Não é raro visitarmos algum ambiente, monumento ou lugar histórico, e termos a impressão de ali estarem presentes algumas pessoas que muito o marcaram. Além de dar uma dimensão mais pro- funda à nossa visita, essa experiência nos leva a compreender melhor o espírito dessas personagens do que se houvéssemos diariamente convivido com elas.
Esta reflexão me vem à mente, de modo especial, quando me lembro das ruínas do Coliseu romano. Ao penetrarmos nelas, sentimos, por uma ação da graça divina, a presença dos mártires que ali padeceram e verteram seu sangue, para se tornarem – no inspirado dizer de Tertuliano – sementes de novos cristãos. Heróis da Fé, admirados por todo o mundo, em todos os séculos, desde os tempos da Igreja catacumbal até o dia de hoje! E mesmo homens que se vangloriam de seu ateísmo, quando vão a Roma, não deixam de passar pelo Coliseu, para ver de perto o lugar onde aqueles valentes enfrentaram as feras para se manterem fiéis à religião católica apostólica romana.
Que palácio espiritual magnífico! Imenso e faustoso, é uma das matrizes de maravilha nesta terra.
Sua maior beleza aparece à noite, quando as sombras e trevas atenuam o prosaísmo das coisas modernas que o circundam, e o silêncio das altas horas envolve os ruídos cacofônicos da cidade que adormece. Em certo mo- mento, enquanto uma lua graciosa e amiga esparge suas aveludadas cintilações, ouve-se o demorado silvo de uma ave noturna, aninhada sob um dos arcos do Coliseu. Aquela espécie de brado nos faz lembrar o gemido dilacerante de um mártir, a derradeira prece lançada aos céus por uma alma a caminho da suprema imolação…
Contemplar aquele anfiteatro de tragédias e de heroísmos leva nossa imaginação a reproduzir um dos mais belos episódios de martírio que registra a hagiografia católica.
É noite na Roma dos Césares. Aqui e ali, as tochas que a iluminam vão se apagando. Pouco a pouco, esmorecem os barulhos das festas, extinguem-se conversas e risos. Na soberana metrópole do mundo, tudo é calma e tudo repouso. Despertos, em meio a densas trevas, ficam apenas os mártires do Coliseu, orando e se encorajando mutua- mente. Por vezes a noite é borrascosa, o tempo inóspito, tornando ainda mais horrorosa e dorida aquela vigília para a morte.
De súbito, ouve-se o bramido de uma fera ecoando pelos lúgubres porões do grande circo. Rugido de animal faminto, há dias privado de ali- mento para que mais encarniçado se atire sobre sua vítima, na hora do fatídico encontro. E o urro do tigre, do leão, da pantera ou da hiena repercute como um estremecimento de terror nos corpos dos católicos. Alguns choram, com medo de lhes faltar a coragem no momento decisivo. Suplicam a Deus, com toda a alma, forças superabundantes para não cometerem a pior das infidelidades, para não apostatarem da verdadeira religião de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sereno em meio a tanta apreensão, um dos cativos, já entrado na ancianidade, percorre as fileiras de prisioneiros, dirigindo a cada um palavras de ânimo e esperança. Certamente re- corda-se ele, nesse extremo de vida, daquela voz suave e paternal que – conforme reza a tradição – um dia, em sua remota infância, penetrou no mais íntimo de seu ser: “Deixai vir a Mim as criancinhas, pois delas é o Reino dos Céus”. Agora, imitando o Divino Redentor, promete àqueles ir- mãos de Fé a mesma bem-aventurança eterna.
Aos poucos vão se atenuando as trevas, e a claridade da manhã traz consigo o ponteiro que marca a hora do sangrento suplício. Os rugidos das feras tornam-se mais intensos e aterradores; as súplicas, mais prementes e fervorosas. Soam os clarins, anunciando a chegada do César. Abrem-se as prisões, e os mártires são conduzidos ao local da imolação. Ao vê-los, trôpegos e maltratados, o povo pagão que lota as arquibancadas do Coliseu explode em vaias e apupos.
Libertas de suas jaulas, as feras esfomeadas se precipitam sobre as carnes dos católicos. Exceto uma. Dando provas da autenticidade da Fé que professa, aquele velho cativo detém miraculosamente o leão que cresce para ele. Abre seus grandes braços e eleva aos céus uma extraordinária prece: “Senhor, assim como o trigo é esma- gado para se transformar na Sagrada Eucaristia, assim esta fera triture o meu corpo, por Vós, ó meu Deus!”
Só então, desvencilhado da misteriosa força que o retinha, o animal se atira sobre o mártir, despedaçando-o. O herói foi Santo Inácio de Antioquia, aquele que, quando menino, fora acariciado pelo Mestre Divino, recebendo d’Ele a pro- messa do Reino dos Céus.
E a noite recai uma vez mais sobre a grandiosa mole do Coliseu. As areias do circo pagão, embebidas de sangue católico, transformam-se de novo em campo arado e fértil, de onde germinarão muitos outros filhos da Esposa Mística de Cristo.