São Matias – Apóstolo da fidelidade

Houve um rombo no Colégio Apostólico, o mais doloroso da História: um Apóstolo traiu. O lugar ficava vazio e era preciso alguém que, por suas virtudes, reparasse junto à justiça divina o mal feito por Judas, tivesse de admirável tudo quanto Judas teve de abominável e fosse, portanto, um anti-Judas.

São Matias nos aparece, assim, como sendo o Apóstolo da fidelidade, do desapego, da honestidade, da lealdade. Talvez só no Juízo Final saberemos alguma coisa de sua vida. Então conheceremos como esse homem bem-amado de Deus e de Nossa Senhora realizou a tremenda missão de ser aquele que, pela luz de sua virtude, apagaria a mancha de Judas na História da Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/2/1966)

São Francisco Di Girolamo

Pregador incansável pela conversão dos pecadores, São Francisco Di Girolamo soube conservar-se inteiramente humilde e abnegado, apesar do estrondoso sucesso que obtivera em seu apostolado. Homem a quem a própria Virgem Santíssima recomendara aos pecadores, São Francisco arrastava as almas ao caminho do bem, por sua despretensão e humildade.

Em legado ao bem que realizou, a Providência concedeu-lhe uma das mais belas mortes. Rendeu ele seu espírito ­cantando o “Magnificat”, cântico com que a própria Mãe de Deus louvou o Padre Eterno pelos dons que recebera.

Uma vida cheia de glória que proclamava humilde e alegremente sua plenitude, no momento derradeiro de seu ocaso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/5/1968)

São Mayeul e a confiança cega

Se, como diz a máxima, a justiça é cega, mais ainda o deve ser a nossa confiança em Deus. Quando nos exercitamos nessa virtude, praticando-a de modo humilde e irrestrito, acumulamos um inimaginável tesouro de misericórdia e recompensas celestiais. É a lição que Dr. Plinio extrai da admirável vida de São Mayeul, abade de Cluny, o mosteiro-pilastra da Cristandade medieval.

 

Célebre na Idade Média e nos séculos sucessivos, pela impregnação do espírito católico que ela promoveu na cultura e civilização europeias, a Abadia de Cluny foi igualmente um celeiro de Santos.  Entre eles, São Mayeul, abade cuja biografia podemos ler no Pe. Rohrbacher.

Humildade, obediência e dom dos milagres

São Mayeul de Cluny, nasceu na Provença, pelo ano de 906. Foucher, seu pai, era da primeira nobreza, e tão rico que doou àquele mosteiro vinte terras com as igrejas a que pertenciam. São Mayeul era ainda jovem quando perdeu pai e mãe, e suas propriedades haviam sido devastadas por invasores bárbaros, obrigando-o a abandonar a região e se retirar para Mâcon. Ali foi recebido por um parente seu, e colocado entre os cônegos da diocese. Pouco depois se dirigiu a Lyon, onde estudou as artes liberais e a filosofia. De regresso, foi promovido a arcediácono, dignidade na qual se destacou por sua caridade para com os pobres e na instrução de outros clérigos.

Sua reputação tornou-se tal que, tendo vagado o arcebispado de Besançon, foi eleito, com consentimento do clero e do povo. Porém, recusou-se a assumir o cargo, e concebeu mesmo a ideia de deixar o mundo.  Como o mosteiro de Cluny estivesse nas vizinhanças de Mâcon, Mayeul abraçou a vida monástica nessa comunidade, em 943.

Não se distinguiu senão pelas virtudes, sobretudo a obediência e a humildade. Seis anos após a entrada de Mayeul no mosteiro, o santo Abade Aymard, sentindo-se velho e cego, e temendo que as enfermidades fossem causa de relaxamento na observância da regra, declarou-o abade, com o consentimento de toda a comunidade. Após a morte do venerável Aymard, em 965, Mayeul governou sozinho a abadia durante perto de 30 anos. Aliava à doutrina grande facilidade de falar, e escutavam-no com prazer quando proferia um discurso de moral. Muitos ricos e poderosos, tocados pelas suas exortações, abraçaram a vida monástica e aumentaram consideravelmente a comunidade de Cluny. Mayeul procurava sempre o recolhimento, mesmo nas viagens, e orava com tal compunção que, não raro, encontravam a terra regada de lágrimas.

Também tinha o dom dos milagres.  Indo, por devoção, visitar a Igreja de Nossa Senhora de Puy-en-Velay, entre os muitos pobres que lhe pediam esmolas, um cego disse ter tido a revelação de São Pedro que recuperaria a vista, se lavasse os olhos com a água onde São Mayeul houvesse lavado as mãos.  O abade despediu-o com forte reprimenda, e, sabendo que ele pedira tal água aos domésticos, proibiu-lhes terminantemente de fazê-lo. O cego não se desencorajou. Após ser despedido várias vezes, esperou o abade à beira do caminho, tomou o cavalo pela brida, e jurou não largá-lo antes de obter o que pedia.

Para que não fosse possível uma escusa, trazia água num vaso pendente do pescoço. O santo compadeceu-se, desceu do cavalo, benzeu a água segundo o costume da Igreja, fez o sinal da Cruz sobre os olhos do cego, depois, com os assistentes, se pôs de joelhos e orou à Santíssima Virgem. Antes de se levantar, o cego recuperara a vista…

Admirado pelos bárbaros

Em 973, São Mayeul regressava de Roma, acompanhado de grande número de homens de vários países, que se criam seguros na companhia de um santo. Mas, na passagem dos Alpes, foram atacados pelos sarracenos de Freysinet, que colocaram todos a ferros. O santo abade, cheio de aflição, pediu a Deus que ninguém morresse e foi atendido. Como alguns mouros zombassem da religião cristã, São Mayeul começou a mostrar-lhes com fortes razões a segurança da nossa religião e a falsidade da deles. Isto os irritou a tal ponto, que lhe algemaram os pés e o encerraram numa horrível gruta. Neste local, tendo o santo encontrado ao seu lado a obra atribuída a São Jerônimo, o “Tratado da Assunção da Virgem Santa”, pediu à Mãe de Deus que lhe fosse ainda concedido celebrar esta festa com os cristãos. Estavam a 23 de julho. Milagrosamente viu-se livre das algemas e os infiéis, estupefatos, passaram a tratá-lo com respeito. Permitiram que escrevesse a Cluny para obter seu resgate e de seus companheiros, e restituíram os víveres que haviam guardado como despojos de guerra.

Enquanto a quantia exigida não chegava, aumentou a devoção dos bárbaros pelo abade. Como este não estivesse habituado aos seus alimentos, preparavam um pão especialmente para ele. Certa vez, querendo polir um bastão, um sarraceno colocou o pé sobre a Bíblia que Mayeul trazia sempre consigo. O santo deixou escapar um gemido e o soldado foi pronta e severamente repreendido pelos companheiros. No mesmo dia este sarraceno, entrando numa briga, teve cortado o pé com que pisara a Sagrada Escritura.

Vindo enfim o resgate, São Mayeul foi libertado e celebrou a festa da Assunção entre os seus, como pedira. Os sarracenos de Freysinet não tardaram a ser completamente batidos por tropas cristãs, o que foi considerado como uma punição divina pelo aprisionamento do santo abade.

Em 994, quarenta e um anos depois de sua fecunda existência como superior de Cluny, consagrada à virtude e ao zelo pela disciplina monástica, São Mayeul passou ao repouso do Senhor, cheio de anos e méritos. Sua sepultura, em Souvigni, ficou célebre por tão grande números de milagres, que Pedro, o venerável, não receou dizer que, depois de Nossa Senhora, não há outro santo na Europa que mais milagres operou.  

A Providência orienta as diversas formas de santidade

Por esses interessantes traços biográficos, percebemos como Deus via cada alma de acordo com uma orientação própria, correspondente aos desígnios d’Ele de dispô-las no universo de maneira ordenada e sábia, segundo formas diversas de santidade.

Então, para determinado tipo de alma está destinado um tipo de graça, e há uma conduta especial da Providência ajustada a ela, orientando os acontecimentos terrenos, produzindo-os, permitindo outros, de maneira que tais almas sejam fiéis a essas graças e realizem a forma de santidade à qual foram chamadas.

Isso se aplica de modo esplêndido no que diz respeito a São Mayeul.

Antes de tudo, é interessante observar como as pessoas daquele tempo procuravam viajar junto com os homens tidos por santos, certos de se verem mais protegidas do que se andassem sozinhas. É uma atitude que revela o espírito de fé do qual estavam animadas.

Porém, viajaram com este santo e na aparência Deus os iludiu, pois todos caíram presos nas mãos dos sarracenos. Portanto, a confiança depositada no santo parecia objeto de uma severa e amarga desilusão.

Ora, o que aconteceu?

São Mayeul, cheio de aflição, pediu a Deus que ninguém morresse, e foi atendido. Um outro santo qualquer poderia desejar o contrário, e rogar a Deus que, naquele momento, concedesse a todos a palma do martírio, ou pelo menos não pedir a vida para todos. Ficaria quieto, entregando nas mãos de Deus o destino deles, como aprouvesse à sua infinita sabedoria. Seriam modos diversos pelos quais as almas santas, sob influxos diversos da graça, respondem de maneiras distintas em semelhantes situações.

Confiança absoluta no auxílio divino

No caso de São Mayeul deu-se como o narrado, e ele foi atendido. Ninguém morreu, e a confiança que tinham depositado em Deus na pessoa dele foi, portanto, justificada. E o foi por uma espécie de superabundância, porque não só não morreram, como presenciaram uma série de maravilhas as quais terão feito imenso bem para as almas deles.

Em primeiro lugar, tiveram a graça de privar com um santo. Deus, na aparência de lhes tirar algo, de fato lhes concedeu mais do que imaginavam, ao contrário do que faz o demônio: quando este nos promete algo, é exatamente o de que nos irá privar. Nosso Senhor age de modo inverso, e não nos nega aquilo que nos prometera. De sorte que cabe a nós nutrirmos uma inteira confiança na misericórdia divina, pois acabará nos proporcionando o que parecia nos ter subtraído.

Assim, também aparentemente, Ele punha aqueles homens em risco de vida. De fato, Ele lhes deu a vida e muito mais do que esta, oferecendo-lhes preciosíssimos dons espirituais.

Analisemos um pouco estes dons.

Eles viram o santo entrar em discussão com os hereges e presenciaram a glória da religião manifestar-se pelo fato de os sarracenos não serem capazes de discutir e se irritarem. Constataram, por esta forma, a força dos argumentos da religião verdadeira.

Mais ainda. Viram o santo sofrer uma prisão injusta, ser algemado e duramente tratado por causa da defesa que fez da doutrina católica. Mas, testemunharam também esse outro lado da glória divina, que é o fato de o santo, depois de ler o “Tratado da Assunção da Virgem Santa”, ter feito um pedido e ser atendido milagrosamente. Quer dizer, foi libertado, as algemas se quebraram e os muçulmanos ficaram estarrecidos diante do ocorrido. Portanto, trata-se de uma insigne graça concedida por Deus a esses homens…

Ademais, puderam perceber como seus captores se tomaram de respeito para com o santo no qual não acreditavam, tributando-lhe toda espécie de atenções. E mediram a envergadura da intervenção de Deus, ao ser cortado o pé de um homem que tinha desprezado a Bíblia. E auferiram a maldade humana quando, apesar disto, os sarracenos não se converteram. Enfim, contemplaram o que consideraram um castigo divino pela prisão do santo, ou seja, a derrota das tropas de seus perseguidores.

De maneira que, tendo posto a sua confiança em São Mayeul, foram atendidos com uma verdadeira superabundância, e esse fato ficou registrado na História. Quase mil anos depois de ocorrido, pessoas de um país e de uma cidade que eles não sabiam poder existir, recordam com devoção e enlevo esse episódio.

Percebemos, portanto, quanto de bom e edificante resultou dessas peripécias de São Mayeul, na aparência ruins, fadadas ao insucesso e próprias a induzir as almas a não confiarem na Providência Divina.

Porém, a verdadeira lição a se tirar é o oposto: cumpre confiar sempre no socorro do Céu. E com um requinte.Diz-se que a justiça é cega; pois muito mais o deve ser a confiança. A Providência espera que confiemos contra todas as evidências, contra todas as aparências, conservando-nos fiéis apesar de todas as circunstâncias em contrário. Quando a pessoa passa longo tempo se exercitando nessa confiança irrestrita, acumula para si um inimaginável tesouro de misericórdia e recompensa.

O êxito através de aparentes abandonos

Peçamos, pois, a Nosso Senhor Jesus Cristo, pelos rogos de sua Mãe Santíssima e de São Mayeul, essa confiança cega que resiste a todas as evidências no sentido contrário, para a solução dos nossos problemas interiores, para obtermos misericórdia quanto aos nossos pecados e defeitos, e para alcançarmos a graça de progredirmos na santidade, em meio aos torvelinhos mais estranhos e às vezes mais lamentáveis da vida espiritual.

Confiar, confiar, confiar sempre, lembrando o que dizia São Francisco Xavier: o pior do pecado não é a falta cometida, e sim que a alma perca a confiança depois do pecado e continue a cair. Se o pecador não perder a confiança depois do pecado e confiar, mais dia menos dia ser-lhe-á dada a misericórdia.

Igual confiança devemos manter nas vicissitudes da nossa vida quotidiana, nas nossas dificuldades de apostolado, etc. E a esse propósito, convém considerarmos o seguinte. Segundo uma falsa filosofia do sucesso, tudo aquilo que fazemos tem de dar resultados visíveis e palpáveis, e todo insucesso nos deixa perplexos, não deveria existir e indica que Deus nos abandonou. Então, se tentamos, por exemplo, fundar uma escola e esta se fecha, significa que não a devíamos ter aberto. Deus nos abandonou. Se pretendemos convidar alguém para fazer parte do nosso movimento e este alguém não corresponde, é sinal de que Deus não nos foi favorável. E assim por diante.

Ora, compreendamos que Deus nunca opera deste modo. Ele nos reserva o êxito através de muitos aparentes abandonos, ou através de muitas catástrofes reais, que resultarão depois na vitória. E é essa aceitação das catástrofes intermediárias que nos proporciona o resultado pleno que devemos desejar. Às vezes empreendemos algo e logo sobrevêm os reveses, não aquilo que esperávamos. Depois percebemos que Nossa Senhora nos obteve coisa incomparavelmente melhor do que a almejada por nós. Dessa maneira, nunca acontece de uma confiança não ser atendida nem coroada de êxito, embora por vezes de um modo que supera as próprias exigências e pedidos da mais afetuosa e humilde confiança. Portanto, esperar contra toda esperança, eis a fidelidade perfeita nessa virtude, a qual notamos naqueles homens que acompanharam São Mayeul.

Peçamos então ao santo abade de Cluny, alcance-nos a graça de aplicarmos essa lição nos episódios de nossa vida, discernindo a mão de Deus a nos guiar através dos túneis e precipícios mais desconcertantes, e a providência de Nossa Senhora pairando sobre nós, para nos dar sempre incomparavelmente mais do que desejamos. Amém.

 

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações de Jacinta e Francisco por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

 

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1).

A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia.

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados!  Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:

— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?

— Então, pediram-me tanto!…  — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:

— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:

— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:

— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:

— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:

— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:

— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas.

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações. 

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Jacinta e Francisco: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então Francisco e Jacinta são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:

— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:

— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:

— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos videntes de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

 

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.

Santo Atanásio, gigante contra o arianismo

Batalhador incansável contra uma das maiores heresias de todos os tempos, Santo Atanásio sofreu atrozes perseguições promovidas pelos inimigos da Igreja. Mas as enfrentou com coragem, dignidade e ufania. Foi um dos maiores santos de toda a História, um lutador contra a heresia, como talvez a Esposa de Cristo não tenha tido nem antes nem depois dele.

 

Estive lendo, antes de vir para cá, um resumo biográfico muito condensado da vida de um dos maiores santos da Igreja, que foi Santo Atanásio. E alguns dos aspectos da biografia desse grande santo, que eu não conhecia, me chamaram a atenção, e me pareceu bem comentá-los.

Uma das maiores heresias da História

Santo Atanásio(1) viveu no tempo do Imperador Constantino e de seus sucessores imediatos. Quer dizer, quando a Igreja estava saindo das catacumbas e se organizando à luz do dia. Nessa época, ao mesmo tempo em que as perseguições promovidas pelos pagãos estavam em declínio, a Esposa de Cristo sofria um outro flagelo, certamente pior do que a perseguição dos pagãos, e que nós conhecemos muito bem: as heresias e as divisões internas.

Uma das maiores heresias de toda a História grassou exatamente no tempo de Santo Atanásio e Constantino, a dos arianos. Estes afirmavam que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha uma natureza apenas humana; não era Deus, era um grande homem, um homem extraordinário. E essa heresia, como percebem, importava na negação completa da Religião Católica. Reduzir Nosso Senhor Jesus Cristo a um puro homem é negar a Doutrina da Igreja por inteiro.

Os arianos eram muito poderosos, espalharam-se rapidamente por todo o Império Romano — que se localizava mais ou menos em torno da bacia do Mediterrâneo — e, por serem exímios em toda espécie de difamação, obtiveram influência na corte imperial; arrastaram atrás de si tal número de fiéis, mesmo sacerdotes e bispos, que Santo Atanásio declarou que um belo dia o mundo inteiro gemeu porque, ao amanhecer, deu-se conta de que era ariano. Quer dizer, de um momento para outro essa heresia grassou por toda parte e, como que, todo o mundo se tinha tornado ariano.  

Nesta luta contra o arianismo, o gigante foi Santo Atanásio, Patriarca — quer dizer, mais do que um arcebispo — de Alexandria, que era uma das grandes sedes episcopais da antiguidade.

Seis anos no fundo de um poço

Santo Atanásio foi, não me lembro se quatro ou seis vezes, obrigado a fugir da cidade de Alexandria, por causa das conspirações dos arianos, os quais conseguiram vários decretos imperiais expulsando-o para esta ou aquela parte do Império Romano, e muitas vezes sendo perseguido de morte; e, ao longo dessas perseguições e dessa luta tremenda que ele travou, alguns fatos não são tão conhecidos.

Conhece-se a história da querela dele com os arianos no terreno doutrinário, mas sabe-se menos a respeito dos episódios policialescos de sua luta com os arianos. Parece-me, entretanto, que na vida de um santo, mesmo alguns fatos menores têm muito de edificante, e que valeria a pena referir aqui alguns desses episódios.

Para terem ideia do quanto importava, muitas vezes, a resistência a favor da ortodoxia contra a heresia, basta dizer o seguinte: Santo Atanásio, num lance de sua luta, para fugir aos hereges passou seis anos no fundo de um poço! Não sei se os aqui presentes se dão bem conta do que significa isso: sem ver sequer a luz do dia! Havia apenas um católico fiel o qual, na hora em que o poço estava abandonado, lhe jogava o necessário para viver. O poço, ao menos água lhe fornecia…  E ele ficava ali lendo, refletindo, rezando, de maneira que Deus, no mais alto dos Céus, recebeu durante seis anos o louvor perfeito que um santo lhe enviava do fundo de um poço. Sempre confiando na Providência, disposto a lutar, inquebrantável no seu propósito, de maneira que, ao cabo de seis anos, a perseguição se amainou e o amigo dele lhe avisou do alto do poço. Ele, então, saiu e continuou sua luta contra o arianismo.

Numa outra ocasião — a provação foi menor, mas não deixou de ser também impressionante — ele teve que fugir pelos desertos do Egito, e não encontrou lugar para se refugiar a não ser a sepultura do próprio pai. E passou ali dentro durante quatro meses! Lúgubre é, não para a alma de um grande santo, mas, em todo caso, para a sensibilidade humana. De lá ele saiu e conseguiu retomar a luta contra o arianismo. E fazia isso por meio de sermões extraordinários, que eram anotados, e as cópias transmitidas de católico para católico, por toda a extensão do Império Romano.

Um conciliábulo de arianos

Certa vez, Santo Atanásio foi intimado a comparecer a um grande concílio de bispos arianos. Ele declarou que não iria porque eram bispos hereges, não os reconhecia como verdadeiros católicos e não tinha comunhão com aquela gente. Mas o santo recebeu do Imperador Constantino um decreto, obrigando-o comparecer para discutir com os hereges. Aí mudava a situação. Não era mais aceitar o concílio como uma assembleia legítima, da qual ele participaria, mas ir lutar contra o pseudo concílio, aliás, um conciliábulo de hereges.

Ele, então, foi; estavam presentes cento e tantos bispos, o que para aquele tempo era muita coisa, e com os hábitos de seriedade e solenidade daquela época. Acompanhado de um sacerdote que lhe era fiel, Santo Atanásio entra na assembleia, onde todos os bispos paramentados o recebem. Não lhe destinam lugar para sentar-se; ele fica em pé e percebe logo que os arianos não queriam discutir doutrina — porque os hereges não gostam de discutir doutrina, eles vão fazendo afirmações e depois caluniam.

Santo Atanásio percebeu que se tratava de uma acusação; ele ia ser julgado, numa atmosfera de calúnia e de ódio tal que nem se constituía um tribunal regular, o qual ele recusaria. Foi um puro vozeiro contra ele. E a primeira investida foi essa: uma mulher de má vida levantou-se e disse que ela estava rica devido ao dinheiro que Santo Atanásio lhe dava; tinha presenciado, durante os períodos em que ele passava em lugares que não se sabia onde, tais e tais abominações; e que podia dar provas disso porque ela era testemunha.

Então, à medida que ela falava, os bispos arianos bramiam que ele precisava ser deposto, condenado etc. — porque não há como um herege para se fingir de zelador dos bons costumes, quando se trata de perseguir um verdadeiro católico. Santo Atanásio, com uma inteligência extraordinária, sutil, não disse nada. Conservou-se sereno e deixou o pessoal vociferar. Apenas ele soltou um cochicho no ouvido do padre que o acompanhava. Quando o sacerdote pôde cortar a palavra da meretriz, ele lhe disse, fingindo que era Santo Atanásio: “Então, você afirma realmente que me conheceu, que me viu etc.?” A tonta pensou que aquele fosse Santo Atanásio, o qual ela nunca tinha visto. Então, declarou: “Afirmo.” “Jura?” “Juro.” Notem com que superior inteligência ele decidiu a situação!

Deu-se, então, na assembleia o que ocorreu aqui com os presentes: os próprios hereges estalaram na gargalhada. Porque a farsa ficou de tal maneira evidente, que não era mais possível continuar. E houve um movimento para dissolver todo mundo, porque a coisa tinha terminado em chanchada.

Acusado de ter decepado a mão de um bispo

Aí, alguns mais fanáticos dentre os arianos começaram a exclamar: “Tem mais essa acusação, que é gravíssima!” É tal a má-fé dessa gente que voltaram para ouvir a segunda acusação. Depois de se ver que a primeira era uma chanchada, do que valeria a autoridade desses mesmos homens para levantarem outra acusação?

E Santo Atanásio foi mais uma vez extraordinariamente servido pela Providência. Levantou-se um bispo herético, tirou de uma caixa uma mão ressequida de um morto, e disse: “Aqui está a mão de tal bispo meleciano — havia uma heresia colateral, meio metida com a dos arianos, chamada dos melecianos(2) —, morto por Atanásio em tal ocasião. E isso foi um crime nefando. Para provar que ele realmente foi morto, aqui está a mão desse venerável homem de Deus, que se afundou no deserto — era o mesmo deserto onde estava Santo Atanásio. Quem é que poderia ter cometido esse assassinato senão Atanásio?” Santo Atanásio ouviu isso também com toda a serenidade possível.

Entre os assistentes — é uma coisa que só se explica por intervenção divina — havia um homem de cabeça baixa e recoberto com aqueles panos do Oriente. Santo Atanásio foi até ele e perguntou aos arianos: “O bispo tal morreu? Vocês têm certeza?” “Temos”. O santo puxou o pano e disse: “Olhem, aqui está ele”. Era o próprio bispo meleciano…

Então, Santo Atanásio, gracejando, disse o seguinte: “Deus não deu a cada um de nós mais do que duas mãos; levante uma mão!” Ele levantou. “Agora levante a outra”. Ele o fez e o santo concluiu: “Bem, compete a vocês explicar em que parte do corpo dele se encaixava outra mão”. Cumprimentos… e o caso estava liquidado.

Os arianos desarmaram? Não. Começaram a gritar atrás de Santo Atanásio: “Mágico, praticou crime de magia! Não se pode explicar, a não ser por magia, que esse homem estivesse aqui presente nesta hora!” Essa é a psicologia do herege. Diante das provas mais capazes de cegar, mais deslumbrantes de que estão com má-fé, eles não desanimam; encontram outra calúnia e mais outra, e vão sempre para a frente. Mas a coisa ficou tão desmoralizada que acabou.

Sagacidade de Santo Atanásio

Santo Atanásio, como verdadeiro santo, tinha horror à mentira. Evidentemente, não mentia nunca, nem em matéria leve. Certa vez, ele estava andando pelo deserto e, em determinado momento, apareceram tropas imperiais à procura dele, e alguém lhe perguntou: “Sabes onde está Atanásio?” Não o reconheceram. Diz o santo: “Sei sim, ele não está longe daqui”. Os militares foram à sua procura, e ele desviou…

Da parte de um Doutor da Igreja, exímio teólogo com profundidade de espírito, herói de grande sisudez, esses traços enriquecem a fisionomia dele, mostrando a pluralidade e a riqueza de aspectos que tem a alma de um verdadeiro santo. Sobretudo, destroçando um pouco a ideia sentimental que certas imagens projetam sobre o fiel a respeito do santo. Não me refiro às imagens monstruosas da “arte” moderna, mas a certas imagens que apresentam o santo com uma carinha muito bem-feitinha, sem barba, com um sorrisinho de quem não compreendeu nada.

Não é isso de nenhum modo um Doutor da Igreja, sobretudo um Santo Atanásio, um dos maiores santos de toda a História, e ele sozinho um lutador contra a heresia, como talvez a Igreja não tenha tido nem antes nem depois dele.

Horrível morte de Ario

Para conhecerem os lados dramáticos da vida dele, menciono apenas um episódio, e com isso encerro este comentário sobre Santo Atanásio.

Constantino, o Grande, que libertou a Igreja, foi enredado pelas intrigas dos arianos. Aliás, a vida post-conversão de Constantino é um tanto discutida. Em certo momento, ele tomou partido decidido por Ario, chamou Santo Atanásio e o expulsou para a Gália. O santo lhe disse: “Vós me proibis de voltar para meu trono patriarcal e apoiais os hereges. Prestareis em breve contas a Deus por isso!”

 E dirigiu-se para a Gália, onde foi recebido, aliás, com todas as atenções e toda a cortesia por Constâncio, filho de Constantino, o Grande. E ali esteve durante algum tempo. Depois foi para Roma, e justificou-se perante o Papa, que lhe deu toda a razão. E aproveitou a ocasião — assim são os santos: eles são expulsos de um lado e aproveitam para fazer maravilhas de outro; ninguém consegue tolher sua capacidade de ação — para fundar o estado monástico em Roma, diz seu biógrafo.

Posteriormente, chegou a notícia de que Constantino tinha morrido, e ao mesmo tempo a informação de que também Ario falecera. Este havia sido colocado por Constantino no trono patriarcal, onde ele era um arcebispo usurpador, não o patriarca legítimo. No ato de sua posse, Ario organizou a procissão com aquela solenidade que se fazia antigamente para a posse de um bispo; e quando a procissão transcorria, ele, em determinado momento, estando perto de instalações sanitárias públicas, sentiu-se mal. Então desceu do animal em que montava e entrou numa dessas instalações, e ali morreu do modo mais horrível que possa haver: parece que o abdome dele se rompeu e suas vísceras se derramaram no chão. Assim, em pouco tempo, morreram Constantino e também Ario; e Santo Atanásio ficou senhor da diocese.

Acolhido triunfalmente em Alexandria

Mas pouco tempo depois recomeçaram as perseguições; ele levou sua vida, quase até o fim, de perseguição em perseguição.

O povo de Alexandria gostava muito dele e, em geral, quem o perseguia eram pessoas corrompidas das classes dirigentes. Numa das ocasiões em que voltou para essa cidade, ele foi reempossado na Arquidiocese como legítimo pastor. A população preparou-lhe uma grande recepção, tão afetuosa e extraordinária, que passou como provérbio, em Alexandria e naquelas partes do Egito, a seguinte expressão, quando se queria dizer que alguém foi muito bem acolhido: “Foi recebido como Santo Atanásio”. Era o último grau da popularidade, da acolhida respeitosa, cheia de veneração, filial e, ao mesmo tempo, plena de entusiasmo.

Há um outro aspecto da vida de tantos santos perseguidos. As cúpulas corrompidas organizam contra eles toda espécie de difamação. Mas o Espírito Santo sopra onde quer e previne a opinião pública a respeito da realidade das coisas. De maneira que, de um modo ou de outro, acontece com frequência — não é uma regra absolutamente geral, pois nessa matéria não há regras absolutamente gerais — que o povo vê claro e faz justiça àquele que os poderosos estão perseguindo.

Essas são as notas mais interessantes, que me pareceu conveniente apresentar a respeito do grande Santo Atanásio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 20/2/1971)

Santo Antonino de Florença

Arcebispo de Florença e grande amigo do Beato Angélico, Santo Antonino lutou contra os desvios da Renascença.

 

A partir do momento em que foi eleito Arcebispo de Florença, Santo Antonino lutou acirradamente contra os desvios propagados pelos renascentistas. Acompanhemos a descrição de sua vida feita pelo Pe. Rohrbacher:

“Antônio, que por sua pequena estatura foi chamado Antonino, nasceu em 1389, sendo filho de um notável homem de Florença. Destacou-se desde cedo nos estudos por sua invulgar inteligência”.

Florença foi uma das grandes cidades que iluminaram a História, com seu especial modo de ser. Florença — ela é a cidade das flores — floresceu precisamente numa época na qual a História italiana encontrava-se em um “tournant”, como denominam os franceses, no  momento em que novos rumos se constituíam e tudo se transformava.

Configurava-se um conflito entre a tradição medieval e os fortes ventos da Renascença que ameaçavam tudo destruir. Entretanto, havia ainda possibilidades de sensibilizar a opinião italiana, caso grandes santos combatessem de frente a Renascença então vicejante.

Florença era propriamente o foco da Renascença. Encontravam-se lá, então, os maiores talentos renascentistas, capazes de irradiar sobre a Itália o seu novo estilo, e que realizavam, na própria cidade, obras de arte de um valor extraordinário. Florença tinha grande importância para aquele tempo. Sendo metrópole do Grão-ducado de Toscana, possuía uma dinastia que haveria de ligar-se por vários laços de casamento com a Casa da França, e haveria de dar mais de um Papa ao sólio pontifício: os Médici, uma das famílias mais poderosas e importantes da Europa. Florença era então um luzeiro do mundo, nutrindo de especial significado, realce e importância, a tudo quanto se passava em seu meio.

A resposta da Providência não haveria de tardar…

“Muito cedo desejou entrar na Ordem Dominicana, pela santidade dos seus membros e pela influência das pregações do Beato João Dominichi. A este pregador dirigiu-se Antonino pedindo o hábito. Mas Dominichi, achando-o muito débil e frágil, prometeu atendê-lo quando houvesse decorado a obra “Decretos de Graciano”. Antes de um ano, para pasmo do dominicano, voltou o menino. Decorara a obra e foi admitido aos dezesseis anos somente.

“Religioso exemplar, foi mais tarde Prior dos dominicanos de Toscana e Nápoles.

“Em 1445 o Papa Eugênio IV procurava um arcebispo para Florença. Um frade dominicano pintor, que mais tarde seria conhecido como Fra Angélico, indicou Antonino como modelo de virtudes. O Papa acedeu à sugestão e, nomeando-o arcebispo, o santo entrou em Florença com pompa magnífica, segundo o costume, mas suprimindo o que havia de secular nessa solenidade…”

Nessa situação, a Providência designou um santo recolhido, diáfano e robusto na Fé: Fra Angélico de Fiesole. Possuindo um talento artístico repleto de delicadeza, candura e, quase se afirmaria, santa ingenuidade, não obstante demonstrou sagacidade e perspicácia, quando se tornou necessário indicar quem deveria assumir o Arcebispado de Florença. O homem a quem indicara foi Santo Antonino.

Ao mesmo tempo em que permitia que as hidras da Renascença deitassem ali todo o seu calor, a Providência fazia florescer santos e gênios naquele mesmo ambiente, para disputar influência e combater o fogo das novas tendências.

Surge então Antonino como Bispo de Florença. Podem-se imaginar os magníficos veludos e damascos com os quais foram confeccionadas as roupagens dos personagens que tomaram parte no cortejo de Santo Antonino, na ocasião em que tomou posse da Sé Arquiepiscopal da cidade. Dessa pompa, ele retirou sabiamente tudo quanto havia de profano…

O poder da santidade

“No trono episcopal, mostrou todas as virtudes de um verdadeiro pastor. Trabalhou com tanto zelo para reformar os escândalos públicos, que o Papa Pio II o escolheu para a reforma da Cúria Romana. Mas antes que pudesse iniciar este grande mister, Deus chamou-o a Si. Era o ano de 1459. Grande orador foi o Arcebispo de Florença. Sua santidade e cultura levaram-no a ser consultado pelos grandes da época, o que lhe valeu o apelido de “Antonino, o Conselheiro”. Seu lema de vida era “Servir a Deus é reina”. Cosme de Médici o tinha em tão alta consideração, que afirmava que a cidade de Florença tudo devia às orações do santo arcebispo.”

A história pouco conta sobre a ação desenvolvida por ele a favor da austeridade de costumes, como também o combate frontal às influências maléficas da Renascença. Dos historiadores renascentistas, vários reconhecem que pela presença de Santo Antonino na Sé de Florença, o movimento da Renascença perdeu em algo seu vigor e sua velocidade em contagiar a cidade e, consequentemente, toda a Itália.

Conclui-se a partir disso quanto é grande o poder de um santo, ao ponto de uma das figuras mais eminentes e talvez mais condenáveis do Renascentismo, Cosme de Médici, afirmar que a cidade devia tudo às orações de Santo Antonino. Vê-se o quanto este santo podia realizar, e quanta receptividade ainda havia em relação a ele.

Poderia alguém indagar-se: “Qual o sentido dessa obra da Providência? Um santo que passa como um meteoro que brilha, detém um pouco o curso das coisas, mas cuja obra não consegue evitar o avanço do Renascimento. Qual é o alcance histórico do fato de a Providência ter colocado Santo Antonino em Florença?”

Uma alma zelosa nunca poderia colocar-se essa pergunta, porque basta ter contido a onda renascentista durante algum tempo, para contribuir em alto grau à glória de Deus. Como Santo Inácio de Loyola que afirmava ter sido bem empregada por amor à glória de Deus uma vida inteira de lutas e padecimentos, a fim de que um grande pecador deixasse de cometer um pecado mortal.

Corresponder é vencer!

Compreende-se, por isso, que deter por pouco que seja a imensa onda de pecados provenientes da Renascença, é evidentemente algo que possui muito significado para quem almeja a glória de Deus.

Há um outro aspecto digno de consideração, que se centra na continuação da obra iniciada por Santo Antonino e pelo Beato Angélico. Deveriam haver almas que eram raízes de bem, aptas a dar continuidade ao trabalho por eles iniciado, e naturalmente apoiadas pelo Papado, e que prosseguissem a ofensiva contra a Renascença.

E com pesar pode-se constatar que a obra da Providência não foi completada pela obra dos homens. E as almas chamadas por Santo Antonino a continuarem sua obra, não corresponderam ou não obtiveram o apoio necessário, e então a obra ruiu.

Deduz-se, então, quão importante é o papel da história de uma alma. Deparamo-nos com uma cidade que irradiava a intemperança para o mundo inteiro, mas que de tal forma era tocada por talentos e dons, que caso as almas eleitas para empunhar a tocha da reação anti renascentista fossem fiéis, possivelmente a cidade inteira teria se convertido. Uma vez convertida a cidade, era bem possível que a história do mundo fosse completamente diversa.

Florença podia ter alterado a história do mundo se, por seu lado, algumas almas próximas de Santo Antonino houvessem modificado a história de Florença. Portanto, se a história do mundo não se alterou, e o mundo desceu pelo despenhadeiro da Renascença — sucessivamente à Revolução Francesa e ao Comunismo — isto se deve a algumas almas que foram fracas e não tiveram generosidade. Disseram “não”, ou disseram um “sim” incompleto ao convite da Providência. Por causa dessas almas, a História não mudou.

Não é devido ao grande talento de algum renascentista que a obra de Santo Antonino não vingou. A dificuldade é que a Providência encontre sempre fiéis os homens que Ela suscitou para serem seus instrumentos. Se todos os eleitos por Deus fossem de fato fiéis, não haveria quem impedisse os planos da Providência de se executarem.

“Vae mihi!”

Surge então uma aplicação para cada alma individualmente: “Não serei também uma alma destas? Não fui chamado a ter uma fidelidade ilibada? Não será que uma pequena falta de generosidade de minha parte determinará um recuo notável nos planos da Providência?”

Quantas vezes não temos a possibilidade de fazer bem a uma alma, que por sua vez faria o bem a inúmeras outras almas! Não poderia resultar dessa atitude uma reação boa que fosse, sob diversos aspectos, um golpe no adversário? Entretanto, por falta de paciência, quantas não foram as ocasiões em que rejeitamos o apelo de Deus, no zelo pelas almas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 9/5/1968)

 

Paixão

Cada festa celebrada pela Igreja é acompanhada de enorme efusão de graças correspondentes às dádivas recebidas em vida pelo santo então celebrado. Isto se dá também quanto aos mistérios da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora, que eventualmente consideremos em determinada celebração.

Ora, aproxima-se o dia em que a Santa Igreja reserva para contemplarmos liturgicamente o “mistério dos mistérios”, ou seja, a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a redenção do gênero humano.

No momento em que Ele, expirando, disse “consummatum est” e sua Alma se separou do Corpo, a redenção se operou. O gênero humano, de perdido que era, passou a ser salvo. Nesse momento, nós fomos resgatados e a fonte de todas as graças se abriu para nós.

De fato, por causa de seu sacrifício, Nosso Senhor Jesus Cristo é uma fonte de graças aberta para todos nós; este sacrifício abriu para nós uma infinita torrente de misericórdia, que nos traz toda espécie de bem e de perdão, desde que verdadeiramente queiramos dela nos beneficiar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1966)

Glorioso São José

A primeira das glórias terrenas de São José é a do homem recusado às portas das estalagens de Belém; a de se  refugiar num lugar ermo e ali ver nascer o Filho de Deus; a de ser um homem apagado, o “carpinteiro”, rejeitado por amor à justiça. A glória, exatamente, daquele que, enquanto comovedora prefigura, tomou sobre si as humilhações, a ignomínia, todo o peso do opróbrio que um dia recairiam sobre o divino Redentor.

São José

De todas as gloriosas palavras sobre São José, outras não dizem tanto quanto a simples afirmação de que foi esposo de Nossa Senhora e pai legal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois Deus, tão magnificiente no predestinar, modelar e cumular de graças a Mãe do Verbo Encarnado, se-lo-ia menos no escolher e formar o homem destinado por Ele a ser esposo dessa Virgem Mãe e pai jurídico desse Filho?

Os pastorinhos de Fátima e o Segredo de Maria

Que maravilhas da graça se operaram nos corações dos Pastorinhos de Fátima por ocasião de seus encontros com a Santíssima Virgem? Que virtudes a ação da celeste Senhora fez desabrochar naquelas humildes crianças? No presente artigo Dr. Plinio nos dá a resposta desvendando algo do Segredo de Maria ao constatar a vitória do Imaculado Coração de Maria nas almas dos dois videntes de Fátima.

Há uma ficha para nós comentarmos aqui: “Última aparição de Nossa Senhora em Fátima”, do Pe. João M. de Marchi, IMC, no livro: “Era uma Senhora mais brilhante que o sol”(1). A verdadeira diretora espiritual das crianças foi, todavia, essencialmente Nossa Senhora. Falo das crianças: Jacinta, Francisco e Lúcia (os Pastorinhos de Fátima).

A bondosa Senhora da Cova da Iria tomou à sua conta a realização desta obra-prima. E como não podia deixar de ser, levou a cabo com pleno êxito. Das suas mãos prodigiosas saíram três anjos revestidos de carne, mas que ao mesmo tempo eram três autênticos heróis. A matéria-prima era de uma plasticidade admirável. E da Artista, que mais dizer?

Na sua escola, os três serranitos deram, em breve tempo, passadas de gigante no caminho da perfeição. Neles se verificou, à letra, as palavras de um grande devoto de Maria, o Beato Grignion de Montfort: “Na escola da Virgem a alma progride mais numa semana do que em um ano fora dela”. A pedagogia da Mãe de Deus não sofre confrontos. Em dois anos, a Virgem Santíssima conseguiu erguer os dois irmãozitos, Francisco e Jacinta, até os cumes mais elevados da santidade cristã.

O retrato que a mão segura de Lúcia nos traça sobre Jacinta é revelador: “A Jacinta tinha um porte sempre sério, modesto e amável que parecia traduzir a presença de Deus em todos os seus atos. Próprio das pessoas já avançadas em idade e de grande virtude. Não lhe vi nunca aquela demasiada leviandade e o entusiasmo próprio das crianças pelos enfeites e brincadeiras isto depois das aparições). Não posso dizer, que as outras crianças corressem para junto dela, como faziam para junto de mim. E isto talvez porque ela não sabia tanta cantiga e historieta para lhes ensinar e as entreter, ou então porque a seriedade de seu porte era demasiado superior à sua idade. Se na sua presença alguma criança, ou mesmo pessoas grandes, diziam alguma coisa ou faziam qualquer ação menos conveniente, repreendia-as dizendo: “Não façam isso, que ofendem a Deus Nosso Senhor. E Ele já está tão ofendido!” (…)

Francisco sentia-se atraído por uma vida de asceta e de contemplativo. Frequentemente desaparecia da vista das duas meninas, mantendo-se em lugares ermos e ficava a pensar.

— Que estavas aqui a fazer há tanto tempo? Perguntou-lhe Lúcia.

— Estava a pensar em Deus que está tão triste por causa dos muitos pecados! Se eu pudesse O consolar! Jesus está tão triste e eu quero confortá-lo com oração e penitência.

Em outra ocasião dizia: “Gosto muito de Deus. Mas Ele está tão triste por causa de tantos pecados. Nós não devemos fazer nem o mais pequeno pecado!”

Um dia em que a Lúcia cedeu às instâncias das amiguinhas para tomar parte em divertimentos próprios da idade, Francisco chamou-a de lado e disse-lhe muito sério:
— Então tu voltas a essas brincadeiras depois de Nossa Senhora nos ter aparecido?
— Então, pediram-me tanto!… — escusava-se a Lúcia.

Mas o Francisco lógico e severo lhe retorquia:
— Toda a gente sabe que Nossa Senhora te apareceu, então não devem estranhar que tu já não queiras bailar!…

Trata-se aqui daquele bailado português em que as pessoas se tocam com as mãos. São aquelas figuras de bailado camponês.

As crianças aproveitavam as entradas e as saídas das escolas para irem visitar Nosso Senhor, passando longas horas ao pé do Tabernáculo.

A Jacinta e o Francisco, sobretudo, que tinham a promessa da Virgem de os vir buscar, em breve, para o Céu e que, portanto, se julgavam dispensados das lições, recolhiam-se mais vezes na igreja a falar a sós com “o Jesus escondido”.

Jesus escondido é o nome com o que chamavam a Eucaristia.

Jacinta dizia a Lúcia:
— Já fizestes hoje muitos sacrifícios? Eu fiz muitos. Rezei também muitas jaculatórias. Gosto tanto de Nosso Senhor e de Nossa Senhora que nunca me canso de Lhes dizer que Os amo. Quando eu Lhes o digo muitas vezes, parece que tenho lume no peito, mas não me queima.

Outras vezes:
— Olha Lúcia, Nossa Senhora veio nos ver esses dias. E veio dizer que vem buscar o Francisco muito breve para o Céu. E a mim, perguntou-me se ainda queria converter mais pecadores. Disse-lhe que sim. Ela disse-me então que quer que eu vá para dois hospitais, mas não é para me curar. É para sofrer mais por amor de Deus, pela conversão dos pecadores, em desagravo das ofensas cometidas contra o Coração Imaculado de Maria. Disse-me que tu não irias, que iria lá minha mãe levar-me e que depois ficaria sozinha.

Tempos depois, Francisco para Lúcia:
— Estou muito mal, falta-me pouco para ir para o Céu.

Lúcia:
— Então vê lá, não te esqueças de lá pedir muito pelos pecadores, pelo Santo Padre, por mim, e pela Jacinta.

Francisco:
— Sim, eu peço. Mas que essas coisas peças antes à Jacinta, que eu tenho medo de me esquecer, quando vir a Nosso Senhor. E depois, antes O quero consolar.

Na obra de Nossa Senhora com os videntes de Fátima, um começo do triunfo do Imaculado Coração de Maria nas almas

Esta ficha tem uma graça marcante, porque ela nos indica uma porção de aspectos grandes e pequenos da obra de Nossa Senhora com estas três crianças.

Mas nós devemos, antes de tudo, considerar o valor simbólico da obra de Nossa Senhora nas crianças. Enganam-se aqueles que imaginam ser apenas uma obra sobre três crianças. É uma obra que transformou suavemente essas crianças de um momento para outro, pelo simples fato das reiteradas aparições de Nossa Senhora.

Com uma dessas crianças até, Nossa Senhora disse estar aborrecida. E esta criança era o Francisco, que não ouviu Nossa Senhora por causa disso. E, portanto, pode ser considerado um convertido. As três mudaram extraordinariamente em consequência das revelações.

Nós temos aqui algo de parecido com o Segredo de Maria. Quer dizer, uma dessas ações profundas da graça na alma, ações que se desenvolvem sem a pessoa dar-se conta. Ela vai sentindo-se cada vez mais livre, cada vez mais desembaraçada para praticar o bem, e os defeitos que a tolhem e a prendem no mal vão se dissolvendo. E a pessoa cresce em amor de Deus, cresce em vontade de se dedicar, cresce em oposição ao pecado, mas tudo isso se dá maravilhosamente dentro da alma.

De maneira que a alma não trava as grandes e metódicas batalhas da ascensão admirável ao Céu, à virtude, à santidade, daqueles que lutam de acordo com o sistema clássico da vida espiritual; mas Nossa Senhora as transforma de um momento para o outro. E se a obra de Nossa Senhora em Fátima — especialmente com essas duas crianças chamadas para o Céu — foi assim, nós podemos bem nos perguntar se isto não tem um valor simbólico, e se não indica qual vai ser a ação de Nossa Senhora sobre toda a Humanidade quando Ela cumprir as promessas feitas em Fátima, e se não é lícito prever o cumprimento das promessas de Fátima executado à maneira do ocorrido com Jacinta e Francisco, mais notadamente, como cogita esta nossa ficha.

E, portanto, se nós não devemos ver aí um começo, podemos ver um dos múltiplos começos — porque as coisas enormes têm muitos começos — do Reino de Maria, enquanto sendo o triunfo do Imaculado Coração sobre duas almas pregoeiras da grande revelação de Nossa Senhora; as quais, pelos seus sacrifícios e orações na Terra e, depois, as orações no Céu, ajudaram e ainda ajudam enormemente as almas a aceitarem a mensagem de Fátima.

Quer dizer, nós devemos ver nessa transformação, creio eu, ao menos de um modo muito provável, um símbolo dessas transformações profundas que marcarão o Reino de Maria.

Os Pastorinhos de Fátima: intercessores apropriados para obter de Nossa Senhora o início de seu Reino em nossos corações

Esta primeira observação me parece conduzir diretamente ao seguinte: se isto é assim, então os pastorinhos de Fátima são os intercessores naturais para se pedir e obter de Nossa Senhora que comece o Reino de Maria em nós desde logo, por essa transformação misteriosa que é o Segredo de Maria.

E, então, nós devemos suplicar instantemente, tanto à menina quanto a ele, que comecem a nos transformar, comecem a nos dar os dons que eles receberam. E que eles velem especialmente sobre aqueles cuja missão é a de pregar a mensagem de Fátima, viver da mensagem de Fátima, como acontece conosco.

Isto é uma razão a mais para nós termos uma marcante devoção a eles.

Efeitos da ação de Maria sobre os videntes

É interessante notar, também, o efeito do Segredo de Maria sobre essas crianças. Elas mudaram, está bem. Mas quais os sintomas externos dessa mudança? Quais foram as manifestações externas dessa transformação? São apontadas aqui três coisas: grande seriedade, espírito de oração e espírito de sacrifício. Por cima de tudo isso, uma convicção muito grande da missão deles e o desejo de viver para essa missão, de onde vinham essas três consequências.

Espírito de seriedade

Espírito de seriedade. Os senhores viram o Francisco censurar a Lúcia por esta não ser bastante séria e aceitar de bailar, ou seja, fazer aquela dançazinha portuguesa com crianças. E a razão dada por Francisco para repreender a Lúcia foi essa:
— Você, que viu Nossa Senhora aparecer, não deveria participar desses brinquedos.

A Lúcia respondeu:
— Mas, afinal de contas, pediram tanto!

Disse o Francisco:
— Mas como eles sabem que a você Nossa Senhora apareceu, a você eles não deviam pedir.

Como quem diz: “Eles compreenderão a sua recusa ou, ao menos, têm todos os dados para compreender. Se eles não compreendessem, seria por culpa deles, mas você deveria ter recusado”.

É a ideia de que para agradar Nossa Senhora precisa ser muito sério. Não se agrada Nossa Senhora sem ser muito sério.

E de Francisco, a ficha diz que ele era lógico, raciocinava muito, com muita firmeza no tocante a seus deveres. O autor emprega até uma palavra muitas vezes utilizada hoje em sentido pejorativo: que ele era “severo”. Ele possuía uma lógica completa e deduzia de sua missão que era preciso ser daquele jeito: sério, não dizer nada inconveniente, agir corretamente. Por isso ele não perdia ocasião de dar o exemplo e de proceder segundo a lógica.

Mais ainda, esta seriedade, nas condições insignificantes de crianças, levava-as à combatividade. A Jacinta não via uma pessoa dizer ou fazer algo errado, sem que ela a repreendesse: “Isto aqui não está bom!” E dava a razão religiosa: “Deus não deve ser ofendido! Já está tão ofendido em nossa época, você ainda quer ofendê-lo mais? Quer acrescentar algo a esta montanha de pecados que se cometem?”

Então, os senhores percebem como a seriedade e a lógica são o fruto do Segredo de Maria. E se nós quisermos corresponder às graças de Nossa Senhora, devemos agir de maneira a sermos sérios e lógicos. E, pelo menos, quando virmos pessoas sérias e lógicas, tratarmos de admirá-las, de nos acercarmos delas, conversar com elas, e nos deixarmos penetrar pelo espírito delas.

Espírito de sacrifício

De outro lado, o espírito de sacrifício. As duas crianças recebem de Nossa Senhora a notícia de que morrerão dentro de um breve prazo. E a Francisco a notícia podia apavorar porque estava dito que ele morreria logo. Ora, a morte é um castigo imposto ao homem, e sua proximidade, em geral, apavora. Quando a pessoa não tem uma graça especial, diante da proximidade da morte fica aterrorizada. Francisco viu, alegre, a morte aproximar-se. Ele ia fazer o sacrifício pedido por Nossa Senhora. Não tinha saudades de nenhum dos bens deste mundo. Queria ir para o Céu e deixar esta Terra com a imolação de sua vida para a vitória da causa católica.

De Jacinta Nossa Senhora pediu algo que, por um aspecto, apavorava menos. Pediu que ela vivesse por mais algum tempo. É o espectro colocado um pouco mais longe. Entretanto, disse-lhe que viveria mais para sofrer. Quem não tem medo de uma vida de sofrimentos? E revelou-lhe um dos sofrimentos que mais apavoram as crianças: ficar doente e longe dos pais. Nossa Senhora disse: “Tu serás levada a Lisboa e tua mãe vai deixar-te”. Portanto, “tu adoecerás e morrerás sem a assistência dos teus”. E ela morreu, de fato, sem o socorro materno. Ela aceitou também. Eu creio ser o mais pesado sacrifício que se pode pedir a uma criança. O Segredo de Maria levou-a a esse sacrifício.

Espírito de oração

Depois, espírito de oração. Rezavam continuamente. E para que rezavam? Pela causa católica. Porque rezavam para Deus não ser ofendido, Deus ser glorificado, o que é a própria essência da causa católica. Tudo, em última análise, consiste nisso: que Deus seja glorificado e não seja ofendido. E isto eles tinham em mente sempre e rezavam muito.

Mas qual era a fonte que ininterruptamente estava dando-lhes este alimento espiritual? Era a crença na própria missão. A crença em que se cumpriria sobre eles a palavra de Nossa Senhora.

Virtudes a serem pedidas a Nossa Senhora por intercessão dos Pastorinhos de Fátima

Nós podemos fazer dessas considerações uma aplicação para nós? Eu creio que facilmente. Porque essas são as virtudes às quais nossa vocação nos convida. A nossa vocação contém uma espécie de raiz do Segredo de Maria. Sem dúvida, quem entra para nosso Movimento com as disposições normais experimenta desde logo várias melhoras em sua alma. E depois tem de passar pelo embate das provas que todos nós, infelizmente, conhecemos. Mas, de si, há algo de parecido — parecido não quer dizer idêntico — com o Segredo de Maria. E todo novato tem um grande impulso para a frente que consiste numa certa transformação. Essa transformação opera com o caráter rápido, célere, fácil, atraente com que age a graça do Segredo de Maria. Além disso, nossa vocação é ordenada aos fatos anunciados por Nossa Senhora em Fátima. Isto estabelece mais uma relação entre nossa vocação e a deles.

E eu creio que quem peça a Nossa Senhora de Fátima, por intercessão deles, auxílio para sermos fiéis a essa nossa vocação, fará a Ela uma oração especialmente grata. E poderá receber favores enormes para ser fiel à vocação, mesmo em circunstâncias dificílimas, graças precisamente ao Segredo de Maria.

E nossa vocação necessita das quatro virtudes que eles praticaram: a virtude básica, crermos em nossa vocação como eles creram na deles; e, em consequência: seriedade, espírito de sacrifício e espírito de oração.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/10/1971)

1) Cf. DE MARCHI, I. M. C., Pe. João. Era uma Senhora mais brilhante do que o Sol… Fátima: Edições Consolata. Na 7a edição (1978) o trecho resumido para Dr. Plinio encontra-se nas páginas 251-267.