Zelo pelo esplendor da Liturgia

São Francisco Solano era muito zeloso da Sagrada Liturgia, e por causa disso tinha um empenho enorme em que os frades aprendessem bem todas as rubricas e o cantochão, para dar todo o esplendor possível aos Santos Mistérios. Não obstante, ele cantava e tocava canções populares para agradar o povo.

Esses contrastes harmônicos me  maravilham: para agradar o povo, canta canções religiosas populares; mas é um espírito elevadíssimo que compreende a superior beleza da Liturgia, com todo o pensamento teológico, toda a piedade, todo o sobrenatural que nela existe, e também a arte litúrgica para o esplendor da Liturgia.

São Francisco Solano era, portanto, uma dessas almas largas, abertas, capazes de se entusiasmar pelos opostos não contraditórios, mas extremos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1974)

Ponto de partida da Civilização Cristã

Um jovem de família nobre abandonou tudo para viver na solidão, numa gruta entre montanhas agrestes. Toda a natureza fazia eco aos seus ideais, e cada vez que ele dava um passo ascendente no caminho da fidelidade, os Anjos cantavam e os demônios rugiam. Esse foi São Bento, árvore da qual brotaram todas as sementes que se espalharam pela Europa, dando origem à Cristandade ocidental.

 

Subíaco foi o ponto de partida da Civilização Cristã, tomando em consideração a Cristandade na Europa Ocidental. Não me refiro, portanto, a Bizâncio e àquela parte do  Oriente, nem ao Norte da África, mas sim à parte da Cristandade que depois viria a se desenvolver mais, e da qual nasceriam a América e todas as expansões católicas pelo mundo.

“Eu me dou por inteiro”

Tudo estava na seguinte situação: os bárbaros tinham ocupado todo o Império Romano e havia restos de civilização romana; ao lado disso, pagãos e bárbaros em grande quantidade, formando um caos do qual era preciso que emergisse uma coisa diferente.

A Igreja estava trabalhando empenhadamente nisso, e agindo como ela o faz. A Igreja não trabalha sempre à raiz de grandes homens, mas sempre à raiz da graça. O grande  homem às vezes aparece, e quando ele é grande santo, humilde, casto, sai alguma coisa que preste. Então, na base da conjunção de todos esses fatores a Igreja ia fazendo o  seu dever, pregando, ensinando a cada um nas paróquias, nas dioceses, segundo a ordenação posta por Nosso Senhor Jesus Cristo, e que ela mesma, orientada pelo Espírito  Santo, ia completando, acomodando as circunstâncias, etc. Nisso tudo a Igreja, dia a dia, ia fazendo penetrar a graça nas almas que quisessem recebê-la. E muitas dessas  almas recebiam essas graças. E as acolhiam melhor do que se recebe a graça hoje em dia.

Mas poder-se-ia dizer que nessa situação em que a graça soprava por todos os lados e abria algumas flores de cá, de lá e de acolá, algo estava por acontecer de muito grande e  e muito bonito como desfecho desta semeadura semi bem recebida por toda parte. E o desfecho é exatamente o fato de que um jovem, de família senatorial, quer dizer,  família nobre, patrícia, São Bento, com um imenso chamado divino para a obra especial dele, resolveu dar-se totalmente. A graça lhe disse: “Meu filho, eu o quero e o quero  inteiro. Você se dá inteiro?” E ele respondeu: “Sim, eu me dou por inteiro”.

Mas para dar-se por inteiro a experiência mostrava que ele não poderia ficar naquele misto de barbárie e de cultura romana decadente, em que se encontrava a Europa. Ele então se retirou para um local a fim de ali morar só. E por quê? Para ser santo. São Bento provavelmente não notava que ele era a árvore da qual brotariam todas as  sementes a serem espalhadas pela Europa. Esse é o fato beneditino. E ele foi só, a fim de ser só de Deus e de Nossa Senhora, para um lugar completamente ermo, onde não  houvesse nada que perturbasse a inteira entrega dele a Nosso Senhor, e ali entregar-se à devoção, à meditação, à penitência, para que a graça tomasse cada vez mais conta da pessoa dele.

Através de São Bento, Deus tomou inteiramente conta da Europa

Nós o podemos imaginar jovem – como consta que ele era –, de boa apresentação, bem dotado, com os predicados de uma família senatorial, despreocupado de tudo isso, não pensando nos seus dotes nem como seria comovedor naquela gruta, ou naquele castelo de grutas, ou silvestre palácio de grutas em que ele se embrenhou, onde cada   gruta dava abertura para outra como em um palácio um salão dá acesso para outro. Não estava pensando como era comovente ver o isolamento  de um jovem da figura, dos antecedentes dele, com as possibilidades dele, renunciando a tudo e entregando-se a Deus. Porque não pensava em si, mas em Deus.

Naquela solidão, ele começava, portanto, a vida de virtude que faria da sua alma o elemento modelador de toda uma família religiosa, que se prolonga até hoje e se  prolongará até não sei quando. Eu tenho a vaga ideia de ter lido que a Ordem beneditina tem mais de dois mil santos canonizados. Isso sem falar de outras Ordens religiosas que são beneditinas na origem, mas tomam a regra de São Bento e dão outras acomodações, interpretações, são outras vocações dentro da Ordem beneditina: trapistas, cistercienses, olivetanos e outros ramos ainda.

São Bento cuidava apenas de se dar inteiramente a Deus. O Criador tomava conta inteiramente dele, para através dele tomar completamente conta da Europa.

Mas é preciso notar o seguinte: nesta situação, entregue a essa solidão extraordinária, ele recebia comida de um outro anacoreta que vivia em uma gruta acima, com quem não conversava nunca. O anacoreta recebia alimento de um corvo, se não me engano, amarrava a comida em uma corda e a passava para baixo, e ele comia o que mandavam. Mais nada. O único contato que ele tinha com o mundo exterior era numa certa hora na qual via uma corda descer. Ele comia e a corda subia. E nada dos dois ficarem se olhando, fazendo sinaizinhos, comentários como “o tempo hoje está ruim”. Solidão total, total, total.

Grutas que ouviram o eco dos seus passos, prantos e cânticos de alegria

Nesse ambiente, nessa solidão predestinada o espírito humano gosta de imaginar que até as ervinhas, as grandes árvores, a vegetação e as ondulações do terreno eram impregnadas de graças, que tinham um pressentimento profético do que ele deveria ser. E quem menos sabia o que estava para nascer era São Bento. Ele tinha os seus ideais, e todos os montes, vales, colinas – usando a expressão de Camões empregada para um fim muito inferior – e ervinhas davam repercussão, faziam eco aos seus ideais,  e os ventos quando sopravam cantavam; e tudo isso ele não notava.

E uma pessoa estando lá, hoje em dia, pode ainda encontrar aquelas ervas, remotas bisnetas das ervas da época dele. Aqueles montes ainda são os mesmos e na sua  imobilidade pétrea ou térrea ainda têm a configuração de outrora, aquelas grutas que são as mesmas e ouviram o eco dos passos, os soluços, os prantos dele durante as crises, as tentações, as orações, os cânticos de alegria, etc., durante toda a vida dele repercutiram ali, e algo se poderia sentir. E quem vai a um lugar assim procura de algum modo sentir esses ecos de uma história que lá se passou.

Locais que ficam impregnados por maldições ou bênçãos

Esta procura se dá, aliás, com histórias de outra natureza. Vou dar um exemplo horrendo, que me ocorre no momento. Parece que Judas se enforcou numa figueira brava,  que dá figos não comestíveis pelo homem.

Mas imaginem que ele se tivesse pendurado em uma macieira, a qual ainda estivesse viva e dando frutos. Há um homem no mundo que quereria comer uma maçã dessa árvore? E se alguém tocasse numa delas, dever-se-ia dizer-lhe: “Vá lavar suas mãos na água benta! Queime essa maçã! Sepulte nas entranhas da terra, onde os vermes irão  liquidá-las, as cinzas que dessa maçã possam resultar. Procure esquecer o lugar onde essa cinza ficou. Em todo caso, nunca mais passe por perto. Porque com Judas nada! É  um homem cujo nome próprio é ultraje. Chamar alguém de Judas é insultá-lo do modo mais pesado possível!”

Em volta dessa macieira nenhum de nós teria surpresa de saber que o cheiro é mau, quebrando aquele pau sai uma resina asquerosa misturada com vermes, e a doença, a  maldição, a infelicidade, as tentações do demônio assediam a quem se aproxima da macieira da maldição. Por quê? Porque as coisas ficam impregnadas.

É assim também  com as bênçãos. Uma pessoa pensar, olhando de dentro daquelas grutas as montanhas: “Houve tardes em que o tempo estava bonito como o de hoje, e São Bento sentindo  que o dia tinha passado na virtude, e auscultando os movimentos interiores da graça, conjeturando com probabilidade que a noite seria tranquila, sentado no átrio externo dessa gruta, olhava o Sol se pôr e dava graças a Deus, porque tinha sido mais um dia aparentemente tão vazio para o homem, mas na realidade tão cheio  para ele”. Então visita-se um lugar desses procurando fazer a recomposição.

Estes são imponderáveis que talvez realmente existam no lugar por disposição da Providência, e que algumas almas têm feitio para pensar. Elas têm mais disposição, mais  aptidão, talvez um pouco mais de graça do que outras. É um lado. Mas também pode acontecer que algumas almas sejam mais poéticas, e tenham o dom de imaginar as  coisas como foram, e sabem que estão fazendo apenas uma poesia, uma irrealidade pela qual possam saborear um pouco a realidade que houve.

E muitas vezes o que se dá é uma coisa trançada: há uma poesia, uma imaginação que se sabe não ser real, mas existe qualquer palpitar da graça que diz: “Meu filho, há algo  verdadeiro dentro disso sem que você possa distinguir bem o que é, saboreie porque no meio desse gosto existe o sabor da verdade”.

Lógica, força e calma

Analisemos, então, algumas fotografias de Subíaco.

Isto certamente São Bento não viu. Portanto não fez parte do quadro que ele teve diante de si, porque foi construído depois. Homens chamados antes de tudo para a vida  religiosa se fixaram aqui, atraídos pela graça, certos de que a presença nesse lugar abençoado lhes trazia uma participação nas enormes graças que  São Bento recebeu.

Eu tenho tantas e tantas vezes elogiado a ogiva; deixem-me fazer um pouquinho de elogio do arco românico. Encontram-se na base quatro arcos desiguais.

O arco da esquerda é bem grande, e suporta sozinho uma parte maior do peso que vem de cima. Os dois arcos teriam talvez a metade do tamanho do arco grande; cada um sustenta um peso bem menor do que suporta o arco maior. E no extremo oposto há um arco o qual me parece ligeiramente ogival, e que provavelmente foi posterior. 

Também pode ter saído ogival mais ou menos por acaso, sem intenção nenhuma dos indivíduos de cultura românica que construíram isso. Mas esses arcos românicos dão  uma ideia de lógica, de força, de calma, que é muito bonita e não deixa até de ter sua majestade.

O mosteiro em cima  seria um edifício de favela. É construído com tanta irregularidade que as janelinhas, as portinhas fazem no andar térreo um zigue-zague, ora para cima, ora para baixo, que parece não ter finalidade ornamental.

Da terceira janela para a direita há uma janela solta pelo meio, e não se sabe bem por que ela é tão grandona; enfim, nada é bonito. Entretanto, o todo tem uma beleza  inegável,  indefinível, que se sente na situação de um monge beneditino passeando e rezando seu Rosário no terraço que fica em cima desses arcos todos.

Viver é olhar para o Céu

Imaginem um monge andando sozinho, rezando e meditando sobre São Bento, tal episódio da vida de Nosso Senhor, o Rosário, tal fato da vida de Nossa Senhora. Como teria São Bento meditado esses fatos? O Rosário ainda não existia no tempo dele; foi revelado por Nossa Senhora, em plena Idade Média, a São Domingos de Gusmão.

Mas vamos imaginar aquele monge andando de um lado para outro, sozinho, e posto nessa solidão onde não há nenhum barulho, porque não existe agricultura, não se vê  passar um homem, um bicho, nada se muda a não ser um arvoredo encaracolado que, às vezes, é seguido por uma grama escassa sobre uma terra feia e dura, e que parece  não servir para nada. É a negação de tudo, o vazio, mas ali está um monge com grandes ideias, grandes considerações, fenômenos místicos dos quais ele tem ou não tem  consciência e que o unem enormemente a Nossa Senhora. Dir-se-ia que os passos dele fazem eco aos passos de São Bento, e que esses arcos embaixo possuem algo da lógica,  da força simples, robusta e despretensiosa da alma de São Bento, o qual era uma alma em arcadas assim, imagino eu.

Veem-se duas montanhas que se encontram na base, formando uma espécie de “V”. Alguém perguntaria, por curiosidade: “O que há além?” Existe outro tanto igual a esse,  vazio, árido, inútil, servindo apenas para essa coisa também inútil, da qual vive a Terra: a solidão. A solidão dos homens chamados para a solidão. Mais adiante se forma  outro “V” e depois outro, e só o que se vê são montes assim. O homem se sente perdido na solidão, na terra árida, para ele a vida não reserva mais nada. Viver é olhar para o  Céu: “Pater noster qui es in coelis, sanctificetur nomen tuum…”

A Cristandade europeia estava nascendo

No prédio da esquerda há um pouco mais de arquitetura. Existem uma rosácea e um campanariozinho construídos muito tempo depois, certos adornozinhos quão pobres e modestos, o suficiente para, com os ecos do Angelus na aurora e no pôr do Sol, às seis da manhã e às seis da tarde, saudar a Nossa Senhora e fazer com que esses ecos  santifiquem aquelas solidões.

Notem aquelas montanhas. Nenhuma delas desce de modo bonito, não tem aquelas flexões e deflexões doces dos montes da Baía da Guanabara, nem é amiga da montanha  seguinte. Essas são montanhas agrestes justapostas pela mão de Deus, que não se conhecem umas às outras, e parecem dilaceradas diante do céu.

Em outra fotografia vemos a gruta. Tudo é desconforto, solidão. Devemos imaginar São Bento sentado lá, lendo um livro e pensando… Ele  não sabia, mas a Europa estava nascendo. Muito melhor que a Europa, a Cristandade europeia estava surgindo.

Ele não teria a menor ideia da quantidade dos peregrinos que iriam humildes, reverentes,  oscular esse lugar. Mas cada peregrino que vai ao Mosteiro de Subíaco leva uma gotasinha de glória extrínseca para São Bento no Céu.

Os Anjos cantavam e os demônios rugiam

Temos um conjunto bem construído, que foi edificado depois, com ogivas, etc. Construído a legítimo título, mas nos dá apenas um aspecto da glória de São Bento: homens com chamado menos excepcional do que o de São Bento, mas atraídos a alguma coisa que era o chamado dele. E então compreenderam que a graça os chamava a tornar um pouco menos hirto o isolamento naquele lugar, a viverem em grupo, mas no silêncio e em edifícios que amenizavam um pouco a gruta, porém não faziam desaparecer inteiramente o ar imponderável que aquela gruta traz consigo; estão escavados naquelas grutas.

Observam-se também construções do mesmo jeito, muito respeitáveis, veneráveis, até são pintadas, etc., onde viveu o cortejo enorme dos filhos menos excepcionais, menos fortes, mais fracos, mas que Deus chamou para serem assim, e que poderiam encontrar – e muitos encontraram – o seu lugar no Céu, pois foram canonizados, levando a vida  nessas condições – e não nas condições de São Bento –, e que estavam aí porque queriam respirar um pouco do ar que São Bento respirou.

Eu admito como provável, tanto quanto consigo cogitar nessas coisas, que, sem ter a certeza do que ia nascer de lá, São Bento sentia que qualquer coisa de muito grande se  jogava no Céu, cada vez que ele dava um passo ascendente no caminho da fidelidade. Os Anjos cantavam e os demônios rugiam. Ele percebia todo o ódio que o demônio punha contra ele e, portanto, quanto estava sendo hostil, nocivo ao demônio, resistindo às tentações jeitosas com as quais, a todo momento e de um modo tormentoso, o  demônio o assediava.

A bandeira que tremula ao vento ou cai ao longo do fuste

E quando São Bento se jogou naqueles espinhos para que atormentassem a sua carne e assim, chamando a atenção dele para a dor, a desviassem do desejo que a carne  concebida no pecado original pode ter sem o homem consentir – o anseio da lascívia, do pecado impuro –, embora sem saber o que seria tudo isto, ele sentia que tinha muito mais do que fazia. E com esta particularidade interessante: talvez a Providência lhe desse não uma certeza detalhada – pão, pão; queijo, queijo –, mas grandes e ventosas intuições, que passavam de cá e de lá e lhe deixavam um fundo de certezas imprecisas, as quais ele não sabia interpretar bem. E perguntava: “O que é isto? Uma  graça ou uma ilusão?” Mas que o ajudava a andar.

Eu digo isso porque em muitas vocações há coisas dessas. Em nossa vida mesmo existe algo semelhante: horas em que estamos como uma bandeira que tremula ao vento, quer dizer, sentimos a certeza do futuro e que realizamos uma coisa enorme, extraordinária, fazendo-nos  flutuar como uma bandeira ao vento.

Há momentos, pelo contrário, em que o vento cessa e a bandeira cai ao longo do fuste. E a pessoa pensa:  “Agora eu tenho que cuidar da roupa de cama e de mesa que vai para a lavadeira. Então vou mexer com a roupa suja, para ajudar a proclamar o Reino de Maria… Godofredo de Bouillon, Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa onde estais?  Vós que fazíeis coisas tão grandes e tínheis certeza da grandeza do que realizáveis, aqui está este católico, debaixo de certo ponto de vista vosso filho – porque nós somos  filhos de todos os filhos da luz –, contando as peças de roupa. Estou vendo o guardanapo sujo de vinho que tal irmão meu derramou desajeitadamente na mesa; mais adiante   toalha de mesa que está toda manchada porque tal pessoa pinga feijão na toalha; estou notando a nossa vida cotidiana, as misérias de cada um nas toalhas de mesa  que vão para a lavadeira. E isto é a escada de Jacó pela qual eu subo ao Céu?”

Um paradoxo cruel que se resolve numa ogiva sublime

Tenho certeza que alguma alma, contemplando aquelas montanhas, pensaria em coisas análogas. E se perguntaria se não é uma graça que São Bento está obtendo para ela no Céu. Naqueles montes ásperos, íngremes, naquela batalha da natureza, naquela inutilidade do que ele fazia, no paradoxo constante do homem, que por sua natureza é  social, a graça o chama para viver isolado. Isso não é uma contradição, mas um paradoxo.

Nesse paradoxo, que eu não hesitaria de chamar de cruel – no sentido em que o sacrifício da Cruz foi cruel –, o homem deve dizer: No fundo tudo isso se resolve numa ogiva  sublime, faz um sentido que eu compreenderei um dia no Céu. Continuarei a andar, andar. E sei que caminhando assim, contando as peças de roupa e vendo as falhas  morais nas manchas da toalha de mesa – são pequenas falhas morais, mas às vezes indicativas de algo tão maior –, pedindo a Deus que perdoe a eles e a mim, a todos que  têm essas falhas, e faça subir todos para o Céu, eu estou preparando uma glória enorme para daqui a duzentos anos.

Nas particularidades da nossa vocação, senão para daqui a duzentos anos, daqui a duzentos dias ou duzentos minutos, porque o dia da intervenção de Nossa Senhora é  incerto e poderia vir de uma hora para outra, como o esposo da parábola das virgens loucas e das virgens fiéis do Evangelho. As primeiras ficaram esperando, foram fiéis, e  eu devo esperar que meu Deus chegue de uma hora para outra e diga: “Meu filho, o cárcere da Revolução acabou. E se esse dia demorou para chegar, eu não fui frustrado.

Pelo contrário, fui glorificado. Esperei longamente, mas não perdi a esperança. A glória me chega como uma coroa”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1988)

São João Batista

Suscitado para predispor as almas a receberem o Divino Salvador, São João Batista “abatia as colinas e preenchia os vales,,, ou seja, calcava aos pés o orgulho e eliminava a impureza. Foi, além disso, um magnífico exemplo de destemor, ao exprobrar a impiedade e o pecado do rei Herodes. Esse homem que de tal modo abatia a sensualidade, lutava contra o orgulho,  cortava o caminho aos ímpios e servia de modelo de penitência, era digno de ser o precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo!

A Cátedra de Pedro é a coluna do mundo

Vigário de Cristo na Terra sempre foi objeto do ardoroso enlevo de Dr. Plinio. Desde suas primeiras atividades públicas nas Congregações Marianas, ele defendeu nas páginas do Legionário, aquele a quem considerava “a coluna do mundo”: o Papa.

Por ocasião da festa da Cátedra de Pedro, que se comemora a 22 de fevereiro, Dr. Plinio comentava seu enlevo pela instituição do Papado:

“A festa da Cátedra de São Pedro é extremamente necessária, porque ela celebra o papado enquanto tendo uma cátedra infalível que se dirige ao mundo inteiro.

“A cadeira de São Pedro cuja estrutura foi quase toda conservada nos é guardada na Basílica de São Pedro, em Roma, onde está a Glória de Bernini. Ali existe uma cadeira de bronze na qual há uma portinhola que é aberta e se retira um bancozinho, considerado como tendo sido de São Pedro.

“Na nave central da Basílica de São Pedro, há uma imagem, de bronze escuro, que representa São Pedro, com as chaves nas mãos, sentado numa cátedra e com os pés à altura dos lábios dos fiéis. E os peregrinos que vão a Roma passam por lá e beijam um dos pés da imagem. O resultado é que, com o ósculo mil e mil vezes repetido, esse pé está desgastado. Parece-me ser o único exemplo da História em que ósculos destroem bronze.

“E, fato bonito, no dia de São Pedro revestem essa imagem com os paramentos pontificais, inclusive a tiara, como se fosse um Papa vivo, para identificar a magnífica e evidente solidariedade e continuidade que vai de São Pedro até o Pontífice de nossos dias.

“Devemos, em espírito, oscular o pé dessa imagem, para significar que osculamos o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica. E, por meio de Nossa Senhora, agradecer a Nosso Senhor Jesus Cristo a instituição desta cátedra infalível, que é propriamente a coluna do mundo, porque se não houvesse infalibilidade, a Igreja estaria destroçada e com ela o mundo ficaria perdido.

“Ela é o caminho para o Céu, e os homens não o encontrariam se não houvesse uma autoridade infalível para governar a Igreja.

“Não se pode ter uma fidelidade abstrata no papado. É preciso que ela seja concreta ao Papa atual, em toda medida em que ele é infalível, e tem o poder de governar e reger a Igreja Católica.”

 

 

(Extraído de conferência de 22 de fevereiro de 1964.)

O Pão dos fortes

A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Na procissão de “Corpus Christi”, devemos querer glorificá-Lo e pedir que esse Pão comunique a sua força a todos, para obstarem a ação do demônio. Como seria bonito que, de trecho em trecho, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

 

A Solenidade de “Corpus Christi” é uma festa litúrgica instituída pela Igreja para comemorar, homenagear a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento. Daí o nome “Corpus Christi”.

Reparação pelas blasfêmias proferidas por protestantes

Essa festa foi instituída pelo Papa Urbano IV, no século XIII, e teve um grande desenvolvimento no período da expansão protestante, como réplica à contestação feita por eles à afirmação de que Nosso Senhor está realmente presente na Sagrada Eucaristia, e com o intuito de estimular os católicos a oferecer uma reparação a Nosso Senhor por causa da blasfêmia que aquela heresia propugnava a esse respeito.

Com o curso dos tempos, e se tornando menos ativa a polêmica entre católicos e protestantes, essa nota polêmica da festa também diminuiu de carga e ela passou a ter como tônica a importância da devoção eucarística na vida espiritual dos fiéis. Cada vez mais a atenção dos católicos, no período que corresponde à História moderna e depois à História contemporânea, foi se concentrando nessa maravilha do amor de Nosso Senhor para com os homens, que é a sua presença real no Santíssimo Sacramento. No século XIX, a Igreja instituiu a Congregação do Santíssimo Sacramento, os sacramentinos, fundada por São Pedro Julião Eymard, especialmente para honrar continuamente o Santíssimo Sacramento na sua adoração perpétua.

São Pio X – já no século XX, portanto – instituiu a Comunhão para as crianças e deu forte impulso à Comunhão frequente, até mesmo quotidiana, para as pessoas que pudessem receber a Sagrada Eucaristia. Os congressos eucarísticos se espalharam por toda a Terra e, com essa irradiação da devoção eucarística, a festa de “Corpus Christi” tomou realce. É a própria glorificação de Nosso Senhor sacramentado.

Esta festa se celebra por meio de uma procissão nas ruas.

Compreendo que se possa dizer ao homem, premido por problemas pessoais, psicológicos e de toda ordem, vendo o mundo atormentado naufragando nas crises contemporâneas, que o mais importante é a adoração ao Santíssimo Sacramento. Entendo até que esse homem tire disso um proveito e invoque a Sagrada Eucaristia para não naufragar. A atenção dele está fortemente chamada para a sua condição de náufrago. E que, portanto, é preciso estabelecer uma relação entre sua situação e essa devoção. Do contrário, todas as conversas sobre a festa correm o risco de deixar o homem sem recursos, sem uma atração devida para um mistério tão augusto.

Tudo quanto dissemos a respeito dessa festa é perfeitamente verdadeiro. Entretanto, é como se, por exemplo, me mostrassem uma fotografia de uma árvore com tronco pujante, forte, mas na qual os galhos não aparecem. Aquilo é uma árvore verdadeira, forte; porém sem os galhos, só o tronco não dá ideia da árvore.

Bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento

O que ficou dito é o tronco – realmente saboroso, venerável, perfumado – do assunto, mas esse tronco impõe uma irradiação para toda uma galharia.

Em primeiro lugar, a polêmica entre protestantes e católicos, tendo-se tornado menos acre, era o caso de perguntar se nisso não entrou moleza, tibieza da parte dos católicos, e se não se deveria tomar uma atitude que tornasse mais acerba essa polêmica. A festa de “Corpus Christi” até seria uma ocasião muito boa para isso. São só os protestantes? Naquele tempo, eles estavam no centro do panorama, porém, com o passar dos anos, toda espécie de heresias, de abominações se multiplicaram pela Terra como fruto do protestantismo. Este gerou seus filhos e com eles encheu a Terra. Assim, essa procissão não deveria ter um caráter contrário a todos esses filhos do protestantismo? Portanto, não deveria ser ainda mais polêmica?

Santa Genoveva, com o Santíssimo Sacramento, fez recuar os bárbaros que avançavam sobre Paris. Os bárbaros de nossos dias avançam e nós não podemos conceber essa festa como glorificação daquilo que é nossa arma para fazermos recuar os bandidos?

Eu sou entusiasta dessa festa e de tudo quanto foi dito a seu respeito, mas me sinto triste por ela ter sido privada desses complementos indispensáveis.

Para combater é preciso ter força. A Sagrada Eucaristia é chamada Pão dos fortes. Esse Pão dos fortes nós vamos levar pelas ruas para glorificá-Lo, fazendo um pedido para que Ele comunique a sua força a todos quantos se encontram na rua e para obstarem a ação do demônio.

Que coisa linda acrescentar uma intenção exorcística na bênção do Santíssimo Sacramento, dada no final da procissão! Como seria bonito que, de distâncias em distâncias, a procissão parasse em um altar onde fosse dada uma bênção exorcística com o Santíssimo Sacramento!

Por outro lado, é verdade que durante todo esse tempo a devoção ao Santíssimo Sacramento se desenvolveu muito. Mas não foi só ela. Cresceu muito também a devoção a Nossa Senhora. Não se deveria invocar muito mais a Santíssima Virgem ao longo das procissões, com cânticos louvando-A enquanto modelo da adoradora do Santíssimo Sacramento? Ela foi o tabernáculo vivo que abrigou Nosso Senhor até seu nascimento e que, depois da primeira Comunhão d’Ela, conteve-O até o momento de Ela morrer. Tudo isso precisa ser lembrado e é por meio d’Ela que devemos dirigir nossas preces ao Santíssimo Sacramento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/6/1982)

O maior tesouro de um povo

Sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e sutil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada “crescia em graça e santidade”. Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos e as estirpes fidalgas, os costumes corteses e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis.

Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o maximum de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da harmonia profunda e da veracidade cintilante dos princípios sobre os quais ela se construiu. Ninguém possuiu como ela o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural — mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria — e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela, brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma [grande] consonância de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstâncias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana “naturaliter christiana”(1) e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente.

Tocamos num ponto de importância fundamental. Todos os povos têm sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. (…) Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre os mesmos nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região. (…) Toda civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de se ajustar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região, e de cada povo. (…)

Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas várias nações da Europa medieval.

A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem-estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação. Eles têm uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído do “Legionário”,  nº 666, de 13/5/1945)

1 ) Naturalmente cristã.

A epopeia de Santa Joana d’Arc

Há lendas tão parecidas com a realidade a ponto de suscitar a pergunta: “Será, de fato, simples lenda?” Em sentido contrário, certas narrações históricas revestem-se de tantos aspectos surpreendentes que provocam uma desconfiança: “Mas isto é mesmo real?” Um dos mais expressivos exemplos do segundo caso é a vida de Santa Joana d’Arc: uma das maiores epopeias da História.

 

Se tomarmos em consideração tudo quanto os santos fizeram ao longo da História da Igreja, veremos quão superiores foram em relação a todos os homens que, habitualmente, são tomados por heróis.

Nesse sentido, comentaremos a vida de Santa Joana d’Arc, a famosa virgem de Domrémy, na Lorena.

Suscitada num momento providencial…

No início do século XV ainda não havia eclodido a Revolução protestante, e toda a Europa era católica. Porém, no século seguinte, a Inglaterra se tornaria protestante.

Naquele tempo, a França estava ocupada, em grande parte, pelos ingleses. Portanto, encontrava-se em jogo um ponto muito importante da História da Igreja: se os franceses não conseguissem expulsar os ingleses de seu território, no século seguinte a França corria o risco de ficar protestante; a filha primogênita da Igreja, a nação que deu tantos grandes personagens para a Esposa de Cristo, a França, teria sucumbido na decadência religiosa do protestantismo.

Prevendo isso, a Providência suscitou no vilarejo de Domrémy, ducado da Lorena, uma jovem pastorazinha, muito piedosa e santa, a qual era estimulada por vozes celestes para se apresentar ao Rei da França, a fim de reconquistar o território que os ingleses haviam tomado, e reintegrar à filha primogênita da Igreja os limites que historicamente lhe eram próprios.

Rei disfarçado de simples nobre

Para provar a autenticidade da missão providencial de Santa Joana, as pessoas da corte fizeram o seguinte:

Quando a jovem pastora se encontrou com o Rei pela primeira vez, ela entrou numa sala onde estava o monarca acompanhado de vários fidalgos.

Propositadamente, alguns fidalgos estavam muito bem vestidos, com roupas bastante caras; e o Rei, para disfarçar, usava trajes de um fidalgo mais pobre, secundário, para ver se ela, olhando os mais ricamente vestidos, achasse que um deles fosse o soberano. Se ela de fato tivesse uma missão divina, não se enganaria e reconheceria o Rei.

Ela entrou na sala e, instintivamente, foi em direção do fidalgo pobremente vestido, que, entretanto, era o próprio Rei. Ela adivinhou porque uma luz do Céu explicou-lhe quem era o monarca.

Uma frágil virgem com espada na mão!

A partir desse momento, Santa Joana d’Arc convenceu o Rei, que a nomeou chefe dos seus exércitos, colocando-a à testa dos seus melhores guerreiros. Ela, uma frágil virgem usando armadura, precedeu as tropas nos combates, e os franceses, que até então apanhavam dos ingleses, começaram a surrá-los. E os ingleses foram recuando diante das tropas a cuja frente estava a donzela de Domrémy. Santa Joana d’Arc lutava enfrentando homens enormes, com couraças formidáveis, naquele tipo de guerra em que a força pessoal do guerreiro era decisiva.

Imaginemos num combate de cavalaria um homenzarrão com uma lança, investindo com toda a força contra ela, querendo dar-lhe uma estocada no peito. E ela, frágil, derruba o homem.

Coroação do Rei

Naquele tempo, a França estava tão por baixo que o Rei não tinha tido coragem de ser coroado, porque achava, com certeza, meio ridículo promover uma coroação quando a maior parte do seu território estava em mãos dos ingleses. Mas, foram tais as vitórias de Santa Joana d’Arc que, antes mesmo de os ingleses estarem inteiramente expulsos da França, chegou o momento de ela ir com o monarca para Reims. Nessa cidade há uma catedral prodigiosa, com rendas de pedras e vitrais, onde os Reis da França, por um sacramental da Igreja, eram ungidos com o óleo contido numa ampola trazida por uma pomba na noite do batismo de Clóvis, primeiro Rei dos francos.

Santa Joana d’Arc, com os guerreiros do monarca, teve, então, a alegria de assistir à coroação do Rei da França, numa glória indizível. Ocupou ela um lugar de honra, numa das primeiras fileiras, e estava com o seu estandarte. Junto a ela havia as eternas sombras que vão atrás de cada pessoa: os invejosos. E um invejoso disse-lhe:

— O que faz aqui o vosso estandarte? É o estandarte de combate, e esta é uma festa…

Ela respondeu:

— Uma vez que ele esteve comigo na luta, bom é que esteja também na glória!

Devido a uma traição, Santa Joana é presa e entregue aos ingleses

Quando ainda restava uma parte da França para ser recomposta, a traição, imunda como uma serpente, se enroscou nela. O Rei tinha como aliado o Duque da Borgonha, cujo feudo era muitíssimo rico. Esse senhor feudal era um homem sem caráter, mas entrava com muito dinheiro para a guerra.

Em certo momento, as tropas começaram a combater e esse Duque foi dirigindo as coisas de tal maneira que Santa Joana d’Arc ficou cercada exclusivamente pelos guerreiros dele. Então, o Duque deu ordem de a prenderem e seus vassalos a venderam aos ingleses.

Processo da Inquisição

Como naquele tempo ainda não tinham caído em heresia, os ingleses entraram em entendimento com o Arcebispo de uma diocese francesa onde eles ainda dominavam, e acusaram-na de pacto com o demônio. Diziam que por essa razão ela havia conseguido tantas vitórias.

Realizaram, então, um processo cheio de mentiras, com o intuito de queimá-la viva.

Embora fosse analfabeta, durante o processo ela se defendeu como um advogado brilhante se defenderia. Mas, no fim das contas, Santa Joana d’Arc foi condenada à morte pelo tribunal da Inquisição por ter seguido vozes vindas do Inferno.

Tal era a Fé existente naquela época, que o problema todo não era de saber se ela tinha ouvido vozes — esta seria a questão que se levantaria hoje —, mas sim se as vozes vinham do Céu ou do Inferno.

Inútil tentativa de fugir

De tal maneira a santa queria ainda viver para realizar seu plano de salvar a França, que ela chegou, com risco de vida, a se jogar de uma torre, onde estava presa, para fugir e montar num cavalo a fim de continuar a luta contra os ingleses, julgando que com isso ela fazia a vontade de Deus. Ela se espatifou no chão! Deus não fez o milagre de ajudá‑la, nem as vozes a socorreram. Os ingleses a reconduziram à prisão.

Na hora suprema, uma prova atroz

Chega, afinal, a hora de sua morte. O carrasco entra no local onde ela estava presa, põe-lhe uma túnica infamante, toda embebida em matéria combustível para que o fogo ateasse logo nela, amarra-a numa carreta, aonde ela vai de pé, com as mãos atadas por trás, como malfeitora e para não poder fugir; através de ruas cheias de povo, Santa Joana d’Arc é conduzida ao lugar onde deveria ser queimada viva.

E, contra sua expectativa, a carretinha chegou à praça, tendo ela que descer e caminhar em direção à fogueira que ali estava. Deus, que estivera tão presente em todos os combates da santa e ajudou-a a defender-se no processo, nesta hora se fazia ausente.

Foi lida diante dela uma acusação cheia de falsidades, de misérias e de infâmias que ela não tinha cometido. É trágico o momento: ela é posta na fogueira, diante do tribunal que está ali assistindo.

Ela, a santa que tinha cumprido a missão dada por Deus de salvar o povo francês, por ordem de um Arcebispo, Cauchon, presidente de um tribunal, ia ser queimada com o infamante epíteto de bruxa.

Pode-se entrever a perplexidade no espírito dela:

“Como? Aquelas vozes não eram verdadeiras? Elas teriam mentido? A ajuda que Vós me destes, ó meu Deus, teria sido uma ilusão? É a Inquisição que me condena? Um tribunal eclesiástico, dirigido por um Arcebispo, composto por teólogos e homens de lei… Será que eu não me enganei, ó meu Deus?”

Há um mistério, mas as vozes não mentiram…

O fogo ainda não foi aceso, a santa está amarrada a uma pilha de lenha toda induzida em azeite para que o fogo arda depressa. Ela espera o momento último, no qual não haveria mais dúvida nenhuma de que compareceria perante o tribunal de Deus.

Foi ateado o fogo, o qual com certeza já atacava as carnes dela; as chamas vinham de baixo para cima e, portanto, a parte vital ainda não estava atingida. Quando Santa Joana d’Arc começou a sentir os estertores da morte, ela não deu um gemido de dor, pedindo misericórdia. Ao contrário, primeiro clamou por São Miguel e depois, como Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz, bradou com “voce magna”, com grande voz, que, com certeza, se ouviu pela praça inteira: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Era mais uma manifestação de convicção da santidade de sua causa.

O fogo tomou conta do seu corpo e ela morreu com todas as dores de quem é queimado vivo. Mas até o último momento, ela bradava: “As vozes não mentiram! As vozes não mentiram!” Ou seja: “Há um mistério, mas eu morro contente porque faço a vontade de Deus!” O mistério se explicou.

Santa Joana d’Arc estava morta, mas as vozes não tinham mentido. E, lutadora até o fim, ela morreu batalhando, não simplesmente deixando-se matar, mas dando um brado que era um desafio, um protesto e o prolongamento da resistência francesa. Como quem dissesse aos franceses: “Continuai a lutar, porque as vozes, em cujo nome eu vos conduzi à vitória, vinham do Céu. O Céu vos dará, portanto, a vitória total”.

Esse testemunho, dado na hora da morte, é um supremo lance de heroísmo que vale mais do que a entrada triunfal em Reims, ao lado do Rei que ia ser coroado, a entrada gloriosa e heroica em Orléans, ou tudo o mais quanto ela realizou.

Um coração que vigia e proclama

Conta Monsenhor Delassus que as chamas devoraram o corpo de Santa Joana d’Arc, mas pouparam o seu coração. “Ter coração” não é ser sentimental, e sim ter fibra, têmpera, alma, amor das coisas elevadas e da missão sobrenatural que se possui. E se há alguém que teve coração foi Santa Joana d’Arc. Então houve o bonito fato: o corpo foi todo queimado, mas não o coração. Isso significava ainda um modo de dizer: “Eu morro, mas meu coração vigia e proclama: As vozes vieram do Céu”.

Vitória post mortem

A ofensiva que Santa Joana d’Arc tinha conduzido contra os invasores ingleses era tão tremenda, que eles não ousaram resistir ao pequeno exército francês que restara. Os franceses foram expulsando os invasores, a Inglaterra estava liquidada. Era o ímpeto dela que tinha derrubado o poderio inglês na França. Ela morreu antes de ver a muralha cair, mas “as vozes não mentiram!”

Em 1909, portanto 478 anos após a sua morte, os sinos da Basílica de São Pedro badalavam, anunciando uma magnífica cerimônia: São Pio X, afinal, ia beatificar Santa Joana d’Arc, e com ela proclamar que “as vozes não mentiram!”

Santa Joana d’Arc ficou o próprio símbolo da glória da França, um símbolo magnífico da glória da Igreja!

Coruscação do ideal

Fazer a vontade de Deus dando-Lhe glória de qualquer modo, decapitado ou queimado, pouco importa ao homem de ideal que expira; para ele o importante é que Deus esteja sendo glorificado.

Ideal! Que coruscação, que beleza de palavra!

Qual é o prêmio do idealista?

Os véus da morte descem sobre isto. Nosso Senhor fez promessas incríveis, carregadas de mistérios paradoxalmente luminosos. Por exemplo: “O irmão que salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu como um sol por toda eternidade”. Isso por salvar um! Quem, como Santa Joana d’Arc, evita que a França inteira caia na heresia, como brilhará no Céu? Como será esse sol em toda a eternidade?

Não se tem ideia de qual é a glória dos santos. Podemos imaginar com que afeto Deus se volta para uma Santa Joana d’Arc, a qual está com as marcas do sofrimento que a fogueira causou à sua alma e se apresenta, por assim dizer, pegando fogo diante d’Ele… E Ele lhe diz: “Vem minha eleita, minha escolhida, minha dileta! Goza, agora, de minha presença cheia de amor durante toda a eternidade!”

Nossa Senhora lhe sorri, a afaga, os anjos cantam, todas as almas do Paraíso se rejubilam porque aquela alma santa, portanto a alma com o mais alto dos ideais, o único ideal pleno e verdadeiro, chegou até o Céu. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/5/1972, 20/10/1984 e 2/11/1991)

 

Nossa Senhora Auxiliadora bondade e misericórdia incansáveis

Desde menino, quando se viu atendido pela Auxiliadora dos Cristãos em penoso momento de sua vida — a Ela rezando um peculiar e fervoroso “Salvai-me Rainha”(1) —, Dr. Plinio nutriu particular devoção a esse título de Maria Santíssima. E como podemos comprovar pelas palavras que seguem, não perdia ensejo de recomendá-la a seus discípulos, mostrando-lhes as maravilhas de clemência e solicitude maternas que nos coloca ao alcance tal invocação.

 

Segundo o ensinamento da Igreja, as maiores glórias de Nossa Senhora redundam do fato de sua maternidade divina. Ou seja, porque eleita para ser a Mãe do Verbo Encarnado, foram-Lhe concedidos todos os demais augustos privilégios e dons excepcionais. Entre seus grandes títulos estão os de Imaculada Conceição, Co-redentora do gênero humano, Medianeira Universal de todas as graças, etc.

Apesar de assim louvarmos e cultuarmos de modo especial a Santíssima Virgem, a invocação de Nossa Senhora Auxiliadora nos é muito cara, e com invulgar insistência a dizemos para implorar a misericórdia de Maria.

Mãe que conhece e atende a todas as nossas necessidades

Explica-se. Sendo Ela Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, é também Mãe nossa, permanentemente disposta a nos ajudar em tudo aquilo que precisamos. São Luís Maria Grignion de Montfort faz uma comparação que pode parecer exagerada, porém inteiramente verdadeira: se uma mãe, com um único filho, reunisse em seu coração todas as formas e graus de ternura que todas as mães do mundo têm por seus filhos, ela o amaria menos do que Nossa Senhora preza todos e cada um dos homens.

Assim, Maria Santíssima quer tanto a cada um — por mais desvalido, desencaminhado, espiritualmente trôpego que seja, ou nada valha — que, voltando-se este para Ela, seu primeiro movimento é de amor e auxílio. Nossa Senhora nos acompanha antes mesmo de nos dirigirmos a Ela. Tem ciência do que acontece com todos os homens, em qualquer lugar, sabe de todas as nossas necessidades e, por sua intercessão, nos alcança de Deus as graças que são importantes para nossa perseverança e santificação. Quando nos dirigimos a Ela, como que a primeira pergunta d’Ela para nós é esta: “Meu filho, o que queres?”

Graus inexcogitáveis de misericórdia

Outra afirmação, igualmente verídica, é esta: se o próprio Judas Iscariotes — depois de ter vendido Nosso Senhor e caminhado para o local onde se enforcou — tivesse tido um movimento de devoção à Mãe de Deus, rezado a Ela, obteria um apoio. Quer dizer, se A procurasse e lhe dissesse: “Eu não sou digno de chegar próximo de Vós, de Vos olhar, de me dirigir a Vós, sou Judas, o imundo… Mas, vós sois minha Mãe, tende pena de mim”, Ela o teria recebido com bondade. Ela acolheria com benevolência o filho cujo nome é sinônimo de horror: Judas Iscariotes.

É-nos difícil ter sempre presente essa noção da imensidade da misericórdia de Maria. Em nossa miséria, muitas vezes somos daqueles que não creem porque não vêem. Não duvidamos, mas esquecemos das graças recebidas neste sentido. Tentados, somos levados a pensar: “Aconteceu-me isto, aquilo, aquilo outro, pedi a Nossa Senhora e não fui socorrido. Sê-lo-ei agora? Certo, Ela é Mãe de misericórdia, mas, às vezes, não sinto sua ajuda…”

Mais do que nunca, nessas horas, devemos dizer: “Auxílio dos Cristãos, rogai por nós!”. Quando não compreendemos uma situação nem sabemos como dela sair, o que vai nos acontecer, etc., precisamos repetir com insistência: “Auxílio dos Cristãos! Auxílio dos Cristãos! Auxílio dos Cristãos!”. Para a Mãe de Deus, todo problema tem solução. Às vezes não a vemos, mas Ela já está dando ao caso um monumental e favorável desfecho.

Auxílio especial nas aparentes catástrofes

Quando me lembro da história das catástrofes pelas quais passou nosso movimento, nossos reerguimentos, nossa dolorida e gloriosa avenida de becos sem saída, pergunto-me: “Se Ela me desse para escolher entre a via dos becos sem saída e qualquer outro dos caminhos que eu imaginava para nossa obra, qual eu teria preferido?” Eu responderia: “Minha Mãe, se Vós me derdes força, a avenida dos becos sem saída!”

É a via do inexplicável, da catástrofe aparente, da derrota, do arrasamento, mas também a da vitória que se afirma. Como é bela essa via, porque é o caminho triunfal de Nossa Senhora. Ela transforma uma estrada esquartejada em becos numa linda e desimpedida avenida. Compreende-se, assim, como a Virgem Santíssima, Auxiliadora dos Cristãos, opera verdadeiras maravilhas, sobretudo nos momentos em que tudo nos parece mais difícil e a solução menos alcançável.

A batalha de Lepanto

Temos um célebre exemplo dessa intervenção misericordiosa e decisiva de Maria Santíssima em nossos momentos de apuro: a batalha de Lepanto, em 1571, episódio histórico que se relaciona com a festa de Nossa Senhora Auxiliadora. Sucintamente, recordemos que a esquadra católica se achava em número muito inferior à do adversário, e via-se com isso votada a uma derrota com funestas conseqüências para a Igreja naquela época. Porém, em certo momento do confronto, aparentemente sem explicação, os inimigos abandonam a luta e fogem. Contudo, nos anais redigidos pelos próprios componentes da esquadra maometana, pode-se ler: Os nossos navios debandaram porque uma Dama terrível apareceu no céu e nos olhava com ar de ameaça tal que nos causou pânico.

Quer dizer, os católicos, embora em número menor, não cessaram de confiar na proteção de Maria, e Ela os socorreu. Conta-se que, naquele mesmo instante da vitória, o Papa São Pio V se encontrava numa de suas salas no Vaticano, e rezava o Rosário, rogando o especial amparo da Auxiliadora dos Cristãos. Em certo momento, o Pontífice se volta aos que o acompanhavam, e diz: “Uma grande vitória foi obtida por Dom João d’Áustria, comandante da esquadra cristã!”

A partir de então o Papa incluiu a invocação Auxilium Christianorum na Ladainha Lauretana, e a Ela devemos recorrer em todas as circunstâncias de nossa vida e na hora de nossa morte, quando estivermos no último alento. Antes de exalarmos o derradeiro suspiro, digamos: “Auxílio dos Cristãos, rogai por mim” — e o Céu se abrirá para nós.

Errônea concepção da vida sem caridade

Antes de concluirmos essas considerações, convém insistir num ponto de particular valia para nós.

No mundo contemporâneo não é raro que alguém se deixe levar pela ideia de que os relacionamentos devem se basear numa troca de direitos e deveres, exclusivamente. Ou seja, cada homem tem determinados direitos que implicam em deveres de outrem para com ele. Uma vez respeitados tais direitos, o homem tem suas necessidades atendidas.

Portanto, o ato de bondade, de caridade, de amor ao próximo, inteiramente gratuito, não tem razão de ser. Se os direitos não são acolhidos, cumpre exigi-los, como se cobra uma letra de câmbio. Consoante tal mentalidade, todas as relações humanas se reduziriam a um sistema de cheques. Então, a verdadeira noção de caridade — que compreende prestações de serviço realizadas por amor, bondade, simpatia, a concessão gratuita de vantagens, etc. — desaparece. Mais ainda. Atrapalha a vida social, fundamentada na estrita justiça, transtorna o convívio dos homens, baseado num jogo de exigências. Se alguém pretendesse receber mais do que lhe é necessário, o indivíduo infectado por essa concepção responderia: “Dou-lhe aquilo a que apenas tem direito. Se quiser mais, mereça!”

Se uma pessoa transpõe esse modo de ver as coisas para a ordem sobrenatural, dirá: “Não compreendo a misericórdia de Deus para comigo, pois Ele está disposto a me perdoar e a me ajudar, mesmo quando não O agrado. Se agi mal, que Ele me puna, pois é a atitude lógica. Caridade, bondade… são coisas que não têm sentido. Baseio-me nos meus direitos, os quais Deus precisa atender”.

Socorro baseado numa relação impregnada de bondade

Ora, essa não é a mentalidade com a qual devemos considerar nossa vida terrena, e muito menos a nossa vida de piedade, nosso relacionamento com Deus.

Com efeito, o convívio humano, quando bem entendido e praticado, fundamenta-se em grande parte na solicitude e na compaixão de uns para com os outros, sobretudo dos que têm mais em relação aos que têm menos.

Que dizer, então, do trato de Deus conosco? Esse comércio tem como um dos seus fatores preponderantes a bondade, e bondade gratuita, a efusão de caridade, de misericórdia, compaixão, assistência contínua. E diante de Deus, devemos nos sentir pequeninos, impotentes, encontrando a razão de esperar clemência em nossa própria pequenez, até em nossa fraqueza quando pecamos.

Deus nos amou gratuitamente, e quer de nós que também O amemos. Estamos cumulados de dívidas, e o único meio de saldá-las consiste em manifestarmos esse amor e essa adoração a Deus. Em segundo lugar, compreendendo humildemente que necessitamos da ajuda divina, como o filho depende do pai, sem estar fazendo grandes contabilidades, e sim recebendo tudo d’Ele — eu diria — com uma espécie de santa sem-cerimônia.

Com esse pressuposto, entendemos melhor o fundamento do título de Nossa Senhora Auxiliadora. Pois o que se diz sobre a infinita bondade de Deus para conosco, devemos dizê-lo da insondável solicitude de Maria em relação a seus filhos. Ela nos ajuda a todo momento, nos dispensando misericórdia e favores aos quais não teríamos direito, e nos concede tudo isto com uma superabundância de amor, de sorrisos, de perdão, muitas vezes dando-nos o que não pedimos, ou mais do que rogamos, e até movendo nosso coração para aceitar benefícios que não queríamos receber.

Portanto, a ideia do auxílio de Nossa Senhora está toda pervadida pelo princípio de que as relações entre o homem e Deus são baseadas não apenas na justiça, mas em larguíssima parte na misericórdia, na generosidade sem limites, na benevolência e na gratuidade de favores.

Razões a mais para nunca deixarmos de invocá-La: Auxílio dos Cristãos, rogai por nós.

 

 

1) Cfr. “Dr. Plinio” número 1, abril de 1998

 

A expansiva piedade de São Crispim de Viterbo

Hino de exaltação à virtude da humildade, a vida deste santo italiano constitui uma iluminura na qual se retrata a inocência medieval aliada à santidade franciscana. Comentários de Dr.Plinio.

 

Alguns episódios da vida de São Crispim de Viterbo [ver quadro anexo], irmão leigo capuchinho, despertam nossa admiração pela extrema piedade que neles se revela.

Fez da cozinha conventual um lugar de devoção mariana

Nascido em 1668, foi consagrado desde a idade de 5 anos a Nossa Senhora, por quem teve especial devoção durante toda a sua existência. Tendo ingressado na Ordem dos capuchinhos, quis ficar entre os irmãos leigos, tomando como modelo São Félix de Cantalício.

No mosteiro, trabalhava nos jardins, fazia compras, cuidava dos doentes, passando as noites em oração e nas práticas de penitência. Ao ser encarregado da cozinha, nesta erigiu um altar à Santíssima Virgem. Aí era visitado por grandes senhores, cardeais e pelo próprio Papa Clemente XI que, certa vez, ali foi venerar a imagem da Mãe de Deus.

Chamo a atenção para a piedade contagiosa de um autêntico irmão leigo capuchinho. Era tão comunicativa que os grandes da época, tanto os da Igreja quanto os da sociedade temporal, dirigiam-se a esse altar erguido na cozinha do mosteiro, atraídos que eram pela devoção do santo.

Nossa Senhora concedeu-lhe o dom dos milagres. Certa vez, tendo curado uma pessoa chegada ao Sumo Pontífice, o médico afirmou: “Vossos remédios têm mais virtude que os nossos”. E o santo respondeu: “Senhor, sois um médico sábio e a cidade de Roma vos reconhece como tal. Mas, a Santíssima Virgem é muito mais sábia do que vós todos, médicos do mundo!”

O bom odor de Jesus Cristo, em Orvieto

Como irmão encarregado da despensa do convento, logo tornou-se estimado na cidade de Orvieto. O governador conversava com ele, e o Cardeal-Bispo da sua diocese detinha a carruagem em que ia para se entreter com o pobre frade na rua.

Imagine-se tais cenas encantadoras! Orvieto, já então cidade de certa importância na Itália, com sua linda catedral gótica, cuja fachada reluz ornada de lindos mosaicos coloridos. Fim de tarde, os trabalhos de todas as corporações encerrados, o movimento da cidade vai diminuindo, os sinos começam a tilintar, convidando os fiéis para a bênção do Santíssimo Sacramento ou para as Vésperas. Envolto numa penumbra azulada, ergue-se o palácio do Governo. Ali, também desobrigado de seus afazeres diários, o governador descansa e se entretém, sem empáfia, sem petulância, mas com naturalidade, com o humilde frade capuchinho. Embevecido, o magistrado dá graças a Deus por receber a visita do santo religioso.

Percebe-se, nesse contato, a beleza da lei dos contrários harmônicos; regozija-nos ver um grande personagem enlevado na conversa com um pequeno, embora, do ponto de vista sobrenatural, este último seria talvez maior que aquele.

O frade sai do palácio e segue seu caminho pelas ­ruas tortuosas da cidade. De repente, um ruído de ferros e de ferraduras, e uma carruagem se detém ao lado dele. A carruagem do Cardeal. Distinguindo-a, o frade mantém os olhos baixos, em atitude de respeito e reverência. Porém, o Príncipe da Igreja abre a porta do carro e diz:

— Entre, Frei Crispim, vamos conversar um pouco…

— Oh! Eminência!

— Que notícias o senhor me conta?

O frade narra-lhe alguns fatos da vida do convento, ou então, com toda a naturalidade, comenta:

— Tive uma visão assim…

O Cardeal é todo ouvidos, imerso em admiração.

Creio não ser difícil compreender como nos aproveita à alma recompormos cenas como essas, pois constituem o sabor de um passado no qual, segundo expressão de São Paulo, sentia-se o “bom odor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Cor 2, 15), tão diferente dos cheiros perniciosos que vão se espraiando no mundo hodierno.

Na hora da morte, não quis “atrapalhar” a festa de seu padroeiro

O resultado dessa expansiva piedade foi que os habitantes de Orvieto não o deixavam ir-se embora. Nas vezes em que o transferiram de convento, o povo negou-se a dar esmolas para os religiosos. Quer dizer, era preciso fazer voltar Frei Crispim, senão os frades passariam fome…

Durante anos seguidos foi insultado por uma religiosa à porta da qual vinha bater. Dela, dizia sempre o santo: “Deus seja louvado, pois há em Orvieto uma pessoa que me conhece e me trata como mereço!”

Não vem a ser uma atitude “heresia branca”(1), mas um genuíno fioretti(2). Pois o justo cai sete vezes (Pr 24, 16) e, portanto, não se deve considerar isento de ouvir  rabugices e desaforos.

Frei Crispim ficou gravemente enfermo poucos dias antes da festa de São Félix de Cantalício, seu padroeiro. Como os frades lhe dissessem que logo compareceria diante de Deus, respondeu-lhes que isso só ocorreria após a comemoração de São Félix, pois sua morte atrapalharia a festa do santo.

Outro fioretti!

O santo irmão leigo capuchinho faleceu em Roma, em maio de 1750.

Contrastes que formam a beleza da Civilização Cristã

Sem dúvida, uma existência admirável, que nos proporciona não apenas um motivo de enlevo, um exemplo a ser imitado, mas também um ensinamento que merece ser ressaltado.

Com efeito, no ambiente em que ele viveu, houve toda uma floração de irmãos leigos capuchinhos, talvez não tão eminentes na virtude, mas todos daquela escola que engendrou São Félix de Cantalício e o nosso próprio santo, constituindo uma nota de exaltação da humildade.

Dir-se-ia que esses religiosos eram ecos da paz, da serenidade de alma, da bondade características da cristandade medieval, dessa Idade Média entretanto tão gloriosa pela sua pompa e por suas batalhas. E é justamente nesse encontro harmônico de contrastes que reside a quintessência da beleza. Se quisermos compreender o esplendor da Idade Média combativa, consideremos a serenidade de um São Crispim de Viterbo ou de um São Félix de Cantalício. Se desejarmos entender a bondade desses dois santos, contemplemos a pugnacidade peculiar àquela época histórica.

Desse conjunto de contrastes harmônicos depreende-se a grandiosa beleza da Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/5/1967)

 

1 ) Expressão empregada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental e adocicada que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc.

2 ) “Florzinhas”, em português. Significam pequenos propósitos a praticar, ou a descrição de algum fato edificante da vida de alguém. Célebres são os fioretti de São Francisco de Assis. Vale notar que em italiano o singular é fioretto. Dr. Plinio, porém, costumava usar o plural, atendo-se ao título da mencionada coletânea franciscana.

Fervoroso adorador do Santíssimo até depois da morte

Contemplando a vida de São Pascoal Bailão, Dr. Plinio ressalta o quanto a ação apostólica de alguns Santos permanece mesmo após a morte.

 

São Pascoal Bailão foi um Santo franciscano que viveu no século XVI e se tornou famoso pela sua devoção ao Santíssimo Sacramento.

Fervoroso devoto da Transubstanciação

Para compreendemos bem o sentido da ficha que será lida, devemos saber o que é a Missa e, dentro dela, a Consagração.

A Missa é a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário. É o maior ato de culto da Religião Católica, porque é Nosso Senhor Jesus Cristo que se oferece a Si mesmo ao Padre Eterno.

Quando o padre pronuncia as palavras da Consagração, a hóstia e o vinho se transubstanciam, passando a ser Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esse é o momento no qual se dá a renovação incruenta do Sacrifício do Calvário, um dos mais augustos mistérios da Religião Católica.

Assim, é compreensível que uma pessoa piedosa dê grande importância a estar presente à Missa. E todas as outras orações da Igreja se estruturam tendo em vista a parte mais importante da Missa.

Desse modo compreendemos como um Santo, com uma devoção eucarística acendrada, tenha o melhor de sua devoção voltada para a transubstanciação, na qual Nosso Senhor Jesus Cristo se oferece novamente.

Vejamos, então, a vida de São Pascoal Bailão(1).

Um ato de adoração no momento extremo da vida

São Pascoal Bailão, cujo corpo repousa no Convento dos Franciscanos de Valência, na Espanha, era nascido na província de Aragão. Tendo que apascentar seu rebanho, ele assistia à Missa sempre que podia, e se era impossível assisti-la, ele deitava ouvidos atentos ao som da sineta que tocava por ocasião da elevação.

Vê-se que o prado onde ele apascentava o rebanho, quando menino, era muito próximo a uma igreja e ele, de fora, podia ouvir a campainhazinha tocando no momento da elevação.

Assim que ouvia a sineta, ele se ajoelhava, e qualquer que fosse o lugar onde se encontrava, adorava com fervor o Santíssimo Sacramento, o Salvador descido do Céu para o altar.

Com a idade de 24 anos entrou, na qualidade de irmão leigo, no Convento dos Franciscanos Descalços de Valência, onde mostrou o mesmo fervor ardente pelo Santíssimo Sacramento.

Deus lhe recompensou esse fervor, chamando-o a Si no momento da elevação. Depois de ter recebido o Santo Viático, São Pascoal perguntou se a Missa solene já tinha começado na igreja do convento. E como lhe disseram que a elevação se aproximava, ele se tomou de uma alegria extraordinária, e deitou muita atenção para, do lugar onde estava, ouvir o tilintar da sineta. Quando ouviu, exclamou: “Meu Jesus! Meu Jesus!” e expirou.

O seu enterro foi marcado por um grande milagre: tinham colocado seu caixão na igreja e o Ofício dos mortos acabava de começar. Eis que na elevação da Hóstia, o cadáver se mexeu, abriu os olhos, e quando o padre levantou o cálice, fez o mesmo gesto do padre.

Isso não aconteceu uma única vez. Quando seu corpo foi colocado numa sepultura ao lado do altar-mor, deu muitas marcas de veneração pelo Santíssimo Sacramento cada vez que se celebrava a Missa nesse altar. Quando chegava o momento da elevação, ouvia-se um movimento no interior da sepultura como a convidar os fiéis a um ato de adoração mais ardoroso. Em nossos dias ainda se percebe, às vezes, esse movimento na sepultura. Vários santos padres, entre outros o piedoso Domenico Maso, que celebraram o Santo Sacrifício da Missa diante da sepultura de São Pascoal Bailão, informaram ter sido testemunhas desse milagre.

É algo lindíssimo, cuja beleza merece ser analisada num instante.

Nosso Senhor deu a este Santo, durante toda a sua vida, uma graça especial para adorar o Santíssimo Sacramento. Talis vita, finis ita: assim como foi a vida, assim também é o fim. Graças à fidelidade dele a essa graça, Nosso Senhor fez coincidir a morte dele com o momento da elevação. Nesse instante Deus colheu a sua alma, como para dizer que, durante toda a vida, a alma dele esteve se maturando para esse supremo ato de adoração ao Santíssimo Sacramento. E quando ele atingiu a santidade própria para o momento extremo, no qual ele fez essa adoração extrema, ele tinha chegado à plena maturidade para o Céu. Essa maturidade ele a tinha realizado num ato de adoração ao Santíssimo Sacramento. Veio a Providência, o colheu e o levou para o Céu.

Missão póstuma para maior glória de Deus

É frequente os Santos, quando vão para o Céu, terem certo pesar de não poderem mais fazer apostolado na Terra. Parece incrível que uma pessoa, indo para o Céu, tenha pesar de alguma coisa na Terra não ficar como queria. Vemos São Pascoal Bailão, ainda depois de morto, o cadáver dele fazer um ato de adoração ao Santíssimo Sacramento. Depois, na sepultura, ainda se remexe quando há uma celebração, para convidar os fiéis a adorarem o Santíssimo Sacramento. É um apostolado eminente feito por seu cadáver.

Nós podemos enunciar um desejo análogo? Podemos desejar alguma coisa desse gênero?

Eu desejaria para todos nós que, depois de mortos, quando alguém pronunciasse o nosso nome, ou se lembrasse de nós a qualquer propósito, ou passassem perto de nossa sepultura, recebessem, se forem filhos da luz, um aumento de devoção a Nossa Senhora, uma participação no espírito d’Ela. Se forem filhos das trevas, se sentissem incomodados, humilhados, combatidos, obstados e perseguidos no que tivessem de mau, de maneira a largar a sua maldade. Desejaria combater para converter os maus ou para evitar que eles prejudiquem os bons. De modo que o número dos eleitos se completasse exatamente como Deus quer.

Para isso devemos ser, até o fim da vida, duas coisas: primeiro, arautos de Nossa Senhora; segundo, pedras de contradição, de escândalo para salvação e perdição de muitos, exatamente como o Profeta Simeão disse a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. Lc 2, 34).

Se eu souber que até o fim do mundo Nossa Senhora resolveu utilizar do nome de um de nós para isso, exultarei intimamente e super exultarei, porque assim a nossa obra se realizará.

Quer dizer, apenas quando — segundo a frase grandiosa da Escritura — tiver acabado o mundo e a abóbada celeste se enrolar como um pergaminho, e vier o Filho de Deus em grande pompa e majestade (cf. Ap 6, 14-17);  as contas todas estiverem acertadas e os adversários da Igreja liquidados; a Contra-Revolução estiver para sair da sepultura a caminho do Céu; os anjos malditos que circundam a Terra incitando os homens para a ação da Revolução estiverem prestes a ser acorrentados para irem ferver no Inferno por toda a eternidade; somente nesse momento a nossa missão acabe.

Esta seria a aplicação do mesmo princípio usado por Nossa Senhora com São Pascoal Bailão. O que se faz a vida inteira faz-se também na hora da morte. O que se faz na hora da morte, faz-se até o fim do mundo.

Podemos pedir a São Pascoal Bailão que nos dê essa grande graça.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/8/1974)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da referida ficha.

Errata: Na nota 2 da seção Hagiografia do n. 217, no lugar de “naturezas” leia-se “vontades”.