Alguns lutam por um ideal… Outros… por uma vida gostosa

Passando pela Europa no ano de 1988, Dr. Plinio teve ocasião de assistir a uma campanha feita por membros de seu Movimento no centro de Madri. Muito propenso a analisar mentalidades, Dr. Plinio fez elucidativos comentários dos diversos tipos humanos presentes nas ruas dessa cidade.

 

Para bem analisarmos a opinião pública, devemos nos despir dos preconceitos espalhados por uma espécie de mito numérico que sempre faz consistir a vitória na obtenção da maioria.

Distinção entre povo e massa

Pio XII, num discurso admirável, faz a distinção entre a massa humana e o povo. A massa é um aglomerado de indivíduos que simplesmente existem juntos e formam uma espécie de multidão, sem especiais vinculações de uns com os outros. Pelo contrário, o povo é um conjunto de pessoas em que cada uma tem com as outras determinadas relações, certos modos de se impostar, formando uma espécie de organismo vivo. Para compreendermos a diferença entre povo e massa, consideremos o seguinte:

Nestas três salas conjugadas em que estou falando, há aproximadamente cem pessoas. Imaginem meus ouvintes que não fossem membros de nosso Movimento e estivessem num grande ônibus, sem se conhecerem, não tendo, portanto, entre si relações individuais e pessoais, mas apenas as vinculações anônimas existentes entre os passageiros de um veículo coletivo.

Quer dizer, eles têm o interesse comum de que o ônibus ande, pare nos locais solicitados para o desembarque de alguns passageiros e chegue até o ponto terminal. Por isso não querem briga nem encrenca dentro do veículo; desejam boa paz e mais nada. Cada um gosta de ser um anônimo para o outro.

Se alguém pergunta de repente a um passageiro “O senhor, quem é?”, ele fica desagradado e pensa: “Para que deseja saber quem sou eu? Sou um passageiro de ônibus como ele, um anônimo. O que esse indivíduo está querendo comigo?”

O anonimato é a regra da massa, a qual vale pelo número de seus componentes: cinco, dez, cem indivíduos.

Entre os que estão aqui presentes a situação é bem diferente: não constituem massa, e sim um organismo, uma gota de povo. Quer dizer, todos se conhecem individualmente e, pelo convívio cotidiano, cada um acaba tendo uma espécie de situação criada por ele mesmo, a qual — por inabilidade ou qualquer outra razão — pode não ser a que desejaria. A vida se faz com base nessas relações pessoais; não é um mecanismo que se reduz a um número, mas algo vivo, uma interseção de várias personalidades que, dando graças a Nossa Senhora, tenho diante de mim e constituem um conjunto de filhos.

Vejo que são de várias partes da Espanha e também de outras nações, formando um conjunto vivo, orgânico, em que cada um é, não como uma gotinha de metal fundido, integrando uma máquina, mas  uma célula viva dentro de um tecido.

Se olharmos pelo microscópio um tecido celular vivo, discerniremos grande quantidade de células; cada uma atua como se fosse uma pequena personalidade: tem sua dose de vitalidade e de reatividade sobre as outras, análoga à de um indivíduo dentro de uma família ou numa organização como a nossa.

É da vida de cada pessoa encontrando-se com a das outras que se forma um tecido, daí resultando um povo.

Considerado nosso Movimento como um tecido, um organismo vivo, qual a repercussão de nossa campanha na Espanha, que é um tecido, um organismo incomparavelmente maior? A campanha está conseguindo sua finalidade?

O mais baixo grau onde o ente humano pode chegar

A vitória sobre a opinião pública não consiste em obter a maioria, como os plebiscitos e as eleições fazem pensar: quantos espanhóis querem tal coisa, quantos desejam tal outra. Trata-se de saber: que espécie de pessoas estamos influenciando, e, dentro do tecido vivo que é a Espanha, que possibilidades têm elas de influenciar outras?

O público que estava na praça Puerta del Sol(1) se dividia em três partes bem claras.

Havia um círculo formado em torno da nossa fanfarra e do nosso sistema de propaganda. Em sua parte externa era impreciso, pois algumas pessoas chegavam, outras saíam, mas a parte interna do círculo apresentava certa precisão de desenho.

Pouco adiante, existiam dois pequenos círculos de indivíduos, sentados em volta dos dois chafarizes, simplesmente porque as bordaduras dos mesmos, um tanto largas, forneciam-lhes um assento cômodo. Constituíam um público contrário àquele reunido em torno dos nossos. Alheios uns aos outros e dando as costas para o que na aparência os unia — os chafarizes —, eles estavam todos adormecidos. Alguns mastigavam alguma coisa, e o faziam com preguiça, não olhando para nada de fixo, não pensando em nada de determinado, mas sentindo que estão vivendo, e encontrando nisto certo prazer. É o gosto de respirar, de digerir, de mexer as pernas, de ter um corpo, e não o de possuir uma alma.

Têm essas pessoas uma vida vegetativa a mais parecida possível com a do animal. Olhando certos animais, às vezes temos impressão de que possuem bem-estar. Quer dizer, eles sentem deleite de estar vivendo, mas não têm conhecimento desse deleite.

São Tomás de Aquino, com uma linguagem muito precisa, diz que o bicho não conhece nada. Ele tem notícia das coisas, mas não o conhecimento, que é uma compreensão intelectiva. A palavra “notícia” é perfeita. Por exemplo, um pássaro vê diante dele uma folha que cai. Ele tem notícia de que caiu alguma coisa, mas nem sabe que é uma folha; e não pensa a respeito disso, porque não tem pensamento.

Aqueles indivíduos são entes humanos; entretanto têm o menor grau de pensamento possível: “Que gostoso! Eu estou aqui sentindo viver. Estou mastigando, piscando, olhando, respirando, batendo as pernas, mexendo os braços, estou vivo”.

Sob certa perspectiva — mas que atinge uma realidade muito profunda — é o mais baixo grau aonde a criatura humana pode chegar. Essa é propriamente a descrição do dormente.

Os dormentes

Para tudo quanto é fenômeno de pensamento, de ideal, de ato de vontade, de definição, de atitude, eles estão no sono.

Sucede inúmeras vezes com todo indivíduo que, acordando de manhã, diz para consigo: “Que bom sono eu dormi essa noite!” Estando dormindo e não tendo consciência de nada, como sabe ele que teve um sono bom?

Em parte é porque, quando despertou e sentou-se na cama, as últimas névoas do sono estavam se retirando.  Ele não tinha acabado de dormir inteiramente e sentiu o gostoso do sono que ainda existia. E, por memória, teve a ideia de que aquele prazer, cujo último fim estava notando, ele havia sentido a noite inteira.

Esses indivíduos têm o gostoso de estarem acordados e sentados próximo aos chafarizes. E, de modo analógico, digo que eles estão dormentes.

Como se chega a esse estado?

A graça atua no fundo das pessoas, máxime das batizadas, e proporciona movimentos de alma elevados, nobres.

A Revolução explora o desejo do gostoso

Mas, de outro lado, o corpo age no sentido de a pessoa se entregar aos meros prazeres materiais. Quando criança, ela pensa, por exemplo: “Como é gostoso correr de bicicleta, tomar vento!” E, em todas as idades: “Como é gostoso megalar(2)!” Ela comparece no colégio com um sorvete especial que comprou, dizendo que um sorveteiro perto de sua casa lho deu porque a achou muito simpática; inventa uma série de mentiras.

 Tais indivíduos querem levar uma vida gostosa e recusam os movimentos da graça que conduzem suas almas para as coisas mais elevadas. E se alguém afirma que a vida não consiste em gozar, mas é necessário o sacrifício, consideram-no como louco e não se interessam por ele.

Cada época revolucionária que sucede outra acrescenta um gostoso para a vida.

Por exemplo, a sensualidade. O pecado contra a castidade, há trinta anos atrás, tinha a intensidade X, a frequência X. Mas as modas tornaram-se cada vez mais imorais, o convívio entre as pessoas de sexo diferente foi ficando mais frequente, mais livre e menos controlado. A Revolução na mentalidade delas caminha em direção ao cada vez mais gostoso.

Nós nos opomos a isso, somos os arautos do sacrifício, os que lutam contra o mero gostoso, a favor de um ideal; assim, estragamos a festa daqueles que só procuram o gozo. E não pugnamos por um ideal qualquer, mas por um ideal de Fé. E a Fé não se refere a uma crença religiosa qualquer, mas à Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isso os revolucionários rejeitam e dormem porque já não têm remorsos. Estão entregues completamente às suas próprias delícias, lamentando precisar aguentar dificuldades, inconvenientes, etc. E por esse processo vai ficando cada vez mais fácil adormecer os partidários do gostoso.

E existia uma terceira categoria: os que vão e vêm, olham a campanha, e os que estão sentados, mas não prestam atenção. Esses estão dormindo também? O que se passa na alma deles?

Um deles é, digamos, um advogado que vai ao escritório de um outro para discutir uma questão, e está preparando seu raciocínio para derrotar o colega. Ele passa tão preocupado, que não presta atenção em nossa campanha ou a observa muito por alto.

O mesmo pode acontecer com um médico que se dirige à casa de um cliente, o qual ele examinou na véspera, consultou alguns livros e colegas, mas está na dúvida quanto ao diagnóstico. Às vezes, a vida de um paciente depende do diagnóstico de seu médico: opera ou não opera? Se for feita a cirurgia, provavelmente ele morrerá. O que fazer?

É possível que isso também suceda a um homem de negócios, o qual se pergunta: “Telegrafo ou não para os Estados Unidos ou Canadá a fim de fechar um negócio?”

Porém, a maior parte dos passantes está pensando nos seus próprios interesses, muito menos cogentes. Um caminha para o seu escritório, mas não tem nada de muito importante para tratar; outro é médico que vai ver um cliente atingido por um resfriado muito forte, ao qual ele quer receitar um remedinho; um terceiro é homem de negócios que, para fechar um negociozinho em algum lugar da Espanha, precisa dar um telefonema. São coisas que não preocupam.

Entretanto, são da mesma categoria daqueles que estão em torno dos chafarizes. Eles fazem andando o que os outros fazem sentados. Julgam que os trabalhos e os problemas da vida são interessantes e a eles se dedicam para ganhar dinheiro, pois este proporciona facilidades gostosas para a vida.

Alguns acionam o intelecto porque acham gostoso

Poder-se-ia perguntar: como é possível uma pessoa achar gostoso enfrentar complicações?

A resposta é simples. Em vários jornais do mundo há uma secção onde se publicam problemas de xadrez. Viajando de ônibus ou de trem, às vezes há passageiros procurando solucioná-los. Tomam as questões existentes somente no tabuleiro, não na própria vida, e gostam de resolver problemas difíceis porque pertencem a uma categoria um pouco mais elevada do que os amantes do gostoso, sentados em torno dos chafarizes.

Eles usam a inteligência, que é uma faculdade tão nobre, não para conhecer a verdade, o bem, o belo, Deus, mas porque acham gostoso acionar o intelecto. Assim, são eles semelhantes aos indivíduos dos chafarizes.

É comum verem-se nas ruas pessoas correndo a pé, usando traje o mais sumário possível, achando que estão fazendo um bonito papel junto aos outros.

Antes desse desastre de automóvel que me semi-imobilizou(3), eu andava pouco, pois não gostava de fazê-lo. E pensava o seguinte: “As minhas pernas foram feitas para me carregar e não para que eu as carregue. Um homem que anda pelo gosto de andar, vai carregando as pernas pelo caminho. Eu ando apenas se for necessário”.

Quando eu era menino me diziam:

— Para você ser um homem forte é preciso fazer esporte.

Eu cogitava: “Não acredito nessa balela. Sinto em mim mesmo que serei um homem razoavelmente forte e não vou fazer esforço físico, pois não tenho obrigação de tornar-me um touro. Preciso pensar, ler, lutar, tenho um ideal para servir”.

Os que somente pensam em jogar xadrez são esportistas da cabeça: não procuram um livro para resolver um alto problema, nem indagam sobre as elevadas questões da inteligência e da vida, porque não lhes interessa. A seu modo, são vegetativos; vegetam com o espírito.

Compreendo que uma pessoa jogue xadrez para descansar o espírito. É legítimo, como beber água.

Qual a diferença entre a mentalidade dessas pessoas e os membros de nosso Movimento?

A parábola do fermento

Considerem uma paróquia. Antigamente a Espanha era uma nação com muitas vocações sacerdotais. Mas deve estar havendo uma infeliz diminuição dessas vocações.

A Igreja espera e nós esperamos que, se em cada paróquia com quatro ou cinco mil fiéis houvesse dois ou três padres completamente da Santa Igreja Católica, e contrarrevolucionários, uma cidade mudaria.

Células de uma alta vitalidade, com uma missão divina — o sacerdócio —, e por isso favorecidos especialmente pelas bênçãos de Deus, eles poderiam levar quatro ou cinco mil pessoas. É a realidade evidente.

Nosso Senhor estigmatizou essa adoração das maiorias numéricas quando empregou aquela parábola tão bonita da massa e do fermento, dizendo aos Apóstolos: “Vós sois o fermento. A massa são os outros. Vós deveis fermentar a massa”.

A cena que presenciei hoje na “Puerta del Sol” era o fermento agindo…

Pouco importa que grande número de pessoas recuse. Não se trata de transformar tudo em fermento, mas de fermentar a massa. Assim se reconquista o país.

O participante da campanha deve se perguntar: “Como está minha alma quando vou para a rua? Qual é o meu grau de fervor e de amor à nossa Causa? Enquanto estou abordando as pessoas, etc., lembro-me de que a Providência está seguindo a cada um de nós e se servindo de minhas palavras para falar-lhes?” De fato, alguma delas pode logo depois ser chamada por Deus, como aconteceu com o nosso Lúcio(4), cujo nono mês de morte se celebra hoje. Tendo agora um bom movimento, um ato de amor, poderá receber os últimos sacramentos e salvar sua alma.

Se cada um de nós durante a campanha se lembrasse disso sumariamente…

São João Batista Vianey, Cura d’Ars, na França, viveu no século XIX e praticava milagres. Foi um grande Santo.

Dom Chautard, em seu livro magnífico “A Alma de Todo Apostolado”, o qual lhes recomendo muito, conta este fato:

Um advogado de Paris viajou até Ars para conhecer o Santo. Tendo regressado, um amigo perguntou-lhe:

— O que você foi ver em Ars?

— Fui ver Deus num homem.

Devemos ser mais modestos. Não suponhamos que se vai ver Deus em nós; nossa dimensão não é essa, pelo menos por enquanto. Mas se pode ver em nós nosso Anjo da Guarda, no qual se pode ver a Deus.

Em termos mais concretos: pode-se perceber algum reluzimento da graça também em nós. E esse é o ponto essencial da campanha.

Atrair os maravilháveis

Aquelas pessoas que estavam em torno dos nossos, após lhes ser explicada a campanha, entendiam melhor e ficavam maravilhadas.

A campanha realiza o fundamental de sua tarefa: atrai os maravilháveis, o que da Espanha é espanhol. Através desse aspecto da alma espanhola, Dom Pelayo(5) começou sua epopeia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/10/1988)

 

1) Situada no centro de Madri.

2) Palavra criada por Dr. Plinio para indicar a mania de imaginar-se possuidor de qualidades que não tem, ou exagerar as que possui.

3) Em 3 de fevereiro de 1975, Dr. Plinio sofreu grave acidente automobilístico, na estrada Jundiaí-Amparo, Estado de São Paulo

4) Lúcio Chao. Membro do Movimento fundado por Dr. Plinio, o qual morreu em Madri, vítima de atropelamento.

5) Dom Pelayo (+ 737), chefe dos visigodos e Rei das Astúrias; em 718 obteve a vitória de Covadonga, considerada como o início da Reconquista espanhola.

 

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