Continuando suas clarividentes explicitações sobre a sociedade orgânica, Dr. Plinio mostra que os habitantes de uma cidade, animados pelo espírito católico, devem sempre procurar as coisas mais elevadas, o maravilhoso, o sublime. Do contrário, a cidade vai decaindo e acaba chegando à estagnação.
Todo regionalismo vive em torno de uma tradição que se aprofunda. Ao invés de o progresso se dar no sentido de adquirir elementos novos, realiza-se na aquisição de aprofundamentos novos, e então ocorre uma espécie de enclausuramento nos tradicionalismos ou nos regionalismos, por onde os regionalistas são tradicionais e os tradicionalistas são regionais. Isso provém da íntima ligação do espírito tradicional com as profundidades inesgotáveis, que jazem numa determinada região.
Um palácio de antigos reis transformado em Palácio de Justiça
Então, destruir uma região é desviar a atenção de suas profundidades para novidades que ficam borboleteando no noticiário. E, pelo contrário, vivificar uma região é fazê-la viver das novas conquistas que o aprofundamento proporciona. Esse dado me parece indispensável para formarmos uma noção exata de um verdadeiro regionalismo.
É importante notar o seguinte: por vezes, o tradicionalismo chega a um ponto de estancamento em que, por falta de novos aprofundamentos, ele não anda mais, fica estagnado, sem fecundidade, pitoresco, mas embolorado e malcheiroso como pode suceder com certos arquivos. Entretanto, isso nunca acontece ao verdadeiro tradicionalismo.
O que ocorre quando um tradicionalismo estagna?
Senti muito esse problema vendo uma fotografia de um pequeno palácio com as proporções de uma casa de família muito confortável, provido de certa seriedade, certo donaire. A legenda da foto indicava tratar-se do palácio dos antigos reis de um daqueles pequenos reinos — menores do que Aragão, Castela, etc., que a Espanha teve em certo momento —, hoje transformado em Palácio da Justiça. E refleti sobre o caso.
Por um lado, para o prédio não ficar abandonado ou tornar-se um museu, é melhor que ali figure o Palácio da Justiça. Mas constitui certa decadência uma construção, outrora habitação de reis, ser transformada em Palácio da Justiça, com o cotidiano próprio a uma repartição como essa. Por exemplo, as partes que entram para se querelar sobre as causazinhas locais: um pato que fugiu do quintal de um e entrou para o do outro; então, a quem pertence o pato? Os dez ou quinze metros de profundidade existentes no quintal são propriedade de quem? E o galinheiro que ali está, a quem pertence, então? Assuntos como esses são discutidos nas salas onde viveu uma pequena corte, e reinaram os pequenos reis daquele lugar.
Causa certa tristeza imaginar os primeiros dias da época em que essa cidadezinha não foi mais habitada pelos seus antigos reis, porque ela deixou de ser a capital do reino. Então, houve a alegria dos medíocres, pois, tendo ido embora o rei, a vida se tornou mais acomodada e banal.
Depois, aquela vida banal se perpetuou e a tradição transformou-se em paralisia.
A estagnação abriu as portas ao progresso descontrolado
Em seguida, entra o progresso… Por exemplo, em frente daqueles antigos palácios, transformados em repartições públicas, instalam-se um ponto de ônibus, uma bomba de gasolina e um bar com anúncio iluminado a gás neon.
O palácio dos reis continua e nele todo mundo vai discutir os frangos, os patos e os fundos de quintal. Entretanto, alguma coisa correu errada ali…
O fenômeno da estagnação é o mesmo em diversas manifestações da vida. Mas o que vem a ser a estagnação? Do que ela decorre? A que males ela conduz? Até que ponto ela é o grande argumento dos inimigos da tradição?
Parece-me ser esse um ponto muito importante dentro do assunto da sociedade orgânica, pois, mais ou menos por toda parte, o progresso descontrolado entrou porque a estagnação lhe abriu as portas.
Quando se estuda o século XIX — por excelência o período em que os progressos entraram: eletricidade, bonde, ônibus, trem, enfim todas as novidades foram muito mais do século XIX do que do XX —, nota-se uma estagnação em diversas áreas, e os povos se voltam deslumbrados para essas novidades, pois a estagnação lhes tinha fechado todos os horizontes.
Então, os partidários da tradição começam a escrever revistinhas, lembrando como tal coisa era pitoresca, tal outra era bonita. Ou fazendo uma polêmica: como se deve escrever tal palavra típica da região: com K ou com C? Nascem, então, os pequenos eruditos locais que são verdadeiros vermes devoradores de papel: “O Rei tal escreveu, em sua carta de tanto, tal coisa assim; mas tal Juiz, que era um luminar e redigiu um livro de Direito, traduzido na Universidade de Compostela, refutou de tal jeito…” E faz-se uma erudiçãozinha local, que ainda agrava o peso da estagnação. Uma espécie de necrologia.
Em geral, quando vem ao espírito esse problema da estagnação, ele se associa à ideia de um lugar pequeno no qual tudo ficou imóvel. Não obstante, essa situação pode exercer um poder de atração extraordinário.
Prêmio Nobel para um indivíduo de uma cidadezinha
Li certa vez, em uma revista francesa, o caso de uma família que vivia numa cidade bem pequena da França. Todas as noites, terminado o jantar, o pai, a mãe e o filho iam a uma confeitaria, em frente à casa deles. Embora o filho já fosse homem feito e os pais bem idosos, ainda saíam juntos, como no tempo em que ele era menino. O filho era um solteirão que passava o dia estudando, não fazia outra coisa.
Nessa confeitaria tomavam sempre as mesmas bebidas, puxavam um jogo de dominós, que ficava junto à mesa desde tempos imemoriais.
Certo dia estoura a notícia que deixou todo mundo da cidadezinha pasmo e entusiasmado.
Esse homem, que jogava dominó com os pais, passara a vida inteira estudando, sem que ninguém lhe perguntasse qual o tema dos estudos. De repente, ele recebe uma carta da comissão Nobel comunicando-lhe que, devido a um trabalho fantástico por ele realizado, receberia o Prêmio Nobel. Nessa ocasião, ele seria convidado pelo Rei para um jantar de gala no palácio, junto com sua família.
Aquilo produziu um movimento extraordinário na cidadezinha. O homem viajou para a Suécia e, no mesmo dia em que voltou para o lugarejo onde morava, foi com seus pais jogar dominó na confeitaria.
É um sintoma característico de estagnação com aquilo que ela tem de simpático, pois são costumes preservados, nos quais se nota certa candura aprazível. Isso também revela uma seriedade de afeto entre ele e seus pais, uma serenidade de vida, um desapego de uma porção de coisas que o mundanismo oferece.
Mas, de outro lado, é de assustar! Toda noite, durante uma vida inteira, jogar dominó com o pai e a mãe, sem ninguém de fora na roda!
Não se pode afirmar que, neste caso, a estagnação conservou alguma fecundidade que permitiu ao homem aquela invenção. O Prêmio Nobel foi proporcionado pela cidade, na medida em que esta evitava uma série de obstáculos que a vida moderna põe para a produção; mas a descoberta não foi, nem um pouco, inspirada pela vida local, nem trazia benefícios para esta. A cidade continuava inteiramente estagnada.
A vida popular na Idade Média
Devem existir centenas de coisas dessas, mais ou menos em todos os países da Europa.
Contudo, sempre levados pela ideia de a estagnação ser um fenômeno de pequenos lugares, nosso espírito se volta para a Ásia, África, Austrália para ver se encontra alguma coisa parecida com essa estagnação.
É evidente que nesses continentes há um mundo de aldeias. Porém, não se ouve falar de um lugar pequeno que seja célebre pelo seu pitoresco, e a respeito do qual se poderia fazer um conjunto como, por exemplo, a “Exposição do pueblo español”, em Barcelona.
Por quê? Pela simples razão de que não se constituíram aldeias nas quais houvesse um regionalismo no sentido do existente na Europa, ou seja, um local com suas características próprias, vivas, e que em determinado momento progrediu e formou um ambiente de vida distinto dos outros: quase se diria uma civilizaçãozinha.
Então, chegamos à conclusão de que a Europa, em determinado momento, teve um enorme florescimento de pequenas unidades que vicejaram extraordinariamente, e isso não se encontra em nenhuma outra zona do mundo, sendo um fenômeno de vitalidade europeia, medieval, e com a característica curiosa de ser, não exclusiva, mas preponderantemente popular.
Portanto, mais do que todas as declamações do enciclopedismo, do iluminismo sobre os direitos dos pobres, o que comunicou à vida popular uma chama, por onde cada local poderia ser uma lamparina acesa, foi a Idade Média. Não se poderia fazer coisa mais importante para o povo do que dar-lhe elementos pelos quais ele fosse capaz de gerar isso. Em vez de viver obscuramente e sem originalidade à sombra dos ricos, fazer ele mesmo, seu mundinho e sua civilização.
Em Roma e na Grécia, o povo era considerado uma ralé
Uma vez mais os incito a pensarem nesse assunto. Isso não existiu nem sequer entre os romanos ou gregos. Quem ouviu falar de uma aldeia clássica, grega, do mundo helênico, ou do mundo romano? Na cultura clássica, alguém se ocupou de aldeias, da arte popular? O povo era uma ralé anônima, no pior sentido da palavra, porque não tinha personalidade. Roma era Roma por causa de uma elite de patrícios, no começo, e de aventureiros depois, no tempo do Império, com certas características. Mas o povo não tinha nada.
Trata-se de saber qual a origem desse fenômeno na Idade Média e, tendo-a localizado, procurar estudar a estagnação.
A única força atuante, no mundo no período originário da Idade Média, era a Igreja, porque todas as outras forças do antigo Império Romano ruíram, dando lugar à barbárie, em luta contra a Igreja Católica. A barbárie, de si mesma, não tinha a intenção de combater a Igreja, mas era completamente plasmada e formada de um modo oposto ao da Igreja. E, portanto, formavam-se entrechoques, a Igreja era obrigada a dizer para tal guerreiro, tal rei ou rainha bárbara quais eram os deveres de cada um e, por vezes, eles não gostavam de cumprir.
Como surgiu o feudalismo
Tomemos a origem do feudalismo, como é narrada pela maioria dos historiadores. Em propriedades agrícolas os habitantes, atacados por hordas de invasores, recorrem ao proprietário da região, que é o chefe natural, para se defenderem. Esse proprietário se dispõe a acolhê-los nas suas próprias terras e se defender junto com eles. Então eles mesmos pensam em construir uma muralha, e com o tempo sofisticam as suas formas para resistir melhor à agressão. Depois, edificam no recinto da muralha a torre de ménage, para poder ver mais longe o inimigo, e, posteriormente, residências de refúgio para a população quando o agressor ataca.
Torna-se um sistema pelo qual o proprietário se transforma em autoridade. Todos dependem dele, e um direito público se constitui. O mesmo se passa em inúmeras propriedades, sob a pressão das mesmas circunstâncias. Surgem os castelos, nasce o feudalismo. Tudo parece tão lógico!
Mas eu pergunto se os proprietários de hoje, querendo se opor a eventuais invasões, fariam uma resistência da qual surgiria o feudalismo. Creio que não, por faltar aquele espírito católico que caracterizava os medievais. Estes eram tão católicos que punham sempre uma capela na praça central do castelo, rezavam quando o inimigo chegava, enquanto este os sitiava, e davam graças quando o expulsava. Com isso o espírito religioso ia crescendo, a virtude aumentando também, resultando daí uma expansão religiosa.
Procurar sempre o mais elevado
Resta, então, uma pergunta: como do espírito católico pode dimanar o regionalismo e o feudalismo?
Por meio de sua doutrina, evidentemente baseada na Revelação; a Igreja põe diante de nossos olhos ideais imensos, uma noção do Céu que nos dá o desejo de uma perfeição e de um tipo de vida verdadeiramente maravilhosos, extraordinários. E que faz a alma ter o anseio do admirável, do magnífico e até do sobrenatural.
Ora, o normal é que esse desejo da sublimidade e do maravilhoso repercuta na vida terrena, levando as pessoas a espelhá-lo no seu cotidiano, não se conformando com a banalidade e a vulgaridade.
Disso não decorre o desejo de cada um fazer um palácio, mas sim de ornar com verdadeira arte, beleza e bom gosto o pequeno mundo em que está.
De onde decorre algo que o mundo pré-medieval não conheceu: a necessidade de ir sempre mais alto na ordem espiritual e, consequentemente, também na temporal. Um desejo de altura mais ou menos incomensurável, que fazia darem-se, por exemplo, coisas como esta: camponeses suíços, para ocupar suas noites de inverno, passavam longas horas conversando e, ao mesmo tempo, trabalhando a título de distração. Produziam, assim, esculturas de madeira para ornar a própria matriz. Por isso encontra-se, em certas igrejas da Suíça, uma magnífica exuberância de ornamentação oriunda do trabalho popular, artesanal.
Há nisso uma espécie de desejo de subir, de melhorar, sem sair necessariamente de sua classe, mas ornando e aprimorando as suas próprias condições de existência, que é muito expressiva de uma vida local, original, profundamente modelada de acordo com as circunstâncias, e que forma propriamente o que se chama “povo” numa sociedade orgânica, que a meu ver é muito diferente do que se denomina “povo”, por exemplo, em qualquer grande cidade moderna. O povo assim movido por esse desejo da perfeição, do maravilhoso, do sublime, era a expressão mais direta da vida espiritual fervorosa.
Febricitação das grandes cidades
Nota-se nisso uma forma de vitalidade religiosa, um desejo, ainda que subconsciente, do Céu Empíreo, o qual tem como consequência que a alma não se contenta em jogar dominó toda noite, não se satisfaz com a estagnação, mas quer subir, tende, de um jeito ou de outro, para a santidade e vive na grande admiração dos Santos.
À medida que as gerações foram passando, o culto aos Santos continuou, mas a admiração por eles foi, paradoxalmente, diminuindo. O Santo deixou de ser um personagem da família, para se tornar uma pessoa na qual se pensa quando se vai à igreja, e com a qual temos relações quando precisamos de favores. Já não é mais o que era o Santo antigamente, diante de cuja imagem a família rezava unida em casa, e cujo nome era dado a vários filhos, e sua vida era conhecida por todos os membros da família, servindo de ponto de referência. O Santo era um personagem da família.
Compreende-se, assim, o processo de estagnação. Acaba a Idade Média, o impulso de ascensão diminui e termina dando lugar a um esforço penoso, para evitar a decadência. Torna-se um sacrifício meditar em Deus, nos seus Anjos, nos seus Santos. O Céu não é mais um atrativo. Com isso, o progresso verdadeiro fica cortado no seu único nervo vital.
Notamos essa estagnação nas aldeiazinhas, porém não nas grandes cidades, porque estas foram invadidas pelo progresso promotor de uma vitalidade falsa, em que a estagnação foi substituída pela febricitação, pelas neuroses, pelas psicoses. Por isso, a estagnação, vista de dentro da cidade moderna, fica até simpática.
Entretanto, a cidadezinha do interior, que vai se modernizando, acaba tornando-se uma gota sem graça da grande cidade, ou uma pequena aldeia estagnada, sem vida, mantendo ainda algumas virtudes do passado, mas também estas sem vitalidade. Em certo momento, uma parte das gerações novas rompe com aquilo. E não adianta o bom vigário pregar contra isso, porque não há o que segure esse resultado da estagnação que devora o lugar, abrindo as portas a um progresso sem tradição, sem passado.
A piedade não é um meio, mas um fim
Temos, então, dois pontos extremos e opostos: de um lado, esse progresso que rompe com a tradição; de outro, o aprofundamento tranquilo das próprias originalidades e regionalidades, movido pelo desejo do sublime.
Creio que aqui tocamos o fundo da vida da sociedade orgânica.
A meu ver, as pessoas que constituíram uma sociedade orgânica não quiseram explicitamente fazer isso. É algo muito mais profundo, como em geral é o fervor religioso, que vem de um efervescer interior de amor, de dedicação, que não passa pelos alambiques de um raciocínio, mas explode diretamente como uma garrafa de champanhe.
Como esse fervor morreu, somos obrigados a acentuar muito o lado racional, mas em condições normais, em que toda a sociedade é movida pelo mesmo impulso rumo à perfeição, essas coisas nascem subconscientemente.
O amor de Deus, a união com Ele, com seus Anjos, seus Santos na vida espiritual, a piedade podem, pela graça divina obtida por meio de Nossa Senhora, se tornar tão extraordinários que deem na era descrita por São Luís Grignion de Montfort, o Reino de Maria, e cuja grande característica é um impulso para o sublime essencialmente sobrenatural.
Um indivíduo que quisesse ser piedoso para ter uma sociedade orgânica, não seria piedoso e não faria a sociedade orgânica. A piedade não é um meio, mas um fim. Se ela deixa de ser o fim da sociedade orgânica, esta morre. É preciso nascer do desinteressado amor a Deus, a seus Anjos e Santos, à sua Igreja, portanto, à Fé e à Moral da Igreja. A partir disso, o resto floresce. v
Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 20/8/1991)
Revista Dr Plinio 201 (Dezembro de 2014)