Muito jovem ainda, Dr. Plinio fora totalmente conquistado pela Verdadeira Devoção a Nossa Senhora, pregada por São Luís Maria Grignion de Montfort, consagrando-se à Rainha do Universo segundo o método montfortiano. E se tornou desde então um dos maiores propagadores dessa via espiritual, cujas excelências não cessava de enaltecer, como neste artigo de 1936.
Nas mãos de uma editora católica, recebeu o Legionário, ultimamente, a obra traduzida de Luís Maria Grignion de Montfort, sobre a Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Entre estas edições, chama a atenção por suas qualidades a da Vozes, de Petrópolis, que teve a feliz ideia de traduzir, também, em apêndice, as oração que o Autor recomenda no seu livro.
As obras do [santo] Grignion de Montfort já se impuseram, no seio da Santa Igreja, por seu excepcional valor, e hoje em dia, o Tratado da Verdadeira Devoção é geralmente reconhecido como um dos mais importantes trabalhos que jamais se tenham escrito sobre Nossa Senhora. Dados os extremos de respeito e de amor para com a Santíssima Virgem a que a obra de Luís Grignion de Montfort conduz seus leitores, alarmou ele — aliás sem o menor fundamento — alguns pensadores católicos receosos de que o Autor tivesse chegado a exagerar o culto de hiperdulia que a Nossa Senhora se deve. A Santa Sé, a fim de acalmar os espírito timoratos, e permitir às almas piedosas que singrassem sem receio os oceanos de piedade contidos no Tratado da Verdadeira Devoção, declarou entretanto, de forma expressa, explícita e oficial, nada ter aquele livro que colida com o pensamento da Igreja. É, pois, com apoio nessa garantia de supremo valor, que se deve considerar e examinar a grande obra daquele grande Santo. […]
Sensibilidade, inteligência e vontade devem andar juntas na vida espiritual
Muito se tem escrito, em nossa época, por pena de leigo, sobre piedade. Entretanto, cumpre observar que raramente os livros dessa natureza, ao menos no Brasil, apresentam aquela solidez de pensamento sem a qual a piedade corre grave risco de se extraviar.
No fundo, essa deficiência decorre de uma concepção incompleta do que seja a piedade. Raciocinando de um modo simplista, pensa muita gente que como o anelo supremo de toda a vida espiritual deve ser a intensificação do amor de Deus, e como o amor que os Santos tiveram a Deus na vida terrena se manifestou por extraordinárias provas de sensibilidade afetiva, em última análise, o amor será tanto maior quanto mais aguçada e mais viva for a sensibilidade. De sorte que a obra de um livro de piedade deve consistir em despertar a maior sensibilidade afetiva possível. Quanto mais terna a linguagem, quanto mais imaginosa, quanto mais rica de adjetivos, tanto mais eficaz.
Com isto, evidentemente, toda a estruturação doutrinária da obra sofre um sério prejuízo. A preocupação literária predomina sobre a clareza e a ortodoxia do pensamento, e o trabalho inteiro — se consegue uma vez ou outra tocar o leitor por um artifício feliz de linguagem — não deixa no fim uma única convicção sólida e profunda, uma única daquelas ideias claras e substanciosas, capazes de guiar uma vida e determinar uma reforma espiritual.
Nisto como em tudo, a Santa Igreja deve ser nossa Mestra. Ninguém, mais do que ela, se esforça por estimular e formar a sensibilidade humana, nutrindo-a com todas as impressões capazes de lhe dar uma verdadeira elevação. Pelas imagens, pelos cânticos, pela música, pelos esplendores da Sagrada Liturgia, a Igreja fala incessantemente à sensibilidade dos fiéis. E, auxiliada pela graça de Deus que nunca lhe falta, bem como pelos recursos de grandes talentos humanos, tem ela conseguido tais resultados neste terreno, que bem se pode dizer que ninguém, em toda a história, consegue propor à sensibilidade humana temas tão altos e tão nobres, ao mesmo tempo tão fortes e tão suaves, quanto ela. A par disto, ninguém tem conseguido, ao mesmo tempo, comunicar a essas manifestações sensíveis um cunho tão apuradamente artístico quanto os grandes talentos inspirados pela Igreja.
Longe, e muito longe de nós, portanto, está a preocupação de ignorar o papel da sensibilidade na vida da piedade. Deixemos esta triste tarefa para outros, e continuemos dóceis aos maravilhosos ensinamentos que, a este respeito, nos dá a Santa Igreja.
Como a vida de piedade se destina a santificar o homem, a importância que têm respectivamente a inteligência, a vontade e a sensibilidade é proporcionada à magnitude das funções de cada uma no homem. Ora, se o papel da sensibilidade é grande, ninguém poderá, por pouco que reflita, deixar de reconhecer que a ação da inteligência e da vontade ainda é muito maior.
Assim, pois, a verdadeira formação de piedade não se deve contentar com ministrar à sensibilidade estímulos sobre estímulos. Ela só será sólida se se alicerçar sobre verdades claras, substanciosas e fundamentais, ministra- das e assimiladas a fundo pela inteligência. E só será real se se servir destas verdades como meio para disciplinar vigorosamente a vontade, em um combate árduo e duro que, se bem que a alma seja espiritual, com toda a propriedade de expressão se pode chamar de sangrento. De nada vale a vida espiritual, se ela prescindir de uma instrução religiosa sólida, e de uma luta efetiva, disciplina- da, constante e intransigente conosco. […]
Inestimável valor da obra de São Luís Grignion
É raro encontrar um livro que, de modo mais patente, tem os dois predicados, o de esclarecer a inteligência, e o de estimular a sensibilidade, do que o de Grignion de Montfort. Seu Tratado é uma verdadeira tese, com lampejos de polêmica. A argumentação é sólida, substancial, profunda. Jamais se nota nele que um arroubo de amor venha perturbar a indefectível serenidade e justeza do pensamento. Sua profundidade chega a ser tal, que freqüentemente os leitores não iniciados na Teologia — e é este meu caso — têm de fazer um sério esforço de inteligência, para o compreender. Mas em compensação não há uma só frase inútil ou sem sentido em seu livro. Todas as palavras têm seu valor exato e calculado. E to- dos os conceitos geram convicções claras e profundas, que não despertam apenas sobressaltos de sensibilidade em momentos em que nosso temperamento se mostra propício a isto, mas também ideias luminosas e substanciosas, que geram aquele amor sério e sólido, capaz de sobrevier heroicamente às mais implacáveis aridezes da vida espiritual.
Entretanto, não se julgue que o Tratado da Verdadeira Devoção é uma fria exposição de princípios. Em cada ponta de frase, Luís Grignion de Montfort deixou gotejantes o suor de sua inteligência e o sangue de seu coração. Sua argumentação, se é lúcida, está longe de ser fleumática. Pelo contrário, é apaixonada, ardente, comunicativa. A cada demonstração vitoriosa, seu escrito toma acentos de gritos de triunfo e de júbilo. Sua linguagem lembra a de São Paulo. E por isto o grande padre Faber disse da obra de Grignion de Montfort que, depois das Escrituras Sagradas, nada se escreveu de mais candente do que sua famosa oração pedindo missionários de Maria.
Se há um trabalho em que se compreende aquela luz intelectual cheia de amor, de que fala Dante, esse é o de Grignion de Montfort. Lê-lo, é facilitar poderosamente o progresso na vida espiritual. Difundi-lo, é acumular coroas de méritos no Reino dos Céus.
(Transcrito do “Legionário” de 26/11/1936.
Nesta data, Grignion de Montfort ainda não era canonizado. Título e subtítulos nossos.)