem quer que falasse contra o profeta.

Os cristãos então se esconderam e vários fugiram, durante a noite, disfarçados e mudando, muitas vezes, de esconderijo. Outros, não querendo fugir nem esconder-se, renunciaram a Jesus Cristo e perverteram os outros.

Vários, tanto sacerdotes como leigos, que antes louvavam a constância dos mártires, mudaram de opinião e passaram a tratá-los de indiscretos, alegando mesmo a autoridade da Escritura para sustentar suas opiniões.

Estes, que desde o começo desaprovaram o comportamento dos mártires, queixavam-se amargamente de Santo Eulógio e de outros sacerdotes, os quais, encorajando-os, haviam atraído a perseguição.

O califa fez reunir em Córdoba os metropolitanos de diversas províncias e estabeleceu-se um concílio para acharem um meio de apaziguarem os infiéis. Na presença dos bispos, um escrivão riquíssimo, cristão, mas que tinha medo de perder o que possuía, atacou rijamente o sacerdote Eulógio. Ele havia sempre censurado tais mártires e pressionava os bispos a pronunciarem um anátema contra os que quisessem imitá-los.

Por fim, o concílio publicou um decreto que proibia dali em diante que alguém se oferecesse ao martírio. Mas em termos alegóricos e ambíguos, segundo o estilo da época, de sorte que servia para contentar o califa e o povo muçulmano, sem todavia censurar os mártires, quando se penetrava o sentido das palavras do decreto.

Santo Eulógio não aprovava tal dissimulação. Lutou contra ela durante muito tempo, duramente perseguido pelos muçulmanos, mas também pelos cristãos acomodados.

Finalmente, firme na defesa dos mártires voluntários — no que teria um fiel aliado, séculos mais tarde, na figura de São Francisco de Sales —, foi decapitado no ano de 859.

Um problema moral

Havia aí dois problemas: o moral e o político.

Antes de considerar o problema moral, analisemos uma situação psicológica.

Para muitas pessoas é um tormento insuportável passar uma vida de corre-corre e de foge-foge. É-lhes muito duro estar de um lado para outro, fugindo da morte que os espreita. É-lhes mais suave — nas horas de maior dificuldade e quando têm coragem — se apresentarem às autoridades e dizerem que são mesmo cristãos, e assim resolver o caso.

Essa situação psicológica, que em última análise é compreensível, traz consigo um problema moral: ou a pessoa não se defende com todas as possibilidades que tem, ou até se apresenta à autoridade que vai matá-la. Isso não constitui um suicídio?

É uma questão moral que se compreende.

Santo Eulógio era de opinião — assim como depois São Francisco de Sales — que isto não constitui suicídio, e que o modo de proceder dos católicos que estavam neste caso era correto. Por causa disso, vários católicos se apresentaram ao martírio e foram mortos. E isto induziu o sultão de Córdoba a perceber que o número de católicos residentes nessa cidade ainda era muito grande, e a desejar, portanto, exterminá-los.

Essa atitude feroz do sultão teria sido então, em parte, desencadeada por causa do procedimento de Santo Eulógio e dos católicos radicais.

E um problema político

Aparece, então, o problema político. A Espanha fora, no tempo dos visigodos, uma nação católica, e a massa da população espanhola continuava católica. Havia uma grande quantidade de mouros ali residentes, mas também um número enorme de católicos, e era até tolerada a Religião católica. Tolerada, naturalmente, com a condição tácita que todas as tolerâncias impõem, e que é a seguinte: a não permissão de que os católicos empreendessem uma ação muito vivaz. E como consequência, os bispos seriam acomodados, tolerantes e dispostos a aceitar tudo, de maneira tal que guiassem os católicos numa política de submissão e de capitulação, a qual ao longo dos decênios haveria de produzir uma debilitação, e quem sabe até um eventual desaparecimento da Fé em terras de Córdoba.

À vista da multiplicação dos católicos que se apresentavam para o martírio, as autoridades maometanas resolveram convocar um concílio, para que este concílio de bispos acomodados condenasse os católicos vigorosos e, pela voz dos bispos, os bons ficassem desmoralizados.

Santo Eulógio certamente tinha muito maior facilidade em pregar contra Maomé do que contra os bispos acomodados, que o desmoralizariam. Realizou-se o concílio, e um escrivão, que era muito rico — em geral os homens muito ricos não querem ouvir falar em morrer e nem em martírio —, fez um discurso em que acusava Santo Eulógio e seus companheiros. Terminado o discurso, o concílio condenou os acusados. Mas esta condenação evidentemente era falsa, não tinha fundamento, e Santo Eulógio continuou valentemente a sustentar seu ponto de vista. Tal foi sua intrepidez, que acabou ele sendo decapitado, morrendo mártir.

Duas correntes: a do heroísmo e a da acomodação

Qual a lição que devemos tirar daí? Que em todas as épocas da Igreja, e em todas as perseguições que ela sofreu, existem duas correntes: a que quer ser fiel, e a corrente acomodatícia, daqueles que preferem um negócio qualquer com o qual a Fé sofra prejuízos, mas que eles possam morrer tranquilamente nas suas camas, levando uma vida tanto quanto possível agradável.

Existem, portanto, a corrente do heroísmo e a corrente da acomodação, do pacto, da traição.

Há católicos, por exemplo, que dentro do mundo revolucionário de hoje querem precisamente uma acomodação, em vez da luta contra o espírito do mundo.

Santo Eulógio lutou como um leão e passou pela dura provação de ser condenado pelo episcopado. Pode-se imaginar quanto isto deve doer na alma de um Santo! Entretanto, ele soube resistir também a isto, e nos deu um exemplo de que devemos amar tanto a Igreja e as instituições eclesiásticas, que estejamos dispostos a sofrer, por amor e fidelidade a elas, a pior das coisas, que é a oposição, e eventualmente até a condenação de autoridades eclesiásticas acomodadas as quais combatem, dentro da Igreja, o filão áureo do heroísmo e da dedicação total.

Devemos pedir a Santo Eulógio esta forma especial de coragem, muito mais meritória do que a própria coragem do martírio.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/3/1967)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Histoire Universelle de l’Église Catholique. 3ª ed. Vol. 12. Paris: Gaume Fréres, Libraires-éditeurs, 1857. p. 40, 52, 53, 233 e 242.