São João Bosco

Grande arauto de Nossa Senhora como Auxiliadora dos Cristãos, São João Bosco realizou magnificamente a obra pedagógica e santificadora à qual fora chamado pela Providência. Instrumento de educação e virtuosa influência sobre os jovens que formava, por assim dizer, manuseava a graça divina para favorecer a atuação dela na alma de seus pupilos.

Risonho, afável, com uma vocação toda especial, brilhante e radiante na doçura salesiana, sabia ao mesmo tempo combater nos seus fundamentos os vícios e defeitos morais, alegrando-se ao ver o progresso espiritual dos meninos.

Talvez em diversos casos, foi ele um santo que educava outros santos…

Apresentação do Menino Jesus no Templo

As maiores alegrias que houve na História não foram as dos homens que organizaram festas fabulosas ou que tiveram notáveis triunfos, mas, sim, as dos grandes místicos, aqueles que, levando intensa e perfeita vida espiritual, agradaram tanto a Deus que se viram favorecidos por um contato direto com Ele, por meio de visões e revelações extraordinárias.

Que pensar, então, das santas alegrias que inundaram as almas de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, por ocasião dos fatos gozosos meditados no Rosário? Por exemplo, na Apresentação de Jesus no Templo, imensa terá sido a felicidade com que o Menino-Deus se comunicou aos homens, de tal maneira que o Profeta Simeão cantou a glória d’Ele, profetizando tudo quanto Ele seria. E Nosso Senhor, frágil criança, na aparência sem entender, compreendia e inspirava aquele cântico…

Candura, vigilância e holocausto

Tendo por discípulos dois meninos privilegiados diariamente por uma singular visita, São Bernardo de Morlat foi agraciado com um especial convite: participar de um banquete no Céu…

 

Comentarei um fato muito bonito, narrado na “Vie des Saints, da Bonne Presse de Paris”(1), mas não sei qual é o grau de sua veracidade histórica.

Muitas vezes, intencionalmente e a bom título, essas coletâneas de vidas de santos contêm, a par de fatos indiscutíveis, alguns que são discutíveis, quer dizer, não se sabe bem se ocorreram ou não. Mas o ponto que nos interessa é o seguinte: se o fato narrado é conforme à Doutrina Católica. Então, ainda que o fato não seja exato, Deus poderia ter agido assim.

A narração que passarei a comentar dá uma noção a respeito da santidade infinita de Deus e é ilustrativa para o fiel. É a esse título que me parece muito bonito o fato.

Trajes infantis antes da Revolução Francesa

São Bernardo de Morlat, da Ordem dos Dominicanos, era sacristão no convento de Santarém, em Portugal. Tomara ele, como discípulos, a dois meninos, filhos de um cavaleiro de Santarém, os quais receberam logo o hábito e a tonsura monásticas e daí por diante passavam os dias no convento, ajudando as Missas e estudando com o Padre Bernardo.

A pedagogia antiga preceituava que as crianças, desde pequenas, se vestissem como adultos. E daí o fato de vermos, nas pinturas de até pouco antes da Revolução Francesa, as meninas vestidas de saia balão, os meninos com trajes de homem que sai à rua para tratar de negócios, ou que vai à Corte.

Os trajes propriamente infantis foram introduzidos pelo Marquês de Girardin(2), no Jardim de Luxemburgo, em Paris, pouco antes da Revolução Francesa. Eram trajes inspirados na moda inglesa e que visavam apresentar a criança não mais com a compostura e a gravidade de um adulto, mas como um ente que pula e não se quebra. Então, uma roupa qualquer do tipo que nós conhecemos. Isso foi também um dos incêndios prévios à Revolução Francesa. Uma vez que o Marquês de Girardin apresentou seus filhos assim, a moda pegou e, em poucos meses, na França inteira os hábitos antigos estavam abolidos, e as crianças “sans-culotte” já começavam a brincar pelos jardins da França, antes do “sanculotismo” estar implantado.

Mas a Igreja, sempre mais conservadora do que a sociedade temporal, ainda conservou esse hábito. E não posso deixar de me lembrar de que, quando era moço — tinha entre vinte e cinco e trinta anos —, fui visitar o então austero, magnífico, Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, para falar não me recordo com que padre; eu estava andando pelo convento e de repente vi dois menininhos, talvez com dez, onze anos, vestidinhos completamente como monges e caminhando graves no meio do claustro.

Eles passaram, conversando tão direitos e sérios, que eu tive a vaga impressão de que se tratasse de uma aparição. Quando o padre chegou, perguntei-lhe: “Mas padre, que menininhos são esses?” Ele disse: “É um velho costume beneditino. Nós recebemos vocações da mais tenríssima idade e, para os meninos se adaptarem à vida religiosa, já são vestidos como monges em pequeno.”

Nas minhas elucubrações a respeito de “geração nova”(3), ocorre-me a ideia de que o “geração-novismo” começou quando o Marquês de Girardin adotou os trajes que não davam à criança a sede da maturidade, mas o gosto de serem como eram, sem o desejo de crescer, de maturar, retardando, portanto, a normal expansão da criança.

Traje, gesto, estilo de conversar e de pensar

Alguém poderia perguntar: “Mas traje, Dr. Plinio, que diferença faz?”

Eu digo: “Meu caro, traje supõe gesto. Gesto supõe estilo de conversar. Estilo de conversar supõe estilo de pensar.”

Então podemos imaginar aqueles dois menininhos da Idade Média, vestidos como fradinhos e recebidos na Ordem Dominicana. O hábito da Ordem Dominicana, aliás, é muito bonito.

Um dos predicados da Igreja é que Ela sabe, como nenhuma instituição, com as coisas muito simples produzir efeitos estéticos extraordinários. Por exemplo, os hábitos das Ordens religiosas geralmente são bonitos. O hábito dominicano consiste numa túnica branca, com uma grande capa preta e um capuz branco; grandes mangas, que dão ao orador, quando ergue ao alto seus braços para exprimir um mais alto pensamento, atitude de grande categoria, porque as grandes mangas que pendem dão solenidade ao gesto. É a simplicidade extrema da Igreja, o magnífico senso da beleza que Ela possui em tudo quanto faz.

Então os menininhos ajudavam as Missas todos os dias e estudavam com o Padre Bernardo, que ia formando o espírito deles.

O Divino Infante participa do desjejum com dois meninos

Todos os dias os dois meninos saíam bem cedo da casa de seus pais para se dirigirem ao convento, levando consigo a provisão diária.

Não espanta que eles morassem em casa e usassem esse hábito. Porque na Idade Média o hábito religioso era muito mais frequente e normal do que se tornou depois.

Um dia de manhã, com uma familiaridade toda infantil, sentaram-se aos pés de uma imagem de Nossa Senhora, que trazia no colo o Menino Jesus…

Podemos figurar uma imagem bonita, como a de Nossa Senhora de Coromoto, com o Menino Jesus nos braços. Suponhamos toda a cena realizada diante dessa imagem, para compreendermos como fica apropriada.

…diante da qual sempre rezavam o Rosário, para em seguida tomarem o seu desjejum.

Eram, portanto, crianças piedosas. Toda criança amanhece com fome; e criança lusa não desmente a regra. Pois bem, elas rezam o Rosário para depois quebrarem o jejum.

 Enquanto comiam, um deles voltou-se para o Menino Jesus nos braços da Virgem e disse-Lhe: “Ó belo Menino, se Vos agradar, vinde comer conosco.”

O Divino Infante não Se fez de rogado, desprendeu-Se dos braços da Mãe, e de bom grado tomou lugar entre os que O haviam convidado.

Podemos imaginar, na imagem de Nossa Senhora de Coromoto, o Menino que se move e diz com voz de criança: “Pois não!” E, de coroa na cabeça, desce do colo de Nossa Senhora, toma um pouco de comida, a introduz na boca e começa a mastigar.

Os dois repartiram então com Jesus a frugal refeição. Tendo terminado, o Menino Deus agradeceu-lhes com um sorriso, subiu ao altar e voltou aos braços de Maria.

Vemos que tudo isso é de uma candura… O importante é o seguinte: eu não me interesso, como católico, senão muito pouco, em saber se isso foi ou não foi assim. O que me interessa é que podia ter sido, porque Nosso Senhor Jesus Cristo é assim; está n’Ele realizar essas coisas. Se Ele fez ou não fez, não é tão importante.

No dia seguinte, os coroinhas voltaram renovando o pedido.

E todas as vezes o Hóspede Divino dignou-se aceitá-lo, até que qualquer convite ficara supérfluo. Apenas os meninos entravam na capela e abriam o embrulho de alimentos, o Menino Jesus lá estava entre eles.

É tão delicioso, que dispensa comentários.

Isso se tornou tão familiar que não só comiam juntos, mas também conversavam, e Jesus os ajudava nas dificuldades que tinham no estudo.

Que encanto imaginá-los perguntando e Nosso Senhor respondendo, na intimidade de uma pequena capela do interior de Portugal!

O guizo da serpente

Veremos agora aparecer, ao lado de tanta candura, o drama, que tantas vezes surge nas relações entre a criatura e o Criador: a miséria humana vai se mostrar, do modo mais incoerente e mais inesperado, nesses meninos magníficos.

Uma coisa somente surpreendia os dois inocentes: é que o Menino Jesus nunca trazia sua quota de comida, enquanto eles eram obrigados a conseguir mais alimentos, embora seus pais fossem muito pobres.

 “Não haverá muitas coisas boas no Paraíso?”, perguntavam. A surpresa dos dois degenerou em murmúrios.

Coisa incrível, mas é assim a criatura humana: no conto mais encantador, ouvimos de repente o guizo da serpente, como no mais belo do Paraíso veio, também de repente, a tentação.

E resolveram confiar ao Padre Bernardo suas angústias. Este, tendo examinado bem o relato, ficou tocado por tão grande prodígio. Rogou a Deus que o iluminasse e o fizesse conhecer os seus desígnios sobre os meninos. Um dia, dirigindo-se aos pequenos discípulos, ele sugeriu: “Se o Menino Jesus continua não trazendo nenhuma provisão, não vos agradaria que Ele vos convidasse, ao menos uma vez, à casa de seu Pai?”

Não pedir alimento, mas a graça de ver o Céu

A saída do padre foi muito inteligente: não pedir ao Menino Jesus que trouxesse comida, mas que vissem o Céu.

“Oh! sim, gostaríamos muito, responderam. Mas Ele nunca nos falou sobre isso”. Disse o padre: “É preciso que Lhe peçais. Se Ele atender vosso pedido, não tereis perdido nada, pois de um só convite d’Ele recebereis mil vezes mais do que destes”.

Vemos que o padre sentiu necessidade de pôr o argumento em termos um pouquinho comerciais, para conseguir mover aquelas almas, entretanto tão cândidas e puras.

Não nos façamos ilusão! Essa é a criatura humana e é assim que devemos olhar a nós mesmos! Quer dizer, ou há muita vigilância, ou saem coisas dessas.

E continuando a falar-lhes, o Padre Bernardo fez entrever simbolicamente o palácio do Pai Celeste, com suas magnificências e delícias, e concluiu: ‘Quando o Menino da capela vier novamente comer convosco, não vos esqueçais de pedir que vos convide, por sua vez. Mas dizei a Ele que quero também ser convidado. Não vos permito que vades sozinhos à festa. Eu vos acompanharei, ou tereis que recusar o convite, porque desejo muito ter parte nesse festim”.

No dia 21 de maio de 1277, segunda-feira das Rogações…

Há uma procissão que se faz nessa ocasião, para pedir a Deus graças; a Providência se manifesta particularmente exorável nessas ocasiões.

…o Menino Jesus desceu de novo para tomar o desjejum com os dois meninos. Terminada a refeição, antes que o Divino Infante pusesse o pé sobre o pedestal de pedra para subir aos braços de Nossa Senhora, os dois pequenos expressaram timidamente o seu desejo: “Não nos convidais também uma vez?” Jesus fez um sinal de afirmação, enquanto os pequenos acrescentavam: “Nosso mestre gostaria de também participar da festa”.

Jesus então lhes disse: “Dentro de três dias será festa da Ascensão. Haverá grande alegria na casa de meu Pai. Dizei ao Padre Bernardo que Eu o convido convosco à minha mesa, onde estareis com os Anjos e os Santos”.

Contentíssimos, os dois correram para comunicar ao seu mestre a boa notícia. Ao chegarem a suas casas, avisaram aos pais que dentro de três dias iriam participar de um banquete no Céu. O Padre Bernardo comunicou o mesmo ao seu diretor espiritual.

Durante os três dias, mestre e discípulos permaneceram em oração, ajoelhados ao pé do altar do Rosário. O padre explicou aos meninos o sentido do convite de Jesus e eles, abrasados de amor, não queriam outra coisa senão deixar este mundo e entrar sem tardança na verdadeira Pátria.

Notamos que começa a haver um movimento de desinteresse, e os meninos melhoram.

Padre Bernardo e os dois meninos são levados ao Céu

Chegou o dia da Ascensão. Todas as Missas já haviam sido celebradas — isto na aldeia de Santarém. Enquanto os frades estavam no refeitório, Padre Bernardo dirigiu-se ao altar do Rosário, acompanhado por seus dois acólitos, e começou o Santo Sacrifício. Os dois discípulos receberam com grandíssima devoção, pela primeira vez, o Pão Eucarístico. Chegou a hora da ação de graças. Os três ajoelharam nos degraus do altar, aguardando com confiança o momento de partida para a morada celeste.

Mais tarde, quando a comunidade chegou à igreja para a recitação das orações após a refeição, encontraram o padre e os dois acólitos imóveis, as mãos levantadas ao céu e os olhos fixos no Menino Jesus. Aproximaram-se deles e, — oh, morte preciosa e mil vezes digna de inveja! — constataram que haviam trocado a vida terrestre pela bem-aventurança eterna. Os seus corpos foram enterrados ao pé do altar.

Não poderiam ser enterrados em outro lugar.

Em 1577, quando foi aberto o túmulo para a transladação das relíquias, os ossos sagrados exalavam um delicioso perfume. A imagem da Virgem com o Menino Jesus conserva-se até hoje num rico tabernáculo.

Candura, vigilância e holocausto

Vemos aqui a candura em seus dois contrafortes: a vigilância e o holocausto. Sem esses dois complementos, a candura jamais é candura. Para ter verdadeira candura, a pessoa precisa vigiar constantemente sobre si mesma, noite e dia, para evitar ceder aos inúmeros impulsos maus que enxameiam, formigam, no interior de cada alma; primeiro ponto.

Segundo: quando é verdadeiramente cândida, ela é convidada para o holocausto. Quer dizer, há um determinado momento em que a Providência lhe pede que se imole. Esses meninos tiveram seu mau momento, foram perdoados e depois convidados ao holocausto.

Com certeza, antes de morrer, eles souberam que iam deixar esta Terra. Foram consultados sobre se queriam a morte, e aceitaram-na; suas almas foram levadas para o Céu, docemente, suavemente.

E ficou aqui consignada, muito menos a imagem dos meninos e do padre, do que a figura do Menino Jesus, tão bondoso, tão misericordioso, tão capaz de condescender a todos os desejos dos homens e entrar com eles nessa familiaridade. A respeito de Nosso Senhor, diz a Escritura: “Minhas delícias são estar com os filhos dos homens” (Pr. 8, 31). Ao mesmo tempo, entretanto, pedindo um preço. É o preço que Ele mesmo pagou: o holocausto. Em certo momento, Ele pede o sacrifício e é preciso dá-lo. Assim, a vida deles terminou maravilhosamente bem.

Candura, vigilância e holocausto formam uma tríade, que merece ser lembrada por nós na noite de hoje.  v

 

(Extraído de conferência de 12/11/1976)

 

1) Não possuímos a ficha utilizada por Dr. Plinio nessa ocasião.

2) René Louis de Girardin (1735-1808).

3) Sendo já homem maduro, Dr. Plinio foi notando entre os jovens com que fazia apostolado uma mudança de modos de pensar, querer e agir. Enquanto as pessoas de igual ou maior idade que ele demonstravam certas qualidades de espírito, esses mais novos apresentavam debilidades, tais como falta de perfeita lógica, de segurança, de direção, de perseverança, etc. Aos primeiros, Dr. Plinio chamava de “geração velha”; e aos últimos, de “geração nova”

Um grande epistológrafo

O Bem-aventurado Sebastião Valfré escreveu alguns livros e muitas cartas, tratando de temas teológicos. A propósito do seu talento epistolográfico, Dr. Plinio faz uma meditação, mostrando a decadência dos modos de comunicar o pensamento humano e como esse mal atingiu também a causa contrarrevolucionária. Entretanto, sempre que Deus permite a sua invencível Igreja ser batida, açoitada pelos ventos, o mal é para o gênero humano, não para ela.

 

Comentaremos a biografia do Bem-aventurado Sebastião Valfré, com base numa ficha tirada da obra do Padre Rohrbacher, Vida dos Santos(1).

Variedade de cartas sobre assuntos de Teologia

Sebastião Valfré, nascido na Saboia, em 1629, morreu em Turim, em 1710. Sacerdote oratoriano, grande apóstolo da caridade, virtude em que se distinguiu durante toda a sua vida. Famoso pela santidade de vida, amor à oração e ciência, manteve enorme correspondência com bispos, sacerdotes e grandes personalidades da corte sobre assuntos de Teologia, ou dando numerosos conselhos sobre questões várias. Apesar de ter todo o seu tempo ocupado, deixou obras realmente úteis: “Curta instrução às pessoas simples”, que obteve grande sucesso, “Exercícios cristãos” e “Meio de santificar a guerra”, esta última destinada aos que abraçavam a carreira das armas.

Especialmente devoto da Santíssima Virgem, quando começava a ensinar Teologia, uma das primeiras verdades sobre a qual chamava a atenção dos alunos era a da Imaculada Conceição. Durante seis meses explicava a Ave-Maria, palavra por palavra, pois cada uma delas lhe servia de tema para as aulas. Além disso, recomendava especialmente a devoção aos Anjos da Guarda. Dizia que em todas as suas necessidades e aflições jamais deixava de invocar seu Santo Anjo e por ele nunca fora abandonado. Além disso, seu zelo era voltado às almas do Purgatório, pelas quais nunca deixava de rezar todos os dias.

Idade Média: época das grandes sumas

A dificuldade em comentar essa biografia encontra-se no fato de que ela contém os grandes traços do sacerdote santo desse período. Ora, como houve muitos sacerdotes santos nessa época, acontece que esses traços todos mais ou menos já estão estudados. Contudo, há alguns pequenos esclarecimentos que podem ser dados.

Talvez cause certa surpresa ver que a correspondência ocupava na vida dele um papel importante. Mas precisamos tomar em consideração que ele viveu exatamente no tempo de Luís XIV, ou seja, no auge do “Ancien Régime”, em que as condições de comunicação do pensamento eram muito diferentes das hodiernas, mas de algum modo já as prenunciavam.

É uma coisa curiosa na história dos descobrimentos, das invenções e das modificações da vida social, como vem nascendo no espírito das nações, com longas antecedências, apetências para as coisas que mais tarde os descobrimentos inesperados vão fazer surgir.

Ao analisarmos as obras escritas na Idade Média, notamos aquelas grandes coleções. É a era do pensamento sério, das sumas; livros escritos em pergaminho, em material volumoso, bibliotecas com aquelas coleções enormes. Quando aparece a imprensa, começam a surgir os livros menores. O material vai se tornando mais leve, mas também, simultaneamente, começam a desaparecer as grandes sumas e as grandes obras de conjunto.

O espírito humano torna-se fragmentário: os livros especializados e as cartas

O espírito humano, perdendo aquela unidade medieval, vai se tornando fragmentário, produzindo obras menores sobre pontos específicos e perdendo apetência para as grandes universalidades, os grandes conjuntos do pensamento. De onde as coleções de livros ainda continuarem a existir, mas com uma tendência a desaparecer e darem origem ao ensaio, ao livro especializado.

Mas já no tempo de Luís XIV e, portanto, da Madame de Sevigné, começam as cartas a tomarem um papel paralelo ao dos livros. As estradas se tornaram muito mais seguras, o transporte por mensageiros a cavalo e a carruagem começou também a se tornar mais fácil, mais seguro e, com isso, a correspondência postal, sem ter adquirido a institucionalização que obteve no século XIX, foi, entretanto, se tornando também mais metódica. Assim, começou a aparecer um estilo novo de comunicação de pensamento mais delgado do que o livro, que é a carta.

Havia cartas de duas espécies: uma tratando de um assunto doutrinário, e outra dando notícias. As que tratavam de assuntos doutrinários eram grandes cartas escritas por personagens eminentes.

Anteriormente a esse nosso Santo, o infame Erasmo, por exemplo, um pouco posteriormente a ele o infamíssimo Voltaire, fizeram uma obra revolucionária enorme através de cartas que eram, muitas vezes, doutrinárias ou de análise de fatos, que eles mandavam a vários outros homens célebres do tempo. Célebres por sua cultura, por seu talento, pela alta posição política, pela ligação que tinham com os acontecimentos da época, ou pela categoria eclesiástica ou nobiliárquica que ocupavam.

Essas cartas, depois, eram copiadas. Por exemplo, um sujeito qualquer que recebesse uma carta de Erasmo ou de Voltaire, tomava a missiva recebida mais a resposta dele e publicava. Aquilo era impresso e distribuído. Ele mesmo mandava para seus relacionamentos, a fim de verem que ele escreveu uma coisa tão importante que o grande Erasmo, o grande Voltaire se dignou responder. Então, as duas cartas constituíam quase que um tratadinho a respeito de algum tema.

Coisa muito apreciada era a carta sobre uma controvérsia entre dois personagens sumos a respeito de determinado assunto. Uma troca de correspondência entre o Cardeal Caetano e Lutero, por exemplo, constituía um fino alimento para os espíritos eruditos.

Surgem os artigos de revista e de jornal

Vemos, assim, como vai nascendo, de longe, o artigo de revista e de jornal. Antes mesmo de haver a revista e o jornal, o espírito humano ia engendrando algo que preparava as condições para esses meios de comunicação.

Concomitantemente, havia os noticiários que circulavam largamente. Antes de a imprensa chegar ao desenvolvimento que ela atingiu no século XIX, existiam nas capitais dos países agências que mandavam as notícias manuscritas para o interior, mediante assinatura. Já eram, portanto, “jornais” manuscritos, antes de haver propriamente os jornais, de tal maneira o espírito humano vai adiante da descoberta. Depois é que vem a descoberta e alcança celebridade. Mas é porque havia condições no espírito humano para notar aquele progresso e aproveitá-lo. Do contrário, aquilo passava desapercebido e ninguém se incomodava.

É bonito notar como a Igreja vai engendrando, para cada nova forma de comunicação, formas novas de talento. De maneira que a epistolografia, a qual desde os tempos dos romanos havia decaído, tomou exatamente a partir do século XVI um realce muito grande. Assim, vemos surgir grandes Santos epistológrafos.

O apogeu do gênero epistolar

O Bem-aventurado Sebastião Valfré, grande teólogo e filósofo, escreveu três livros e uma multidão de cartas que, com certeza, circularam amplamente no tempo dele e fizeram muito bem, pois este era um estilo clássico de se comunicar.

Hoje a carta decaiu enormemente de importância e de qualidade, pois foi substituída pelos modernos meios de comunicação: jornal, rádio, televisão, telefone, etc. Quando estes não existiam, a tendência de quem escrevia cartas, sabendo que as notícias seriam tão bem aproveitadas, era de aprimorar o estilo, arranjar um bonito papel e elaborar uma linda caligrafia. Quer dizer, tudo quanto cerca uma carta chegou ao seu apogeu nesse período. Temos então, nesse tempo, um grande Santo que é também um grande epistológrafo.

No século XIX tivemos o grande jornalismo católico, cujo rei foi Louis Veuillot. Ele se tornou o jornalista católico perfeito, realizando uma coisa que poderia parecer impossível: num estilo definidamente baixa de nível, fazer coisas de alto nível. A forma do jornalismo de Louis Veuillot era a seguinte: ele tinha uma visão penetrante e clara dos “flashes” da realidade. Ele não era nem um pouco um espírito capaz de fazer uma suma. Um ou outro livro de grande porte que ele escreveu não foi bem sucedido. Mas ele tinha uns “flashes” a respeito da realidade, uns “aperçus”, em que ele pegava a coisa com muita clareza. E tinha um francês ligeiro e insolente que exprimia aquilo sucintamente. Em três gotas de tinta ele construía ou destruía uma pessoa, uma argumentação ou uma refutação. Dessa maneira ele teve a forma de talento própria ao estilo jornalístico para defender a causa contrarrevolucionária.

Devemos ver os desígnios de Deus nos castigos que Ele impõe

Notamos aqui os desígnios secretos da Providência. E como são insondáveis as coisas de Deus. É bonito que Deus Nosso Senhor tenha constituído talentos que se adaptassem a essas várias formas que foram aparecendo. Nós não vemos um talento que tenha dado um brado de alarme contra as sucessivas baixas que essas formas representavam. Por quê? Evidentemente, castigo de Deus para a humanidade. Deus, descontente, permitia que a casa fosse caindo em ruínas, e ia dando engenheiros para colocarem escoras nela. Mas não deu engenheiros capazes de deterem a ruína e reconstruírem a casa. Porque havia pecados no mundo que provocavam a cólera d’Ele. Por causa disso, chegamos ao momento em que a casa está a ponto de ruir.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, com isso não foi derrotada a Igreja? Ora, se Deus ama a Igreja, não seria razoável que Ele evitasse para ela essa humilhação?”

Cada vez que a Igreja é aparentemente vencida, a derrotada não é ela, mas sim a humanidade. Porque a Igreja existe para beneficio dos homens. Portanto, sempre que Deus permite a sua invencível Igreja ser batida, açoitada pelos ventos, o mal é para o gênero humano, não para ela. Devemos ver os desígnios d’Ele nos castigos que Ele impõe.

Nós temos, com isso, uma meditação a respeito do talento epistolográfico desse Bem-aventurado.

 

(Extraído de conferência de 30/12/1969)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XXII, p. 211-216.

 

A beleza e a harmonia dos opostos que se unem

A majestade real resplandeceu num dos atos mais belos da história da Inglaterra quando o Rei Santo Eduardo, cumprindo o desejo do Papa, conduziu em seus ombros um mendigo ao qual curou de uma terrível doença. Analisando o fato, Dr. Plinio nos aponta, com profundidade, a beleza do princípio de ordem e harmonia que nele está refletido.

 

Num trecho do livro “La Baja Edad Media”(1), de autoria de Cristopher Bruck, Professor de História Medieval da Universidade de Liverpool, está descrito o seguinte fato da vida de Santo Eduardo, a respeito do qual eu gostaria de fazer algumas considerações.

A imagem medieval da pobreza, a realeza e a vontade divina se ilustram na vida do Rei Eduardo, o Confessor, do século XII.

Essa história narra que Gila Michael, um irlandês, foi a Roma em busca de remédio, mas São Pedro lhe disse que sanaria o mal se o Rei Eduardo da Inglaterra o levasse sobre os ombros desde a “Westminster Hall” até a Abadia de Westminster.

São Pedro, neste contexto, quer dizer o Papa.

O virtuoso monarca consentiu. Pelo caminho, o intumescido irlandês sentiu que se afrouxavam os seus nervos e suas pernas se distendiam.

O sangue de suas chagas corria pelos trajes reais, mas o Rei o levou até o altar da Abadia. Ali chegando, o pobre doente ficou curado; começou a andar e pendurou as muletas na Abadia, como sinal do milagre.

“Basta o Rei carregar-te aos ombros”

Como lemos acima, um homem vítima de grave e dolorosa enfermidade, a qual fazia com que seus nervos se contraíssem, produzindo, com isso, feridas que dificultavam extremamente seus movimentos. Certo dia, esse homem conseguiu que o levassem até o Papa para que lhe pedisse a cura. Este respondeu ao enfermo que ele seria curado, mas para isso era necessário que o Rei da Inglaterra o pusesse sobre os ombros e o levasse da grande sala de Westminster até a Abadia, onde por fim encontraria a cura do mal que o atormentava.

Voltando à Inglaterra, o pobre homem teve certamente de percorrer longos trajetos, por estradas onde a todo momento estava em risco de cair em mãos de salteadores. Por outro lado, quanto bom trato e hospitalidade não terá o viajante recebido nos conventos pelos quais passava. Talvez as pessoas generosas lhe ofertassem esmolas para assim poder prosseguir a aventura que consistia tal viagem.

A majestade e a repugnância se encontram

Tendo chegado, por fim, à Inglaterra, o doente dirigi-se ao palácio real. Alegando trazer uma mensagem pontifícia, ele conseguiu comparecer à presença do soberano. Imagine-se como terá sido a cena daquele homem chegando diante do Rei, o qual provavelmente se encontrava em seu trono, cingindo o diadema e as vestes reais, resplandecente de majestade, mas ao mesmo tempo de bondade e afabilidade.

— O que quer? Interroga-lhe o Rei.

— Senhor, eu venho da parte do Papa.

— Então, diga-me do que se trata.

— Ele pede que vós me cureis.

— Mas como poderei fazer isso?

— É ordem do Papa…

Quanto contraste nesta cena! De um lado, o pobre homem, provavelmente um mendigo, coberto de chagas sangrentas e repugnantes; do outro lado, o Rei, saudável, presumivelmente jovem e cheio de majestade.

O recado que é transmitido consiste na manifestação do desejo do Papa de que esse grande monarca, glorioso chefe da nação, carregue ao pescoço aquele mendigo chagado e purulento, apresentando-se nessa postura humilhante pelas ruas, ao longo de todo o percurso.

O santo soberano atende o pedido. E, na pequena Londres de então, o Rei sai de seu palácio, enquanto as sentinelas se perfilam e um arauto toca trombeta avisando que Sua Majestade vai passar.

Provavelmente, nas ruazinhas estreitas da cidade de Londres, o povo se espanta com a saída do Rei, sobretudo porque ele não está, como de costume, montado em seu magnífico corcel, nem tampouco numa carruagem, mas está a pé, sozinho, sem guardas nem tropas e fazendo-se montar por aquele indivíduo.

Dos mais belos fatos da monarquia inglesa

Naquela cidade pequena, onde todo mundo se conhece, certamente o povo deve ter comentado: Logo Gila Michael, esse mendigo miserável, carregado assim pelo Rei! Nosso augusto Rei, Santo Eduardo, símbolo da Inglaterra e da virtude da Igreja Católica, ele tão majestoso, digno e altivo como um lírio, trazendo um mendigo montado sobre si! Que coisa extravagante!”

Enquanto isso, tanto o mendigo quanto o Rei vão rezando, e pedindo a Nossa Senhora a esperada cura.

Atrás do Rei o povo atônito forma um cortejo que caminha rumo à Abadia de Westminster, a fim de ver qual será o desfecho daquela curiosa cena.

No caminho, porém, as vestes reais vão se enchendo de pus e sangue que começam a verter das chagas daquele homem, o qual ao mesmo tempo começa a sentir que algo nele está se dando.

Ao entrar na Abadia, em meio à expectativa geral, talvez devido ao fato de o povo pressentir que uma das mais belas cenas da história daquele recinto estava prestes a acontecer, o monarca dirige-se para junto do altar, lá tira o precioso fardo de seus ombros e o põe no chão. Então, o homem, que montando no Rei, vinha trazendo nas mãos suas muletas, larga-as e começa a andar, pois suas chagas estavam inteiramente secas e ele miraculosamente curado.

Por outro lado, o Rei está com seus trajes gloriosamente cobertos de sangue e pus. Enquanto se operou por seu intermédio um grande milagre através do qual a majestade real resplandeceu esplendorosamente num dos atos mais belos de toda a história da monarquia inglesa.

Belo como fato ou como lenda

Alguém poderia levantar dúvida sobre a historicidade desse fato. A meu ver, isto não tem grande importância, pois ainda que venha a ser um mito ou uma lenda, o importante é ter havido numa determinada época multidões desejosas de que as coisas tivessem se passado deste modo; caso contrário, nem mesmo seriam capazes de inventar algo assim.

Pode tratar-se de uma lenda baseada num fato verídico, o qual foi glosado e embelezado para atender mais plenamente a apetência das pessoas, porém, o que importa é ter existido um povo que tivesse o estado de espírito tendente a se entusiasmar com a possibilidade das coisas se passarem desta forma.

Como vibram de entusiasmo por realidades diferentes as pobres multidões hodiernas, infelizmente tão massificadas, materializadas e quase aniquiladas!

Este episódio é indiscutivelmente belo, porém é necessário fazermos uma análise a fim de que a beleza que nele se encontra não permaneça apenas como convicção, mas seja fundada no raciocínio, para desta forma podermos compreender mais profundamente o esplendor da Igreja Católica, sem a qual tais fatos seriam impossíveis, seriam impensáveis.

A espera só aos fortes é pedida

O primeiro aspecto encontra-se na Fé daquele homem, que não hesita em ir candidamente pedir ao Papa um milagre. Por outro lado, também, quanto prestígio gozava o Papado naquele tempo! Pois, o enfermo foi até ele com certeza de que seria curado.

Como a Providência tratou a Fé desse homem?

Poderia tê-lo curado logo, mas não o fez. Pelo contrário, inspirou ao Sumo Pontífice de enviá-lo de volta à Inglaterra para lá ser miraculado. Tal ato de confiança Nossa Senhora pede aos fortes. Enquanto aos débeis na Fé, a maior parte das vezes Ela atende imediatamente.

Outro aspecto de beleza é a certeza do pobre homem de que o Rei Eduardo o iria curar. Caso fosse rabugento poderia pensar: “Por que fui até Roma se eu tinha tão perto de mim quem me podia curar?” Mas, não possuindo esse defeito, ele aceitou que Nossa Senhora dispusesse dele como quisesse, indo ter com o Rei cheio de tranquilidade e uma Fé que move montanhas.

Um rei “cavalgado” por um mendigo

Chegando à Inglaterra, o mendigo pede a cura apresentando ao Rei a condição do Papa para alcançar o milagre. Era de que ele “cavalgasse” o Rei.

A condição não poderia parecer mais extravagante, pois o Rei podia curar o mendigo ali na mesma hora. Então, por que deixar-se cavalgar por um doente como aquele? Por outro lado, tratando-se de irem até a Abadia de Westminster, não podiam os dois para lá se dirigir sentados numa carruagem?

Aquele pedido do Papa, o qual no fundo manifestava o desejo da Providência, parece ser a inversão de toda a ordem, pois Deus criou os reis para governar e não para serem montados por mendigos. Isso é uma desordem?

Não, a ordem encontra-se profundamente presente nesse fato. Por quê?

A grandeza de se fazer pequeno

Trata-se do seguinte: É lindo o fato de o poder público dominar, é verdadeiramente maravilhoso e nobre que os inferiores prestem aos detentores deste poder o respeito que lhes é devido.  Sobretudo quando se trata de alguém que reconhece a origem divina de seu poder.

Mas, é também esplendoroso que, em certas ocasiões, o maior, às vezes heroicamente, seja pai, amparo e auxílio do menor. Por isso, é bonito que um rei, homem posto no mais alto píncaro da hierarquia social, se lembre de que ele é homem como o outro, pois de certa forma todos são iguais. São desiguais apenas em seus acidentes, os quais por vezes são de uma importância muito grande, mas, em sua essência, o rei é homem como o outro.

Por causa disso, o maior deve ser capaz de servir o menor, respeitando assim a qualidade de homem que ambos têm em comum.

Estes são os dois aspectos lindíssimos desse fato: um pobre resignado, mas que com essa naturalidade e Fé pede ao Rei para que o leve sobre os ombros; um Rei que reconhece a altura de sua realeza, mas é capaz de dizer: “Meu filho, pois não. Suba e vamos juntos pedir o milagre que você necessita.”

A maravilhosa harmonia das desigualdades

Há neste episódio uma harmonia que corresponde à lei profunda das harmonias, a qual admite que os extremos se toquem: é belo ver a realeza tocar na mendicância e, assim, ambas se unirem harmoniosamente.

É belo, portanto, ver ambas se aproximarem do altar junto ao qual está Deus que se encanta ao ver o esplendor daquela obra da qual Ele próprio é Autor. Ele criou o mendigo e também o rei. Ele quis que no mundo houvesse realeza, mas também pobreza, sofrimento, dor, doença, mendicância. E em tudo isso Ele pôs uma harmonia perfeita.  

 

(Extraído de conferência de 28/6/1974)

 

 

1) “La Baja Edad Media”, Ed. Labor, Barcelona, 1968, p. 32.

 

São Lourenço de Bríndisi e o luxo do século XVI

O contraste harmônico dá-se sempre entre duas perfeições, as quais, por serem muito  diversas entre si, como que se equilibram. Na conferência transcrita a seguir, Dr. Plinio aplica essa tese à presença de um austero capuchinho em meio ao luxo e requinte da vida de corte.

Para ser comentado hoje, foram-me fornecidos trechos da obra de um jesuíta, a “Vida de São Lourenço de Brindisi”, cuja festa se celebra em 22 de junho.

Antes de passar à leitura e comentários, vale a pena termos uma noção do que era um capuchinho no século XVI, para melhor avaliarmos a projeção da figura desse santo no mundo daquele  tempo.

Conhecemos o traje clássico dos capuchinhos. É aquele hábito marrom-claro, na cintura um rosário, sendo que as fileiras de contas são unidas pela figura de uma caveira. Calçam sandálias sem meias, usam a barba grande e cabelo aparado quase rente.

O capuchinho entrava, desse modo, num contraste violento com o modo de se trajar e de se apresentar dos homens da época. A Renascença estava no fim, e se ia passando para o Barroco e o  Rococó, as modas masculinas iam atingindo um auge de rebuscamento, de elegância, de finura e, às vezes, de efeminamento, como poucas vezes aconteceu na História.

Os homens se trajavam de seda, de damasco, trazendo na roupa botões e outros ornamentos de pedras preciosas.

Usavam anéis, meias de seda, sapatos de verniz (com salto vermelho, quando eram nobres) com fivelas de ouro ou de prata e pedras preciosas. Perfumavam-se. Quando usavam barba, era aparada no formato chamado de “pera”, muito bem cuidada, e os bigodes finos e sedosos — não era o bigode à “kaiser”, com a ponta voltada para cima. Por cima do cabelo natural, ou da cabeça rapada, punham cabeleiras, super preparadas em estabelecimentos especiais. Não falemos da apresentação da dama, porque, se assim era a do homem, mais requintada era a feminina.

Dentro dos sábios equilíbrios da Civilização Cristã, o capuchinho representava a tônica oposta de tanto luxo e tanto bom gosto.

Harmonia baseada nos contrastes

Não seria eu quem haveria de censurar que a Civilização Cristã engendrasse os mais magníficos trajes. Eu teria, certamente, alguma restrição a alguns aspectos desses trajes no século XVI. Mas, na linha geral, a ideia de  acentuar a dignidade do homem por meio de trajes magníficos me parece muito boa e própria a realçar a sabedoria do plano de Deus, o qual, a serviço do rei da Criação, que é o homem, dispôs de materiais capazes de afirmar adequadamente essa realeza.

Sobretudo quanto esse rei é, ao mesmo tempo, membro do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, e tem, portanto, uma dignidade maior do que a própria dignidade humana.

Mas é próprio do gênio, do talento da Igreja Católica estabelecer a harmonia baseada nos contrastes. Uma coisa é a contradição; outra coisa são os contrastes harmônicos. Estes últimos são sempre contrastes entre duas perfeições — não entre um defeito e uma perfeição e, menos ainda, entre dois defeitos — as quais, sendo muito diversas entre si e por serem muito diversas entre si, como que se equilibram.

Um tal esplendor nos trajes, uma tal magnificência na vida de Corte, exigia que se lembrasse ao homem, ao mesmo tempo, os valores opostos da austeridade, da sobriedade, da sobranceria em relação às coisas terrenas, do único valor profundo das coisas sobrenaturais, etc. Só por essa forma a humanidade poderia chegar impunemente a tais requintes de luxo.

Como, em sentido contrário, a afirmação magnífica — eu quase diria brutal — da morte, da pobreza, de tudo aquilo que leva o homem a sofrer na vida, a renunciar, a lutar, só poderia ser um valor geral para a sociedade, freqüente, presente em todos os aspectos da vida social, se, em sentido contrário, o esplendor da vida terrena aparecesse também.

Um exemplo de contrários harmônicos

São esses contrários harmônicos que são os fatores de equilíbrio da alma humana. É muito belo ver, em quadros do tempo, cenas de vida de Corte. Lembro-me de um quadro que eu via muito quando era pequeno.

Era uma sala com um rei e uma rainha, algo me sugere que eram soberanos espanhóis, ambos com coroas na cabeça. A Corte inteira de pé, como se recebesse alguém: dignitários, cardeais vestidos de púrpura, guerreiros, ministros, etc., formando um grande semicírculo.

Era a cena da Corte na sua magnificência, parada, à espera de um ato que se devia realizar. A pequena distância do rei ou da rainha, a figura de um capuchinho. Espadaúdo, enorme, forte, com uma barba colossal, e com sua roupa terrível. Natural no meio daquilo, na sua pobreza entre os mais importantes e mais ricos, e cercado de respeito e de delicadeza, constituindo no quadro um  equilíbrio moral que eu não sabia explicitar, mas que me deixava maravilhado. Era esse o papel simbólico dos capuchinhos na civilização daquele tempo. Representavam tudo quanto há de austero na vida, e constituíam a contrapartida harmônica de tudo quanto havia de magnífico na vida, que a civilização daquele tempo estava elaborando.

Um protesto vivo

Temos, pois, um santo, São Lourenço de Brindisi, que é chamado a desempenhar essa missão, simbolizar esse valor na sociedade daquele tempo. O mundo era então marcado pela presença de dois adversários terríveis, que quase liquidaram a Europa.

Um deles era a Primeira Revolução, o protestantismo, contra o qual São Lourenço de Bríndisi lutou com êxito.

A Primeira Revolução, como mostro no livro “Revolução e Contra-Revolução”, foi marcada por uma explosão de orgulho e de sensualidade. De orgulho, afirmado pela negação da hierarquia  eclesiástica e pela inconformidade, na esfera eclesiástica, de todos os súditos com a autoridade. O Bispo não querendo tolerar Papas, os sacerdotes não querendo tolerar Bispos, os leigos não querendo tolerar sacerdotes. Uma verdadeira revolução comunista dentro da estrutura eclesiástica daquele tempo.

De outro lado, a sensualidade, afirmada pela ruptura com o princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal, quer dizer, pelo estabelecimento do divórcio em todas as seitas protestantes e, de outro lado, pela abolição do celibato eclesiástico e do estado religioso com celibato.

Nesse mundo marcado pela perpétua insatisfação de todos, o capuchinho representava um protesto vivo. Ele era pobre o mais das vezes voluntário, um homem que possuíra bens na terra, maiores ou menores, e optara por ser pobre; que renunciara a toda carreira terrena, não ocupava altos cargos nem altas situações, vivia na humildade do voto de obediência pelo qual renunciara à própria vontade para viver sob o império da vontade de um outro; e mantinha a castidade perfeita.

Ele representava, então, um contraste vivo com todo o desregramento do tempo, e passeava naquela sociedade revolucionária como um tanque evolui no meio de batalhões adversos de infantaria. Com serenidade, sobranceria e ação de presença, ia aniquilando.

Desde a infância preparando a alma para grandes batalhas

Vamos agora estudar a vida desse Santo sob esse aspecto. Passo, portanto, à leitura de trechos da biografia dele. Nasceu em Brindisi, em 1559. Foram seus pais das mais nobres famílias daquela cidade. Tinha apenas quatro anos quando pediu aos pais para entrar no convento dos Frades Menores. Os pais acederam. Lourenço era aplicado. Gostava muito de ouvir sermões, retinha-os facilmente e os repetia com exatidão.

Às vezes faziam-no pregar no Capítulo, para que todos ouvissem. Que encanto um capuchinhozinho com voz de criança, mas já com catadura de atleta de Cristo, fazendo sermões que ele ouvia e repetia! Isso ia formando o menino para as grandes batalhas que ele ia travar, para o desembaraço que constitui uma das formas da grandeza capuchinha. O Arcebispo, a quem a notícia chegou, quis também ouvi-lo, e o obrigou a ir pregar na catedral diante de numeroso público, que muito proveito tirou. Levemos em consideração que, naqueles lugares pequenos da Itália — sem rádio, televisão, cinema — qualquer singularidade despertava curiosidade.

Assim a Catedral se enchia para ouvir o sermão de um meninozinho extraordinário. O povo, como era naquele tempo, falante, exuberante, fazendo comentários antes de chegar o menino. De repente, este sobe,  começa a fazer ouvir sua voz, o silêncio se estabelece aos poucos. Terminado, o órgão toca, alguém canta uma Ave-Maria, e o público vai lentamente se escoando depois de ter recebido a bênção do Bispo.

O menino entra no convento e não ouve nenhuma das repercussões. Vai dormir e, na manhã seguinte, está limpando o chão.

Ao receber pressões da mãe, São Lourenço foge

Tendo morrido seu pai, quis a mãe que o filho voltasse para casa, a fim de lhe fazer companhia. Mas o jovem procurou esquivar-se às solicitações dela e fugiu para Veneza, onde estava um tio seu, sacerdote, reitor do Colégio de São Marcos.

Veneza de manhãzinha, com seus palácios, seu panorama aquático magnífico, mil jogos de luz maravilhosos. O fradinho que fugiu e viajou a noite inteira entra tranquilamente na cidade, toma uma gôndola e, de pé, olhando os palácios e pensando em como o Reino dos Céus é maior do que o da Terra, chega à casa do tio para estudar.

O tio era aliado de Deus e o acolhe, e a mãe desiste de exercer seu poder. Concluindo ele os estudos de filosofia, seu tio o destinou à Faculdade de Direito Canônico. Chegado aos 17 anos, pediu o hábito capuchinho, e o Provincial lhe concedeu com gosto. Em 24 de março de 1576, ele fez a solene profissão.

Maravilhosas conversões

Aos 36 anos, foi nomeado Ministro Geral para toda a Ordem. Quando Clemente VIII mandou os capuchinhos para a Alemanha, o Santo foi um dos encarregados. O Imperador [do Sacro Império] teve grande satisfação nessa escolha e concedeu-lhe ampla autorização para fundar mosteiros. Fundou-os na Boêmia, Áustria, Morávia e Silésia.

Fundar mosteiros é encontrar vocações para eles, encontrar dinheiro para construí- los e superiores para dirigi-los. É difícil encontrar quem queira levar a vida austera de um capuchinho. Mas ele formou mosteiros em todas essas regiões.

Os Sumos Pontífices confiaram-lhe as mais delicadas missões. Várias vezes foi enviado como embaixador a cortes de diversos príncipes. Estes o honravam também com o caráter de seu  embaixador.

Assim compareceu às cortes dos príncipes da Alemanha e até à Dieta do Império. Seu zelo reteve naquele país e heresia luterana.

Podemos imaginar cenas de Cortes: o arauto anuncia que vai entrar no salão o Embaixador do Santo Padre, tido como o decano dos diplomatas em todos os países católicos, e entra o frade capuchinho na singeleza de seus trajes. Grande reverência ao rei, e prossegue, no meio dos tapetes de luxo, do esplendor, sereno e indiferente, sem revolta e sem admiração, com os olhos postos no Céu e pregando a verdade, às vezes terrível.

Imprudente no nível humano, prudente no sobrenatural

O Imperador desejou que alguns capuchinhos fossem como capelães do exército à Hungria. São Lourenço foi à frente da missão. Era general o Arquiduque Matias, irmão do Imperador, o qual, estimulado pelas promessas que lhe fazia Lourenço da parte de Deus, de alcançar vitória sobre os inimigos, determinou atacá-los perto de Alba Real. O Arquiduque, excelente general, considerava imprudente atacar os maometanos, que estavam chegando pelos Bálcãs para atacar a Hungria e depois a Áustria, por assim dizer, pelas costas, enquanto os Habsburgos tinham de enfrentar o ataque dos protestantes da Alemanha e a oposição política francesa.

Situação crítica para a Casa d’Áustria. O Arquiduque Matias, parente do Imperador, generalíssimo das tropas do Império Romano-Alemão, diante dos turcos duvida se ataca ou não. Podemos imaginá-lo numa tenda magnífica, reunido com seus homens de guerra, olhando mapas sobre uma mesa de emergência, discutindo se avança ou não, com dados obtidos pelos espiões. Segundo as regras da técnica militar, a batalha é imprudente.

Entra então a sentinela e diz: “Frei Lourenço quer falar”. O Arquiduque Matias aquiesce e o capuchinho entra, avisando a revelação de Deus: “Podem dar o ataque, porque vencerão”. Há um momento de sensação, quando, ouvido o religioso, que não dá razões técnicas, mas só as ouvidas do Céu, os generais vêem o Arquiduque hesitar. Alguém um tanto incrédulo diz: “Alteza, não permita essa luta. Será o fim dos exércitos e o fim da Arqui família” (chamavam desse modo pitoresco a família dos Arquiduques).  — Não — repete Frei Lourenço. — A glória da Arqui família está na batalha. Seus caminhos passam pelos caminhos de Deus. Para a frente!

Ordena o ataque. Naquele tempo ainda havia Fé. Os homens criam. O Arquiduque decide dar a batalha, porque Frei Lourenço lhe prometeu vitória. Batalha imprudente no terreno humano, mas prudente no terreno sobrenatural, que ia ser abençoada por Deus. Os cristãos, embora inferiores em número, acometeram com tal ímpeto que galgaram de espada em punho as trincheiras, conseguindo uma vitória completa e a conquista de Alba Real. Os turcos recuaram. Esse sucesso, que custou apenas 30 homens aos cristãos, julgaram todos que foi devido às orações de Lourenço, o qual, durante todo o combate, montado em um cavalo, animava os soldados a combaterem pela fé.

Que cena magnífica! O capuchinho montado a cavalo, segurando as rédeas com uma mão e a cruz com outra. E o tempo inteiro percorrendo as fileiras e estimulando à luta, prometendo o Céu para quem morresse.

E aqueles homenzarrões, com parte do armamento ainda de metal, tendo de enfrentar tiros de canhão ainda incipiente, projéteis com pedras, e a carga contrária dos maometanos, o ouvem tão inflamados que vão com ímpeto, fazendo os maometanos flectirem e fugirem. Podemos imaginar como foi o declínio da tarde sobre Alba Real conquistada pelos católicos. A alegria das tropas católicas diante do milagre evidente. O Arquiduque talvez na casa do governador maometano de Alba Real; todos descansando nos vários lugares da batalha. Repicam os sinos. Frei Lourenço está chamando para a prece.

A igreja está cheia. Entram, ele está junto ao altar e canta um magnífico Te Deum.

Isso é viver!

Santa Inês

No momento de seu martírio, oprimida pelas dores, Santa Inês recompôs suas vestes por amor à pureza.

Ter essa preocupação naquela hora significa tão grande elevação de espírito, tão intenso amor à virtude, que não se pode simplesmente incluir o fato nos fioretti, como se fosse mais um tocante episódio de vida de santo.

Essa atitude da mártir é como que o brilho de uma gota do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; é um ato admirável de sabedoria, uma manifestação arrebatadora de apreço pela castidade, sua e do próximo.

Plinio Corrêa de Oliveira

Bondade régia da Virgem do Miracolo

Segundo afirma Dr. Plinio, um estupendo milagre ocorrido no século XIX prefigura os prodígios de conversão que a Santíssima Virgem deverá operar em nossos dias, tornando-se Ela a Rainha de todos os corações.

Entre as centenas de igrejas que a piedade católica edificou na Cidade Eterna está a de Santo Andrea delle Fratte (Santo André dos Frades), onde se venera uma linda imagem de Nossa Senhora, sob a invocação de Madonna del Miracolo, ou Nossa Senhora do Milagre.

Como facilmente se intui, esse título se refere a um grande milagre realizado pela Mãe de Deus, no mesmo lugar onde hoje é cultuada por seus inúmeros devotos: A conversão do judeu Ratisbonne.

Era 20 de janeiro de 1842. Que se passou naquela ocasião?

Para a maioria dos que então se encontravam em Roma, era apenas mais um dia frio e corriqueiro de inverno. Não o seria, porém, para um turista de passagem pela capital da Cristandade.

Afonso Tobias Ratisbonne, francês aparentado com a influente família dos Rotschild, era judeu de raça e religião. Mais dado ao ceticismo, alimentava uma não pequena animosidade contra a fé católica. Naquele dia, porém, cedendo aos rogos do Barão de Bussières (que desejava a conversão dele), e um tanto por bravata, concordou em colocar ao pescoço a Medalha Milagrosa, muito difundida no período imediato às aparições de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, em 1830, na capela das Filhas da Caridade, na rue du Bac, em Paris.

Além disso, a convite do mesmo amigo, dirigiram-se à igreja de Santo Andrea delle Fratte, onde o Barão devia encomendar uma missa de sétimo dia pela alma de um conhecido. Chegados ali, o amigo foi até a sacristia, enquanto Ratisbonne, por um interesse artístico, mas com ar meio de mofa, começou a percorrer o recinto sagrado, detendo-se aqui e ali, diante dos altares laterais.

Quando o Barão retorna, depara com esta cena surpreendente: o judeu ajoelhado, completamente em êxtase, transfigurado, rezando com inusitado fervor em frente de uma das capelas  secundárias.

O Barão de Bussières apressou-se em lhe perguntar o que acontecera, e Ratisbonne comovidíssimo abraçou-o dizendo:
— Eu vi a Mãe de Jesus Cristo! Ela me apareceu…. aqui!

E descreveu a aparição de Nossa Senhora, cuja celestial figura correspondia em tudo à que vira Santa Catarina Labouré, alguns anos antes, em Paris. Segundo ele, a Santíssima Virgem cingia uma coroa de Rainha e vestia uma bela túnica comprida, presa à cintura por uma faixa preciosa; pousava os pés virginais sobre a toalha de linho do altar, e lhe sorria maternalmente, com os braços estendidos e as mãos abertas. Como se vê, a mesma silhueta da imagem esculpida na medalha que ele então trazia.

Ante essa extraordinária visão, Ratisbonne compreendeu que se encontrava na presença da Mãe de Deus: caiu de joelhos e se converteu no mesmo instante. Poucos anos depois tornar-se-ia o Padre Afonso Maria Ratisbonne, secundando seu irmão na fundação da Congregação do Sion, voltada de modo particular para o apostolado católico com os israelitas.

Estratégia da Providência contra a impiedade

A notícia dessa conversão logo se difundiu, revestindo-se de profundo significado no contexto psicológico e doutrinário da época. No século XIX, a impiedade insistia no sofisma de que o homem racional, procurando julgar as coisas de acordo com a razão, não encontra fundamentos suficientes para afirmar a veracidade da Igreja Católica. Não tem meios de provar que Deus existe, que  Jesus Cristo é Deus, que a Igreja tenha sido fundada por Ele. Portanto, todo o edifício das doutrinas e da Fé no catolicismo não passa de um arcabouço inaceitável e ilegitimável pela razão humana.

É um mito, como qualquer outro da antiguidade romana ou grega, como os da religião hindu ou das crenças africanas. Não poucas almas estavam perdendo a Fé, cedendo culposamente ao dilúvio de objeções — a maior parte das quais constituída por chicanas e sofismas, além de alguns argumentos capciosos contra a Igreja Católica. A fim de combater essa investida diabólica, a Providência  fez milagres em diversos lugares, e o ocorrido na Igreja de Santo Andrea delle Fratte foi um dos mais insignes a comover a Cristandade.

Qual fato poderia causar maior estupor do que um filho do judaísmo, aparentado com uma das famílias mais ricas do mundo, sem a menor necessidade de agradar a Igreja Católica, declarar-se de repente convertido por ter visto Nossa Senhora? E que, como prova de sua sinceridade, abandona a vida mundana e abraça para sempre uma existência de renúncia e sacrifício. Ainda por cima, ajuda a fundar uma Congregação religiosa destinada a trabalhar pela conversão de seu povo. Maior manifestação de autenticidade, ele não poderia dar.

Para a humanidade daquele tempo, sacudida pela multidão de argumentos dos inimigos da Religião Católica, esse evidente milagre caía como uma refrescante gota d’água num deserto.

Nossa Senhora desferia um golpe sumamente estratégico e bem calculado, pisando na cabeça da serpente infernal. Pelo testemunho de um ex-adversário, Ela demonstrava de modo maravilhoso quanto a Igreja Católica é verdadeira.

Pouco depois, como num requinte desse “plano de ataque ”, Ela daria início aos milagres de Lourdes, que viriam a constituir a mais acentuada série de celestiais prodígios na história da Igreja.

Diante da imagem, uma contínua “aparição”

Logo depois da aparição a Ratisbonne, foi pintada a imagem da Madonna del Miracolo, de acordo com as indicações do vidente. Como sói acontecer, o símbolo ficou devendo à Simbolizada, pois, por mais bela que seja a figura retratada por mãos humanas, a formosura de Nossa Senhora excede a qualquer esplendor. Ela não é pintável, assim como não é descritível.

Trata-se de uma imagem romântica, bem no estilo do século XIX, bastante comunicativa, e que deve ser vista com certo recuo. Ou seja, contemplada com olhos que sejam capazes de ver muito mais e além do que os próprios olhos possam apreender. Há nela um sorriso, uma express ão de fisionomia, uma afabilidade no gesto, que transcendem a cor do vestido e outros pormenores dos adornos.

Considerando-a, certas almas chegam mesmo a sentir algo do autêntico sorriso de Nossa Senhora. Ela cria em torno de si uma atmosfera sumamente benfazeja. As pessoas que rezam diante do quadro, na Igreja de Santo Andrea delle Fratte, mantêm-se em geral recolhidas, deixando perceber em suas faces o quanto se sentem penetradas pelas graças efundidas pela Santíssima Virgem.

Envolve-as uma impressão de paz e calma, de céus abertos, e de que Nossa Senhora, exorável, dispõe-Se a atender a todos os pedidos. Uma sensação de que o tempo não se encontra apartado da eterna bem-aventurança, e de que a benignidade de Nossa Senhora transpõe distâncias incomensuráveis para se nos tornar acessível e acolhedora. Experimenta-se uma verdadeira consolação, uma verdadeira confiança, uma verdadeira resignação, uma certeza de que, em última análise, tudo dará certo.

Lembro-me, emocionado, de que venerei essa imagem em dias de muitas e penosas preocupações. Nesse período, o sorriso dela era a grande esperança que me iluminava e guiava, beneficiando-me da unção característica que ela comunica em torno de si.

Em diversos momentos, era tomado pela impressão singular de que a pintura continuava a aparição, adquirindo uma luminosidade cambiante, uma luz que me sorria mais ou menos conforme o dia e conforme o modo de Nossa Senhora olhar-me. Isso trazia uma espécie de garantia de graça concedida, de bondade dada, de favor outorgado, a sensação de que o sorriso de Nossa Senhora cicatrizava todas as dores e sofrimentos do dia, e me armava de alento para a jornada seguinte.

Nesse tempo que passei em Roma, cheio de momentos aprazíveis, mas também de graves apreensões, essa imagem me animou numerosas vezes com uma contínua efusão de graças. Consolou-me, fazendo-me sentir que Ela estava mais próxima de mim, a espargir seu incansável amor materno. Pedir e esperar grandes milagres que renovem o mundo Uma consideração final.

A Virgem do Miracolo é, portanto, a Virgem que praticou um grande milagre. Ela converteu, de um momento para outro, um homem mundano, com toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Passando por cima dessas tremendas barreiras, Nossa Senhora fez o milagre de o converter, maior até que o de lhe aparecer. Por assim dizer, Ela entrou na alma dele e o transformou completamente.

É o milagre moral, mais estupendo que qualquer milagre material.

Cumpre observar que, em virtude de uma lei superior da Providência, milagres assim tornam-se mais freqüentes nas épocas em que são mais necessários. Desse modo, sempre que a situação no mundo vai se apresentando mais precária, que a impiedade vai crescendo — como vemos em nossos dias —, o número de milagres deverá aumentar. Poderão demorar mais ou menos tempo para começar, mas virão na hora certa e farão sua obra.

E nós, católicos, devemos contar com eles para abrirmos caminho no meio de tantas provações, confusões e decadências. Deus tem desígnios e mistérios que não nos cabe alcançar. Apenas  devemos confiar e esperar que Ele, a rogos de Maria Santíssima, intervenha de modo miraculoso para tocar o coração da humanidade contemporânea.

Por ocasião da festa de Nossa Senhora do Miracolo, nada mais oportuno do que pedirmos com fervor e empenho que Ela, como fez com Ratisbonne, entre triunfalmente em nossas almas e nas de todos os homens, vencendo nossos vícios, nossos pecados, nossas misérias e quaisquer outros obstáculos que pudéssemos Lhe opor. De maneira que Ela se torne verdadeiramente Rainha de  nossos corações, e opere um maravilhoso milagre moral que transmude e renove a face do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira

Papa São Fabiano “O homem da rua sobre quem a Pomba pousou”

Em artigo estampado na Folha de São Paulo de 3/12/1976, Dr. Plinio procura conceder a si mesmo algo de refrigério diante da crescente agitação que tomava o mundo moderno. Como? Tecendo um hino de amor à santidade do Papado, a propósito da eleição providencial de São Fabiano ao Trono de Pedro.

 

A poluição em todas as suas formas, continua problema atual. Mais especialmente tenho em vista aqui a poluição moral inerente à vertiginosa decadência dos costumes, e a poluição mental provocada pela trepidação da vida hodierna. (…)

Uma excursão ao passado

O meio de fugir disso? Uma excursão, por exemplo, ou a audição de alguns belos discursos, a leitura de um romance, contentam a vários. Há os que se satisfazem com menos, isto é, com a ingestão de qualquer comprimido que favoreça a evasão para as profundidades de sonos insondáveis. Entre tantos recursos despoluentes, há também a excursão às extensas regiões do passado, ou seja, a leitura de narrações históricas. No píncaro destas, existe a legenda, com o encanto de sua leveza, de seu simbolismo, de seu esplendor.

Para a decepção da maioria e o possível contentamento de uns poucos, é uma viagem ao passado que proponho neste fim de semana. Não ao passado histórico, mas ao passado legendário, tão lato, tão belo, que por alguns lados parece tocar na própria eternidade. Acabo de ler um conto tomado mais ou menos a esmo na Légende Dorée, de Jacques de Voragine. Queres viajar comigo nas regiões etéreas deste conto, leitor?

De um simples passeio para a maior das dignidades

Fabiano era um simples romano como outro qualquer. Um “homem da rua”, como hoje se diria. E sequioso de notícias como são em todos os tempos os seus congêneres.

Ora, havia em Roma, ainda recente uma grossa novidade: morrera o Papa. E estava em gestão uma novidade ainda maior: ia ser escolhido pelo povo o novo Pontífice. Nosso “homem da rua”, segundo o costume, saiu de casa e se misturou na multidão, reunida para a augusta escolha(1). Fabiano julgava chegar atrasado, isto é, a tempo somente de conhecer o resultado.

E este veio, bem diverso do que Fabiano podia imaginar. Do alto do Céu baixou uma pomba de esplendorosa alvura, e pousou sobre a sua cabeça. Por esse fato simbólico, o Espírito Santo deixava claro que designava Fabiano. A multidão, piedosamente entusiasmada, escolheu-o Papa. E Fabiano, que saíra à rua para passear, se viu alçado assim à dignidade inigualável de sucessor daquele de quem o Salvador disse: Tu és Pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16, 18). E a partir daquele momento a “solicitude de todas as igrejas” (2 Cor 11, 28) passou a ser a única preocupação e a única atividade de sua vida.

Suma veneração pelos mártires

Aqueles remotos tempos se assemelhavam de algum modo aos nossos. A Igreja tinha adversários poderosos e implacáveis. O sangue dos mártires corria às torrentes em toda a vastidão do Império Romano. Também hoje a Igreja tem inimigos poderosos. E, por toda parte, também os católicos são perseguidos. É certo que os adversários de hoje (…) não são brutais como os de outrora.

Perseguem com o sorriso hipócrita nos lábios, e a mão estendida para a colaboração dolosa. (…) Hipocrisia ou brutalidade são acidentes. Em substância, o ódio é o mesmo.

Fabiano, cheio de veneração pelos mártires, começou seu Pontificado enviando por todo o Império sete diáconos e sete subdiáconos, para que recolhessem por toda a parte as atas dos martírios. Homem previdente, queria ele legar assim para toda a posteridade, estas narrações de uma heroicidade sem igual, escritas pelo sangue dos homens por amor ao Sangue de Cristo. De sorte que até a consumação dos séculos servissem de adorno à Igreja.

Vencedor de feras

Mas Fabiano não recebera em vão a visita da Pomba. O “homem da rua”, presumivelmente pacato e mediano, transformou-se em herói, e não apenas em colecionador e compilador de feitos heróicos de outros.

O imperador Filipe levava uma vida cheia de pecados. Sem embargo, quis assistir às vigílias da Páscoa e participar dos Santos Mistérios.

Fabiano, (…) em lugar de aceitar a presença escandalosa do pecador, (…) impediu que Filipe transpusesse os umbrais sagrados enquanto não confessasse seus pecados e não aceitasse de se colocar no lugar reservado então aos pecadores penitentes dentro da Igreja. Filipe cedeu.

E Fabiano, pela graça da Pomba [isto é, do Espírito Santo], venceu assim a fera. Feliz da Igreja quando é governada por varões que, fortalecidos pela Pomba, não teme as feras!

Bem entendido, as feras não gostam deste trato. No 13º ano de seu Pontificado, o Imperador Décio mandou decapitar Fabiano. Este é o fim sinistro do “homem da rua” visitado pela Pomba, e transformado por Ela em um vencedor de feras.

Na glória celeste, aos pés de Maria

Fim sinistro?

Consideremos o desfecho da história, tão e tão elevado, que a legenda áurea apenas o deixa discretamente subentendido. No momento em que a cabeça venerável de Fabiano foi cortada, uma corte rutilante de Anjos, provindo das alturas excelsas onde reinam o Padre, o Filho e o Espírito Santo, baixou para receber a alma santíssima do novo mártir. Fabiano subiu, subiu, levado pelos Príncipes celestes. Mas, por mais que ele subisse, a Santíssima Trindade parecia irremediavelmente inacessível. Depois de um glorioso itinerário através das Hierarquias infindáveis dos Anjos que o aclamavam e o elevavam com o cântico de seu afeto, Fabiano, extasiado de felicidade e de glória, foi deposto pelos Anjos aos pés de Nossa Senhora. E assim como através de um telescópio os astros mais distantes parecem aproximar-se de nós, assim também junto ao Coração de Maria, Fabiano se sentia inteiramente saciado pela presença de Deus. Como é doce e glorioso contemplar Deus face a face, aos pés do trono de Maria!

Rogai por nós e pela Igreja!

Nessas alturas celestes terminou o passeio do “homem da rua”, que fora pacatamente à procura de notícias sobre quem tinha sido eleito Papa. E até o fim do mundo haverá homens que digam: “São Fabiano, rogai por nós”. Eu, por exemplo. E tu também leitor.

“Rogai por nós”. Só isto? Rogai, São Fabiano, pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. (…)

Ó, rogai pela Igreja, São Fabiano!

 

1) Nos primórdios do Cristianismo os papas eram eleitos pela aclamação do clero e do povo congregados nas ruas de Roma para esta finalidade. A partir de 769 ficou estabelecido que o Sumo Pontífice seria escolhido apenas pelo clero romano, mantendo-se a aclamação popular como mera formalidade. Em 1059, o Sínodo de Latrão reservou aos cardeais o direito de eleger o novo sucessor de Pedro (cf. Legenda Áurea, Cia. das Letras, São Paulo).

Plinio Corrêa de Oliveira

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VI O partido de Jesus e o do mundo

Na continuação de seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos faz compreender, uma vez mais, como todo aquele que ousa abraçar o sofrimento, a pobreza e as humilhações por amor a Deus, identifica-se com Nosso Senhor Jesus Cristo e dispõe sua alma para que nela habite a sabedoria.

 

Dirigindo-se aos membros da Confraria dos Amigos da Cruz, por ele fundada, São Luís Grignion assim escreve:

Eis, meus caros confrades, dois partidos que se defrontam todos os dias: o de Jesus Cristo e o do mundo.

Duas falanges de servos que lutam por dois senhores

Conforme ficou explicado no início dessas exposições, São Luís redigiu sua carta circular durante um retiro, e essa ideia dos “dois partidos” evoca a meditação das “duas bandeiras”, proposta por Santo Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais. Lembra, também, o que o próprio São Luís afirma no seu Tratado da Verdadeira Devoção:  por natureza, o homem é escravo, e o será de Nosso Senhor Jesus Cristo ou do demônio, príncipe deste mundo.

Então, esses dois partidos são as duas grandes falanges de servos que lutam por dois senhores. Faço notar que há apenas dois partidos, sem possibilidade de uma terceira posição. Donde toda a História se resolver, em última análise, no seu sentido mais profundo, no confronto desses dois interesses, desses dois princípios, desses dois seres antagônicos: Jesus Cristo e o demônio.

Sempre pequeno, o número dos Amigos da Cruz

Conforme tal noção, o santo autor prossegue:

O [partido] de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez mais se tornou devido à corrupção do mundo. Caminha à frente o Bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado e carregando uma pesada cruz. Apenas algumas pessoas, das mais corajosas, O seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no tumulto do mundo; ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.

À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele e, apesar de serem largos como nunca os caminhos que a ele conduzem, atropelam-se em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata.

O santo indica, pois, duas categorias de pessoas bem diversas. As que constituem o partido de Nosso Senhor estão à direita, em aclive. Ou seja, em ascensão, na subida que torna difícil a caminhada por se ter de vencer o peso da gravidade. Essa trajetória se faz cada vez mais estreita, isto é, o esforço pela salvação se apresenta a cada dia mais árduo, devido à corrupção do mundo, às solicitações maiores do pecado, à insistência das más influências e dos maus exemplos.

Porém, à frente vai o Bom Mestre, pés descalços, coroado de espinhos, coberto de sangue e carregando sua Cruz. Trágica visão de uma vítima que sofre em todo o seu corpo, seguida apenas por algumas pessoas, e das mais corajosas. Vê-se o numero sempre pequeno dos autênticos Amigos da Cruz, daqueles que ousam aceitar o sofrimento e compreendem que nesta vida estamos sujeitos a toda sorte de provações. Pelo contrário, incontável é o número dos homens que fogem do sacrifício e procuram não considerá-lo de frente.

Ensurdecedor ruído das paixões desordenadas

Na seqüência de seu pensamento, São Luís Maria fala do tumulto do mundo que abafa a delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, há um barulho, um ruído ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre.

 Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a nos movimentarmos de maneira igualmente desordenada. Donde uma espécie de perturbação difusa nas grandes cidades, uma agitação da vida moderna e seus acontecimentos, que embriagam e fascinam imensa parcela dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, enquanto houver numa alma esse deleite com o tumultuar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez irão esbarrar e se deter as inspirações da graça.

Daí, por outro lado, a necessidade de o verdadeiro Amigo da Cruz, desejoso de seguir o Bom Mestre, pedir-Lhe o horror e a aversão ao tumulto do mundo.

Pobreza, dores e humilhações

Ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar a seu serviço todos os dias da vida — acrescenta São Luís Grignion.

Ou seja, quem deseja servir a Nosso Senhor deve estar disposto a abraçar três coisas: pobreza, dores e humilhações.

A pobreza é, de algum modo, a virtude católica por excelência, pois para fazermos inteiramente a vontade de Nosso Senhor, temos de ser desapegados de tudo o que possuímos.  Do contrário, ao nos ser pedido, em nome do serviço de Deus, a renúncia de algo a que nos afeiçoamos, bem mais difícil será a nossa conformidade com o superior desígnio divino. Portanto, para ser fiel à vocação de seguir o Mestre, a alma precisa ser pobre, desapegada.

Além da pobreza, as dores. A vida de todo homem comporta sofrimentos, e estes serão talvez maiores para os poucos que souberem aceitá-los com o autêntico espírito de Amigo da Cruz.

Por fim, as humilhações. Não é fácil discernir qual das três coisas é a mais pesada, pois as dificuldades variam de pessoa a pessoa conforme o temperamento de cada uma. Estas aceitarão melhor as dores e sofrerão mais com as humilhações; aquelas se alegram na pobreza, mas se arrepiam com as humilhações; enquanto outras padecem de boa mente as penúrias materiais e as humilhações, mas sofrem demasiado com as dores físicas e morais.

Claro está, naturalmente falando, sem o concurso da graça homem algum se dispõe a esses três tipos de sofrimento, e menos ainda estão inclinados a tal os que compõem o partido do mundo. Portanto, devemos compreender que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças e dons especiais aos seus seguidores, para que estes aceitem e abracem o duro preço dessa admirável vocação.

O aparente brilho do partido do demônio

Em seguida, São Luís Maria Grignion de Montfort descreve o partido do demônio, “o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência”.

É curioso notar como a felicidade confere certo brilho ao indivíduo. Tome-se, por exemplo, alguém que tenha sido sorteado numa loteria, ganhando avultada soma. Nesse dia ele se torna mais luminoso, mais bem disposto, sente-se seguro de si e demonstra um garbo invulgar, proporcionado pelo êxito. E não há coisa que mais tire o garbo de uma pessoa do que o insucesso. Um general perder a batalha, um rei perder a guerra, um advogado perder a causa, e aparecerem garbosos num jantar de gala? Não se pode concebê-lo.

  Pois esse esplendor do êxito e da felicidade possuem os que seguem o partido do mundo ou do demônio. Daí ser este grupo, na aparência, o mais reluzente, magnífico e numeroso. “Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele”, afirma São Luís. De fato, a experiência da vida nos mostra que, por uma razão difícil de definir, o indivíduo naturalmente brilhante, dotado de maiores qualidades apreciadas pela gente do mundo, é mais propenso a se perder do que aquele que não possui esse brilho pessoal.

Além disso, existe a imensa falange dos que se abalam para o partido do demônio por causa de reflexões oportunistas: “Eu, me alistar sob a bandeira da pobreza, da dor e da humilhação, enquanto no outro lado terei brilho e fortuna? Não há dúvida na escolha”.

Inútil dizer até onde essas reflexões podem levar a alma que lhes dá ouvidos.

Largas e cobertas de ouro, as vias da perdição

Esses caminhos do mundo, assevera o santo autor, “são mais largos do que nunca, e neles as pessoas se atropelam, em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata”.

Percebe-se, pela ideia exposta por São Luís, que a impiedade no tempo dele se mostra maior do que nas épocas anteriores. Então, as vias do mal nunca foram tão largas, e as multidões que passam por elas, perdendo-se, são tais que esses caminhos se dilatam.

Essa situação me faz recordar o caso de uma freira carmelita que, tendo de se deslocar para outro convento, viajou pela primeira vez por uma estrada asfaltada. Indagada sobre as impressões que tivera da “moderna” rodovia, ela respondeu:

— Creio que assim deve ser o caminho que leva ao inferno: agradável, largo, asfaltado, e as pessoas correndo sobre ele…

A meu ver, uma observação muito sagaz e verídica. Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios, vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo, enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espaçosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas, e seu fim é o Calvário.

“É preciso ser conforme a imagem de Jesus Cristo ou condenar-se”

Prossegue São Luís:

À direita, o pequeno rebanho que segue Jesus Cristo só fala em lágrimas, penitências, orações e desprezo do mundo; ouvem‑se continuamente essas palavras, entrecortadas de soluços: “soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo‑nos, humilhemo‑nos, empobreçamo‑nos, mortifiquemo‑nos, pois o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele”.

Trata-se do despojamento próprio àqueles que desejam ser escravos de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Estes sofrem, choram, jejuam, humilham-se, rezam, mortificam-se e abraçam a pobreza. Atributos dos quais o mundo tem verdadeiro pavor. E por que essas almas se sujeitam a tais sofrimentos? Porque desejam adquirir o espírito de Jesus Cristo, receberem as graças d’Ele a fim de com Ele se identificarem.

Os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme a imagem de Jesus ou condenar‑se. “Coragem, exclamam eles, coragem! Se Deus está por nós, em nós e diante de nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós, é mais forte do que o que está no mundo”.

São Luís aponta a solução: se Jesus Cristo habitar em mim, serei capaz de aceitar o preço por segui-Lo; se Ele não estiver em mim, faltar-me-á coragem para tal.

Combater segundo o Evangelho e não conforme a moda

O servo não é maior que seu senhor. Um momento de leve tribulação redunda num peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém ali será coroado se não houver combatido legitimamente segundo o Evangelho, e não conforme a moda. Combatamos, pois, vigorosamente; corramos para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa. Eis uma parte das palavras divinas com que os Amigos da Cruz mutuamente se animam.

Portanto, a oposição entre os dois partidos está bem estabelecida. De um lado, Jesus Cristo, o modelo; de outro lado, a moda, os costumes do mundo, aos quais São Luís alude, dando a entender tudo quanto possuem de viscoso, de fascinação por coisas vãs, em última análise, de ilusões.

Pelo contrário, os mundanos, a fim de se animarem a perseverar na sua malícia sem escrúpulos, gritam todos os dias: “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para nos perder; Deus não nos proíbe de divertir, nem seremos condenados por isso. Nada de escrúpulos!”

Temos aqui a ideia infelizmente muito difundida de que, no fundo, o vício não será punido, pois Deus é bom. Na verdade, trata-se, não do Deus de misericórdia que acolhe o pecador arrependido, mas de um Deus de falsa bondade, indiferente ao pecado. Mais uma vez, é a oposição entre duas mentalidades.

Amor à Cruz, sinal de que a sabedoria habita em nossa alma

Concluo essas considerações de hoje com uma observação a respeito dos mistérios que cercam a alma humana.

São Luís Grignion escreveu essas palavras porque as considerava úteis, e as concebeu sob um evidente sopro da graça. Ou seja, a graça divina teve a intenção de animar essas páginas. Entretanto, de tal maneira nos parece árduo carregar a Cruz junto com Nosso Senhor, que, ao lermos os pensamentos expressos pelo santo, dificilmente não nos virá ao espírito a seguinte ideia: “Isto tudo é um lero-lero surrado, já conhecido por mim e por todos, que não precisa ser relido”.

Quer dizer, esses princípios na verdade tão pouco repetidos, quase nunca ensinados, penetram em nossa alma uma vez e a repetição deles nos dá a sensação de algo fastidioso e monótono. Nós, que seríamos capazes de ouvir inúmeras vezes uma mesma música, assistir duzentas vezes uma mesma peça de teatro ou manter durante horas uma conversa com a mesma pessoa, desde que aproveitem ao nosso interesse e apego, julgamos tratar-se de lengalenga essas altas e inapreciáveis reflexões de um santo.

 Vemos, por aí, como é de fato penoso elevar o espírito humano através do sofrimento; como há uma repulsa quase instintiva ao amor à Cruz. E, portanto, como a devoção a essa mesma Cruz é algo de suma importância e indispensável para a nossa vida espiritual.

Eu diria mais. Se nos empolgarmos ao ouvir falar da Cruz e do sofrimento, se admirarmos a dor cristãmente aceita e sentirmos o vazio de uma vida sem padecimentos, tais disposições serão um sinal de que a sabedoria habita em nossa alma.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/7/1967)