A tendência para o sublime é inerente à harmonia, a qual deve ser concebida como algo que convida continuamente para o ápice: Deus, Nosso Senhor.
Para entrarmos com o passo certo no assunto, convém não analisarmos a harmonia como fazem certas pessoas que a consideram como algo puramente estético. Para eles, harmonia é a disposição das partes segundo o agradável aos olhos humanos.
Na realidade, a harmonia não é uma coisa puramente subjetiva; ela tem algo de objetivo.
Harmonia transcendente
A harmonia contém uma noção muito mais ampla: é próprio dela — segundo nós a entendemos –– ter uma nota não apenas de proporcionalidade material, mas também uma clara analogia com um significado moral ou ontológico.
Portanto, a harmonia não pode ser vista como algo fechado; pelo contrário, a transcendência é o suco dela. Tenho a impressão de que isso é característico no vitorinismo(1).
Se essa ideia é verdadeira, nós deveríamos chegar ao seguinte conceito: a suprema harmonia é constituída na ordem do criado pela beleza de cada uma das virtudes, pela coerência delas entre si e com a ordem ontológica, com as propriedades do ser.
Analisando o quadro clássico de todas as virtudes apresentado pelos moralistas, tem-se uma sensação de harmonia. Este quadro harmônico das virtudes tem uma correlação com a natureza da mente humana. Não é uma mera abstração, tirada apenas de uma norma de conduta, mas percebe-se que a mente ganha toda a sua beleza em função daquela harmonia; a ordem mais profunda do ser se espelha nessa harmonia no que tem de melhor.
É uma espécie de harmonia transcendente, porque exprime o “pulchrum” de uma ordem de coisas existente no criado, que é a ordem moral enquanto toca em obscuridades quase inefáveis de ordem ontológica, que, por sua vez, conduz a Deus, como Arquétipo.
Então, a verdadeira harmonia, enquanto considerada nas coisas materiais, é antes de tudo o por onde ela deixa transparecer essas coisas. Portanto, a harmonia de valores simbólicos constitui, em si, um valor artístico maior do que, na linguagem de hoje, se chama comumente valor artístico.
Recentemente, li uma descrição da espada confeccionada para a coroação de Carlos X, Rei de França: de ouro, recamada de brilhantes, obra-prima de joalheiro parisiense. A espada de Carlos X, sob certo ponto de vista artístico, seria incomparavelmente superior à espada medieval; mas, numa concepção vitorinista das coisas, a medieval tem mais valor simbólico.
Dois conceitos de harmonia: naturalista e teocêntrica
O estético que veio depois do vitorinismo é proporcionado ao homem, como se este fosse o ponto terminal e o ápice de tudo.
E, precisamente porque o homem não é o fim de todas as coisas, estas, às vezes, apresentam uma grandeza, uma rudeza, um tamanho que choca um pouco o homem, o qual, numa atitude de alienação, deve aceitar e amar; este é o varão religioso.
A arte não seria a transparência em certas coisas, por onde uma cultura vê essa harmonia superior, previamente à arte? Quer dizer, há uma espécie de visão da harmonia do universo prévia à arte, a partir da qual se modela a arte.
Então a arte não é só o espelho dos valores vitorinistas, mas enquanto passando pelo prisma mental do artista, que é a expressão dessa cultura. Esse seria o itinerário.
De qualquer maneira, eu tenho a impressão de que o elemento fundamental que está sendo focalizado aqui é a diferença entre dois conceitos de harmonia: o conceito naturalista, tendo o homem como centro, não é errado tomá-lo em consideração, até certo ponto; e a harmonia que toma como centro Deus.
Acho que a grande derrapada que houve na arte do Ocidente deu-se quando ela deixou de tomar como centro Deus. O humanismo empurrou a arte para proporções naturais e terrenas.
Fulguração da santidade na Idade Média
Que relação a arte medieval teve com o vitorinismo? É evidente que houve uma relação, pois todas as qualidades vitorinistas estão presentes nela de modo excelente.
Mas, eu seria tendente a achar que há qualquer coisa além disso.
Historicamente falando — quer em termos de exprimir a sociedade espiritual, quer a sociedade temporal —, não houve até nossos dias fulguração mais exata da santidade, do sobrenatural e das virtudes morais do homem e de sua coesão com a ordem ontológica, como na Idade Média.
Síntese de todas as antíteses harmônicas
Na Idade Média, o mundo natural e o sobrenatural se osculavam e constituíam uma única síntese composta de duas antíteses harmônicas.
Ora, a visão conjunta de duas antíteses harmônicas projeta em nosso espírito um espectro maior do que cada uma delas. Isso é propriamente a harmonia. É uma coisa não propriamente real, mas ao mesmo tempo irreal e supra-real, um ponto do meu espírito por onde percebo algo que, para além daquela realidade, une as antíteses harmônicas daquele modo.
Quem sabe se isto é o espectro, na ordem natural, de todas as antíteses harmônicas existentes no universo, vistas no seu ponto de encontro, no seu ponto ápice; e, na ordem sobrenatural, é o mesmo com todas as graças possíveis? Porque entre a síntese de todas as perfeições possíveis na natureza e a síntese de todas as graças, deve haver uma coerência, uma afinidade.
A alma verdadeiramente cristã procura esta síntese. Olhando, por exemplo, para um Crucifixo, se alguém disser “ali está o vosso Rei vitorioso”, parece um escárnio, pois ali está a figura de um derrotado, um fracassado, um esmagado. Porém, podemos afirmar “ali está o Rei glorioso” ou simplesmente “ali está a nossa Vítima”. Porque esta aparente contradição produz no espírito o tal espectro. E esta visão, que é um auge do espírito, fala, entretanto, a respeito de uma realidade inatingível. Então, teríamos assim conquistado o ápice até onde a piedade, a contemplação, o espírito humano podem elevar-se.
Luz da Idade Média
Posta em face disto, a alma humana encontra o exercício próprio, adequado e proporcionado de tudo quanto nela há, com aquele desejo de simultaneidade de exercício, o qual também é uma exigência da alma e que as coisas terrenas nunca saciam completamente. Mais ainda, com uma síntese repouso-atividade, que as coisas desta Terra nunca dão.
Por exemplo, diante da arte gótica eu me sinto num perfeito repouso e numa perfeita atividade, no auge das delícias de meu repouso e no auge da força de minha atividade; como que envolto nos paradoxos harmônicos, estou solucionado. O gótico me soluciona, onde o mais alto de mim mesmo encontra o repouso no mais alto que existe, e a partir disso todo o resto repousa.
Isto é propriamente, creio eu, a nossa escola de piedade, enquanto discernida a obra da graça — de algum modo pelo discernimento dos espíritos —, de maneira que o homem se possa colocar na linha do “pulchrum”.
Então, devemos acrescentar que um fenômeno de discernimento do sobrenatural está presente nessa luz da Idade Média.
Compreende-se que só discernindo a graça desta maneira o homem teria encontrado certas cores, certos sons, certas formas, certas ordens, e assim pôde construir. E o ponto de partida foi uma retidão natural comum e um discernimento da graça inspirando o homem no manipular as coisas da natureza com a avidez de fazer com que elas espelhassem esta graça; donde esse jorro e essa perfeição da coisa medieval, que é verdadeiramente incomparável. Quer dizer, que tem uma abertura para o Absoluto como nada possui.
O espectro majestade-pequenez
Além disso, é preciso dizer o seguinte: a maior das majestades contém também as pequenas, mesmo as menores. O espectro majestade-pequenez deve ser construído a partir disso. Por exemplo: eu compreendo tão bem Carlos Magno no esplendor de seu poder, em traje de coroação, preparando-se para ir ser coroado em Latrão, quanto depois de ter sido coroado pelo Papa, brincando com uma florzinha comum do campo, sorrindo, extasiado com aquilo.
E quem não compreende isto não entendeu nem Carlos Magno, nem a flor, nem a Idade Média, o Menino Jesus na manjedoura, por exemplo, e as ideias mais majestosas de Deus. Quem não tem de cada uma dessas coisas uma impressão, pela qual ela é um espectro que forma uma coerência com a outra, não compreendeu o assunto.
Um horror, que se opõe ao que explicamos, foi o seguinte. Estando em Paris, quando menino, Mozart quis subir no colo da Du Barry para beijá-la. A Du Barry disse-lhe que não, porque era contra a etiqueta. Mozart afirmou com toda a naturalidade: “Perdão, Madame, como a Imperatriz(2) o faz assim comigo, eu pensei que pudesse fazer com a senhora, mas eu não tive a intenção de ofendê-la…”
Exemplo muito interessante é o relativo a um irmão de leite de Maria Antonieta.
A Imperatriz Maria Teresa deu ordem à ama de leite de Maria Antonieta para vir uma vez por mês visitar a Imperatriz, levando consigo o irmão de leite de Maria Antonieta, porque estava contraído um vínculo que deveria durar a vida inteira. Quando ocorria a visita, o irmão de leite brincava com Maria Antonieta e os arquiduquezinhos. E esse irmão de leite conta em suas memórias que, como eram muito pequeninos, quando chegava a hora de a Imperatriz, a grande Maria Teresa, brincar com Maria Antonieta, ela a colocava numa perna e o menino na outra e, para que este não se sentisse chocado de ver que Maria Antonieta era muito mais agradada do que ele, Maria Teresa fazia exatamente as mesmas carícias para ambos.
Esse menino, tendo se tornado adulto, foi morar na França e acompanhou Maria Antonieta em todos os lances da Revolução Francesa, até o momento em que ela foi presa e ele impedido de entrar na prisão. Combateu nas Tulherias, fez tudo pela Rainha Maria Antonieta e ficou ao lado dela a vida inteira, da grandeza à decadência. Depois escreveu memórias a respeito do convívio dele com ela, nas quais diz coisas de enternecer. Ele descreve Maria Antonieta como sendo uma síntese de grandeza e pequenez, que é uma coisa única.
E essa síntese de Maria Teresa, Maria Antonieta e seu irmão de leite, tem qualquer coisa desse espectro do encontro da majestade e da pequenez; tenho a impressão de que esse espectro, por causa do problema do igualitarismo, fica no ponto central dessa visão. Digo mais: é preciso a graça para se compreender como a pequenez se encaixa na grandeza. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/11/1973)
Revista Dr Plinio 170 (Maio de 2012)
1) A escola vitorina de filosofia e teologia, que teve como centro de irradiação, no século XII, a Abadia de São Vítor, nos arredores de Paris, seguia o pensamento agostiniano. Seu principal representante, Hugo de São Vítor, voltava-se de modo especial para a contemplação do Ser Absoluto na Criação. Sua ideia básica é de que todas as coisas foram criadas segundo ideias da mente de Deus; de modo que cada coisa tem seu arquétipo na ideia segundo a qual foi modelada. Daí a importância de o homem deitar um olhar contemplativo sobre o universo criado, não se detendo apenas no sinal exterior e material, mas procurando em cada qual seu exemplar.
2) Maria Teresa, Imperatriz da Áustria; mãe de Maria Antonieta.