Ser um autêntico Amigo da Cruz significa nutrir na alma um particular amor aos valores sobrenaturais, e ter sempre em vista esta subida verdade: fomos engendrados durante a Paixão de Cristo; mil dores e gemidos precederam nosso nascimento, que se deu através da chaga aberta no flanco do Redentor. Dr. Plinio prossegue suas considerações sobre o opúsculo escrito por São Luís Grignion de Montfort.
Como vimos em nossa última exposição, São Luís Grignion estabelecia certas características fundamentais do autêntico Amigo da Cruz, entre elas, o possuir um espírito metafísico, desapegado dos interesses terrenos e voltado primordialmente para os valores sobrenaturais.
Cumpre formar as almas no amor às verdades metafísicas
Ora, para se ter esse feitio de alma é necessário uma formação católica que cultive, com seriedade, o amor às verdades metafísicas, que proporcionará ao fiel uma sólida disposição para abraçar a Cruz e o sofrimento. Infelizmente, tal formação não é corrente, e essa lacuna traz como funesta conseqüência, entre outras, o fato de pessoas se subtraírem às aulas de catecismo e abandonarem prematuramente a prática da religião. Afirmar, pura e simplesmente, que elas rejeitaram a ascese e por isso se expõem ao risco da condenação eterna, é um julgamento sumário.
Ponderemos. Foi-lhes explicada a doutrina da Igreja sobre as virtudes católicas em toda a sua importância e magnitude? Por outro lado, mostraram-lhes até onde chega a degradação dos vícios? Ou apenas se lhes falou dos Dez Mandamentos, com referências concisas, sem explanações complementares?
Quer dizer, há portanto toda uma ascese para se amar a Cruz, a qual, ao longo dessas exposições, à medida que o texto o favorece, procuramos apontar.
São Luís Grignion nos deu, até aqui, dois pressupostos para se tornar um Amigo da Cruz. O primeiro consiste na ternura diante dos padecimentos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo no Calvário. Segundo, acima lembrado, o espírito metafísico por onde a pessoa se destaca da consideração das realidades meramente palpáveis e dirige seu pensamento para o invisível, para os bens sobrenaturais. Quem quiser se formar na escola dos Amigos da Cruz deve, pois, cultivar esses traços de alma.
Indivíduos particularmente chamados
Continuemos a analisar as palavras de São Luís Grignion:
Um Amigo da Cruz é uma ilustre conquista de Jesus Cristo crucificado no Calvário, em união com sua Santa Mãe…
Faço notar, uma vez mais, que em toda a Carta, São Luís escreve “Amigo da Cruz” com A e C maiúsculos, pois ser membro dessa sociedade por ele fundada é uma “ilustre conquista de Jesus Cristo”. Ou seja, Nosso Senhor conquistou cada um particularmente, derramando seu Sangue para que este e aquele fossem mais chamados e recolhidos no cenáculo dessa instituição. E — belíssima característica de São Luís Grignion — a referência nunca esquecida a Nossa Senhora:
…em união com sua Santa Mãe. É um Benoni ou Benjamin, filho da dor e da destra…
Refere-se aos dois nomes dados ao último filho de Jacó: o primeiro por sua mãe, Raquel, o outro por seu pai (Gn 35, 18). “Filho da dor e da destra”, bonita expressão, indicativa de traços da própria alma de São Luís Grignion de Montfort. Com efeito, embora ele não explique, entre a destra e a dor há certa correlação. Pode-se entrever que a dor propicia méritos para o indivíduo se tornar um filho da destra, isto é, um filho que é direito, sério, honrado, objeto de especial preferência. Não há destra sem dor, e toda dor santa tem algo de destra.
Filhos da dor, cobertos pelo Sangue de Cristo
… gerado em seu dolorido Coração, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu Sangue.
Eis uma comparação em extremo contundente, própria a surpreender as almas superficiais. Imaginemos um marquês do Ancien Régime(1), trajado com roupas vistosas e de espírito frívolo, a quem São Luís Grignion afirma que deveria “ser gerado no dolorido Coração de Jesus, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu Sangue”… A superficialidade do nobre receberia um duro golpe!
Pois outro não é o paralelo estabelecido pelo santo. Ele compara o nascimento do filho da destra, ou seja, do Amigo da Cruz, à gestação e ao parto dolorosos de uma criança; no caso, vindo à luz em meio ao sofrimento, através do Coração de Cristo aberto por uma lança. Aí nasceram os especialmente chamados, que vêm à Terra cobertos pelo Sangue do Redentor. São filhos da dor, da agonia e da morte, e não do prazer. Nasceram para as sublimidades dessas perspectivas e não para a frivolidade. Seu feitio de espírito é o oposto ao do homem mundano, que deseja viver apenas para a fruição das transitórias alegrias terrenas.
Esteio da mentalidade de um autêntico católico
Importa termos sempre em vista essa subida verdade: fomos engendrados durante a Paixão de Cristo. Mil dores e gemidos precederam nosso nascimento. Este se deu tragicamente, através da chaga do lado de Nosso Senhor, provocada pela lança de Longinos. Portanto, onde a última gota de água, o último sangue, a derradeira oblação, a extrema generosidade se fizeram notar. Compreende-se, assim, a diferença entre essa visualização e o mundanismo.
Recordo-me de que nas antigas cerimônias de Semana Santa, durante a Via Sacra se cantava: “Pelas lágrimas de Maria, tende de nós compaixão; por vossa última agonia, tende de nós compaixão; Jesus, perdão, perdão”. Nesse hino as pessoas se compraziam em considerar a luminosa e sublime tristeza de Nosso Senhor, e ao ouvi-las cantando, eu pensava comigo mesmo: “Embora muitos não estejam compenetrados, o fato de entoarem esse cântico lhes dá uma tal ou qual participação no valor daquilo que a letra da música exprime”. Ou seja, participavam do amor à Cruz de Cristo.
Reafirmo, portanto: nada em matéria de pensamento de vida interior vale qualquer coisa se não proceder desse sofrimento, do ato sacrifical de Nosso Senhor no alto da Cruz e de nossa gestação dolorosa aí realizada. Isto constitui o esteio da mentalidade de um autêntico católico. Todos os santos foram assim. E todos somos chamados a nos enternecer com a Paixão de Nosso Senhor, com sua Sagrada Face ensanguentada, desfigurada, machucada.
Mortos para o mundo, a carne e o pecado
Continua São Luís Grignion:
Dada a sua extração sangrenta, ele [Amigo da Cruz] só respira cruz, sangue e morte ao mundo, à carne e ao pecado, para estar totalmente oculto aqui na Terra com Jesus Cristo em Deus.
Trata-se, pois, da atitude em face dos adversários da Cruz, isto é, o mundo, a carne e o pecado. Além disso, refere-se o Santo à passagem da epístola de São Paulo aos colossenses: “estais mortos, com efeito, e vossa vida é toda oculta em Deus com Jesus Cristo” (Cl 3, 3). É uma metáfora com a qual ele indica que devemos morrer para as coisas materiais e carnais, utilizando-nos destas apenas na medida em que favorecem nossa união com Deus, e não para os meros deleites que podem nos proporcionar.
Enfim, um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou antes, um Jesus Cristo, de maneira que possa, em verdade, dizer: “vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vive em mim” (Ga 2, 20).
Magnífica afirmação de São Luís Grignion, mostrando-nos o Amigo da Cruz como um porta-Cristo, ao mesmo tempo que nos faz essa soberba promessa de apostolado: aonde vai o Amigo da Cruz, este leva Nosso Senhor consigo. Portanto, sua evangelização se reveste de uma suprema eficácia.
Vê-se, assim, uma vez mais, a grande necessidade de formar as pessoas para compreenderem o atrativo da Cruz, amá-la e, desse modo, deixarem Nosso Senhor Jesus Cristo viver nelas. E isto supõe uma profunda gravidade de alma, contrária a tudo quanto podem pensar os espíritos superficiais.
(Continua em próximo artigo)
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 3/6/1967)
1) Período da história da França iniciado em princípios do século XVII e extinto em 1789, com a Revolução Francesa.