Idas a Santos
Durante as férias, todo mundo de São Paulo que tinha alguma representação ia para o litoral. Mais raramente, ia para uma fazenda. Em Santos, o ponto de reunião era o Hotel Parque Balneário, o melhor da cidade, e ali estive inúmeras vezes.
A Santos de outrora era muito diferente da Santos de hoje! Praias grandes, com gente pundonorosa, o mar que entra naquela baía de um tipo muito convencional e comum. Eu praticamente não conhecia outro tipo de mar.
Ali olfateava e olhava todas as belezas possíveis do mar, gostava até do cheiro da areia molhada e do cheiro de maresia que o mar trazia. Encantava-me ficar olhava para o mar que entrava em ordem dentro daqueles dois blocos de montanhas nas pontas da baía e depois aquele rumor, aquelas ondas, etc.
Praia deserta, o alarido do mundo moderno longe. E, de outro lado, a obra de Deus. Na praia, um menino que pensa… e sente a contradição daquele aspecto do mar, e do mar em si, com a vida agitada que vinha se desenvolvendo.
“Embriagado” de maravilhamento
Também costumava hospedar-me na casa de um tio. Em pequeno, quando estava nessa casa, às vezes levantava-me à noite e ia até o terraço, na esperança de que o sol já tivesse aparecido, para tentar ver o mar, que ficava a 300 ou 400 metros dali. Tal era a minha paixão de o ver!
Se o mar de Santos fica encerrado naquelas tenazes da baiazinha, em Guarujá vê-se o mar aberto. Lembro-me de quando o contemplei pela primeira vez.
Ia-se muito mais a Santos que a Guarujá. Mas um dia, para passear, meus parentes foram todos a Guarujá e me levaram. Descemos do trenzinho na estação, que não dava diretamente no mar, e fomos a pé, um quarteirão ou dois, até o hotel, que tinha nome francês, como tudo naquele tempo: “Grand Hôtel de la Plage”.
Ali senti o mar alto. Aquelas ondas grossas; depois, uns pássaros que quase tocavam com a asa na água; e areia a perder de vista. E, sobretudo, uma invasão da atmosfera marítima até dentro da sala de jantar do hotel. Essa sensação do mar alto me tocou tanto nessa primeira vez, que cheguei a ter alívio quando fui embora. Estava me tomando demais, eu estava embriagado com aquilo, e queria
sossegar de tanto maravilhamento. Vejo que sensações dessas a Providência vai pondo, na hora adequada, na vida de cada um, de acordo com um plano de sabedoria, e de acordo com a estrutura interna da psicologia do indivíduo. Tenho a impressão de que, sucessivamente, a graça ilumina no espírito um mundo de dados metafísicos.
Pequeno contemplativo à procura da sublimidade
Em Santos, eu saía sempre, sob a vigilante tutela da “Fraulein” (a governanta), com minha irmã e uma primazinha que era educada conosco. De manhã tínhamos o banho de mar e, à tarde, passeio pela praia.
No passeio vespertino, eu encontrava buraquinhos na praia. Metia o dedo nos furos e, em geral, saíam de dentro caramujos. Suas conchas eram de belezas variadas: algumas muito comuns, outras bonitas, uma ou outra linda. Eu gostava de abrir aqueles buraquinhos para ver se encontrava o caramujo de concha linda. Quando achava, levava para casa e guardava. Por quê? Porque era linda.
Às vezes, trazidas pelas águas, havia conchas de duas placas, com formato um pouco difícil de descrever. Não eram bonitas, eram comuns, mas, ao serem abertas, o lado de dentro se mostrava de um cor de rosa quase vermelho esmaltado. Quando encontrava uma delas, eu, que sempre gostei muito do vermelho, ficava encantado. Passava a mão pela parte esmaltada, mexia e fazia rutilar aquela cor à luz do sol. E a levava para casa. Por quê? Porque Nossa Senhora me fazia ver naquilo, de um modo implícito, uma maravilha pequena à altura de uma criança. Sem valor econômico nenhum, mas uma maravilha que me fazia perceber, de algum modo, algo do Céu. Eu imaginava que o Céu estivesse além da massa de ar azul que paira sobre nossas cabeças. Bastava furar essa capa azul para encontrá-lo. Quando um raio de sol batia sobre a concha, produzindo um bonito efeito, eu pensava que em algum lugar do Céu haveria uns vermelhidões mais bonitos do que esses, e como seria Deus, autor de todas essas coisas.
Eu deixava tudo para analisar a rutilância daquele vermelho, ou desta ou daquela outra coisa que o mar oferecia à minha contemplação, ou simplesmente para admirar as águas, com seu característico rumorejar, que me extasiava.
Um arrebatamento sempre renovado, porque aquilo era muito maior do que eu, de uma beleza maior do que as proporções que havia em meu espírito, enquanto capacidade de apreender. Eu me regalava de me encontrar com o que era superior a mim, de admirar, de me sentir pequeno e de dar glória a Deus, Criador de tudo aquilo.
A primeira tentação na praia
Quando eu tinha uns quatro ou cinco anos, deram-me uma roupa de um tecido fino, chamado palha de seda, que se usava folgada e era muito agradável ao tato.
Certa vez, eu estava vestido com ela na praia quase deserta de Santos, andando com duas ou três pessoas. O vento batia e entrava pela minha roupa, enchendo-a toda de ar. Isso me causava um grande bem-estar, que chegava a ser meio inebriante.
E senti que havia ali uma espécie de convite para um padrão, um modelo, um estilo de vida que era o contrário da atmosfera cerimoniosa com a qual estava habituado. A solicitação parecia dizer: “Por que não ser assim, como muitas pessoas que você conhece? Viver verdadeiramente é isso!”
Tive de fazer um esforço sobre mim, pois percebi que, se cedesse a esse convite, algo de minha integridade ficaria manchado, e eu começaria a ter atrações mais fortes por coisas mundanas.
Ato de virtude decisivo
Uma vez fui tomar banho de mar em Santos, bem longe do Parque Balneário. Umas irmãs de vovó haviam alugado uma casa em frente à praia. Vovó e mamãe também se hospedaram lá.
Era desses casarões antigos, com mobiliário improvisado, tudo arranjado mais ou menos. E um dos sabores da coisa estava nisto: um certo relax do “pulchrum”, tipo um gênero de férias dentro de uma semi-vulgaridade. Eu tinha uns sete ou oito anos.
Sempre sensível a matéria culinária, ouvi dizer que para a noite preparavam um risoto de siri. E eu me fazia uma ideia mítica desse prato, uma coisa veemente, e me propunha a comer uma tonelada daquilo.
Trocamos de roupa e fomos para o mar. Era tardinha e o mar estava muito temperado. O doce mar do Atlântico, diferente das ondas e dos vagalhões de mares que nos jogam contra as paredes. Muito pacífico, eu me regalava com aquele mar, aquelas ondas que vinham suaves. Eu tinha verdadeira loucura por banho de mar. Era louco pelo banho e louco pelo mar. A água que tocava no corpo inteiro me encantava. Sobretudo quando eu conseguia pegar uma onda antes de ela quebrar, deixar-me levantar pacificamente e abaixar de novo, parecia-me uma delícia.
Do mar, eu olhava a cidadezinha, via aquelas casas todas com as luzinhas que estavam se acendendo, e me dava a impressão de que em todas elas se preparava risoto de siri, e que, como eu, havia meninos dispostos a comer risoto de siri. E a vida me parecia uma coisa maravilhosa.
No meio daquilo tive uma tentação, que era a seguinte: “Eu tenho aqui absolutamente tudo quanto basta para uma felicidade perfeita. Se, dando-me conta disso agora, puser-me a haurir a alegria que tenho aqui, sinto-me perfeitamente feliz. E se a vida me der só isto, deu-me inteiramente tudo quanto quero dela. Sinto-me penetrado pela felicidade, pelo bem-estar, por tudo o mais”. Entrava como um componente do raciocínio a alegria da inocência. As louçanias da inocência é que faziam degustar o mar.
Comecei a notar esse pensamento produzindo-se em mim, e a haurir e a julgar, sem dar um consentimento inteiro. Em certo momento, percebi que se gostasse inteiramente daquilo, passaria a gostar só de coisas como aquelas. E que havia valores mais elevados, que eu não sabia ainda quais eram, mas até os quais deveria chegar, e que eu pecaria (notava isso confusamente) contra a boa ordem das coisas se renunciasse a eles. Era preciso escolher entre haurir aquela felicidade de momento, ou reprimi-la por fidelidade a algo de mais alto, que se apresentava a mim, naquele momento, mais como uma privação e sacrifício, do que como um prazer. Qual era o ponto mais alto? Eu percebia que em mim havia capacidade de ver mais do que eu estava vendo e de amar algo mais elevado. Eu não vinculava isso com Deus, mas era evidente que havia essa vinculação.
Qual foi o sofrimento que me foi pedido naquela hora, na água? O de privar-me da atração de querer só aquilo que estava ali, e que me dava a ilusão de que me bastaria. Então pensei: “Não, não pode ser! Tenho de me privar disso, e fazer coisas desagradáveis. Se eu ficar só no siri e no mar, gostosos como são, não aguento a expectativa do que me aguarda mais alto”. Tomei então uma medida interna pela qual dei uma freada desagradável na minha alma e passei um arranhão na alegria. Resolvi levar a vida inteira esse arranhão, para não sucumbir a essa totalidade de gáudio que tinha diante de mim.
Hoje percebo que, se tivesse cedido nesse momento, teria me tornado um desenfreado gozador da vida. Foi uma hora muito decisiva para mim. Agradeço a Nossa Senhora por ter resistido, porque depois várias vezes essa tentação se apresentou de outras formas, mas já vinha enfraquecida pelo arranhão.
No que consistiu o arranhão? Num ato de vontade que tornou desagradáveis para mim aquelas delícias. Eu o fiz, porque a graça me auxiliou. E a vida inteira me mantive nesta posição meio recusante das coisas em extremo agradáveis.
Outra tentação durante um banho de mar
Tive outra tentação muito tempo depois com uns 15 ou 16 anos no mar também.
Estávamos vários moços brincando dentro d’água, em frente ao Parque Balneário. Era um dia de sol muito bonito. Uma onda me submergiu e, não sei como, fui para o fundo. Cheguei a tocar com os pés no fundo do mar, e senti aquela areia sedosa, agradável. Conservei os olhos abertos e a cor da água me pareceu magnífica. Não senti nenhuma vontade de respirar.
Pensei o seguinte: “Aqui estou num pináculo de bem-estar total, num ambiente maravilhoso. Se eu me deixar ficar aqui” veio-me à mente meio confusamente -, “fico com isso para toda a eternidade. Se eu morrer afogado, de algum modo engulo tudo quanto está aqui e realizo um deleite perfeito que a vida não me dará. Não é melhor eu não expirar, mas segurar a respiração e deixar-me morrer?”
Mas veio-me logo ao espírito o seguinte: “O que você fará é uma coisa malfeita. Você sacrifica algo de muito mais alto e que vale muito mais do que o que você tem aqui”. E interveio logo a ideia religiosa: “Suicídio é pecado, você não pode consentir”. No mesmo instante, decidi: “Isso eu não posso fazer, deixe-me respirar”. Subi e a tentação tinha passado.
A renúncia aos banhos de mar
Lembro-me de que, andando pela praia, encontrava de vez em quando uns pedaços de uma pedra que parecia um granito meio rosado. Eu gostava debandadamente da cor que aquele granito teria se fosse inteiramente rosado. Vinha embrulhado numas tantas algas cheirando a mar. Tudo me levava impressões como esta: se meus compatriotas desistissem das vidas que levam e se metessem numa existência voltada para o mar, muito mais simples, mas contemplativa das delícias do mar, lucrariam muito mais do que com esses automóveis e com todo o resto!
A esse ponto chegava minha atração pelo mar. Sempre pelo manso mar do Brasil, o nosso pequeno mar. Por detrás dessas impressões vinha a ideia de que, em contato com as coisas do mar, tem-se um “plenum” de fruição a bem dizer metafísica. Mas essa fruição representava a desistência de uma coisa mais alta. Daí ter sido preciso riscar as delícias do mar.
Bom tempo depois, precisei muito obter uma graça. Fiz a Nossa Senhora a promessa de renunciar ao banho de mar, caso Ela me obtivesse. Obteve-me, e eu renunciei.