A maior tentação da História

A Revolução da Sorbonne, iniciada em maio de 1968, proclamou a liberação de todos os instintos, ou seja, os homens possuem o direito de realizar toda espécie de mal, porque isso se dá em virtude dos impulsos que provêm da natureza afetada pelo pecado original. Com essa Revolução, a humanidade se encontra diante da tentação de abandonar toda ideia de ordem e de moral, que é a maior tentação da História. Nunca houve tentação mais radical, porque não é feita para um homem, e sim para todo o gênero humano. A máquina montada para que essa tentação seja eficaz é fantástica.

 

Quanto aos objetivos do movimento operário-estudantil eclodido na França, são eles, a um tempo, muito radicais e inteiramente imprecisos. Por mais que essas duas notas sejam contraditórias entre si, entretanto, elas coexistem.

“Civilização do instinto”

No caso concreto, o movimento é muito radical devido à transformação imensa que ele tem em vista e, por outro lado, pela radicalidade nos métodos empregados. Contudo, apesar de ser radical nos seus propósitos e métodos, não sabe bem o que quer. Está em desacordo com o partido comunista, querem algo diferente e muito mais radical do que esse partido.

Percebe-se que essa coisa desejada por esse movimento é um impulso e não uma convicção. Trata-se, assim, de um elemento que está germinando neles, cuja meta é a igualdade completa, mas que não se apresenta como uma convicção doutrinária. É um impulso que nasce com esta característica: universal, sacode a mocidade inteira. Surge, então, uma era histórica nova: o homem que renuncia à razão, à ascese e espera de um instinto a ordem de coisas futura.

Assim como um vulcão em erupção, por exemplo, sofre uma explosão que, entretanto, tem uma ordem interna, pois todos aqueles gases caminham na mesma direção; ou a detonação de uma bomba atômica, em forma de cogumelo, que também tem certa ordem interna, embora seja uma explosão, assim também os instintos soltos possuem certa ordem interna, que a nós – por obscurantismo, dizem os revolucionários – parece desordem, mas é verdadeira ordem.

Então nós temos a “civilização do instinto” – se é que se pode chamar civilização – a qual se opõe à moribunda civilização da razão, da inteligência e da vontade. Esta “civilização do instinto” é evidentemente a glorificação do pecado original.

Portanto, a revolução desses moços é um movimento instintivo que proclamará como filosofia básica da ordem de coisas, não um sistema doutrinário, mas o instinto: “Deixe que as apetências, os impulsos, os movimentos que estão latejando nesse tumor explodam, e daí escorrerá seu pus imundo, e ninguém o limpará. Daí nascerá uma infecção, e ninguém a combaterá”.

Não se pode fazer uma negação maior da verdade, nem uma revolução mais profunda do que essa.

Eles prometem uma situação que nós qualificamos de desordem caótica, mas eles consideram um sadio terremoto rumo à ordenação. É preciso libertar. Libertando o impulso alcançam uma ordem, mas que não é mais a nossa ordem. É a ordem deles…

Primeira gota de uma chuva que acabará sendo uma tempestade

Por ocasião dessa revolução anarquista em Paris, as notícias provenientes da Sorbonne eram as mais horríveis que se possam imaginar, apresentando aquilo como um antro de imoralidade, de sujeira, uma sordície. Essa era a primeira figura da revolução anárquica, mas evidentemente não podia ser a figura definitiva. Depois de se ter apresentado como um caos, ela haveria de começar a soltar o seu próprio segredo, que era a ideia nova, espantosa, única, de que de dentro do caos podia aparecer a ordem.

Precisamente quando atingido o total desse caos, nasce a ordem nova. Então, se ideias dessas se multiplicarem e se sucederem, veremos o burguês de hoje aterrorizado que se prepara para se distender com o seguinte raciocínio: “Nós não vamos para um caos tremendo, mas é um caos fecundo que gera uma ordem superior à que conhecemos. Rumemos para o abismo de olhos fechados, para o paraíso anárquico”.

Isso é, provavelmente, a primeira gota de uma chuva que virá, primeiro como um chuvisco, depois como torrente, e acabará sendo uma tempestade, uma coisa enorme.

A humanidade se encontra, assim, diante da tentação de abandonar toda ideia de ordem e moral, e proclamar o oposto da ordem e da moral; ou seja, está na presença da maior tentação da História. Nunca houve tentação mais radical, porque não é feita para um homem, e sim para todo o gênero humano. Por sua universalidade, ela é prodigiosa. A máquina montada para que essa tentação seja eficaz é fantástica. Esse movimento universal, estamos vendo, é o leviatã, propriamente o elemento de sedução, o demônio do meio-dia que aparece para tentar os homens.

Essa tentação é universal no seu pior sentido, porque engloba todas as tentações possíveis. Quem capitulou diante dela cometeu uma ação pecaminosa. Ela se põe na raiz de todos os pecados, pois comete pecado contra o Espírito Santo, o mais radical que pode haver. Então, por sua universalidade, seu poder e radicalismo, é a maior tentação da História.

Uma revolução satânica

Se uma pessoa proclama que todos os instintos estão soltos, ela prega o direito a se realizar toda espécie de mal, porque isso se dá em virtude dos impulsos que provêm da natureza afetada pelo pecado original. Proclama-se, assim, que a razão e a vontade não têm mais o que fazer, e com isso procura-se cortar a raiz última de toda a moralidade.

Sem dúvida, se uma pessoa se deixa tentar por isso, tudo quanto há nela de ruim corre naquela direção e ela, portanto, é tomada inteiramente por esse pecado. Porque afirmar não haver bem nem mal é um pecado imenso, no qual estão contidos todos os outros pecados que o homem possa cometer.

Mas se essa é a maior tentação natural da História, é também a maior tentação preternatural da História. O Inferno inteiro está trabalhando para que aquilo chegue ao estado de pecado total. A partir do momento em que esse estado de pecado global esteja generalizado, eu pergunto: que obstáculo pode haver para o demônio se manifestar?

Portanto, isso traz consigo o prenúncio de uma invasão diabólica, de um reino de violência, porque gente assim quer reinar pela violência. Uma violência omnímoda, recíproca, geral, sob o sopro de um leviatã, de uma espécie de monstro que se agiganta e tenta devorar o universo para levá-lo à pior forma de mal possível. Quer dizer, essa é uma revolução satânica.

É uma “ordem” já preternatural, dentro da qual depois poderá haver outros paroxismos. É o clarim do reino do demônio.

Historicamente falando, com a Revolução da Sorbonne um meridiano foi transposto. Essas coisas que eram venenos imundos cultivados em pequenos cenáculos universitários, e que não saíam à rua, arrancaram a máscara, criando uma dessas situações irreversíveis à proclamação do reino do demônio. Porque o reino do instinto é o reino do pecado; e o reino do pecado é o reino do demônio.

Comunismo anárquico

Evidentemente, não se trata de afirmar que os instintos humanos são um mal em si. Desde que se deixem governar pela razão esclarecida pela Fé e pela vontade confirmada e fortalecida pela graça, os instintos são auxiliares preciosos do homem.

No caso dessa Revolução, quando se fala do instinto, entende-se o instinto desgovernado que sucumbiu habitualmente, e não uma vez ou outra, à pressão das tentações, tomando o hábito inveterado de viver no pecado.

Pode até acontecer como na maré montante: ela sobe, desce um pouco, depois vem outro vagalhão, sobe mais… Embora haja o vaivém da maré, trata-se de uma maré montante.

Um otimista, a cada retrocesso da maré, dirá: “Olha lá! Eu já estava vendo, isso está diminuindo”. Depois, quando a maré avança mais, ele diz: “Não é desta vez…” Até que a maré tenha acabado de subir e tomado conta de tudo. Assim também, esse arrancar de máscara proclamando o reino do demônio é irreversível.

A agitação universitária na França foi uma espécie de chama na qual culminou uma série de agitações anteriores, e que parecia propagá-las para o mundo inteiro. Na França, a revolução universitária caiu e se espatifou, e mais ou menos por toda parte ela começou a ficar no vácuo, a viver isolada. Entretanto, artificial como seja, ela continua a ser mantida e, por toda parte, vai crepitando de um comunismo que não visa mais um estado ditatorial arqui-organizado, que seria a ditadura do proletariado, mas uma ordem de coisas anárquica ainda misteriosa, a qual pressupõe uma transformação do homem também misteriosa, e que é a grande incógnita do mundo moderno.

Os teóricos do comunismo sempre afirmaram que o ponto terminal do processo – até onde chegava o horizonte deles – era a anarquia; e que a ditadura do proletariado era uma situação intermediária para chegar até essa anarquia.

O advento de um comunismo anárquico como força mais nova, mais dinâmica do que o comunismo ditatorial, burocrático, organizado, representa exatamente a aurora do fim do processo, devorando a penúltima etapa, como sempre acontece nesse processo: assim como a república comunista devorou a república burguesa, e esta já havia devorado a monarquia constitucional, o comunismo anárquico devora o comunismo estatal, organizado.

Nós temos, portanto, o alvorecer de uma era que começa já a se delinear, apontada como sendo da mocidade de amanhã.

Super-tirania num mundo tribalizado

Todos os acontecimentos estão centrados sobre esse plano de fazer vencer o comunismo anárquico, a proclamação da república universal não como um super-Estado, mas uma situação de coisas que é a fraternidade universal anárquica, sonhada como o fim do horizonte do mundo revolucionário. Vemos que tudo tem que correr para favorecer isto.

Não se trata mais de um Estado, e sim de uma super-tirania sobre tribos num mundo tribalizado, exercida por meios inteiramente desconhecidos, mas já não burocráticos e estatais. O mundo da economia, das universidades, da técnica, da organização e da ciência será desfeito para criar uma economia primária num estado anárquico.

A economia hoje existente é o fruto das universidades, com sua técnica, sua organização, sua ciência, produzindo homens capazes de tomar a produção econômica do mundo, racionalizá-la e montar uma máquina que se poderia chamar a indústria universal e o comércio universal.

A partir do momento em que a universidade se anarquize e tudo isso deixe de existir, tem que haver uma catástrofe da economia burocratizada e de uma sociedade desigual para passar para a economia primária do Estado anárquico, de uma “ordem” de coisas anárquica. Evidentemente, a agitação da Sorbonne é um primeiro estalido nesse sentido.

Na esperança dos evolucionistas está a possibilidade de uma “ordem” de coisas, onde haja um fator que permita a ilusão de que o desregramento dos instintos possibilite uma vida feliz nesta Terra.

Seria a ideia exatamente de uma “ordem” de coisas completamente anárquica, laica, sem sacralidade nenhuma, na qual, a título de religião, haveria uma religiosidade imanente, inteiramente desalienada, em que os homens viveriam numa sarabanda completa.

No outro extremo, o segredo de Maria

No extremo oposto nós temos o segredo de Maria. A esse respeito as coisas são muito misteriosas também. Lê-se em São Luís Grignion de Montfort que ele fala desse mistério, mas não o explica inteiramente.

A meu ver é uma forma mais generosa, mais ampla, muito mais fecunda de Nossa Senhora atuar nas almas do que anteriormente. De nenhum modo diminui o livre-arbítrio, mas o aumenta, porque o homem, quanto mais é assistido pela graça, mais livre é.

É uma coisa imponderável, mas a nossos olhos isso não nasceu ainda, ou surgiu de um modo tão incerto, tão indeciso, que um verdadeiro enlevo por Nossa Senhora nós ainda não temos. Ora, quando a devoção à Santíssima Virgem não é nessa base, não é completa; pode estar cheia de toda a Teologia que queiram, mas não é a perfeita devoção a Nossa Senhora.

É a mesma coisa que alguém viesse me dizer: “Eu conheço muito bem, segundo o direito natural, o que é uma mãe. E, portanto, trato bem a minha”. Assim não vai! Ou ele trata a mãe dele com um mundo de confiança, de ternura, com a certeza cega da bondade dela para com ele, um desejo, portanto, de servi-la por amor, ou a coisa não está feita.

Bondade e severidade sábia de Dona Lucilia

De tudo quanto minha mãe me legou, as duas coisas mais preciosas que conheço na ordem moral foram exatamente, de um lado, a bondade e, de outro, a severidade sábia. Mamãe era tão bondosa que eu não saberia dizer. Inclusive na hora de perdoar-me naquilo em que eu andava mal, era de uma indulgência, de uma suavidade… E nunca fazia uma reclamação porque algo tinha atingido a ela. Jamais entrava reivindicação de um direito dela.

Dona Lucilia possuía a cultura de uma senhora de antigamente e, embora pudesse às vezes não explicitar bem um princípio, tinha os princípios no espírito. Nunca o pito dela era por uma irritação pessoal, mas sempre por um princípio ofendido, inclusive o da autoridade materna. Porém, sempre com tanta bondade e com tanto perdão, tanta paciência no que dizia respeito a ela…! O que se fizesse a ela de pior, eu, em menino, ou que outras pessoas lhe faziam de horrível e que eu presenciava, enquanto algo que a atingia, ela engolia quietinha e não dizia uma palavra.

Como me lembro dos pitos dela… Que seriedade no olhar, que compenetração! Tratava-se de fazer prevalecer um princípio.

Havia em mamãe a convicção de que se eu não conformasse minha vida com aqueles princípios, para ela eu valeria muito menos; e ela mais via em mim o filho que precisava amar os princípios, do que o filho que deveria querer bem a ela.

Quanta sabedoria no que ela dizia! Que voz grave! Ao mesmo tempo a bondade não estava ausente.

A intransigência dela comigo chegava a este ponto: Certa vez, voltei do Colégio São Luís, da festa de distribuição de prêmios, com quatro medalhas no peito. Os meninos vinham à rua com medalhas, naqueles tempos ingênuos. Ainda me lembro, com roupa de marinheiro, e com quatro medalhas no peito.

Mamãe abriu a porta e me agradou, foi uma alegria.

No ano seguinte voltei com três medalhas. Ela abriu a porta, olhou e disse:

– Só três? Como é que você decaiu? Que aconteceu para você decair?

Mas isso misturado com tanto afeto, que posso dizer que me foi uma preparação para compreender o que é a misericórdia de Nossa Senhora.

Dou essas reminiscências para exemplificar um pouco o que estou pensando. Não sinto que nossa devoção à Santíssima Virgem seja inteiramente assim.

Então, voltando ao tema da revolução anárquica, vem-me a ideia de que haverá uma possessão do demônio, mas também uma influência de Nossa Senhora muito maior do que existe hoje em dia; e nós somos a larva que se vai arrastando no chão até o momento em que Maria Santíssima resolva nos transformar em crisálidas.     v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 3, 15 e 18/6/1968, 11/12/1968, 21/4/ 1969)

Revista Dr Plinio 242 (Maio de 2018)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *