Como dádiva do próprio Deus, todas as épocas históricas viram surgir almas suscitadas pela Providência, chamadas a uma especial união com o Criador e à missão de indicar os rumos para a humanidade. É o que Dr. Plinio nos faz compreender, ao analisar a vida de Santa Hildegarda, mística e religiosa beneditina do século XII, contemporânea de São Bernardo de Claraval
Alguns dados biográficos sobre Santa Hildegarda de Bingen me impressionaram, não só por externarem a beleza de uma vida consagrada à virtude, como também pelos ensinamentos doutrinários que encerram.
Veremos que Santa Hildegarda, cuja existência transcorreu no século XII, tornou-se uma espécie de milagre contínuo e palpável. Tudo nela nos causa admiração, tendo sido incumbida, de modo particular, de transmitir uma profecia concernente a certa manifestação da Revolução que começava, e de outros aspectos desta até o fim dos séculos. Não seria, aliás, descabido afirmar que ditas revelações constituem mesmo uma elevada prova do que escrevemos em nosso ensaio “Revolução e Contra-Revolução”.
Simplicidade diante das visões sobrenaturais
As referidas notas biográficas são extraídas da famosa obra do Pe. Rohrbacher, “Vida dos Santos”:
Santa Hildegarda nasceu no condado de Spannheim, diocese de Mainz, no ano de 1098, de pais nobres e virtuosos. Com a idade de 8 anos, foi levada ao mosteiro de Diesenberg, ou do monte São Disodobe, e colocada sob a direção da bem-aventurada Jutta, ou Judite, irmã do conde de Spannheim.
Ela teve, portanto, uma bem-aventurada para formá-la, desde os 8 anos de idade.
Hoje, muitos se opõem à existência de seminários para menores e também ao fato de se admitir crianças, embora sem votos, nas ordens religiosas. Santa Hildegarda, porém, floresceu maravilhosamente junto às beneditinas, instituição na qual ingressou em tão tenra idade.
Dos 8 aos 15 anos, teve muitas visões sobrenaturais, delas falando com simplicidade às companheiras, que ficavam maravilhadas, assim como todos os que disso tinham conhecimento. Certa de que as outras pessoas eram favorecidas pelas mesmas visões, comentava-as com naturalidade e simplicidade, o que já é uma prova da autenticidade desses fenômenos místicos. Indagavam qual poderia ser a origem de tais visões.
A própria Hildegarda observou, surpresa, que, enquanto via interiormente sua alma, ao mesmo tempo enxergava as coisas exteriores com os olhos do corpo, como de costume, o que jamais ouvira dizer houvesse acontecido a qualquer pessoa.
Ou seja, ela se achava por exemplo numa sala, em conversa com alguns conhecidos e, enquanto falava com eles, tinha visões extraordinárias. Era, portanto, uma grande mística. Desde, então, atemorizada, não ousou mais entreter-se com pessoa alguma sobre sua luz interior. Contudo, muitas vezes em suas conversas se referia a coisas ainda por acontecer e que pareciam estranhas aos ouvidos dos circunstantes. (…) Este estado de intuição sobrenatural perdurou durante toda sua vida
Ela previa o futuro, e os fatos posteriores confirmavam os seus vaticínios.
Escreve as revelações e é curada miraculosamente
Tinha 40 anos, quando ouviu uma voz do céu ordenar-lhe que escrevesse tudo quanto visse. Resistiu durante muito tempo, não por obstinação, mas por humildade e desconfiança. Aos 42 anos e 6 meses, viu o céu se abrir e uma chama muito luminosa penetrou-lhe na cabeça, no coração e em todo o seu peito, sem queimá-la, mas aquecendo-a suavemente. Trata-se, evidentemente, de uma manifestação do Espírito Santo.
Nesse momento, ela recebeu o dom de compreender os Salmos, os Evangelhos e os outros livros do Antigo e do Novo Testamento, de maneira a poder elucidar o sentido das palavras, embora não conseguisse explicá-las gramaticalmente, pois não conhecia o latim nem a gramática.
Sabe-se que, naquele tempo, a Bíblia era quase sempre divulgada em latim. Embora não entendesse o significado das palavras, Santa Hildegarda conseguia explicar o conteúdo dos textos sagrados. Fato que constitui um milagre dos mais assinalados, e também contínuo, palpável. Era um fenômeno manifestado exteriormente, e qualquer um podia constatá-lo.
Como perseverasse em recusar-se a escrever, mais por temor do que desobediência, caiu doente. Enfim, confiou sua preocupação a uma religiosa, sua diretora e, por intermédio dela, ao prior da congregação. Depois de aconselhar-se com os membros mais sábios da comunidade e interrogar Hildegarda, o prior ordenou-lhe que escrevesse, o que ela fez pela primeira vez. Imediatamente se viu curada e levantou-se da cama. É, portanto, outro fato extraordinário.
Aprovação e louvores do Papa Eugênio III
Passamos, agora, da história dela para a das revelações que escreveu. Estas eram garantidas por milagres, dos quais o mais recente havia sido o restabelecimento de sua saúde. Doravante, veremos que as revelações terão uma vida própria, diferente da existência dela. E essa história é realmente admirável.
Tal cura pareceu tão milagrosa ao prior, que este foi a Mainz relatar o que sabia ao Arcebispo e às mais altas figuras do clero, mostrando-lhes os escritos de Hildegarda.
Isso deu motivo a que o Arcebispo consultasse o Papa.
Desejando Eugênio III estar ao par daquele prodígio, enviou ao mosteiro de Hildegarda o Bispo de Verdun, Alberon. Hildegarda respondeu com muita singeleza às perguntas que lhe foram feitas. Tendo o Bispo apresentado seu relatório ao Papa, este mandou que lhe trouxessem os escritos de Hildegarda e, tomando-os nas mãos, leu-os em voz alta…
Percebe-se que o relatório foi favorável e por isso o Pontífice julgou oportuno tomar conhecimento direto dos escritos. Em seguida, uma cena que merecia ser representada numa iluminura ou pintada sobre esmalte:
Leu-os em voz alta na presença do Arcebispo de Mainz, dos cardeais e de todo o clero.
Pode-se imaginar uma sala da Idade Média, com aqueles tronos e assentos feitos de alvenaria, ligados às paredes, nos quais se instalavam esses dignitários eclesiásticos, todos eretos. Nesse ambiente repassado de elevação e seriedade, o Papa começa então a dar leitura das revelações de Santa Hildegarda. É uma cena de um colorido e um pitoresco especiais.
Também contou tudo o que lhe fora relatado pelos emissários por ele enviados, e todos os assistentes renderam graças a Deus.
Imagine-se a beleza do episódio, os presentes exclamando: “Oh! Graças a Deus! Bem haja nosso Redentor! Louvada seja Maria Santíssima! De fato, é tudo magnífico!”, etc. Um coro de louvores.
“Vigilância!” — o conselho de São Bernardo
E havia melhor: São Bernardo lá se encontrava. O que mais acrescentar? Nessa assembleia se ergue a voz possante, sagrada e melíflua do grande Abade de Claraval. É m fato tão impressionante que até nos causa arrepio. Estando ele ali, tudo se ilumina e se transfigura.
São Bernardo estava presente e também deu testemunho do que sabia sobre a santa mulher, porque a visitara quando viajara para Frankfurt.
Como veremos adiante, o Papa Eugênio III escreveu uma carta a Santa Hildegarda, devido à boa impressão que São Bernardo dela tivera na mencionada visita. O que continha essa missiva? Poder-se-ia conjeturar que o Pontífice apenas lhe teceu louvores… Mas, como era orientado por São Bernardo, o Papa, além de felicitá-la pela graça recebida, exortou-a a permanecer fiel a esse dom divino.
Quer dizer, diante de uma grande santa, tem-se primeiro um movimento de admiração. Mas, depois, de temor, considerando que esta Terra é um vale de lágrimas e o risco do pecado não abandona nenhum homem, exceto se confirmado em graça. Daí as perguntas: “Isto durará? Uma maravilha dessas não pode cair?”
O insigne lutador que foi São Bernardo, ele próprio um Santo magnífico e modelo da virtude da vigilância, compreendia os abismos que há potencialmente — embora de modo não consentido — na alma de qualquer um, até na dos que alcançaram alto grau de santidade. Donde a preocupação dele, e do Papa, em dirigir essas palavras a Santa Hildegarda.
São Bernardo pediu pois ao Papa, no que foi secundado por todos os presentes, que divulgasse tão grande graça concedida por Deus à Igreja durante o seu pontificado, e a confirmasse com sua autoridade.
O Papa seguiu o conselho e escreveu a Hildegarda, recomendando-lhe que conservasse, por humildade, a graça por ela recebida…
Ou seja, o Sumo Pontífice diz a Santa Hildegarda: “Olhe, você está indo muito bem, mas não derrape. Depois trataremos de outras questões”. Desta forma foi objetivo e direto, como corresponde à ordem real das coisas nesta terra de exílio.
…e relatasse com prudência tudo quanto lhe fosse revelado por intermédio do Espírito Santo.
Em outros termos: “Conte as revelações que recebeu, mas tenha medo de tanta grandeza, porque ela pode precipitá-la no inferno”.
Prevendo o início e os desdobramentos da Revolução
A santa relatou ao papa Eugênio, em carta bastante longa, tudo quanto ouvira da voz celeste, relativamente ao pontífice. Anunciava uma época difícil, cujos primeiros sinais já se manifestavam. Como se verá, essa época difícil que ela previa e cujos primeiros sinais já se manifestavam, era o início da Revolução.
“Os vales se queixam das montanhas, as montanhas tombam sobre os vales…”
Os vales são a parte inferior da sociedade
“…porque os súditos não mais sentem temor de Deus. Estão um tanto impacientes por subir como que ao cume das montanhas para incriminar os prelados, em vez de acusarem os próprios pecados.”
Deve-se notar que o termo “prelado”, na linguagem medieval, refere-se aos primeiros, não só na ordem eclesiástica, mas também na temporal. São Tomás de Aquino mais de uma vez fala de prelados espirituais e temporais, como sendo os principais da Igreja e do Estado. Então, os inferiores tinham inveja dos que ocupavam posição mais alta, e acusavam os pecados destes, sem se corrigirem das suas próprias faltas. Quando a pessoa não se emenda, torna-se fácil para ela dizer que o outro é um sem-vergonha, enquanto ela mesma é apenas “sem-vergonhote”…
“Os vales dizem: ‘Sou mais adequado do que eles para superior’. Denigrem, por inveja, tudo quanto os superiores fazem”.
Convém lembrar aqui o que afirmamos em “Revolução e Contra-Revolução”, a respeito do orgulho, aplicável igualmente ao vício da inveja: o orgulhoso odeia seu superior, e pode chegar ao ódio à superioridade enquanto tal. Para ele, o bem é a igualdade completa.
“Assemelham-se os vales a um insensato que, em vez de limpar suas roupas sujas, nada mais faz senão observar de que cor é o traje do próximo.”
Quer dizer, o invejoso proclama, por exemplo, que o conde ou o cônego são ruins, mas a sua alma está em pecado mortal. De que adianta essa censura ao defeito alheio?
“As próprias montanhas, isto é, os prelados…”
Portanto, os nobres, os clérigos e, em rigor, também a alta burguesia.
“…em lugar de se elevarem continuamente às comunicações íntimas com Deus, a fim de cada vez mais se transformarem na luz do mundo, descuidam-se e se obscurecem.”
Nessa passagem aparece uma linda noção sobre o papel da nobreza e do clero: ter comunicações contínuas com Deus para se iluminarem cada vez mais com o esplendor divino, para efeito, quer espiritual, quer temporal. Dessa forma, serão como a luz posta no alto da montanha, a iluminar o mundo inteiro. Como eles não seguiram esse chamado, mas relaxaram no trato com Deus, foram se obscurecendo. Não espargiram mais a luz que deveriam, causando assim a sombra e a perturbação que reinava nas ordens inferiores.
Então, setores da plebe não prestavam, mas o ponto de partida dessa decadência foi a atitude de membros da nobreza e do clero que se deixaram tomar pela tibieza. Num justo e majestoso castigo, as partes mais baixas da sociedade, cheias de inveja, investem para derrubar aqueles superiores.
Como essa disposição das coisas nos parece lógica, grandiosa, e como demonstra toda a economia da Providência através da História!
Por outro lado, vamos assim compreendendo quem era Santa Hildegarda, objeto dessas visões e profecias.
Avisos para o próprio Papa
Ela continua, dirigindo-se ao Pontífice:
“E porque vós, grande pastor e Vigário de Cristo, deveis buscar a luz para as montanhas e conter os vales…”
Note-se a tarefa curiosa do Papa. Quanto às montanhas, buscar a luz; em relação aos vales, conter. Dizer aos revoltados que precisam obedecer, e às autoridades, que têm de se voltar para a luz.
“Dai preceitos aos senhores e disciplina aos súditos. O soberano Juiz vos recomenda que condeneis e afasteis de junto de vós os tiranos importunos e ímpios, no temor de que, para vossa confusão, eles se imiscuam na vossa sociedade”.
Provavelmente, o Papa podia assim acabar favorecendo algumas pessoas que tiranizavam o povo. Ora, ele havia sido monge cisterciense, como São Bernardo, e este então lhe escreveu a obra “De Consideratione”, na qual traçava o perfil de virtude que um autêntico Sucessor de Pedro deveria ter. Eugênio III seguiu os conselhos do Santo, levando uma vida tão exemplar que a Igreja o proclamou bem-aventurado.
“Sede compassivo para com as desgraças públicas e particulares, pois Deus não desdenha as chagas e as dores daqueles que O temem.”
A santa, [que se tornara] abadessa, fazia predições e dava apropriados conselhos aos bispos e aos barões, que de toda parte lhe escreviam e a consultavam. Ela foi entre as mulheres o que São Bernardo fora entre os homens. Teve inúmeras revelações sobre as obras de Deus desde a criação do mundo até a derrota do Anticristo.
Morreu em 17 de setembro de 1179, na noite de domingo para segunda-feira, com a idade de 80 anos. A Igreja festeja a santa no dia de sua morte.
Por esses breves traços biográficos nos é dado ver, portanto, que Santa Hildegarda, nimbada de contínuos e indiscutíveis milagres, foi também uma figura profética, tendo apontado o começo, o âmago e os desdobramentos da Revolução ao longo dos séculos. E como todos os heróis da Fé elevados à honra dos altares, é digna de nossa admiração e devoção.
Plinio Corrêa de Oliveira