O verdadeiro título de glória

Além de ser pobre, escrofulosa, magérrima, com a mão direita deformada, Santa Germana Cousin era desprezada pelo pai e perseguida pela madrasta. Apesar disso, ela enfrentou todas as dificuldades com extrema dignidade porque estava segura de ter um valor: ser filha da Igreja Católica Apostólica Romana. O título “católico” é o que realmente tem importância; todos os outros são secundários.

 

No dia 15 de junho a Igreja celebra a memória de Santa Germana Cousin. A síntese biográfica dela que vamos comentar é tirada de Louis Veuillot(1).

Sua casa era um lugar de martírio e não de repouso

Germana Cousin nasceu em 1579, em Vibrac, Toulouse, na época em que a França era assolada pelas guerras de religião.

Uma época, portanto, de muita pobreza porque as guerras de religião impediam, naturalmente, o desenvolvimento da agricultura, e a escassez de víveres era muito grande.

Era filha de Leôncio Cousin, pobre lavrador, e desde criança, quando perdeu sua mãe, sua vida foi um sofrimento constante. Magra, desnutrida, escrofulosa, tinha, além disso, a mão direita deformada. Sua aparência levou-a a ser rejeitada pelo pai, que nunca lhe manifestou o menor carinho e nunca impediu a cruel perseguição que sua segunda esposa movia à enteada. A casa paterna de Germana, portanto, para ela era um lugar de martírio e não de repouso. Sua madrasta repreendia-a constantemente, obrigando-a a dormir num estábulo sobre duras enxergas. Proibiu-a também de aproximar-se de seus oito irmãos.

Germana, sem se incomodar, amava as crianças com carinho especial, servindo-as sempre que podia. Deus inspirou-lhe o amor ao sofrimento e por isso aceitava com alegria essas humilhações, acrescentando-lhe outras austeridades. Em toda a sua vida só se alimentou de pão e água.

Aqui está um conjunto de dados que incutem muito respeito e admiração. Há determinadas figuras que nasceram para nos dar o exemplo da segurança sobrenatural em si mesma e não da segurança natural. Porque elas são, por desígnios da Providência, de tal maneira marcadas pela deformidade, por toda espécie de títulos que as colocam abaixo de todo mundo na ordem humana de valores, que bastariam para essas pessoas abrirem um buraco no chão e sumirem.

Assim vemos uma pobre coitada, órfã de mãe, escrofulosa, magérrima, com a mão direita deformada, uma coisa que de si desfigura qualquer pessoa, mas que ainda prejudica mais quando ela é pobre e tem que trabalhar com suas próprias mãos, torna-se mais ou menos inútil.

Extrema dignidade, sem nenhuma revolta

Essa pessoa mora, então, na casa de seu pai. E, sinal supremo do desprezo que todo mundo tem a ela, o seu próprio progenitor como que não a reconhece por filha, não lhe dispensa carinhos como a uma filha e a entrega à sanha e ao desprezo dessa megera. Ela vivia como uma criada na casa do pai, dormindo numa dependência sobre dura enxerga e fazendo o papel de pastora.

Ela podia, portanto, levada pela vergonha, pelo acanhamento, procurar fugir ou tornar-se uma revoltada. Não, ela se porta com extrema dignidade, aceita a situação em que está, não se revolta, procura agradar as crianças, filhos daqueles que a perseguem, e leva sua vida com simplicidade, segura de que ela tem um valor.

É criatura humana batizada e, portanto, filha de Deus. E sendo filha de Deus não precisa mais nada para conduzir a paz bem alto diante de todos os outros. Ei-la, portanto, com modéstia e naturalidade diante desse dilúvio de manifestações de pouco caso, conduzindo tudo com espírito sobrenatural e superior à sua vida.

Isso eu considero um lindo exemplo para nós compreendermos bem que não precisamos de títulos humanos para estar nos impondo ao respeito dos outros. Ainda quando nos desprezam, nós temos estes títulos: somos filhos de Deus, da Santa Igreja Católica e, a título especial, filhos de Nossa Senhora.

Deus, em sua grandeza infinita, sente-Se agradado com nosso louvor. Ele deseja nosso amor, aceita-o e corresponde a ele. Isso basta. Todo o resto não é nada, não tem importância. O título de filho de Deus basta para tudo.

Ufania de ser católico

Conta-se o caso de uma filha de Luís XV que, se sentindo mal atendida por uma criada, disse-lhe com energia:

— Você se esquece de que eu sou filha do Rei?

A criada, a qual achava que a Princesa não estava com a razão, afirmou:

— Vossa Alteza se esquece de que eu sou filha de Deus?

É uma linda lição! Uma resposta que indica bem a segurança e a altaneria da pessoa a quem basta a sua posição de católica. Eu sou católico, achem dessa posição o que quiserem, riam como entenderem, admirem como desejarem, nada se acrescenta nem se tira à enorme segurança que tenho, à alegria fundamental que sinto, à ufania que experimento em ser filho da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.

Não preciso mais nada. Isso me dá o título para eu me apresentar aos olhos de qualquer um com sobranceria. Não é necessário ser rico, inteligente, agradável, nem nobre ou qualquer outra coisa. Para eu ter a sensação da minha dignidade basta ser filho da Igreja Católica Apostólica Romana.

É claro que se, além disso, eu tiver outros títulos melhor será. Mas não colocarei nenhum título ao lado deste. É melhor ser lixeiro católico do que rei protestante, ser mendigo escrofuloso, com a mão direita ou todo o corpo deformado, mas católico, do que o homem mais rico do mundo, o qual não pertence à Religião Católica. Quer dizer, o nosso grande título, a grande razão de nossa ufania é sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Vemos aqui a segurança, a paz, a tranquilidade feita de Fé de Santa Germana, diante de uma situação que dava para ela se acabrunhar.

Eu creio que outra Santa que nos deu um grande exemplo disso foi Santa Joana de Valois. Também desprezada pelo pai, por todo mundo, e por fim repudiada pelo marido. Mas ela conduziu a vida com dignidade e serenidade. Fundou uma Ordem religiosa, governou muito bem o feudo que obteve depois de sua separação, morreu e recebeu a honra dos altares. Apesar de tudo quanto pudessem dizer dela, sendo católica bastava. Para a sua segurança, seu cartão de visita estava pronto: católica apostólica romana.

É um título lindíssimo e essa ufania de ser católico é a raiz daquilo que Camões chamava “cristãos atrevimentos”. Quando tem essa ufania de ser católico, a pessoa se atreve, se lança, avança. Por quê? Não porque é mais na ordem humana das coisas; até talvez seja menos do que alguns. Mas o que tem importância é ser católico, ter recebido o sinal do Batismo na fronte. O resto é acessório, secundário.

Agora, veremos os esplendores que a Divina Providência fazia para recompensar essa serva, a qual tanto se ufanava da sua dignidade de filha de Deus.

Enquanto ela vai rezar, os Anjos cuidam do rebanho

Germana era pastora.

Pastor é um ofício poético, mas na Europa considerado como uma ocupação muito humilde. É propriamente tomar conta de bicho, não tem nada de técnico, veterinário. É apenas uma espécie de guarda de burros, vacas, carneiros, cabras. Embora perseguida pelos familiares, ela zelava com verdadeiro desvelo pelos seus carneiros.

Conta-se que para ir à igreja deixava-os aos cuidados da Providência. Nunca nenhum animal extraviou-se ou ultrapassou os limites que ela estabelecia, marcando o chão com seu cajado; também nunca foram atacados por lobos.

Vejam que cena linda: a pastora feia, trôpega e deformada, mas que tem contato direto com o Céu; Deus, Nossa Senhora e seu Anjo da Guarda falam com ela. Em certas ocasiões ela tem vontade de rezar e, por uma inspiração interior – porque sem uma inspiração isso não se compreende –, vai com o cajado e traça os limites exatos. E depois com certeza avisa: “Olhem, vocês não saiam daqui.” Quando ela volta, estão todos lá. Mas há também uma proibição para os lobos entrarem, e de fato nenhum lobo entra. Os Anjos ficam zelando pelo rebanho, enquanto ela vai rezar e agradar a Deus Nosso Senhor.

A desprezada, a pisada, a humilhada vai à igreja e Deus opera um milagre. É hábito do Criador realizar milagres.  Entretanto Ele, na sua felicidade celeste inacessível, alegrar-Se com a companhia dessa pastora humilhada e desprezada por todo mundo causa-nos admiração.

Notem quanto vale uma pessoa desprezada por um título injusto, mas que sabe carregar bem o seu desprezo.

Vivia na pobreza, mas ajudava os pobres

No campo, Germana estava sempre em união com Deus. O terço era sua oração constante, assim como a saudação angélica. Grande era sua devoção à Santíssima Virgem, à qual pedia coragem para levar avante sua vida tão difícil.

Realmente é muito árduo levar avante uma vida assim. Porque é muito bonito pensar: “Ah, que beleza os carneirinhos, estou rezando as Ave-Marias, depois eu vou para o meu pobre catre.” Mas na hora de deitar no catre, sentir o frio, comer alimento ruim, aguentar a cara da megera quando, mentindo, contar para o pai que Germana tinha perdido uma ovelha, e o progenitor dar-lhe uma punição injusta, receber bem tudo isso e ainda agradar os filhinhos da megera, isso é muito poético, mas absolutamente não é fácil. É preciso ter força e ela sabia onde procurá-la: na oração, aos pés de Nossa Senhora. Porque exatamente na oração está a fonte de toda força.

Ensinava o Catecismo às crianças da vizinhança e era a protetora dos pobres, para quem levava os restos de sua casa.

Na realidade, aqueles que mais entendem de fazer esmola, em geral, são os pobres. As pessoas muito ricas dificilmente são esmoleres. As de fortuna média ou os pobres dão esmola.

Eu conheço o caso curioso de uma senhora riquíssima. Ela possuía uma casa que ocupava um quarteirão inteiro num bairro importante de São Paulo, e na qual ela morava. Essa senhora mantinha boas relações com o ramo pobre de sua família.

Entretanto, dois genros péssimos arruinaram a fortuna dela, fazendo-a cair numa pobreza igual ou maior que a dos seus parentes pobres. Então ela teve este comentário interessante: “Engraçado, não pensei que me tornando pobre fosse mudar tanto. Se eu soubesse que vocês estão passando as privações que hoje passo, quando tinha dinheiro teria ajudado vocês.” Isso diz muita coisa…

Santa Germana era pobre, mas encontrava jeito de ajudar os pobres. Então levava víveres, restos da casa para socorrer os mais necessitados.

Os pães se transformaram em flores

Com essa pobre pastora reproduziu-se um dia o mesmo milagre de Santa Isabel de Portugal. Sua madrasta perseguiu-a, julgando que houvesse furtado alimentos da despensa.

Podem imaginar que vida! Uma pessoa honestíssima e a megera:

— Você roubou a rosca?

— Não, não roubei.

— Roubou! Onde é que está?

Ao abrir seu avental, ao invés de pão, como previa, só encontrou flores raras, nunca vistas e de inigualável perfume.

Aqui se faz referência ao famoso milagre de Santa Isabel. Ela não podia contar ao marido que estava ajudando os pobres. Um dia ele aproximou-se e perguntou: “O que você leva aí?” Ela disse que eram flores. Abriu o avental e os pães estavam transformados em rosas.

Aqui se deu a mesma coisa para proteger Santa Germana contra a cólera da megera. É um fato de uma grandeza! Ela fica alta como uma estrela, toca com a mão nos astros, e a megera do tamanho de uma formiguinha enfezada e feia.

Humilde, modesta e combativa

Uma manhã Santa Germana não saiu, como de costume, para guardar seu rebanho. O pai foi encontrá-la morta sobre seu pobre leito. Era o ano de 1601, quando ela completava 22 anos.

Agora vem a glorificação.

O povo acorreu em massa ao seu enterro, pois histórias sem conta corriam a seu respeito.

Dentro de casa, relegada a dormir num catre, sob a cólera da megera e o desprezo do pai. Gloriosa em toda a região e pisada entre os seus.

Quarenta e quatro anos após sua morte seu corpo foi encontrado intacto, sendo reconhecida sua autenticidade pela mão deformada.

Isso é muito bonito. Encontrar o corpo intacto é um dos elementos que favorecem o processo de canonização. Portanto, o caminho para a glória dos altares foi aberto para ela através da mão deformada, símbolo de sua aceitação da vontade divina. É uma lição muito bonita que está expressa nesse fato.

Canonizada em 1867, no ano de 1901 iniciou-se em Pibrac a construção de uma grande basílica em sua honra.

Que Santa Germana nos dê a graça de ter essa enorme segurança de que nosso verdadeiro e único título de glória é sermos filhos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Que esta Santa pastora nos alcance esse amor à Igreja pelo qual não façamos questão de mais nada nesta vida a não ser pertencer à Igreja Católica.

Ademais, peçamos que nos alcance a combatividade que ela certamente teve. Ela tão humilde, tão modesta, tão apagada, parece o contrário da combatividade. Mas sempre que alguém tem uma virtude extrema, possui também no outro extremo a virtude oposta. Só as pessoas assim são verdadeiramente combativas. Como só são pessoas verdadeiramente combativas aquelas que na hora da compaixão sabem também se compadecer.

Então, vamos pedir-lhe que nos dê as virtudes necessárias para nosso estado, assim como ela teve as necessárias para o estado dela.       v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/6/1967)
Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

 

A História gira em torno dos eleitos

Há um jogo das almas fiéis e infiéis, inclusive das vítimas expiatórias, que conservam ou degeneram as instituições. Em vista disso, Deus vai criando outras almas, suscitando vocações, dando graças para realizar seu plano, porque em sua infinita bondade Ele concedeu a algumas almas a honra de marcarem o rumo da História.

 

Muitas pessoas, por causa do abuso da noção de misericórdia, formam uma ideia de vida espiritual completamente diferente do que ela é realmente. O que a vida espiritual tem de mais interno é a vida da graça em nós, uma participação criada na própria vida de Deus, recebida pelo Batismo. Esta é a graça santificante, perdida apenas pelo pecado mortal.

Tanques de guerra e gases que vivificam ou matam

Há também incontáveis graças atuais, dentro de toda uma escala de intensidades – desde as suficientes até as superabundantes –, por onde a pessoa recebe graças ora em maior, ora em menor profusão, seja por um efeito da justiça ou da misericórdia divina.

Quando Deus resolve realizar suas grandes intervenções na História, as graças mais assinaladas e marcantes não são como esses favores comuns que Ele concede para cada indivíduo todos os dias, mas o Criador destina algumas pessoas que, por vezes, são até modeladas naturalmente para a tarefa à qual Ele as destina.

Em atenção ao amor que Deus tem a essas pessoas – antes mesmo de tê-las criado, porque representam, dentro da sabedoria d’Ele, um papel especial nos planos divinos –, seja em virtude das atitudes delas mesmas, seja da correspondência ou incorrespondência daqueles chamados a rezar e a sacrificar-se por elas, essas pessoas podem estar dotadas de uma força de impacto na História que a leva avante.

Para usar duas imagens bélicas, seria como um tanque de guerra que avança sobre um muro e o derruba, podendo atravessar até todo um quarteirão em linha reta. Essas pessoas são os tanques da História. Ou como os gases que, uma vez soltos, não há arma nem vedação que os detenha. Eles entram por todas as frestas, se insinuam e, neste caso, vivificam ou matam: destroem as instituições que não deveriam existir e vivificam as pessoas.

Os eleitos são o eixo do amor de Deus…

Então, Deus tem planos imutáveis que Ele realiza, pequem os homens quanto pecarem ou pratiquem os atos de virtude que praticarem; são planos que Ele traçou e executa. Os antigos sentiram esses planos e chamavam isso de fatalidade.

Mas depois há planos que dificilmente Deus modifica. E se os modifica, fá-lo nos acidentes em parte, mas não no todo.

Por fim, há planos que Ele de todo em todo abandona, por assim dizer entrega ao próprio destino. Isso tudo se entrecruza e se mistura dentro de uma aparente desordem, e precisa ser visto mais ou menos como no urbanismo, em que existem algumas avenidas que, dada a topografia, são necessárias à cidade, outras podem adaptar-se às circunstâncias, e outras são totalmente supérfluas.

Tudo em função da glória de Deus e dos eleitos que, como um corpo, dizem respeito à glória d’Ele mais especialmente.

Há dois modos de alguém demonstrar que tem um plano. Um é seguir no rumo retilíneo e chegar até o fim. Outro é, atravessando os piores e mais variados obstáculos, dirigir-se invariavelmente para o mesmo rumo. É uma forma de força do plano.

Deus combina os dois métodos, às vezes aquinhoando regiamente de obstáculos alguns, para depois fazê-los brilhar mais esplendidamente, quase como sendo os autores do plano que realizaram.

Entretanto o arqui-plano de Deus consiste em auferir do curso das coisas – para falar em linguagem humana – uma determinada quota de glória. Compreendendo bem que uma vez que o Onipotente criou seres inteligentes e livres em número incontável, dentre essas criaturas muitas haveriam de fazer o contrário do que Ele quer.

Logo, estava na índole das coisas que aconteceria muito do que Deus não quer, como condição, por assim dizer, para haver Criação. E dentro da quota sem a qual a Criação ficaria sem seriedade, Ele teria que deixar a esse jogo uma flexibilidade maior ou menor, tirando dessa própria flexibilidade uma espécie de super-glória para os eleitos que são o eixo do amor d’Ele e o centro do plano. De maneira que, da existência do mal e da maldade que se efetuou, redunda um aumento de glória, quer para Ele, quer para os eleitos.

…mas seus pecados pesam muito para que Ele modifique seus planos

Por exemplo, tudo quanto aconteceu a São Miguel Arcanjo redundou para Deus num aumento de glória. E como as nossas coisas estão postas dentro do tempo, elas não são fulgurantes como as de São Miguel Arcanjo, mas se entrelaçam mantendo sempre uma constante: para os eleitos, os mais bem-amados de Deus, isso dá numa redundância de glória a Ele, de um jeito ou de outro.

Sem dúvida, todos foram destinados ao Céu. Contudo, alguns têm uma vocação específica, uma providência especial e são diletos particularmente. Entretanto, se a pessoa dileta não enfrentar os obstáculos, dependendo dos desígnios divinos, da gravidade do pecado, caso não seja confirmada em graça, ela pode perder-se. Embora Deus possa ter pena dela e salvá-la “in extremis”.

No entanto, se essa alma eleita recusar e se perder, Deus suscita – estou falando em linguagem antropomórfica – dentro da História outras almas que de algum modo compensam com vantagem. Quer dizer, nunca acontecerá que o poder de Deus para suscitar almas eleitas seja liquidado pelo adversário.

Os eleitos, no sentido em que o foi o povo eleito e o é a Igreja Católica, ocupam um lugar muito importante nos planos de Deus, mas as ofensas por eles cometidas têm na justiça divina um papel muito grande. Deus é misericordioso com eles, mas seus pecados O ofendem especialmente e pesam muito para que Ele modifique seus planos.

Às vezes, Deus suscita um vingador que destroça a confusão

Então, a História toda gira em torno das gratidões e ingratidões dos eleitos. Muitos dos sinais sinuosos, espantosos da História, inclusive com o afundamento ou aparentes soçobros de instituições, estão relacionados com pecados cometidos nas próprias instituições, as quais, conforme sua correspondência ou incorrespondência à graça, ficam com uma certa liberdade, concedida por Deus, de traçar os planos da História, pairando sobre elas uma glória ou uma culpa extraordinária pelos rumos da humanidade.

A Providência, de vez em quando, suscita um vingador dos planos divinos malbaratados, que não é necessariamente aquele que castiga, mas quem destroça a confusão. Esse, então, restabelece a clareza do rumo e as almas andam.

Há, portanto, todo um jogo das almas fiéis e infiéis, inclusive das vítimas expiatórias, que conservam ou degeneram as instituições, e um conjunto de misericórdia e justiça do qual só Deus tem conhecimento. Então, Ele vai criando outras almas, suscitando vocações, dando graças para realizar um plano, porque em sua infinita bondade Ele concedeu a algumas almas a honra de marcarem o rumo da História junto com Ele.    v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/1/1980)

 

A graça que habita a criança batizada

Quando a criança é batizada, torna-se templo do Espírito Santo. À medida que vai amadurecendo, Deus acompanha o desabrochar de sua inteligência, vontade e sensibilidade. Já nos primeiros lampejos da razão começa a existir algo da noção de culpa e a possibilidade de um pecado, pois ela já tem livre-arbítrio e responsabilidade moral. Inicia-se, então, certa luta dentro da criança, que é a batalha travada por Deus com o demônio.

 

Evidentemente, quando fui batizado eu não possuía consciência de mim mesmo, de maneira que não tenho a menor sombra de recordação do meu Batismo. Devo, como todas as crianças, ter chorado muito, e estou certo de que recebi a graça batismal porque todos a recebem quando são batizados. Isso é de Fé, de maneira que não tenho dúvida a esse respeito.

A felicidade do Limbo e a do Céu

A Doutrina Católica aconselha que a criança receba o sacramento do Batismo o mais cedo possível, entre outras razões porque pode acontecer que ela morra de um modo inopinado. Ainda que seja uma criança bem constituída e forte, ela pode falecer, por exemplo, devido a uma sufocação. E, se morrer sem ser batizada, não irá para o Céu, mas para o Limbo, que é um lugar de uma felicidade inteira, porém de segunda ordem.

Para termos ideia do que seja essa felicidade, imaginemos o seguinte: uma pessoa vai morar em Versailles, no melhor dos apartamentos, no auge do luxo, do conforto, da boa mesa, e privando com o rei continuamente. Essa pessoa pode-se dizer que reuniu em torno de si vários elementos de felicidade. Não é uma felicidade perfeita, porque na Terra ela não existe.

Mas podemos supor uma pessoa que, por desígnio de Deus, gozasse em Versailles de uma felicidade suprema: tivesse uma inteligência perfeita, uma vontade de ferro, uma sensibilidade muito proporcionada, harmoniosa, bem como todas as qualidades que tornam uma pessoa atraente e agradável. Ela seria, portanto, com exceção do rei, o centro da corte, que atrairia todo mundo em torno de si.

Havia pessoas assim tão apreciadas na corte que ultrapassavam o monarca. O Rei Luís XIV, por exemplo, tinha um primo relativamente próximo que possuía o dom da conversa fascinante; chamava-se Príncipe de Conti. Quando o Monarca estava numa sala e entrava esse Príncipe, pelo protocolo ele precisava dirigir-se ao Rei e fazer uma profunda reverência, à qual o soberano respondia com um cumprimento superior e mais discreto. E se o Rei não lhe dirigisse a palavra, ele ia para qualquer canto da sala a fim de conversar com outras pessoas. Em pouco tempo Luís XIV estava quase sem gente em torno de si, porque o Príncipe de Conti sabia conversar de tal modo que as pessoas deixavam simplesmente o Rei e iam ouvi-lo falar.

Uma das coisas que torna a nossa vida agradável é nos sentirmos agradáveis aos outros. O fato de as pessoas se regalarem com o Príncipe de Conti, desejarem e preferirem sua presença à do próprio “Rei Sol”, é mais do que ser Luís XIV, no meu modo de entender.

Esse ramo da família real era muito capaz. Os Conti construíram um castelo para eles próprios, a uma distância não muito grande do Palácio de Versailles. O castelo foi ficando tão bonito que Luís XIV mandou um recado: “Proíbo-lhes aumentar o castelo ou pôr enfeites, porque deixa Versailles na sombra.” Vemos assim como eles sabiam fazer as coisas.

Então, imaginemos um homem que, além de tudo quanto descrevi acima, tivesse o dom da conversa que o Príncipe de Conti possuía. Enfim, com um homem assim poder-se-ia imaginar um pouco o que seria a felicidade existente no Limbo.

Mas a felicidade do Céu deixa o Limbo a anos-luz de diferença, porque no Paraíso Celeste a pessoa vê face a face a Deus que é infinito e, por assim dizer, dialoga sem cessar com cada um dos habitantes do Céu. Então, é uma felicidade perfeita, infinita, que com nada se pode comparar.

Começa uma batalha no interior da criança

Não se pode, por relaxamento, adiar o Batismo. Compreendemos, portanto, que uma criança, logo que foi batizada até iniciar o uso da razão, não se lembre de nada. Embora seja um templo perfeito do Espírito Santo, ela não começou ainda a ter aquela consciência da graça que adquire à medida que for amadurecendo e compreendendo melhor esse dom divino.

Tal é o valor da graça que habita uma criança batizada, que houve um Santo – cujo nome não me lembro, e creio terem existido outros Santos que faziam isso –, o qual, encontrando uma criancinha recém-batizada, costumava osculá-la no peito, porque, dizia ele, era o tabernáculo do Espírito Santo.

À medida que a criança vai amadurecendo, Deus acompanha o desabrochar da inteligência dela, bem como de sua vontade e sensibilidade. Nos primeiros lampejos da razão, já começa a existir alguma coisa da noção de culpa ou não culpa. E como tal, a possibilidade de um pecado, pois ela já tem livre-arbítrio e responsabilidade moral.

Começa então certa batalha dentro da criança, que é a batalha travada por Deus com o demônio dentro de cada um de nós.

Digamos, por exemplo, que uma criança esteja brincando em seu quarto. Sua mãe, que é extremamente carinhosa, bondosa, entra no cômodo, mas a criança está com mais vontade de brincar do que receber as carícias da mãe. Notando que seu filho tem pouco desejo de estar com ela, a mãe agrada-o ainda mais para ver se o atrai.

A criança pode ter um pequeno ato de má vontade em relação à mãe, que é o ponto de partida de uma série de implicâncias que continuam até a morte.

Pelo contrário, se a criança se vence, passa os braços em torno do pescoço da mãe, diz: “Oh, mamãe!” e beija-a, ela quebrou em algo uma unha do demônio que este queria cravar nela.  E, desta forma, ela começou a tomar uma atitude enérgica contra seus próprios defeitos, que pode ir até o extremo da velhice. Portanto, nos primórdios da vida espiritual já está presente alguma coisa que puxa a pessoa para o bem ou para o mal. Em geral, se prestarmos atenção, notaremos que toda a vida da criança é cheia de coisas dessas.

Minha alma estava como que colada à alma de Dona Lucilia

Recordo-me de que, sendo criança, restabelecendo-me de uma enfermidade, certo dia o médico disse à minha mãe:

— Ele não está mais doente, mas deve ficar na cama para se preservar um pouco e recuperar forças – eu era um menino muito fraco. A senhora alimenta-o quanto puder, dê-lhe tais e tais remédios e amanhã ou depois ele estará bom. Mamãe ficou naturalmente contentíssima.

Em minha infância, acompanhei isso a ponto de poder contar pormenores; eu tinha minha alma por assim dizer colada na alma dela. Não eram raciocínios que eu fazia, mas agia razoavelmente.

Quer dizer, a retidão que o Batismo pôs em mim levava-me a querer o carinho de mamãe e a dedicar-me a ela como ela se dedicava a mim. Eu sentia uma alegria em estar com ela, como não tinha com ninguém. E, embora eu estivesse ainda abalado, se me dissessem: “Você ficando bom, Dona Lucilia vai fazer uma viagem”, eu preferia permanecer de cama me restabelecendo, e que ela não viajasse.

Nessas circunstâncias, havia uma porção de atos de carinho dela para comigo, aos quais de um modo geral – não a cada um deles – eu deveria corresponder com afeto amoroso. De maneira que quanto mais ela se dava, mais eu me entregava a ela e a união de nossas almas começasse perfeitamente nesta ocasião, embora eu fosse um menininho.

E posso dizer que se não andei perfeitamente – não me lembro de nenhuma falta, mas pode ter havido –, andei quase perfeitamente. Isso me ajudou muito a que, mais tarde, quando fui posto diante do fenômeno religioso na Igreja do Coração de Jesus, a minha alma estivesse retamente aberta para aceitar aquela temática, mais ou menos como uma planta que respira o ar bom e disso ela vive.

Essa retidão preparou uma retidão muito maior: diante do Sagrado Coração de Jesus, do Coração Imaculado de Maria, da Liturgia católica, da Missa, do órgão, da Santa Igreja. Assim, passo a passo, Nossa Senhora me ajudou e me dispôs de maneira a que eu chegasse a ser, melhor ou pior, quem sou hoje.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/6/1994)
Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

O Redentor espera-me com um sorriso

Considerem a mais santa das Comunhões havidas sobre a face da Terra: a Comunhão de Nossa Senhora. Ela estava abrasada no desejo de comungar. No entanto, o anseio d’Ela de receber Nosso Senhor era infinitamente menor do que o d’Ele de ser recebido por Ela, de tal maneira o amor divino é superior ao da criatura.

Portanto, não devemos ir à Comunhão como quem vai submeter Nosso Senhor a um tormento, pensando: “Oh, Ele vai entrar na minha alma indigna!”

De fato é indigna, e eu me confundo. Mas, de outro lado, maravilho-me pensando que, dentro do sacrário, o Divino Redentor está à minha espera com um sorriso; e que nesta minha alma Ele entra com verdadeira delícia, porque, apesar de indigna, ela se encontra em estado de graça. “Minhas delícias consistem em estar com os filhos dos homens” (Pr 8, 31).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1974)
Revista Dr Plinio  267 (Junho de 2020)

Admiração desinteressada e inocente

Precisamos admirar o que é superior a nós para sermos contrarrevolucionários. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, do fundo de nossas almas seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Ver alguém ser contrário a isso nos afeta mais do que se nos tivesse dito um desaforo. O suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

 

Se prestarmos atenção no mundo de hoje, veremos o quanto ele é feito quase exclusivamente de interesse individual. Quando se trata de ser elogiada, a pessoa gosta; mas já não lhe agrada ouvir elogios dirigidos a outro. O mesmo se aplica a ganhar dinheiro, ter saúde, conforto, enfim qualquer vantagem: o indivíduo fica muito contente desde que seja ele o beneficiado.

A inversão de valores no mundo atual

Ora, por vezes, quando nos reunimos, embora sejamos de nações, formação cultural e educação tão diversas, vibramos de alegria ao celebrarmos as glórias alheias, considerando a vida e os feitos de diversos personagens históricos. Qual a razão dessa alegria?

O ser humano foi feito para crescer, tanto na alma quanto no corpo. De maneira tal que do próprio Menino Jesus diz o Evangelho que Ele “crescia e Se fortalecia, enchia-Se de sabedoria” (Lc 2, 40). Ao ler isto, tem-se a impressão do Divino Infante crescendo, florescendo, da infância delicada e sacrossanta do presépio para a adolescência e a força da idade madura, em que Ele iria carregar o lenho.

Essa transformação gradual, dia a dia, em que Ele cada vez mais se transformava de flor em cruz, de encanto em esplendor de sacrifício, era uma coisa que aumentava a formosura varonil d’Ele cada vez mais; dava-Lhe aquela forma superior de beleza que é o charme, mas o charme do varão forte, varonil, empreendedor, sério, seguro, porém tão delicado, meigo, paterno, de tanta ternura, que quase não se sabia como conciliar uma qualidade com outra. Isso era no Corpo, mas sobretudo na Alma.

A maior parte das pessoas pensa que a alma é uma espécie de radar feito para captar as necessidades do corpo e atendê-las, que ela existe para o corpo. Segundo esta concepção, o homem vive para fazer negócios bons a fim de comer. Então, a inteligência tem como função encontrar comida.

Ora, esse faro até cachorro ou um bicho pastando tem também. Para isso não é preciso possuir alma. Entretanto, a grande maioria das pessoas concebe as coisas assim. Formou-se e vai seguir tal carreira para quê? Ganhar dinheiro para poder comer, beber e dormir.

Então o homem não é senão um bicho mais complicado do que os demais e, enquanto tal, inferior aos outros animais. Porque se um boi, sem diplomas, encontra comida, o homem é apenas um bicho mais complicado do que o boi.

Nós vemos, então, como é absurdo admitir que o animal é mais do que o homem e a vida do animal mais perfeita do que a humana. O intelecto não pode ter como finalidade principal a manutenção do corpo. Contudo, se analisarmos o papel dado à alma no mundo contemporâneo, qual o interesse da maioria das pessoas pelos bens do espírito e pelas solicitações do corpo, notaremos uma desproporção arrasadora, simplesmente. As pessoas cuidam do corpo e a alma fica completamente de lado. É uma inversão de valores, por onde aquele que deveria ser rei é o servo.

Alegria do relacionamento entre almas com qualidades diversas

Pois bem, há um instinto na alma humana profundo, chamado instinto de sociabilidade, que faz com que os semelhantes se procurem. Este instinto também leva o homem a alegrar-se e a relacionar-se quando nota em alguém qualidades aparentemente opostas às dele, mas que o completam harmonicamente.

Imaginem Carlos Magno preparando os planos para uma invasão em terras de infiéis.

Sozinho na sua sala, caminhando de um lado para outro com passos firmes e cadenciados, sobre um chão de mármore ou de granito polido, está o Monarca de barba florida. O recinto, ainda com influência românica, possui arcadas que dão para um pátio interno onde há um pequeno chafariz sobre o qual pousa um pássaro que começa a saltitar. O Imperador interrompe seu caminhar, olha o passarinho e sorri amavelmente.

O passarinho é tão diferente dele! Entretanto Carlos Magno não olhou apenas para a ave, mas sentiu suas próprias vastidões interiores e compreendeu melhor a si mesmo.

O Imperador senta-se, manda vir um pouquinho de vinho e diz:

— Chame Alcuíno, meu ministro e conselheiro. Quero expor-lhe os planos de uma universidade e de uma batalha, porque as duas coisas eu resolvi agora.

O homem se completou.

Entra Alcuíno, monge famoso que organizou a renovação da cultura católica ocidental como ela se desenvolveu na Idade Média; foi o Carlos Magno da cultura. Podemos imaginá-lo como um homem venerável, de rosto comprido, fino, olhar que fita do fundo de arcadas oculares onde olhos pequenos e pretos dardejam, ou olhos azuis e inocentes sonham.

Alcuíno se inclina ante Carlos Magno, que faz um gesto e diz:

— Sentai-vos!

O sábio Monge pede licença para ficar ajoelhado, ao que o Monarca responde:

— Sois clérigo. Não é bom que um clérigo se ajoelhe diante de um leigo. Sentai-vos!

Alcuíno afirma:

— Por vossa ordem e em obediência a Deus, que deseja que o clero seja reverenciado, senhor, eu me sento.

Começa a conversa durante a qual Carlos Magno apresenta as metas gerais para uma universidade. Alcuíno ouve embevecido e pensa: “Que largueza de pensamento, que homem! Vejo todo um continente formando-se atrás da fronte desse Imperador. Que felicidade ter conhecido Carlos Magno!”

Dali a pouco o Monarca vai falando menos e o Monge toma a palavra. Enquanto a voz de Calos Magno lembra espadas e escudos que se entrechocam, a de Alcuíno remonta a sinos que tocam. Diz o douto conselheiro:

— Senhor, para realizar as vossas imperiais e cristianíssimas intenções, que julgo ter bem apreendido, tenho o intuito de vos propor tais matérias, e tal outra tem tal riqueza…

De repente é Carlos Magno quem está entrando pelo mundo da cultura e do saber, e pergunta algo a respeito de Aristóteles, Santo Agostinho, São Jerônimo. Depois quer saber alguma coisa sobre o Concilio de Niceia, tal pormenor concernente à virgindade da Mãe de Deus, e tal outro detalhe a propósito da união hipostática. Nesse momento, Carlos Magno está longe… Não pensa mais no passarinho, nem na batalha contra os germanos ou os árabes. Ele tem apenas diante de si o mundo da cultura e a alma de Alcuíno que se desdobra imensa diante dele, sabendo tudo, explicando tudo. Carlos Magno virou passarinho e saltita na cultura de Alcuíno, encantado!

É natural que isso tenha acontecido desse modo, porque assim é a alma humana. Carlos está diante de quem tem mais cultura do que ele. O passarinho o encantava por ser pequenino, e despertava na alma dele todas as afinidades harmonicamente opostas que o grande tem com o pequeno. Agora é o grande que tem alegria de sentir-se pequeno ao considerar alguém maior do que ele, não absolutamente falando, mas num ponto.

O grande Monarca tem a alegria de admirar e de crescer à medida que admira, saindo dessa conversa mais elevado de espírito e pensando: “Agora sei tal coisa e tal outra. Hoje não conquistei nenhuma província, mas fiquei conhecendo Santo Agostinho. Quando morrer não conduzirei comigo uma província, mas levarei para o Céu o que eu soube e admirei da ‘Águia de Hipona’. Que grande dia este em que conversei com o Monge Alcuíno!”

Ao admirar os que lhe são iguais o homem tende à sua plenitude

Imaginemos agora outra cena que historicamente não se deu, mas poderia ter-se dado: o encontro dos dois imperadores, do Oriente e do Ocidente, em Constantinopla.

Vendo a cidade maravilhosa na praia do Bósforo, parado num cais o Imperador do Oriente espera a chegada de Carlos Magno.

Chega a hora em que desce do navio uma passarela com um tapete sobre o qual Carlos Magno caminha. Ambos de coroa na cabeça se cumprimentam, com ar de um rei que saúda outro rei. Nesse aperto de mão de dois monarcas cristãos, Oriente e Ocidente, eles sentem a presença de Jesus Cristo e estreitam a amizade. Carlos Magno vê seu igual como seu irmão. Sua alma cresceu numa outra dimensão. De igual a igual, cada um deles é mais ele mesmo.

Houve interesse nisso? Não, mas houve vantagem. Essa alma tinha necessidade disso para crescer inteiramente. Todo ser vivo tende à sua plenitude, e Carlos Magno ganhou plenitude no que ele tinha de mais essencial nesses três episódios de sua vida. Ele ficou mais pleno, mais ele mesmo.

Voltando de Constantinopla, algum escudeiro do grande Carlos poderia dizer a alguém que não viu a cena: “Vós não sabeis o que é glória! Vós conheceis um imperador só – Carlos, o Grande – tratando com os que são inferiores a ele. Mas não vistes a glória de nosso Imperador quando ele tratou com um igual. Tinha-se a impressão de um arco-íris que ia de um ponto a outro! Aquilo é glória, quando se viu a soma dessas duas majestades altivas e cordiais entre si. Como é grande isso!”

Sem dúvida, houve vantagem para quem presenciou isso porque cresceu. Mas é preciso ter um espírito tal que se queira isso ainda que não houvesse vantagem; pela homenagem desinteressada e encantada em relação àquilo que é maior, igual ou menor em relação a nós.

Quando admiramos algo superior a nós, prestamos um ato de culto a Deus

Para o mundo contemporâneo esta posição é uma aberração, pois o princípio no qual se baseiam os pressupostos de quase todo mundo hoje em dia é: o que não diz respeito a mim, não me move.

Ora, o princípio que apresento é o contrário: movo-me para conhecer e admirar algo que não sou eu, mas um outro em relação ao qual me coloco numa posição de alegria porque ele é quem é, independente de pensar em mim.

Se isso parece absurdo para a mentalidade hodierna, existiu um ser mais inteligente do que todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo, que também pensou do mesmo modo que a maioria das pessoas de hoje: Lúcifer.

Com efeito, é próprio à criatura, por não ser ela a fonte de seu próprio ser, viver para quem a fez. Logo, o centro de nosso ser está fora de nós, é o nosso Criador.

Imaginem que um escultor esculpisse uma estátua e, miraculosamente, desse-lhe a vida. E tão logo ela acabasse de ser esculpida, dissesse ao seu autor:

— Até logo, vou embora.

O escultor lhe passava um laço e diria:

— Sem-vergonha! Eu te fiz, tudo o que há em ti foi dado por mim, e vais embora? Vou te liquidar, não existirás mais.

Sendo o autor da estátua, o artista tem o direito de servir-se dela. Pois bem, se isso é assim do escultor com a estátua, quanto mais de Deus para conosco. Eu nada era quando Deus resolveu que existisse um Plinio. Ele criou a minha alma; devo, portanto, submeter-me a Ele.

De fato, quando admiramos algo superior a nós, estamos, no fundo, prestando um ato de culto a Deus. Admirar é a postura normal de nossa alma.

Os contrarrevolucionários vivem da admiração

Quando o homem está na postura normal ele sente bem-estar. Mas o bem-estar é um reflexo muito apreciável, porém colateral da ordem que está nele. Por exemplo, um auditório precisa ter cadeiras confortáveis para que os ouvintes se esqueçam do corpo e possam prestar atenção na conferência. Os acolchoados, os braços da cadeira postos a uma altura adequada, o apoio e a distensão que o corpo recebe evidentemente produzem um certo bem-estar. Entretanto, ninguém diria: “Eu vou agora ao auditório para sentar numa cadeira.” A pessoa vai para participar de uma reunião. A posição adequada produz, colateralmente, um bem-estar.

Assim também a própria felicidade que o entusiasmo produz é, ainda ela, secundária em relação a essa admiração desinteressada e cheia de amor que devemos ter para com Deus.

Santa Teresa de Jesus exprimiu isso de um modo magnífico, quando disse que queria amar a Deus de tal maneira que “ainda que não houvesse Céu, eu Vos amaria, e ainda que não houvesse Inferno, eu Vos temeria”. Quer dizer, “independente de tudo, por serdes Quem sois, eu Vos amo quanto posso e lamento não ter capacidade de adorar ainda mais.”

No “Gloria in excelsis Deo”, que se reza na Missa, há um momento em que se diz “Gratias agimus tibi propter magnam gloriam tuam”: nós vos damos graças, ó Deus, por vossa grande glória. Não é minha glória, mas a d’Ele.

Consequentemente, quando vemos que alguém não dá a Deus a glória devida, não apenas porque não O admira, mas inclusive blasfema contra Ele, nossa alma é atingida no seu cerne. Se tivermos uma admiração verdadeiramente desinteressada, é do próprio fundo de nossa alma que seremos solidários com a ordem reta das coisas e, portanto, com a homenagem que se deve a Deus. Por isso, ver alguém ser contrário a isso é mais do que se nos tivesse dito um desaforo, roubado de nós um objeto ou lançado contra nós uma calúnia. O que foi atingido vale, para nós, muito mais. Não por ser interesse nosso, mas porque o suprassumo de nós mesmos é aquilo que amamos sem interesse mesquinho.

Há, pois, um entrechoque de revolucionários que se negam a admirar e contrarrevolucionários que vivem da admiração. Entretanto por detrás dessa luta há outra que se trava no interior de cada um de nós entre Deus e o demônio, entre a Virgem e a serpente, de maneira que somos um campo de batalha.

Para atuarmos nesses combates, tanto o externo quanto o interno, a Divina Providência nos concede auxílios maravilhosos. Um deles é a graça, participação que o homem tem na própria vida de Deus. A graça é uma criatura, mas ela nos faz participar da vida do Criador e confere à alma forças que estão na linha da sabedoria, da energia, da sagacidade e de todo o esplendor divinos. E isso nós aplicamos na luta também. Não é, portanto, apenas a força natural.

Dentro de nosso campo de batalha interior os Anjos da Guarda são o auxílio poderoso

Outro auxílio poderoso são os nossos Anjos da Guarda. Embora sejam tão superiores a nós que constituam os nossos arquétipos, nessas batalhas eles estão para nós como os escudeiros em relação aos cavaleiros.

Por vezes, os Anjos da Guarda são representados naqueles quadrinhos encantadores, onde aparece um Anjo ajudando uma criança a não cair da bicicleta, por exemplo. É verdade, respeito enormemente, mas não é a função primordial do Anjo da Guarda. Sua principal missão é ajudar-nos a vencer a Revolução dentro e fora de nós, e sermos inteiramente contrarrevolucionários. Somos os combatentes, e ele nos dá conselhos e forças enquanto lutamos.

Quando somos fiéis à graça e à ação angélica, no meio dessa batalha há algo em nossa alma que entra como um coro, uma orquestra de guerra. Por outro lado, se pecamos começa a coaxar um sapo ou grunhir um porco. É o demônio que faz a sua casa naquele que caiu no pecado. E nós, só pelo fato de estarmos em pecado, já passamos a lutar em favor do demônio. Embora nada façamos, o nosso existir em estado de pecado nos inscreve no lado do adversário. Donde a necessidade de, o mais cedo possível, sair dessa situação e voltar ao estado magnífico e diáfano da graça, onde nos transpomos de um exército para outro, e de anjos malditos passamos a ser novamente Anjos benditos.

Quiçá algumas pessoas colocadas diante das verdades acima expostas terão suas almas divididas em duas zonas opostas. Uma, luminosa, clara, alegre, porque ouvir alguém falar daquilo que merece todo o entusiasmo, ou seja, de Deus, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica torna a alma límpida, leve, satisfeita.

A outra zona é obscurecida por interesses mesquinhos: vontade de fazer carreira, de ganhar dinheiro, de aparecer, de ser importante. Isso deixa a alma escura, pesada, abatida, arfando e pensando: “Quando me virão o dinheiro e o prazer que eu quero?” Se vierem, essas pessoas farão o mesmo que realizam todos aqueles que possuem essas coisas: quando a mão está bem cheia, deixam cair no chão porque de nada servia aquilo tudo. Essa é a realidade.

Peçamos a Nossa Senhora a admiração desinteressada e inocente, ponto de partida invencível de todo o ódio necessariamente fulminante, esmagador e vitorioso contra a Revolução.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1979)
Revista Dr Plinio 267 (Junho de 2020)

 

Flor e glória da Cristandade – I

Todo o brilho que circunda a palavra “cavaleiro” se refere a uma das noções fundamentais da Civilização Cristã. Embora pareça existir uma incompatibilidade completa entre o católico e a guerra, o exemplo dos Anjos nos ensina que a força exercida por amor a Deus torna-se sagrada.

 

Não há uma data específica para indicar o fim da Cavalaria, de maneira a se poder dizer: “Ela terminou em tal ocasião”, mas é certo que, assim como os grandes crepúsculos não têm momento adequado para se afirmar que se fez noite, também o “pôr do sol” da Cavalaria não se sabe bem quando se consumou.

Palavra que dignifica o homem a quem se refere

Entretanto, lá pelo século XVII já não se podia propriamente falar nesta instituição. Havia Ordens que já não tinham quase nada da Cavalaria antiga. Possuíam meras recordações, era um título, mas a Cavalaria propriamente dita tinha desaparecido.

Mais de trezentos anos depois, eu encontro jovens que, ao serem chamados de “cavaleiros”, sentem-se dignificados, mesmo sem conhecer tudo quanto a palavra “cavaleiro” significa.

Quando se quer elogiar alguém que teve um procedimento bonito, nobre, abnegado, corajoso, diz-se: “Tu procedeste como um cavalheiro!” Havendo entre dois homens educados uma altercação que se encerra de um modo distinto e elegante, afirma-se: “Terminou como uma contenda de cavalheiros!” Por outro lado, ao queixar-se contra quem lhe faltou com o respeito, uma senhora poderá usar esta fórmula: “O senhor não foi um cavalheiro!”

Cavaleiro – de onde deriva o termo “cavalheiro” – é, portanto, uma palavra que circula por toda parte, mas cujo sentido quase ninguém sabe definir com exatidão. O termo sugere a ideia de alguém que monta a cavalo. Entretanto, quando vemos, por exemplo, alguns soldados da Polícia Militar a cavalo fazendo a ronda do bairro, embora seja uma tarefa digna, honesta, própria a despertar a simpatia, podemos dizer que são cavaleiros? Eles poderão fazer parte de uma força de cavalaria da Polícia Militar, mas a Cavalaria é uma outra coisa.

O que vem a ser o cavaleiro? O que ficou colado nesta palavra de modo que, mesmo sem saber defini-la, todos reconhecem nela um certo brilho, uma certa luz que dignifica o homem a quem se refere? Vale a pena examinarmos isto para compreendermos uma das noções fundamentais da Civilização Cristã, mais ou menos tão perdida na mente do homem contemporâneo como desaparecida está a própria ideia de Civilização Cristã.

Há restos, aromas da Civilização Cristã no mundo de hoje, como num jarro de onde foi retirada uma rosa que ali esteve durante algum tempo: tira-se a flor, fica o perfume. Assim também, da Civilização Cristã no mundo de hoje há um resto de perfume, mas a rosa não está mais presente.

O tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado

Ora, uma das palavras nas quais se sente o perfume da Civilização Cristã é “cavaleiro”. Ele é uma flor e uma glória da Cristandade. A tal ponto que o termo “cavaleiro” tem um nexo histórico e doutrinário muito merecido com a ideia de Cruzada. Quando se diz “fulano é um cruzado de tal ideal, ou de tal causa”, dá-se a entender que é um homem abnegado, heroico, corajoso, dedicado, que não conhece obstáculo, enfim, um grande homem.

Os cruzados não só são cavaleiros, mas o tipo mais perfeito do cavaleiro é o cruzado. Que aroma misterioso e delicioso impregna essas palavras de maneira a resistir até à poluição deste fim de era histórica em que estamos vivendo!

Devemos considerar que, ao falar de cavaleiro, referimo-nos a alguém que realizou a mais alta perfeição de um certo tipo de qualidades humanas. Um santo não é necessariamente um cavaleiro, mas um cavaleiro que leve as suas qualidades até o extremo torna-se santo. Mais ainda: um santo, colocado nas condições em que lutaram os cavaleiros, também ficaria um cavaleiro.

O santo é o homem que atingiu a sua perfeição, que foi chamado por Deus a um alto grau de virtude e correspondeu inteiramente, ou de modo exímio, a esse chamado.

O cavaleiro, por sua vez, corresponde a uma forma de perfeição de que deve ser capaz todo homem colocado nas condições de lutar. O verdadeiro católico, impelido pelas circunstâncias a combater, torna-se cavaleiro.

Logo, o cavaleiro é o católico em luta. É uma forma de excelência e de perfeição que se nota no católico quando as condições da vida, do embate entre o bem e o mal, o colocam no caso de batalhar. Aí estará o católico emitindo um particular brilho de sua alma. Esse brilho é o espírito da Cavalaria.

Entre os anjos reinava uma harmonia perfeitíssima

Para termos uma ideia exata da Cavalaria, reportemo-nos ao que poderíamos chamar a primeira manhã da Criação. Deus criou os anjos, puros espíritos; os homens, compostos de espírito e matéria, tendo um corpo perecível no qual estão presentes as naturezas animal, vegetal e mineral; os animais, os vegetais e os minerais. Esse é o quadro geral da Criação que, tomada no seu todo, teve a sua primeira manhã no momento em que Deus criou os anjos.

Podemos imaginar a criação dos anjos simultânea, de maneira a todos, desde o primeiro instante de existência, começarem a brilhar, conhecer, adorar a Deus e a cantar as glórias d’Ele.

Também imediatamente passam a se conhecerem uns aos outros e se relacionarem de um modo harmônico, em coros que cantam a glória de seu Criador. Entre eles reina uma harmonia perfeitíssima porque estão todos voltados para Deus.

Essa harmonia tem o esplendor da paz, que Santo Agostinho definiu tão magnificamente como sendo a tranquilidade da ordem. Portanto, não é a qualquer tranquilidade que se pode chamar de paz, mas àquela que resulta da ordem.

Há formas de desordem que dão a impressão de paz. Num charco, por exemplo, com água estagnada, no qual nada acontece, nada se move, há uma tranquilidade, mas não oriunda da ordem. Há qualquer coisa de propício à podridão, à degenerescência, à degradação, que prenuncia a desordem. Isso não é paz.

Entre os anjos, pelo contrário, por estarem todos ordenados em função da vontade e da glória divinas, havia a permuta harmoniosa de bons ofícios para juntos adorarem a Deus.

Quem introduzisse no Céu qualquer semente de desordem, um espírito mau que tentasse provocar uma intriga entre dois anjos, instigando o amor-próprio de um contra outro para produzir uma encrenca ali dentro, nós o chamaríamos de bandido! Porque ia perturbar a tranquilidade da ordem, o esplendor do Reino de Deus sobre todas aquelas criaturas.

Com maior razão ainda, se um puro espírito sacasse uma espada – para usar uma linguagem metafórica, pois um anjo não tem corpo – e começasse a agredir o outro, nós o consideraríamos demônio. Por que ele vai atingir e ferir o outro, pô-lo em desordem e provocar efervescência de ódio? Colocar o tumulto, as incertezas e as angústias das guerras onde deveria haver apenas a segurança esplêndida e diáfana de um futuro que nada perturbaria?

Quem fizesse isso praticaria uma ação muito má. Nela nós podemos ver o que há de substancialmente mau na violência, a qual, de si, considerada sem as circunstâncias que a expliquem, é um ato feio que macula com a sua própria feiura quem o pratica. O violento fica hediondo. Não há pior ultraje contra alguém do que dizer: “Tem cara de assassino.” É uma coisa horrorosa…

Dir-se-ia, pois, existir uma incompatibilidade completa entre o católico e a guerra, porque ele é membro do Corpo Místico de Cristo; nele está presente, pela graça, a própria vida de Deus, é um templo do Espírito Santo, foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo por Co-Redentora Nossa Senhora, com suas lágrimas indizivelmente preciosas. O católico é um filho da ordem, da tranquilidade, é a sede da paz!

Como podemos imaginar um homem nessas condições que prepara para si uma arma com a intenção de verter o sangue alheio e, quando a arma está pronta, procura a quem matar? Ele deseja tanto matar que até expõe a sua vida para esse efeito, porque tem ódio, quer ver sangue derramado e gente morta pela destra dele. Esse é um católico, um templo do Espírito Santo, um membro d’Aquele que diz: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração…”?! O contraste não é o mais abrupto possível?

Um prélio magno travou-se nos Céus

Entretanto, quando Lúcifer se levantou contra Deus e arrastou com sua revolta uma terça parte dos espíritos celestes, provocando uma Revolução no Céu contra o Criador, houve um Anjo que soube se erguer e bradar: “Quis ut Deus? – Quem como Deus?” Foi São Miguel Arcanjo que, com esse brado, conclamou à luta dois terços dos espíritos celestes, realizando o que diz a Escritura: “Prœlium magnum factum est in cœlis.” Na mansão da paz e da tranquilidade se fez uma grande guerra, um prélio magno travou-se nos Céus e São Miguel com os seus Anjos jogaram no Inferno a Lúcifer e seus sequazes. Portanto, o resultado dessa batalha foi lançar os vencidos na mansão da desgraça incessante, total e inexpiável, sabendo que eles iriam ter esses tormentos por toda a eternidade. Os anjos de paz, que antes se amaram, cindiram-se e os dois terços capitaneados por São Miguel – eles, os pacíficos, os filhos da Luz – quiseram arrojar na mansão eterna das trevas e da morte satanás e seus anjos.

Usando sempre uma linguagem metafórica, imaginemos a cena. São Miguel se levanta indignado, esplendoroso, e brada com uma voz de trombeta que cobre, de ponta a ponta, as vastidões celestes: “Quis ut Deus?” De um lado, muitos Anjos se entusiasmam e aderem a ele, constituindo as gloriosas hostes celestes. Mas, do outro lado – onde talvez houvesse antes um esplendor maior, pois os partidários eram capitaneados pelo mais perfeito dos entes angélicos, aquele que trazia consigo a luz, outrora a alegria do reino celeste, espelhando a Deus para os outros anjos – encontra-se Lúcifer, medonho, rubro de ódio e de cólera. Todas as paixões indignas se manifestam nele; está cheio de inveja e de todos os outros pecados capitais, na medida em que esses podem estar em um anjo. O espírito revoltado encontra-se agora borbulhando de ódio contra aquele Deus a Quem ele olhava com amor.

A luz das hostes de São Miguel avança e a batalha começa! Como terá sido esse embate? Como podem puros espíritos, que não têm corpo, combater entre si?

O fato concreto é que houve três transformações a partir da revolta de Lúcifer. Primeira: ele e seus sequazes se tornaram execráveis e hediondos. Segunda: aqueles anjos que eram de paz, de cordura, se transmudaram nos maiores guerreiros que se possa imaginar. Terceira: a mansão da paz se transformou num terrível campo de batalha.

A força exercida contra os maus por amor a Deus se torna sagrada

A partir desse momento, a violência nos aparece sob outra cor. Se é verdade que, considerada na simplicidade de sua figura primeira, ela é hedionda, quando a vemos ter origem na oposição a um anjo que se tornou péssimo ao se revoltar, tentando ele mesmo a violência contra o Criador, declarando “non serviam – não servirei a Deus”, então o uso da violência passa a ter uma beleza especial.

Deus é supremo e absoluto, todos os direitos valem na medida em que O servem. A partir do momento em que esses anjos se revoltaram contra Ele, opondo-se a todo o direito, toda a ordem e toda a lei, perderam o direito de estar no Céu, e o único lugar proporcionado para eles era o Inferno. Resultado: tornava-se necessário enxotá-los para lá. A guerra surge, assim, como um santo e glorioso dever.

O emprego da força, que pareceria tão contrário à convivência entre os espíritos celestes, passa a ter um esplendor peculiar: é o amor a Deus enquanto recusando o mal e derrubando no Inferno quem é contra Ele.

Como nada pode tornar o espírito humano tão apreciável e venerável quanto o amor de Deus, assim também a força exercida por amor a Ele, chegando inclusive à agressão, quando esta é destinada à defesa da glória divina, se torna sagrada e resplandece com um brilho especial.

Daí vem a noção do homem completo. Se lhe foi dada a ocasião de atacar o mal e não o fez, ele pode não ter desenvolvido a sua força de alma como era necessário. Assim, entre dois homens muito virtuosos, um dos quais pouco lutou na vida, enquanto o outro, de ponta a ponta de sua existência, foi um guerreiro, qual aquele cuja personalidade podemos apreciar melhor? Evidentemente a daquele que, além de ter sido tudo o que o outro foi, ainda combateu.           v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 26/5/1984)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

Tocha ardente de amor a Deus

Não podemos nos salvar se não tivermos amor sobrenatural a Deus, e é Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, que nos obtém esse amor. Ela ama o Criador mais do que todos os Anjos e homens juntos, e, à maneira de uma tocha a qual se acende no Sol, transmite esse fogo às outras criaturas.

 

Pediram-me para tratar a respeito da invocação de Nossa Senhora do Divino Amor, cuja festa se comemora no sábado anterior ao domingo de Pentecostes. Qual é o sentido profundo dessa devoção?

Só obteremos o amor de Deus por meio de Nossa Senhora

A coisa mais preciosa que o homem pode ter nesta Terra e lhe granjeia o Céu é o amor de Deus. Este é o primeiro dos Mandamentos o qual dá valor a todos os outros. Se uma pessoa cumprisse os nove Mandamentos, por outras razões que não o amor de Deus, aos olhos d’Ele não teria valor, porque é preciso que tudo seja feito por amor do Criador para ter valor. Portanto, a virtude cúpula, a virtude áurea, de acordo com a Doutrina Católica é o amor de Deus.

Por outro lado, é este amor que nos abre a porta do Céu, onde nós estaremos praticando um eterno ato de amor de Deus. De maneira que essa invocação se refere a Nossa Senhora enquanto nos obtendo e comunicando a mais alta virtude e o mais elevado dom que Ela teve e que pode ser obtido para uma criatura.

Isto posto, precisamos nos perguntar qual é o papel de Maria Santíssima na obtenção e na difusão do amor de Deus.

A questão se põe de um modo muito simples. É uma verdade de Fé, a qual ninguém pode negar sob pena de pecado mortal, que Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças, ou seja, todas as súplicas dirigidas a Deus passam por Ela, de tal maneira que os pedidos de todos os Santos do Céu, feitos em união com Maria, são atendidos, mas se Ela não pedisse com eles não seriam ouvidos. Entretanto Ela pedindo sozinha é atendida. Assim, todas as graças concedidas por Deus nos chegam por meio d’Ela. Por vontade divina, a Santíssima Virgem é o canal por onde todas as preces sobem a Deus e todas as graças descem para os homens. Logo, o amor de Deus é Ela que nos obtém.

O amor natural e o sobrenatural a Deus

Em princípio, poderíamos considerar o amor a Deus em duas linhas: o natural e o sobrenatural. O amor natural a Deus seria o praticado por alguém que não conhecesse senão a religião natural. Há certas verdades a respeito de Deus que os homens conhecem simplesmente pela razão, não porque estejam na Escritura e, portanto, tenham sido reveladas, nem por constarem da Tradição, mas por serem dedutíveis pela razão humana. Por exemplo: há um só Deus supremo, criador de todas as coisas, infinitamente perfeito, misericordioso, justo, que ama os homens e os chama para uma vida eterna depois desta existência. Essas verdades o homem conhece simplesmente por sua razão e, de si, justificam o amor a Deus.

Mas para nós, que fomos batizados e temos a Fé e toda a vida da graça a qual a Igreja oferece, não há apenas esse amor natural a Deus. Existe também o amor sobrenatural, fruto específico de um conhecimento sobrenatural de Deus. Quer dizer, o que nós conhecemos de Deus pela Revelação e pela graça é incomparavelmente mais do que a nossa simples razão poderia alcançar. A Santíssima Trindade, por exemplo, nós não conhecemos pela nossa razão, mas por nos ter sido revelada. E assim uma caudal enorme de verdades de Fé fundamentais que nós só conhecemos porque Deus revelou.

Ensina-nos a Igreja que esse ato pelo qual a razão humana adere ao que foi revelado é um ato sobrenatural, ou seja, sem uma graça concedida por Deus para isso, o homem é incapaz de crer. Embora o ato de Fé seja conforme à razão e justificado por ela, o simples raciocínio não basta para que o homem o pratique. Ele precisa de um auxílio especial o qual já é, nesta Terra, o começo da visão beatífica, uma semente do que faremos quando, no Céu, contemplarmos Deus face a face.

Este ato de conhecimento sobrenatural traz como consequência o amor de Deus, que é sobrenatural também. Um amor que só pode ser obtido, portanto, por meio de uma graça. E este amor que vem, portanto, de Deus para nós a fim de O amarmos, é preciso que antes Ele nos tenha amado e nos tenha dado a graça de amá-Lo. O primeiro passo é d’Ele para conosco e não nosso para com Ele. E este amor sobrenatural nos vem da graça; sem a graça nós absolutamente não o obteríamos.

É Nossa Senhora que pede para nós a Fé e a graça do amor. E sem a graça nós não teríamos nem a Fé, nem o amor sobrenatural.

Ela é a Medianeira que nos obtém do Criador este amor sobrenatural a Ele. O católico não pode salvar-se sem um amor sobrenatural de Deus.

Verdadeira alma do apostolado

Não basta dizer que Maria Santíssima, por sua intercessão, nos obtém este amor. Ela é um reservatório, uma tocha ardente deste amor e o comunica aos outros. Ela, que ama mais a Deus do que todas as criaturas juntas O amam, transmite o amor para as criaturas. Mais ou menos como uma tocha a qual se acende no Sol, que é Deus, e depois passa o fogo a todas as outras criaturas. Ela é um reservatório, um mar, um oceano imenso de amor e o transmite aos outros.

Assim, em última análise, para todos os problemas de nossa vida interior temos que pedir, antes de tudo, o amor de Deus. Precisamos agradecer o amor de Deus que nós recebemos e pedir mais. E não podemos fazer a Nossa Senhora uma súplica mais agradável do que pedir-Lhe isso. Se o tivermos praticaremos todas as outras virtudes. Se não o possuirmos não praticaremos nenhuma virtude.

A repercussão disso no apostolado é enorme. Porque o apostolado é um ato pelo qual uma pessoa comunica a outra o conhecimento de Deus, através da Fé, e o amor de Deus, por meio do bom conselho.

Meu ato de apostolado só pode ser fecundo se uma ação sobrenatural da graça ajudá-lo. Senão, é inteiramente incapaz de fazer qualquer coisa boa. Recordem-se da comparação: a graça seria algo de mais ou menos parecido com a energia elétrica que passa pelo tungstênio.

Então, Nossa Senhora é a verdadeira alma de meu apostolado. Porque é por meio d’Ela que obtenho as graças para ele frutificar.

O princípio fundamental do livro de Dom Chautard, Alma de todo apostolado, está representado nesta invocação: “Nossa Senhora do Amor Divino”. Quer dizer, a Santíssima Virgem enquanto dando ao apóstolo o amor de Deus e o ajudando a transmiti-lo para as outras pessoas. Nossa Senhora é a condição fundamental de minha vida espiritual e da fecundidade de meu apostolado.

Aquela famosa figura oriental de Maria Santíssima, que está rezando e tem dentro de Si o Menino Jesus com um pergaminho, ensinando, poderia se chamar perfeitamente Nossa Senhora do Amor de Deus. Enquanto Ela reza, na pessoa d’Ela o Divino Infante ensina. Então, também é Ela enquanto ora que obtém para todo mundo o amor de Deus, ou seja, o Menino Jesus fala a todas as almas, em Nossa Senhora, dando-nos o amor de Deus. Portanto, para quem quer cultivar a fecundidade no apostolado – o apostolado individual, por exemplo – é absolutamente fundamental uma compenetração da importância de Nossa Senhora neste sentido.

O Reino de Maria será o Reino do Espírito Santo

Na capela do Santíssimo Sacramento da Igreja da Consolação, em São Paulo, sobre uma coluna à direita de quem olha para o altar, há uma imagem de Nossa Senhora do Divino Amor, lavrada em madeira, em cujo Coração está a figura do Espírito Santo.

Certa ocasião, rezando diante dessa imagem, vinha-me ao espírito esta consideração: Como seria a alma de Nossa Senhora enquanto inundada pelo Divino Paráclito? Se eu pudesse penetrar na santíssima alma d’Ela, como se entra numa catedral, o que veria?

É próprio do Espírito Santo comunicar a graça divina, um dom criado de caráter espiritual e, ao mesmo tempo, uma participação na vida de Deus; a graça nos transmite a própria vida divina. Compreende-se, assim, a relação possante existente entre a graça e o Espírito Santo.

Maria Santíssima é nossa Mãe, mas também a Esposa do Divino Espírito Santo, que n’Ela gerou misteriosamente o Menino Jesus, tornando-Se, por esta razão, medianeira universal e omnipotente junto a Ele. Assim, sendo a Mãe da Divina Graça e Esposa do Divino Espírito Santo, Ela pede por nós as graças e é atendida. De maneira que Ela é o canal do Divino Espírito Santo junto a nós.

Por ser cheia de graça, Ela transborda das graças do Espírito Santo, e nunca ninguém teve a graça que Ela possui. E é da exuberância de suas graças que Ela nos comunica a graça. Então, tudo quanto Dom Chautard afirma a respeito do apóstolo, que deve ser um reservatório de graças de cuja exuberância todos se abeberam, diz-se de Nossa Senhora de um modo superexcelente, maravilhoso.

Por causa disso também, o Reino de Maria será o Reino do Divino Espírito Santo. São Luís Grignion de Montfort deixou isso claro no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: houve o Reino de Deus Padre e o de Deus Filho, depois virá o Reino do Divino Espírito Santo, que terminará num dilúvio de fogo de amor e de justiça. Esses três reinos sucessivamente devem marcar as três grandes eras da História. Portanto, assim como acreditamos que vem o Reino de Maria, devemos crer na vinda do Reino do Divino Espírito Santo.

Simetricamente com isso, Nossa Senhora obterá – é uma conjectura minha – que o Divino Espírito Santo instaure um foco pujantíssimo d’Ele, que floresça com todos os seus dons na Terra, então desinfestada e purificada da presença imunda dos demônios.

Vamos ficar pasmos com duas coisas que são novas para nós: a fraqueza do mal e a força do bem. Hoje em dia nós vivemos consternados com a fraqueza do bem e a força do mal. Porém, virada essa página da História, teremos o gáudio de constatar a força do bem e a fraqueza do mal. Isso levará nossas almas a não sei que estado de alegria. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 25/10/1971 e 26/11/1985)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

A Virgem que traz consigo a Santíssima Trindade

Maria Santíssima é o templo da Santíssima Trindade: traz consigo o Divino Paráclito; como Mãe do Verbo encarnado, porta consigo Nosso Senhor Jesus Cristo; Filha do Pai Eterno, tem consigo a Deus Pai.

Peçamos, pois, a Nossa Senhora que faça germinar em nós o amor à Santíssima Trindade. E que Ela, a Virgem das virgens, inocentíssima, mas pela qual passaram todas as graças de arrependimento que encheram e encherão até o fim do mundo a face da Terra, nos conceda um perfeito espírito de contrição.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1968)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

O Papa que travou uma batalha decisiva

São Gregório VII travou uma batalha decisiva, depois da qual não houve mais luta séria entre o papado e o império, ou qualquer monarquia, a respeito do princípio contra o qual Henrique IV se levantou. Posteriormente houve escaramuças, mas fundamentalmente a batalha estava ganha por esse Santo.

 

São Gregório VII teve um importante papel contrarrevolucionário ao reivindicar a prioridade das coisas espirituais sobre as temporais, do papado sobre o império, ao impor, com palavras magníficas, o castigo necessário ao Imperador rebelde que, assim contido, teve reprimida na sua pessoa, durante séculos, a marcha da Revolução a qual, como serpente que saía de sua toca, tentava começar a caminhar na História, quando o cajado firme desse pastor lhe quebrou a cerviz.

Vibrou contra Henrique IV a punição mais alta, profunda e intransigente

Tudo isso constituiu a glória desse Santo o qual pôde dizer que morria no exílio porque tinha amado a justiça e odiado a iniquidade, cumprindo desta forma inteiramente o seu dever de pastor, e dando o magnífico testemunho de si mesmo.

Mas há um aspecto da vida de São Gregório VII o qual, embora reluza com todo o brilho e seja notado por todo mundo, não vi ninguém que comentasse. Que aspecto é esse?

Ele travou uma batalha decisiva depois da qual não houve mais luta séria entre o papado e o império, ou qualquer monarquia, a respeito do princípio contra o qual ele se levantou. Sobre aplicações colaterais ou transgressões desse princípio, punidas justamente pela Igreja, ainda houve escaramuças, mas fundamentalmente a batalha estava ganha por esse Santo. Portanto, o golpe desferido por ele foi certeiro, atingindo o ponto que deveria.

Em segundo lugar, São Gregório VII teve que enfrentar o maior potentado da Terra, e não tentou ladear a questão. Ele não procurou mandar emissários incumbidos de deformar o problema, atenuando-o com meias palavras e por meio de inadequadas contemporizações.

“O Imperador se levantou e sustentou tal coisa? Eu, Gregório, sucessor de São Pedro, declaro que esta coisa é falsa, e digo a ti, ó Imperador: Tu és o maior potentado civil da Terra, tu te encontras no meu caminho como o homem mais poderoso que a mim poderia se opor. Está bem, eu travo esta batalha contigo! Entesto o meu poder contra o teu, e vamos ver qual é o poder que vale mais. Eu te deponho e excomungo, escorraço-te da Igreja Católica. Mais ainda: amaldiçoo-te, declaro que tens parte com satanás e pertences à grei maldita que Deus expulsa da sua presença. Vai, sai!”

Quer dizer, contra esse potentado ele vibra a punição mais alta, profunda e intransigente que se poderia imaginar. Não tem medo de nada. E se tiver que acontecer qualquer coisa, aconteça. “Eu estou aqui para a glória de Deus, para a vida ou para a morte desta minha pobre existência terrena. Mas lutarei até o fim.”

Um fato sem precedentes na História

O Imperador vai a Canossa. De lá para cá, “ir a Canossa” ficou uma expressão consagrada na literatura de bom quilate. Diz-se que vai a Canossa a pessoa que, em linguagem corrente, vulgar, banal de hoje em dia, entrega os pontos, não tem mais resistência a fazer e se declara derrotada.

Canossa é uma comuna italiana, próxima a Toscana – Norte da Itália –, onde a Condessa Matilde, fervorosa devota do papado, possuía um castelo no qual abrigara o Santo Pontífice contra quem o furor do Imperador Henrique IV estava por se desatar.

Esse Imperador, em pleno inverno, toma trenós e, percorrendo os desertos gélidos da Suíça, particularmente inóspitos nessa época, vai a Canossa e pede perdão, porque não tinha outro remédio. Nos últimos dias em que ele permaneceu no poder, até os criados fugiam de sua casa, de maneira a não ter sequer quem lhe prestasse os serviços domésticos. Não é só dizer que não possuía apoio político, ele não tinha quem lhe preparasse o banho! Por quê? Porque era o homem maldito sobre o qual caíra a excomunhão do representante de Cristo na Terra, do sucessor de São Pedro. Por isso ninguém queria nada com ele.

Henrique IV atravessa as vastidões perigosas da Suíça durante o inverno, e naquele tempo a qualquer momento podia acontecer que caísse por um abismo abaixo, ficando sepultado na neve. Com a excomunhão, na neve ficaria o seu corpo e no fogo sua alma para todo o sempre, se não houvesse um arrependimento perfeito.

Enfim, ele se apresenta e pede perdão. Fato sem precedentes na História: um imperador humilhado a este ponto, por uma mera palavra de um papa. É o mais alto potentado da Terra contra quem o Sumo Pontífice pronuncia uma fórmula, e ele cai no chão. Era o caso de dizer: “Sed tantum dic verbum – dizei uma só palavra, e a Igreja será salva deste inimigo.” São Gregório VII disse a palavra, e a Igreja ficou libertada.

“Excomungado aqui não entra!”

No castelo da Condessa Matilde, o Papa é informado que o Imperador estava ali. Alguém mais fraco – não só um homem que não fosse santo, mas mesmo um santo não assistido por uma graça especialíssima – talvez tivesse pensado em acolher o penitente de imediato. Mas estava ali o varão cuja vocação era dar o exemplo do que é o gládio da Igreja, e fazer amar de modo todo especial essa integridade de alma pela qual a Igreja não cede. São Gregório VII manda fechar as portas do castelo:

— Excomungado aqui não entra!

— Mas o que ele pode fazer, pois está do lado de fora das muralhas, ajoelhado no gelo e pedindo perdão.

— Que fique!

Nesse gesto tão duro e admirável nota-se a mão maternal da Igreja. Ele poderia ter dito: “Que vá embora!” Entretanto, disse: “Fique!” Na ponta do gesto floresce uma vaga esperança de perdão. Mas antes a penitência, a humilhação. Durante três dias e três noites, o soberano deposto sofreu essa humilhação.

A História nos conta que só depois disso São Gregório VII admitiu Henrique IV e, tendo este pedido perdão com toda a humildade, o Papa o perdoou, reconciliou-o e permitiu que fosse embora. Estava quebrado o cetro que satanás levantara contra o papado. São Gregório VII tinha obtido uma grande vitória.

Que a maldita Revolução gnóstica e igualitária seja punida!

Qual é a lição que tiramos disso? A de ser rijo, firme, ir ao fundo, até o fim dos princípios, às últimas consequências, enfrentar qualquer adversário de viseira erguida e de gládio em punho, não se contentar com meios termos, com palavras vazias, nem com esperanças vãs, mas, ao pé da letra, exigir que se quebre o poder que se levantou e se anule o risco que se constituiu; só então ter misericórdia.

Porque a misericórdia é admirável enquanto chama para o arrependimento o pecador e o perdoa. Ela não seria admirável e não seria verdadeira misericórdia se fosse a paz com o pecador que não se arrepende. É preciso que o pecador se arrependa sinceramente e peça perdão. Depois disso ele deixou de ser empedernido. Então é a vez da misericórdia; antes não.

Mesmo depois de pedir o perdão ainda há a penitência a cumprir. É o que nos ensina esse entrecruzamento maravilhoso de justiça e de misericórdia que é o Purgatório. Almas de pessoas que faleceram piedosamente em Jesus Cristo, morreram rezando, pediram perdão de seus pecados e comparecem diante de Deus. Entretanto, em número incontável, são mandadas para o Purgatório. Por quê? Porque é preciso expiar, pagar de algum modo o mal feito. E a alma que se arrepende tem vontade de reparar esse mal praticado.

Assim, em nossa luta devemos considerar os desígnios da Providência: desejar, com toda a nossa alma, que o adversário da verdadeira Igreja Católica Apostólica Romana em nossos dias seja punido: a maldita Revolução gnóstica e igualitária. Mas seja punida ainda mais do que o Imperador Henrique IV foi, porque ela ousou coisa pior: tentou penetrar no próprio Santuário e transformá-lo num reduto da Revolução. Ela desbastou a Terra inteira, e é preciso que o castigo seja proporcional. A Revolução, enquanto tal, tem que desaparecer!

Eis a lição do grande São Gregório VII. Em última análise, levar o bem, a verdade, a beleza e a fidelidade à Igreja até as suas últimas consequências.

Devemos nos preparar para a grande luta que nos espera

Esse Pontífice não viveu no tempo de Carlos Magno, em cujo gládio estavam inscritas as palavras: “Defensor dos Dez Mandamentos”. Que coisa maravilhosa! Entretanto, São Gregório VII foi o Carlos Magno da Igreja Católica. A glória carolíngia, de proporções mais angélicas do que humanas, a Igreja a viveu nos dias de São Gregório VII magnificamente.

Nós, que queremos a glória da Santa Igreja porque desejamos a glória de Deus, devemos pedir a São Gregório VII que faça voltar à Terra esses dias de glória. Por meio dele, voltemo-nos para Nossa Senhora e peçamos a Ela, cuja intercessão é onipotente, que abrevie os dias tremendos nos quais estamos; faça com que atravessemos corajosamente todos os obstáculos que temos diante de nós e sejamos capazes da grande luta que nos espera.

São Gregório VII disse: “Eu odiei a iniquidade e amei a justiça, por isso morro no exílio.” Nós devemos afirmar: “Odiamos a iniquidade e amamos a justiça, por isso vivemos no exílio.” A nossa vida é um longo exílio, tivemos que nos exilar de tantas coisas, de tantos ambientes, de tantas circunstâncias; nós somos os exilados! Mas que belo exílio esse no qual um tão pulcro sentimento fraterno, uma tão bela conformidade de todos os espíritos e de todos os desígnios, no mesmo amor à mesma causa, nos reúnem.

O glorioso São Gregório VII, que morreu no exílio, dê força e ânimo a quem deve viver e, mais tarde, morrer no exílio. Como também àqueles destinados a ter suas vidas ceifadas durante os castigos profetizados em Fátima, para que morram com bravura. E os chamados a viver no Reino de Maria, vivam igualmente com coragem nessa ideia: o exílio acabou, mas se ainda hoje eu devesse me exilar, repetiria o meu passo e me exilaria novamente. Não tenho apego nem ao prêmio da minha vitória. Eis o nosso pedido a esse grande Santo, no dia em que se comemora a sua festa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/5/1985)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

Levaremos a luta até à vitória

Alguns meses antes de sua morte, ao narrar certos episódios de sua vida, Dr. Plinio afirma: “Ainda na minha infância, senti a Revolução em pé contra mim como uma hiena, e compreendi que a salvação de minha alma e o futuro de todo o mundo estavam arriscados se essa hiena não fosse derrubada; resolvi então combatê-la. Custasse o que custasse, com a proteção de Nossa Senhora, eu haveria de lutar contra ela e a Santíssima Virgem me daria a vitória”.

 

Quando eu era menino, entre sete e dez anos, havia no meu quarto, além de uma estampa com o Sagrado Coração de Jesus, um quadro bonito representando Nossa Senhora, não me lembro sob que invocação.

Dificuldade com a devoção a Nossa Senhora

Mas a minha devoção, por causa do exemplo de mamãe, ia toda para o Sagrado Coração de Jesus. Embora eu a visse rezar também para a Santíssima Virgem, por uma espécie de relacionamento especial que ela possuía para com o Divino Filho d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo, mamãe me ensinava a rezar muito ao Sagrado Coração de Jesus. Ela falava menos de Nossa Senhora e do Imaculado Coração de Maria.

E formou-se em mim – menino, bobinho – um estado de espírito pelo qual eu tinha uma espécie de dificuldade com a devoção a Nossa Senhora. Compreendia, achava bonito, mas tinha uma espécie de objeção contra aquilo. Uma objeção de mau espírito, porque no fundo dizia o seguinte: “Reza-se demais para Nossa Senhora. Devia-se orar menos para Ela e rezar mais para Jesus Cristo”, o que me fazia orar pouco para Ela. É uma péssima disposição de espírito.

Eu não sabia que a Santíssima Virgem misericordiosamente me reservava um caminho especial nas vias d’Ela, de tal maneira que mais tarde – em virtude das circunstâncias que vou relatar daqui a pouco – a minha vida acabou sendo um ato de devoção contínua a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os fatos se passaram do modo mais inesperado possível. No Colégio São Luís, onde eu estudava, os padres distribuíam a cada aluno, todo mês, um boletim no qual constava uma nota em cada matéria lecionada. A primeira matéria mencionada, a muito justo título, era Religião e depois vinham as outras.

Em cada matéria havia dois quadradinhos especiais: um se referia à aplicação e outro ao comportamento. A nota de aplicação visava premiar o aluno que aprendia bem, ou censurar o que não fazia esforço para aprender, sendo relaxado e preguiçoso. A de comportamento considerava a conduta do aluno durante a aula: se conversava, dava risada do professor, atrapalhava por meio de provocações e brincadeiras os outros colegas.

Os alunos deveriam levar os boletins para os seus pais. Em geral a distribuição era feita nas sextas-feiras à tarde. Na segunda-feira, o aluno tinha que trazer de volta o boletim assinado pelo pai, e o colégio o arquivava.

Minha conduta na aula era boa e em geral as notas eram elevadas, até bem elevadas. Quanto à aplicação, havia uma diferença. Certas matérias me interessavam muito, então dessas eu era um aluno bem bom. Religião, História, Francês, Português eram matérias de que eu gostava e me aplicava. Mas em Geografia, Matemática, Geografia do Brasil e outras coisas dessas, eu recebia notas menos altas porque não estudava. Eu tinha birra dessas matérias, não gostava de estudá-las e concentrava o melhor do meu esforço naquelas que apreciava.

Mas mesmo nas matérias das quais eu não gostava as notas de aplicação eram suportáveis. Em comportamento, sendo um aluno muito calmo, tranquilo, disciplinado, graças a Deus eu tirava dez em todas as matérias, que era a mais alta nota.

O homem vale pelo seu caráter

Quando eu chegava em casa, Dona Lucilia estava à minha espera, porque ela já sabia que aquele era o dia da distribuição do boletim. Ela me perguntava:

— Filhão, você trouxe seu boletim?

Eu o tirava da minha pasta e entregava-lhe tranquilo porque já tinha visto as notas e sabia que tudo estava bom. Ela lia com atenção, depois em geral me beijava e fazia um comentário de uma matéria ou outra:

— Matemática está muito baixa. Veja se você levanta essa nota no mês que vem. Você não quer apreender Geografia do seu país? O que é isto?

Eu dava uma saída qualquer e percebia que ela não fazia uma questão fechada.

Ela às vezes me dizia:

— Eu fico especialmente contente por causa da nota dez de comportamento que você sempre tem. Você quer saber por quê?

Eu dizia naturalmente que queria, e ela me dava sempre a mesma explicação:

— Ninguém tem culpa de ser burro, tem culpa de ser ruim. Um aluno que tem nota baixa de comportamento não é burro, é ruim, não gosta da ordem, da disciplina, do esforço. Agora, um aluno que tem nota baixa de estudos significa que é burro, ele não tem culpa de não aprender aquela matéria, não dá para aquilo. Eu prefiro mil vezes ter um filho burro, mas bom, do que um filho ruim, mas inteligente, porque o homem vale pelo caráter. A inteligência é uma coisa de valor, mas secundária. Sem inteligência se vai para o Céu, sem caráter não.

Eu ouvia aquilo que me era dito com muito afeto e achava que ela tinha razão. Ela fazia como se não soubesse se eu era inteligente ou não. E acrescentava:

— Se você vier a dar um homem burro não tem culpa, está perdoado desde já, nem tenho o que perdoar. Mas se der um homem ruim será diferente; com sua mãe homem ruim não passa.

Uma nota baixa em comportamento

Certo dia, após a distribuição dos boletins, eu abri o meu e verifiquei que as notas estavam razoáveis. Entretanto, a de comportamento na matéria Geografia era péssima, seis, muito abaixo do que Dona Lucilia toleraria. Se uma nota de comportamento fosse nove, ela toleraria, mas com uma observação: que isso não se repita; mas seis ela não toleraria.

Olhei aquilo e fiquei pasmo. Pensei: “Eu não fiz nada na aula de Geografia, não tenho culpa nenhuma, isso é uma injustiça ou um engano de quem copiou essas notas. Mamãe agora vai ficar indignada e não sei o que vou fazer. Devo tirar essa nota do boletim”.

Aí veio a criancice, a imbecilidade. Cogitei: “Preciso passar uma água em cima dessa nota seis.” Depois eu refleti: “Mamãe verá que passei água e vai perguntar o que eu quis esconder.” Como estava chovendo muito, pensei: “Vou lá fora, abro o boletim, cai água da chuva em cima e depois direi a ela: ‘Mamãe, eu quis ler o boletim na chuva e pingou água na nota de Geografia, como em outras partes do boletim’; e assim tapeio a coisa”.

Fui para a chuva, mas houve algo incrível: chovia em torno da nota seis, porém nenhuma gota de água caía em cima do seis. Perdi a paciência, esperei cair uma gota grande de água e com um dedo molhei resolutamente a nota seis. Aí verifiquei que ficou uma porcaria, ela veria mesmo e eu teria que lhe dar explicações.

E como diz a Escritura “abyssus abyssum invocat” – quer dizer, um abismo atrai outro abismo, um erro atrai outro erro, uma má ação atrai outra má ação –, resolvi escrever dez em cima do seis com a minha letra. Ela estava farta de conhecer minha letra e veria que era o auge da infantilidade e do não saber fazer as coisas.

“Prefiro tudo na vida a ter um filho falsário”

Quando chego em casa, ela, com seu afeto habitual, indagou:

— Filhão, você tem seu boletim aí?

— Tenho.

— Deixe-me ver.

Entreguei-o fechado. Eu costumava entregá-lo aberto para ela.

Ela abriu e perguntou:

— O que é isto aqui?!

— Mamãe, caiu água.

— Não me venha com essa história. Aqui em cima você escreveu dez. O que tinha embaixo? Por que você apagou o que estava embaixo?

Eu disse:

— Mamãe… tinha seis.

— Ah?! O que você fez para seu professor de Geografia lhe desse seis?

— Não fiz nada, mamãe, mas saiu essa nota. Não querendo aborrecer a senhora, eu arranjei um jeito de pôr uma nota que a deixasse contente; mas sabia que tinha feito mal.

Mamãe ficou indignada e tirou logo uma conclusão cujo verdadeiro alcance eu não peguei na hora. Ela disse:

— Prefiro tudo na vida a ter um filho falsário.

Ela pronunciou a palavra “falsário” de tal maneira que eu senti, no modo de ela dizer, sem poder compreender bem, todo o mal que existe na falsificação.

No meio de casos publicados nos jornais e contados na família, eu já tinha ouvido falar de falsário, qualificado nas conversas, como por toda parte se qualifica, como um crime realmente dos mais nocivos, mais condenáveis e, nessas condições, como uma coisa que rebaixava muito o homem.

Naturalmente não se tratava de falsário de nota de colégio, eram falsários que falsificavam cheques de banco e coisas dessas, quer dizer, crimes de prender na cadeia, uma coisa muito mais séria, muito mais forte.

Mas, enfim, ela disse “falsário” e toda aquela censura do falsário caiu em cima de mim. E acrescentou:

— Você fique sabendo o seguinte: na segunda-feira seu pai irá ao Colégio São Luís, vai mostrar ao padre o que você fez e pedirá para verificar, nos assentamentos do colégio, qual é a sua verdadeira nota. Se foi uma nota errada que copiaram mal, você está perdoado; mas se de fato a nota real é seis, você não vai ficar mais um dia em São Paulo. Eu vou mandar você para o Colégio do Caraça.

Eu fiquei pasmo:

— Longe de casa, mamãe?

— Sim, senhor. Eu não quero ter falsário perto de mim.

Eu caí em vários abismos. Para mamãe não me querer mais perto dela, pode-se imaginar o que isso significava, era uma coisa horrorosa!

Ela, ao mesmo tempo, me disse que esse Caraça era uma espécie de penitenciária para crianças, que só meninos meio criminosos é que iam parar lá. Não correspondia à verdade, pois era um dos melhores colégios do Brasil. Mas naquele tempo as comunicações eram mais difíceis, as pessoas estavam menos informadas do que hoje e ela tinha esse conceito errado a respeito do Colégio do Caraça.

Ela me disse:

— Vou mandá-lo para lá e você vai ficar um ano sem me ver e sem que eu possa vê-lo. Não pense que vou visitá-lo, porque mãe de falsário… eu não quero saber disso.

Cada vez que ela dizia uma coisa dessas, que contrastava com o carinho requintadíssimo e dulcíssimo com que ela me tratava, eu me sentia mais achatado e mais esmagado pelo meu próprio delito: “Falsário, que coisa horrorosa!” Eu, sem saber bem o que isso significava, me sentia um falsário.

Paralelamente com isso eu fiz uma outra ação, a qual não tenho razão para contar aqui, que foi uma ação má. Quer dizer, infelizmente eu estava atravessando dias ruins. Mamãe não sabia dessa ação. Se ela viesse a saber, eu não sei onde iria parar.

Missa na Igreja Sagrado Coração de Jesus

Mamãe pediu a papai para vir falar com ela na minha presença. Explicou-lhe o acontecido e papai naturalmente também não gostou nada do que eu fizera. Combinaram que ele iria na segunda-feira – no primeiro dia útil, portanto – ao Colégio São Luís para perguntar o que havia.

Passou-se com isso a sexta-feira, o sábado – triste e aborrecido para mim. No domingo resolvi ir à Missa na Igreja do Coração de Jesus. Estava com pouco sono e acordei-me cedíssimo, quando costumava despertar tarde aos domingos. Levantei-me e fui sozinho à Missa, sem mamãe, nem papai, nem minha irmã, nem ninguém.

Quando cheguei à igreja, esperava encontrar junto à imagem do Sagrado Coração de Jesus um banco para me ajoelhar e assistir à Missa. Mas notei uma cena inteiramente diferente.

O Colégio do Coração de Jesus é colossal, toma as quatro faces de um quarteirão muito grande. Naquele tempo era um internato enorme, não sei quantos meninos cabiam ali. Eles estavam entrando na igreja a fim de assistirem à Missa, a qual era obrigatória para todos. Eles entravam em fila cantando e iam ocupando os lugares nos bancos.

Eu vi logo que quase todos os bancos estavam ocupados e que não haveria nenhum livre, pois os padres fariam sair do banco qualquer menino que não fosse do colégio para dar lugar aos alunos.

Senti-me rechaçado por todos os lados, por Deus e pelos homens: “Tudo me acontece mal, eu andei mal em dois pontos, sou um falsário, é uma coisa horrorosa, vou-me espremer neste canto da nave lateral – do lado direito de quem entra na igreja – e aqui vou ficar bem no fundo. Neste lugar a misericórdia de Deus ainda olha para um miserável falsário que aqui pode rezar durante a Missa.” Coloquei-me lá.

Os meninos começaram a cantar, o padre entrou, iniciou a celebração da Missa e as coisas tomaram seu caminho normal. Por causa das colunas, eu não conseguia ver o padre e acompanhar seus movimentos; levantava-me e ajoelhava seguindo o povo .

Uma imagem alvíssima de Nossa Senhora

Também não podia ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus. A única imagem que eu via era a de Nossa Senhora, de mármore alvíssimo, branquíssimo. Maria Santíssima tinha o Menino Jesus num braço e no outro um cetro para indicar que Ela era Rainha porque Mãe do Homem-Deus. Nossa Senhora, portanto, mandava no mundo inteiro e tudo quanto Ela quisesse Deus faria; Ela participava de algum modo da onipotência d’Ele. O Criador A ama como a Mãe d’Ele. Podia imaginar como Deus A amava, imaginando quanto eu queria a minha mãe.

Pensei: “Se eu que sou finito e um trapo amo minha mãe tanto, tanto, tanto, imagine como Deus, que é infinito, amará a Mãe d’Ele.” Mas conjeturem também como é Nossa Senhora para que Deus A tenha escolhido por Mãe, resolvido encarnar-Se n’Ela, passado um estado de gestação em seu claustro bendito e depois, através d’Ela, ter nascido para salvar o mundo, é uma coisa extraordinária. “Ela deve ser formidável!”

Por um jogo natural de ideias veio-me à mente que se eu, um falsário, me dirigisse ao Sagrado Coração de Jesus não seria atendido, mas que se pedisse por meio d’Ela seria acolhido. Porque assim como eu fazia tudo quanto mamãe queria, também Ele faria tudo quanto a Mãe d’Ele desejava.

Ora, a Mãe de Deus teria – como eu já disse – a influência junto a Ele parecida com a que mamãe tinha sobre mim e, portanto, o que Ela pedisse Deus faria. Mas como era Mãe, Ela queria bem não como um pai quer um filho, mas à maneira que uma mãe quer um filho. Papai me queria bem de um certo modo, mas outra era a maneira de mamãe me querer bem. Deus era Pai, infinito, perfeito, mas Ela tinha mais pena de mim, mais misericórdia, era mais acessível.

Enquanto eu estava pensando assim e olhando para a imagem de Nossa Senhora, não se deu milagre nenhum, mas, sem que houvesse no rosto de mármore da imagem o menor movimento, alguma coisa se passou pelo que eu tinha impressão de que Ela me olhava cheia de bondade e com muita pena de mim.

Por um certo sorriso que os lábios d’Ela não definiram – os lábios não se moveram, a imagem é de pedra, não pode mover-se –, eu tinha a impressão de que Ela sorria. E sorria como quem me conhece: “É o Plinio, filho de Dona Lucilia e de Dr. João Paulo”, e Ela olhava para mim com uma misericórdia e uma bondade especiais.

Plinio: um menino de correção excepcional nas aulas

O fato produziu na minha alma uma verdadeira reviravolta. Compreendi, então, quem era Nossa Senhora e o papel d’Ela para com cada um de nós quando andamos mal, não só quando procedemos bem. Quando andamos bem, Ela é uma Mãe indizivelmente boa para com o filho bom. É uma efusão mútua de afetos e carinhos, enormemente maior quando desce d’Ela até nós do que quando sobe de nós até Ela. Mas em certo momento os dois afetos se encontram e é como se fosse um arco voltaico, um arco-íris, a caminho do Céu.

Então, sem ouvir nenhuma voz – como eu disse, não houve milagre nenhum –, alguma coisa me disse no interior da minha alma o seguinte: “Confie, Nossa Senhora rezará por você, tudo isso se resolverá e mamãe ficará bem com você de novo. Esse negócio vai passar porque Maria Santíssima pediu”.

Voltei para casa e encontrei Dona Lucilia tal e qual. E não podia deixar de ser, porque ela só ia tomar conhecimento da solução do caso do boletim no dia seguinte. Para mim o que contava era ela. Se Dona Lucilia estava contente comigo, o mundo estava contente; se ela não estava, o resto não valia nada.

Na segunda-feira, meu pai, que tinha ido ao Colégio São Luís, a horas tantas entrou em casa com uma cara calma, segura, tranquila. Olhei para ele – que nem percebeu que eu ali me encontrava – e percebi que estava preocupado com o chaveiro o qual não funcionava bem. Cogitei: “Se ele está pensando no chaveiro é porque não está preocupado comigo; tudo correu bem”.

Meu pai era de Pernambuco e os pernambucanos antigos tinham o hábito de chamar as esposas de senhora. Ele aproximou-se de Dona Lucilia e disse:

— Senhora, aqui está o boletim de vosso filho.

Mamãe o pegou logo e perguntou:

— O que houve?

Ele respondeu:

— O Padre Reitor, diretor do colégio com quem eu conversei, deu muita risada quando viu a borradela que o Plinio fez no boletim. Depois me disse que deveria ter havido um engano de cópia, porque o Plinio era em geral de uma boa educação e de uma correção excepcional nas aulas. Acontece que sempre é possível um menino fazer alguma coisa errada. E afirmou: “Se o padre deu essa nota, vou falar com ele para saber qual o motivo”.

Depois de algum tempo, o reitor voltou com o boletim na mão, no qual ele escrevera uma nota dizendo ter havido um engano da secretaria que copiou errado, que a nota que o padre dera ao comportamento de Plinio era dez.

Estava tudo resolvido e o céu azul…

Prestando atenção nas palavras da “Salve Rainha”

Enquanto eu estava na igreja, no domingo, orando a Nossa Senhora, não sabendo o que dizer para Ela, rezei uma Salve Rainha. Foi a primeira vez que prestei uma atenção séria nessa oração. O texto me pareceu lindíssimo – é mesmo uma verdadeira obra-prima – e convinha para minha situação. Aquelas palavras podiam-se adequar a um menino mal comportado e ameaçado de ir para uma espécie de penitenciária, como eu imaginava. Na aflição que eu estava elas convinham perfeitamente.

“Salve” em latim é uma saudação, como quem diz “bom-dia” ou “eu te saúdo”. Mas eu não sabia isso, pensei que “salve” queria dizer “salvai-me”. Dizendo “Salve Rainha” eu entendia: “Rainha, salvai-me desse apuro.”

Então eu pedia com um desejo enorme de ser atendido: “Mãe de misericórdia”. Eu pensava: “Está vendo? Mamãe é tão boa, eu a quero tão bem, mas Nossa Senhora é muito melhor do que ela.”

Isso é pura verdade. Nossa Senhora é melhor a perder de vista do que o mais santo dos homens e o primeiro dos Anjos. Nosso Senhor não fez criatura que fosse igual a Ela. Maria Santíssima é um escalão intermediário entre Deus e a Criação inteira. Há os homens, os Anjos, depois Nossa Senhora num ponto supremo e mais elevado que tudo, e infinitamente acima está Deus. Quer dizer, o que é Nossa Senhora nós nem temos uma ideia.

Ora, essa noção de que Ela era uma pessoa excelsa eu tinha, mas não de sua bondade e misericórdia.

Tudo isso fazia-me ter a ideia: “Vê como a Igreja trata a Virgem Santíssima. Diz que Ela é nossa vida, doçura e esperança. Que beleza! Então Nossa Senhora é nossa vida, essa criatura tão única que ninguém tem comparação com Ela. Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Divino Espírito Santo, Filha do Padre Eterno, Ela é Mãe de Misericórdia. Mãe já indica a ideia de misericórdia. Mãe de misericórdia é uma mãe toda feita de misericórdia”.

Eu pensava: “De algum modo pode dizer-se isso de mamãe, mas quão menor é ela do que Nossa Senhora. Quão maior é Ela, mais perfeita, mais incomparável; ninguém é igual a Maria Santíssima. E como Ela tem pena de mim e sorri para mim. Ah, já sei! Com quem eu vou me arranjar na vida é Ela.”

E realmente em casa as coisas todas se consertaram. Depois, ao longo dos anos, eu às vezes brincava com Dona Lucilia sobre o Colégio do Caraça e o filho “falsário” dela. Ela sorria porque eu brincava com muito carinho, muito respeito com ela, e o fato se perdeu nos tempos. Mas uma coisa ficou: a devoção a Nossa Senhora.

Aplausos entusiásticos do público católico

Tudo isso se passou antes do período em que, ainda na minha infância, senti a Revolução em pé contra mim como um leão – ou, pior, como uma hiena – e compreendi que a salvação de minha alma e o futuro de todo o mundo estavam arriscados se essa hiena não fosse derrubada; resolvi então combatê-la. Custasse o que custasse, com a proteção de Nossa Senhora, eu haveria de lutar contra ela e a Santíssima Virgem me daria a vitória.

Minha vida foi transcorrendo, tive com a Revolução esse começo de luta no Colégio São Luís. Fiquei moço, a partir do Congresso da Mocidade Católica, em 1928, ingressei na Congregação Mariana de Santa Cecília. Mais tarde veio a fundação da Liga Eleitoral Católica e minha eleição como o deputado mais moço e mais votado do Brasil.

Precisamente quando eu estava nesse píncaro, exercendo uma liderança enorme sobre todo o movimento católico do País, as coisas chegaram a um tal ponto que, sendo ainda muito moço e convidado continuamente para fazer conferências, discursos por todos os recantos do Brasil, o público católico tomou um tal entusiasmo e uma tal preferência por mim, que fazia coisas que me deixavam pasmo.

Por exemplo, eu não era muito pontual e às vezes chegava atrasado até para a conferência que devia fazer. Mas o público era benévolo, e não só perdoava o meu atraso, mas até me recebia com manifestações de agrado e entusiasmo muito grandes. Quando eu entrava, às vezes vinha correndo do automóvel para o palco para compensar meu atraso. Pouco antes de chegar ao palco parava de correr e andava com passo normal. Quando eu entrava, o auditório inteiro se levantava para bater palmas.

Discurso em homenagem a São José de Anchieta

Entretanto, comecei a notar uma coisa que me encheu de pasmo. No próprio meio católico começaram a aparecer maledicências a meu respeito, como, por exemplo, que eu estava fazendo um número insuficiente de discursos na Constituinte, quando deveria falar mais; que eu tratava os deputados anticatólicos com uma dureza que chegava aos limites da brutalidade, e outras coisas assim.

Ora, o Cardeal Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro, mandou um recado aos deputados católicos dizendo esperar que não fizéssemos discursos, de maneira a não comprometer a combinação feita por ele com todos os deputados da Constituinte, para aprovar tudo quanto a Igreja queria. Segundo ele, já estava todo o jogo pronto e não havia dúvida a esse respeito. Por causa disso ficássemos quietos.

Assim, eu não podia fazer outra coisa senão ficar quieto. Se fosse falar, cometeria uma irreverência contra a Igreja que mandava isso. Então, só discursava quando surgia uma ocasião boa na qual eu podia justificar ser indispensável falar.

Houve, por exemplo, um centenário de Anchieta e eu aleguei ser preciso um deputado católico falar, porque Anchieta era uma grande personalidade do mundo católico, e que eu, deputado por São Paulo, ex-aluno dos Jesuítas – Anchieta era jesuíta –, tinha o direito de falar. Dom Leme concordou e fiz um discurso.

Com voz tonitruante, redarguiu um deputado comunista

Em outra ocasião, estava falando na tribuna um deputado comunista chamado Zoroastro de Gouveia. Em certo momento ele deu a entender mais ou menos esta ideia: o católico não podia ser um bom patriota porque dependia do papa, o qual para os católicos é uma potência estrangeira e, portanto, todo o católico estava disposto a trair o Brasil em favor da Igreja.

Eu me levantei e, da primeira fileira que ficava a dois passos da tribuna, falei com uma voz verdadeiramente tonitruante:

— Senhor deputado, venho lavrar o meu protesto mais categórico e indignado contra o insulto infame que Vossa Excelência acaba de atirar em rosto dos católicos…

E tonitruei contra ele. A Câmara estava acabando o trabalho do dia, os deputados cochilavam e alguns cochichavam. Quando saiu aquele barulho todos se levantaram:

— O que é isso aí?

O Zoroastro de Gouveia ficou pasmo com aquilo tudo, sem saber como responder. Então me disse alguma coisa qualquer, eu mais uma vez protestei e ele saiu da tribuna.

Esse episódio deixou tal lembrança em quem o presenciou que, uns trinta anos depois, precisei ir à Câmara dos Deputados, em Brasília, para levar um protesto de proprietários rurais contra a Reforma Agrária que já naquele tempo se queria fazer. Ali indicaram que entregássemos o protesto ao secretário da Câmara para ele encaminhá-lo ao Governo.

Chegando lá, cumprimentamo-nos e entregamos-lhe aquele protesto. Ele começou a tomar notas, trabalhos de burocrata, e em certo momento fitou-me. Pensei: “Já estou vendo o que está na cabeça desse homem…” Ele parou o serviço e me perguntou:

— Diga-me uma coisa, o senhor já foi deputado?

— Já.

— Não foi o senhor que passou aquela descompostura no deputado Zoroastro de Gouveia?

Trinta anos depois o homem ainda estava lembrado da descompostura! Mas, apesar disso, a difamação circulava.

Uma freira procurou denegri-lo

Eu notava também – e isso me impressionava mais – que, da parte dos católicos e de alguns daqueles a quem tinha em conta de bons católicos, vinha uma indizível série de pequenas indiretas contra mim, na minha presença, que indicavam haver uma conspirata qualquer para me afastar, pôr-me de lado, e eu não sabia a razão.

Uma coisa característica foi isto: durante esse tempo, criou-se em São Paulo a Universidade Católica e fui nomeado professor de História da Civilização de duas faculdades dessa universidade. Certo dia, eu estava lecionando e uma freira veio me pedir licença, dizendo que estava ali presente uma compatriota dela, belga, a qual tinha ouvido falar muito das minhas aulas e queria assistir a uma delas.

Eu disse:

— Pois não, à vontade. Arranjem uma cadeira mais confortável para a freira poder assistir à aula, e eu tenho todo o gosto de lecionar diante dela.

Quando terminou a aula, pensei que ela estaria de pé na porta para me cumprimentar, porque seria o normal, uma vez que eu lhe dera licença de assistir à minha aula. Mas ela tinha sumido.

Algum tempo depois, encontrei a freira que fizera o pedido e perguntei:

— O que aquela freira belga achou da minha aula?

— Ah, ela fez um comentário muito elogioso.

Pareceu-me esquisito que ela não fizesse o comentário elogioso para mim, mas fosse fazê-lo para a outra. Pensei: “Aqui tem ronha…”

— Ah, sim, está bem. E o que ela comentou? – perguntei.

— Ela disse que o senhor é um professor tão claro que, segundo o parecer dela, está mal empregado numa universidade, e seria muito melhor que o senhor fosse utilizado numa escola para débeis mentais porque, sendo claro como o senhor é, até esses conseguiriam entendê-lo.

Ou seja, o senhor ficaria melhor empregado lecionando para uma escola de bobos. Ora, isso não é elogio, mas sim denegrir um professor, e de um modo muito esquisito, porque não é degradar por um defeito, mas por uma qualidade. Quer dizer, a qualidade é tão grande que até merece ser degradado.

Discussões vivíssimas com católicos de ideias revolucionárias

Comecei a notar também que, fazendo parte do Movimento Católico, começava a se formar uma ala de gente que professava uma doutrina inteiramente diferente da Doutrina tradicional da Igreja.

Essas pessoas achavam, por exemplo, que até então a Igreja tinha feito muito mal em proibir danças e a ida a lugares suspeitos, porque isso fazia com que os bons, separando-se dos maus, nunca tivessem oportunidade de convertê-los. Então o mundo ficava rachado em dois: os bons e os maus. O que os bons deviam fazer era misturar-se completamente com os maus e ir até aos lugares de perdição, porque ali, se tivessem comungado de manhã, eles levariam “o Cristo” – não diziam “Nosso Senhor Jesus Cristo”. “O Cristo” presente neles haveria de converter essas pessoas.

De maneira que, segundo essa concepção, tudo deveria mudar. Os católicos precisavam se modernizar, tornar-se gente muito capaz de coisas engraçadas, pilhérias, etc. As moças deveriam fazer concessões em matéria de trajes, ler revistas inteiramente mundanas.

Integrantes dessa corrente fizeram reuniões comigo e tivemos algumas discussões vivíssimas a esse respeito. Notei que a corrente estava imbuída de ideias da Revolução Francesa.

Certa noite, eu estava na sede do “Legionário”, semanário católico do qual era o diretor. O andar térreo do prédio era todo ocupado pelas dependências do jornal. No piso superior, havia um salão grande que tomava o andar inteiro e servia de sala de conferências ou de teatro. Eu estava embaixo, trabalhando com outros nos preparativos do próximo número do “Legionário”, e notei que essa ala nova estava fazendo uma festa no salão de cima. De onde me encontrava podia ouvir as músicas que cantavam e alguma coisa dos discursos que faziam. Era tudo ao revés do que somos e defendemos.

Houve um menino que, numa hora muito difícil, clamou a Nossa Senhora

Em certo momento, um deles desceu e me disse o seguinte:

— Plinio, eu vim falar com você uma coisa muito séria.

Pensei: “Como pode ser séria, se você não é sério?”

— Mas o que é? – perguntei.

— Você note a diferença entre os dois andares. Você aqui embaixo e os seus jovens do “Legionário” representam a Igreja antiga, séria, que reza, trabalha, luta contra o adversário. Nós, em cima, representamos a Igreja nova, que ri, dança, se diverte, vai para a praia, para a piscina, vai por toda parte levando “o Cristo”. Mas uma coisa eu queria avisar a você: está feita uma combinação de mudar completamente a Igreja, de fazer com que a Igreja antiga cesse de existir, e dentro da casca dessa Igreja antiga apareça uma Igreja nova que somos nós. Agora, qual é o seu futuro? Se você aderir à Igreja nova, temos muita força política e não há cargo político a que não elevemos você. Mas se você continuar nessa situação em que está, aos poucos a Igreja vai passando completamente para o outro lado, você vai ficar só e completamente esmagado, o seu futuro acabou. Você vai acabar por ser um desconhecido.

Olhei para ele, e disse:

— Fulano – não quero revelar o nome dele –, eu prefiro tudo a vender-me. E você saiba que ainda que eu deva ser o último dos homens, serei o último dos soldados da Igreja tradicional, mas ela nunca morrerá. Afirmar que serei o último dos soldados é um modo de dizer, porque depois de mim virão outros que pensarão como eu, mas a Igreja não morre.

— Bem, você foi avisado. Depois não se queixe…

— Eu só me queixaria se soubesse que Deus vai me abandonar na luta. Mas isso nunca acontecerá, porque tenho confiança n’Ele e em Nossa Senhora. Poderá suceder que eu seja derrotado; porém outros virão e vencerão, mas não abandono a minha posição.

Nunca mais nos falamos. Realmente, ele foi alçado aos mais altos graus. Eu, a esses graus não subi. Eu sou Plinio Corrêa de Oliveira.

Os anos escoaram e até aqui chegamos. Durante esse período, houve perseguições de todo tamanho contra minha Obra, estrondos publicitários aos quais temos respondido na ponta da lança continuamente. O fato concreto é que nunca ninguém conseguiu vencer-nos, crescemos cada vez mais e jamais perdemos a confiança. Isso porque houve um menino que, numa hora muito dura de sua existência, recebeu uma graça e clamou a Nossa Senhora, dizendo: “Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!”

Rezando o Rosário e comungando todos os dias, confiando na Santíssima Virgem como Mãe e Rainha de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, Medianeira universal de todas as graças junto a seu Divino Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, nós temos resistido e resistiremos; e com a ajuda d’Ela levaremos a luta até à vitória!             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/2/1995)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)