Como explicamos na seção Datas do presente número, em 1973 Dr. Plinio quis reservar para os mais jovens de seu auditório as conferências que dava aos sábados à noite. Na primeira delas, no dia 7 de abril, ele pôs ao alcance desses jovens um de seus temas preferidos: a necessidade de contemplar a Deus refletido na Criação.
“Os capítulos de Guilherme Auran, do século XII, consagrados à explicação da Missa, estão entre os mais surpreendentes de sua obra. Eis aqui, por exemplo, como ele interpreta a primeira parte do Divino Sacrifício. O canto grave e triste do “Intróito” abre a cerimônia; exprime a espera dos Patriarcas e dos Profetas; o coro dos clérigos representa o coro dos santos da Antiga Lei, que suspiram antes da vinda do Messias que, entretanto, não verão. O bispo então entra, e aparece como a figura viva de Jesus Cristo. Sua chegada simboliza o aparecimento do Salvador, o esperado das nações. […] O bispo senta-se no seu trono e permanece silencioso. Ele parece não desempenhar nenhum papel na primeira parte da cerimônia. Sua atitude contém um ensinamento. Ela nos recorda, pelo seu silêncio, que os primeiros atos da vida de Nosso Senhor se desenrolaram na obscuridade e no recolhimento.”
Através das coisas criadas, pode-se entrever a Deus
Estes são trechos do livro “A arte religiosa no século XIII, na França”, de Édouard Malle. É um bom historiador, dos muito considerados. Depois de mencionar longamente o simbolismo que os medievais viam na Missa, ele escreve: “Pode-se imaginar tudo o que uma cerimônia religiosa continha de ensinamentos, de emoção e de vida para os cristãos do século XIII. Um uso tão constante do simbolismo pode deixar estupefato alguém que não esteja familiarizado com a Idade Média. É preciso, entretanto, não fazer como fizeram os beneditinos do século XVIII, não ver ali um simples jogo de fantasia individual. Sem dúvida, tais interpretações nunca foram aceitas como dogma. Não obstante, é notável que elas quase nunca variam”.
Mais do que a explicação tomada em si, o interessante é o estado de espírito que ela supunha. É o desdém pelo mero concreto e a concepção profunda de que, através de todas as coisas deste mundo, pode-se chegar ao espiritual e entrever a Deus. Eis o verdadeiro gênio da Idade Média.
Mas como explicar esses ritos da Missa? Que significado têm?
A pergunta tem qualquer coisa que choca o espírito moderno. A própria necessidade de um significado é algo que o espírito moderno não compreende bem.
O celebrante bispo entra para rezar a Missa. Para um espírito moderno, isso não precisa ter significado, não tem necessidade de lembrar uma fase da vida de Nosso Senhor. O celebrante entra, porque tem de entrar. Se vai celebrar, tem de entrar na igreja. Trata-se de um puro fato material despido de significado. E por que o bispo fica sentado, enquanto um padre faz as leituras? Por uma razão muito simples.
O essencial da Missa é a Consagração e as orações que a precedem. E é o bispo que reza essa parte. É uma divisão de tarefas como numa fábrica de papel, por exemplo: um mistura a pasta, outro segura o caldeirão e outro achata para dar o papel (estou imaginando uma fábrica mais do que rudimentar, pois não tenho a menor ideia se é assim que se fabrica o papel…). Esses gestos da fábrica de papel não têm outro significado senão sua utilidade. São uma expressão do caráter meramente funcional. Também na Missa há uma distribuição de funções entre o principal oficiante, que é o bispo, e os outros, que serão os sacerdotes, os vários acólitos numa Missa solene são funções da mesma natureza.
Objeções do Positivismo
Este modo de ver as coisas está ligado à filosofia positivista do século XIX. Dizem que morreu e enquanto filosofia, é verdade; mas, enquanto hábito mental, continua viva. O que ensina a filosofia positivista? Que a mente humana não é capaz de conhecer, aprofundar e explicar senão os fatos que dizem respeito à matéria. Logo, tudo quanto não diga respeito à matéria é incerto, inseguro. Existe uma alma? Não sei. Não é matéria… Existe um Deus? Não sei, não é matéria… Uma das maneiras de exprimirem “inteligentemente” isso é da seguinte maneira: como nenhum médico, operando um homem, encontrou a alma na ponta do bisturi, não pode ter certeza de que ela exista. Ou como Yuri Gagarin o primeiro astronauta russo, que declarou não ter encontrado Deus no espaço.
A alma humana não pode ser encontrada na ponta de um bisturi, porque é imaterial. Mas, pelos efeitos do que se passa no homem, percebe-se que ele tem alma, porque produz operações que a matéria não poderia produzir. Deus não pode ser visto, mas o próprio mundo testemunha a sua existência. Se perguntássemos a um positivista: “Esse relógio foi fabricado por alguém?” Ele diz: “Não sei, só subindo a torre para verificar”. Ele sobe, não encontra quem fabricou, e conclui: “Não há fabricante, porque não o encontrei”. Uma perfeita imbecilidade! O fabricante do relógio não tem que estar necessariamente na torre. Percebe-se que houve um fabricante do relógio pelo fato de que aquilo é uma matéria que produz operações as quais, sem fabricante, não produziria.
Mas o positivismo, embora incoerente, encantou o século XIX, e ainda está no consciente ou subconsciente de um número incontável de pessoas em nossos dias.
Significantes e significados
Escaparia ao pensamento positivista procurar significados nos gestos e ações do homem. Para ele, deve-se considerar o corpo humano e seu agir do ponto de vista da funcionalidade, da utilidade prática das ações.
Colocados diante da Missa, mas também diante de uma porção de outros atos ou fatos da vida quotidiana, a pergunta “qual é o significado” não vem.
O que entendemos por significado? Significado é o particípio passado do verbo significar. E o que quer dizer significar? É emitir um sinal, “signum”.
Há o significado, isto é, aquilo que foi expresso através do sinal, e há um significante, aquele que produz o significado, o autor do significado. Podemos exemplificar com o telégrafo: o funcionário bate aqueles sinais. Qual é o significante? É o homem que está batendo a mensagem. Qual é o significado? É a mensagem. O significante emite a mensagem. O significado é a mensagem, aquilo que foi posto em sinal para o conhecimento de um terceiro, que é o destinatário da mensagem.
Diz-nos a doutrina católica que todas as realidades visíveis são sinais de realidades invisíveis. E que há uma analogia entre o mundo visível (o mundo dos homens nesta terra, com os animais, as plantas e os entes inanimados), e o mundo das realidades imateriais, invisíveis.
Qual é o mundo das realidades invisíveis? A alma humana, antes de tudo, porque visível ela não é. Ela é perceptível. Percebemos que ela existe, mas não a vemos. Há, então, a alma humana e tudo quanto diz respeito ao espírito. Quer dizer, os santos de Deus, cujas almas estão no Céu (porque, com exceção do Corpo glorioso de Jesus Cristo e do corpo glorioso de Nossa Senhora e talvez de algum Santo excepcionalíssimo não existe mais nenhum corpo no Céu; os outros corpos jazem por aí, desfeitos em poeira, ou guardados em relicários, à espera da ressurreição final). As almas dos justos que foram para o céu constituem, portanto, realidades invisíveis. Também os Anjos que compõem a corte de Deus no céu, outro número enorme de realidades invisíveis. E, por cima dos Anjos, infinitamente acima deles, Deus, que é puro espírito, perfeito, etc.
Temos, portanto, um mundo de significantes, significados e destinatários de significação. Os Anjos vêem a Deus face a face. Mas eles O vêem, segundo diz a filosofia escolástica, “totus sed non totaliter”: vêem Deus no seu todo, mas não totalmente, porque Deus, sendo infinito, pode-se ter uma noção global d’Ele, mas não se pode ver cada perfeição. Excede a mente do homem, como também a dos Anjos. Como cada Anjo vê em Deus algo que outro não vê, conta para esse o que viu. E esse comentário, esse eterno relato que os Anjos se dão, uns aos outros, a respeito de Deus, constitui um cântico angélico, porque se exprimem cantando. O que, evidentemente, também é um significado: o Anjo não tem laringe para cantar. Mas a mensagem que um dirige ao outro é tão nobre e tão cheia de amor, que tem alguma semelhança com o canto dos homens. Então é o canto perpétuo dos seres angélicos, narrando as grandezas de Deus. Alguns Santos têm ouvido esse cântico dos Anjos, essas mensagens angélicas, sob a forma de uma música distante, sublimíssima, perpetuamente contínua, ininterrupta, e que os deixa extasiados. São os Anjos que contam uns aos outros o que vêem em Deus e ouvem d’Ele.
Mas eles não contam apenas, ou não cantam apenas. Eles significam num outro sentido: é que cada Anjo, o que ele vê em Deus, tem relação com a natureza dele. E os Anjos não são como nós, meio feitos em série. Cada Anjo é uma espécie. É como se cada um fosse uma humanidade, sendo completamente diferente do outro. E cada Anjo simboliza, na sua natureza, aquilo que ele conta a respeito de Deus. Assim, a intuição que um Anjo tem do outro (os puros espíritos se conhecem diretamente) leva-o a “ver” no outro um reflexo particular e único da natureza divina. De maneira que cada Anjo é, para os outros seres angélicos, uma espécie de chama de manifestação divina, uma chama que canta.
Aspectos terrenos que nos lembram a Deus
Na terra há uma porção de fatos que nos lembram enquanto tal significam o próprio Deus. Por exemplo, um pai ou uma mãe que embala uma criança. Que significado isto tem? Pai ou mãe por excelência é Deus Nosso Senhor, porque Ele não nos gerou apenas, mas nos criou. Sabemos que a vida de nossos corpos vem de nossos pais, mas a alma que cada um de nós recebe é diretamente criada por Deus. Nossos pais não são pais de nossas almas. E o que temos de mais importante é a alma, não o corpo. Deus é o Pai de nossas almas. Mas Deus é o criador de Adão e Eva, que foram os pais de todos os homens. Ele é, portanto, nosso Pai por excelência. O carinho do pai, o carinho da mãe nos lembram o carinho de Deus, o afeto de Deus, a solicitude de Deus.
Ao folhearmos a Escritura, encontramos um número enorme de comparações em que Deus alude a Si mesmo como sendo pai, alude a Si mesmo como sendo mãe, e depois mostra que Ele é mais do que o pai e a mãe. Uma das frases de Deus ao pecador, no Antigo Testamento, diz: “Ainda que teu pai ou tua mãe te esquecesse, Eu não me esqueceria de ti”. Quer dizer, ainda que o homem cometa ações tão abomináveis que o pai ou a mãe o rejeitassem, Deus não o rejeitaria. Porque Ele é a fonte de toda misericórdia, e não abandona nenhuma criatura humana. Deus toma o pai e a mãe como significados d’Ele, convidando o homem a olhar para algo mais alto, que é Ele, de quem o pai e a mãe são sinais.
Só o pai e a mãe? Toda autoridade existente na terra é significado de Deus. Tomemos a “autoridade” mais humilde que há, a do pastor que guia suas ovelhas. Nosso Senhor Jesus Cristo se comparou ao bom pastor. Quer dizer, Ele mesmo indicou que, havendo criado as ovelhas e o pastor, estabeleceu uma relação pastor-ovelhas que é imagem da relação Deus-homem. E indicou que, olhando um pastor que dirige os movimentos do rebanho, devemos nos lembrar d’Ele dirigindo os homens e a história.
É incontável o número de fatos materiais que significam fatos sobrenaturais. Outro é o seguinte: nas mesas de comunhão antigas, havia por vezes pinturas de veados bebendo água numa fonte. É alusão a um salmo: “Sicut cervus ad fontem aquarum desiderat, ita desiderat anima mea ad te, Deus”. Assim como o cervo vai para a fonte das águas, assim, ó Deus, a minha alma te deseja a Ti. É a significação, no reino animal, do desejo que a alma tem de Deus. Deus é a fonte de todas as águas, é a origem de todas as coisas. Que bonita essa comparação: uma fonte que brota; e Deus, que fez “brotar” tudo do nada! Como isso é majestoso! A fonte é um sinal de Deus. Assim como o cervo que corre velozmente, encontra uma fonte e pára para se dessedentar, assim nossa alma, correndo pelos caminhos da vida, tem sede de Deus. E nossa alma pára diante de Deus e “bebe”.
Isso é do Antigo Testamento. Mas a Igreja faz aplicação para o Novo Testamento. Como pode alguém “beber” a Deus? É a Sagrada Eucaristia, que estava profetizada nisso. É a sede, ou fome, eucarística, o desejo de comungar. As saudades da alma que, por qualquer razão (está num local onde não há igreja) não pode comungar. Quando consegue, comunga como um cervo que vai à procura das águas.
Poderíamos ainda apontar mil outras aplicações.
Volto ao exemplo das autoridades. Não é só o pai que representa a Deus. Quantas vezes Deus se compara a um rei no Evangelho, ou no Antigo Testamento, para dar a entender que, se queremos ter ideia de como Ele é, contemplemos a autoridade régia. Não se trata da pessoa do rei, que pode ser um crápula, mas a autoridade do rei, os atributos, a missão, o poder, o cargo régios. É um fulgor de Deus.
O professor é um sinal de Deus enquanto ensinando. Simboliza a Deus que leciona a Si próprio às suas criaturas, que fala de Si e Se faz ver por suas criaturas. Deus, neste caso, tem um significado que é o mestre.
O patrão que dirige o trabalho, para que as coisas deem certo, é um significado de Deus, porque é Deus ordenando todo o universo para que produza.
E daí para a frente, os senhores têm um número incontável de aplicações que são significados.
Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 49 (Abril de 2002)