São Teodoro: um mártir increpador

Descendente de uma família nobre e rica, o jovem Teodoro cheio de garbo desafia o magistrado, proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império. Foi torturado barbaramente e queimado vivo. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus a punição e, ao mesmo tempo, a conversão do Império Romano.

 

Proponho que assistamos juntos a um episódio histórico. Não é um filme de televisão, mas a descrição de um fato digno de ser lembrado na História da Igreja, contado circunstanciadamente não por mim; vou apenas ler a narração tirada da obra do Padre Rohrbacher(1).

O Império Romano decaía devido à corrupção moral

Trata-se do martírio de São Teodoro. Ele foi denunciado como católico e, convocado por um magistrado qualquer, recusou-se a abjurar a Fé. Foi levado, então, a um lugar de suplício onde ele poderia, a qualquer momento, fazer cessar os seus tormentos desde que se dispusesse a renunciar a Fé. Aguentou esses tormentos crudelíssimos até a morte. É um mártir.

Uma nota particularmente interessante nesse martírio é que o juiz e ele travam uma verdadeira batalha psicológica, na qual o magistrado procura de todos os modos amolecê-lo para evitar martirizá-lo. São Teodoro resiste, desafiando o juiz cada vez mais. O fato foi notório, conhecido e presenciado por muita gente.

Nós devemos nos perguntar qual é o efeito disso sobre a opinião pública correspondente ao Império Romano que abrangeu toda a bacia do Mediterrâneo. Os romanos se estendiam não só pelo litoral, mas eram senhores das nações ribeirinhas do Mediterrâneo. Aprofundando-se, portanto, longamente pelo território da África, Ásia, Europa, e constituindo, portanto, uma unidade impressionante.

Esse Império, pela imensa extensão e pela dificuldade de comunicação naquele tempo, fragmentou-se em dois: o do Oriente e o do Ocidente. Mas entendia-se que formava um só todo moral e até mesmo político, e que os imperadores, sem serem irmãos pelo sangue, o eram pela missão e deveriam governar em mútua colaboração, cada qual a sua parte do Império. Uma unidade, portanto, enorme, majestosa.

O Império Romano foi monumental e riquíssimo, mas também corruptíssimo. À medida que se desenrolava sua história, seu poder e sua riqueza foram crescendo, porém foi se dissolvendo moralmente e terminou na corrupção moral mais espantosa, acumulando dois aspectos diferentes.

De um lado, os romanos propriamente ditos, não só os habitantes de Roma, mas da Itália, que constituíam o núcleo do Império. Estes sentiam-se muito seguros e estáveis em função do poder e da riqueza que possuíam, e pelo fato de que os inimigos estavam longe, em fronteiras que dificilmente seriam transpostas por eles; e se as transpusessem seriam contidos com facilidade pelas legiões romanas.

Além da prosperidade e da segurança por verem o perigo bem longe, contribuía para a dissolução dos costumes o fato de que a religião dos romanos não dava o mínimo fundamento para uma atitude moralizada. Resultado: o Império foi se corrompendo até chegar a toda espécie de imoralidade e deterioração.

A Religião Católica se desenvolvia

Ao lado dessa depravação generalizada havia a Religião Católica que, do fundo das catacumbas, nascia e se desenvolvia, apresentando-lhes o oposto.

Vemos, então, o jovem Teodoro, nascido na Grécia, de uma família nobre e rica, julgado por um juiz daquela região, o qual estava, portanto, sob a influência dessa família. Esse jovem cheio de garbo desafia o magistrado e proclama a caducidade dos ídolos, a vacuidade do Imperador, a nulidade do Império, com uma força que vai crescendo à medida que o juiz oferece mais.

Dá-se, então, um debate entre o juiz – que visa despertar no jovem o desejo pela vida cômoda e agradável, sem o conseguir – e São Teodoro, que procura comunicar a Fé Católica proclamando as virtudes cristãs e o nome de Jesus Cristo, levando as verdades da Fé tão alto quanto se pode levar um estandarte; e o juiz recusando também.

A recusa de ambas as partes resulta em choque, que culmina com a morte do jovem Teodoro. Dir-se-ia que o fato está encerrado. Ora, a história começa aí. No Céu há um mártir rezando, enquanto na Terra os frutos de seu sangue se difundem.

Tertuliano disse aquela famosa frase: “O sangue dos mártires é semente de cristãos”. Assim como o sangue de Abel, vertido por Caim, clamava a Deus por vingança, o sangue dos mártires implorava a Deus pela punição e, ao mesmo tempo, pela conversão do Império Romano. E o sangue de São Teodoro passou a clamar.

Houve uma opinião pública que em parte presenciou, em parte tomou conhecimento desse martírio. Que atitude terão tomado aquelas pessoas diante dos diálogos impressionantes que vamos ler? Imaginem aqueles romanos que faziam festa quase todas as noites, comendo e bebendo durante horas, chegando ao extremo horror de provocar-se náusea, pela ação de escravos que vinham com penas de pato coçar o paladar, para lançar fora o que haviam ingerido e, esvaziando assim o estômago, poderem continuar a beber e a comer.

Podemos nos perguntar qual o efeito produzido nessa opinião pública pelo diálogo entre São Teodoro e seus algozes.

São Teodoro proclama a sua Fé e investe contra o inimigo de Cristo

Passemos à leitura e comentário da referida ficha.

A perseguição se deu pouco depois de que os Imperadores Galério e Maximino publicaram seus editos, que mandavam continuar as perseguições aos católicos, ordenadas por Diocleciano.

Diocleciano ordenou uma das piores e mais longas perseguições.

O jovem soldado, muito longe de dissimular a sua Fé, a trazia como que escrita sobre a fronte.

Imaginemos, então, um legionário romano com aquela armadura e elmo característicos, e que trazia sobre a fronte como que escrita a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo, sendo visto por um folgazão que se embriagou na véspera e se embriagará naquela noite, e que para encher tempo vai assistir ao martírio e olha para aquilo aviltado e com o olhar embaçado pelo álcool.

Teodoro foi apresentado ao Tribuno da Legião e ao Governador da província, que lhe perguntaram por que ele não adorava os deuses, segundo as ordens dos imperadores.

Ele respondeu: “Sou soldado de Jesus Cristo, meu Rei. Eu não conheço outros deuses; meu Deus é Jesus Cristo Filho único de Deus”.

Isso é uma proclamação. Agora vem a increpação. Ele não se limita a proclamar a sua Fé, mas investe contra o outro, dizendo:

“Os deuses que quereis que eu adore não são deuses, mas demônios! Quem quer que lhes atribua honras divinas está no erro: eis qual é a minha Religião, aquela por cuja Fé estou disposto a sofrer. Se minhas palavras vos chocam, golpeai, rasgai, queimai, cortai a língua; é justo que os meus membros sofram pelo Criador.”

Esta apóstrofe tem todas as características de desafio e é metódica. Ele proclama a sua Fé, depois diz que a fé dos outros não vale nada, e desafia: “Agora, querendo, me martirizem. Eu estou disposto!” Eis o desafio total lançado por um legionário romano!

Podemos imaginar a repercussão de uma atitude como essa em pessoas incapazes de compreender como é que alguém, podendo dizer que adora aos ídolos – não precisava adorar de verdade, bastaria dizer que adora –, se expõe a tormentos dos quais elas têm horror e se prive de divertimentos, quando essa privação já lhes parece um tormento.

O Imperador é um fragilíssimo príncipe, no Céu há um Rei eterno e imutável

Os juízes, embaraçados com uma resposta tão ousada, deliberavam sobre o que eles deveriam fazer, quando um oficial, querendo caçoar do Santo que tinha dito ser fiel ao Filho de Deus, se pôs a lhe dizer:

– Então, Teodoro, teu Deus tem um filho? Ele é sujeito às paixões como os homens?

Respondeu Teodoro:

– Não, meu Deus não está sujeito a paixões. Todavia, Ele tem um Filho, mas um Filho nascido da maneira digna de Deus e bem superior a vossas ideias baixas e carnais, pois esse Filho é a palavra de verdade, pela qual Ele fez todas as coisas.

O tribuno lhe perguntou:

– Podemos nós conhecer esse Filho de Deus?

Ele respondeu:

– Eu quereria bem que Deus vos tivesse dado graças para isso.

Mas, disse o oficial:

– Se nós o tivéssemos conhecido, não poderíamos abandonar nosso Imperador para dar nossa vida ao seu Deus.

Disse Teodoro:

– Se vós O conhecêsseis, teríeis em pouco tempo saído de vossas trevas e, em lugar de pôr uma confiança frágil no vosso fragilíssimo príncipe na Terra, vos ateríeis a Deus, que é o Deus vivo, o Rei e Senhor eterno e vós combateríeis comigo em favor d’Ele.

Essa increpação de que o Imperador é um fragílimo príncipe da Terra e que há um Rei no Céu, eterno e imutável, é uma coisa de deixar aquela gente boquiaberta. Porque era gente que tinha uma vaga ideia de uma post-vida, mas tão vaga, contraditória e cheia de lendas, que praticamente não funcionava. Eles não tinham senão uma ideia ainda mais vaga, de vez em quando lampejos, de um julgamento segundo leis que ninguém sabia como eram.

Agora, vem um que afirma, mas trazendo na fronte uma espécie de prova da verdade da Fé que ele proclamava; pode-se imaginar o impacto no juiz, no tribuno e na opinião pública.

Exortava os católicos que eram conduzidos ao martírio

“Deixemo-lo por alguns dias, disse o tribuno, ele mudará e virá por si mesmo, e acabará fazendo aquilo que lhe é mais vantajoso.”

É a regra dos pagãos, que os caracteriza a cem por cento. Vantagem, vantagem, vantagem, não tem mais nada.

Deram-lhe, então, um prazo dentro do qual ele deveria sacrificar aos deuses, senão seria martirizado.

O Santo não se perdeu em vãs deliberações, mas se empregou em rezar e louvar a Deus incessantemente.

O louvar é um estilo de oração, mas é quase mais bonito do que as outras formas de rezar, no caso. Um homem que marcha para o martírio horrível e que louva a Deus, por Quem ele vai ser martirizado, que louvor bonito! Tem-se a impressão de que um Anjo não cantaria melhor.

Os gladiadores não eram mártires, mas escravos ou pessoas livres de baixa condição que lutavam uns com os outros para o público ver. Eles, antes de começar o combate, alinhavam-se diante da tribuna do imperador e diziam a frase: “Ave Cæsar, morituri te salutant” – “Ave, César, aqueles que vão morrer te saúdam.” Depois começava o combate.

São Teodoro dizia isto a Deus: “Ave, ó Deus, aquele que vai morrer Te saúda. Mas esse que vai morrer sabe que em Ti ele vai viver.” É belo!

Entretanto, os perseguidores procuraram cristãos entre os habitantes para serem conduzidos também à prisão. Teodoro os seguia, exortando a serem firmes e fiéis a Jesus Cristo.

Quer dizer, o tempo que lhe foi dado para hesitar, ele o empregava rezando ou acompanhando outros ao martírio. Era, naturalmente, gente menos importante que ele, a quem os perseguidores não tinham medo de matar. Ele acompanhava os outros ao martírio, exortando-os: “Sustentem, protestem contra o juiz, sejam firmes até o fim, confessem o nome de Jesus Cristo!”

Podemos imaginar a raiva dos que lhe tinham dado prazo, ao verem como ele o empregava. O transporte para o lugar do martírio era feito por uma espécie de piquete de soldados que levavam os condenados à vista de toda a cidade. Os pagãos vaiavam os que iam morrer. Do lado de fora do piquete, estava Teodoro, o soldado: “Aguentem, dura pouco, a eternidade vem, Deus merece, Jesus Cristo é nosso Deus!”

Em todas as ocasiões ele marcava dessa maneira o seu zelo para o serviço de Deus.

Incendeia um famoso templo pagão

Agora vem um modo de manifestar o zelo que deixa o Padre Rohrbacher hesitante, mas ele menciona pondo ao lado de São Teodoro uma grande autoridade. Diz o autor:

Havia um templo no meio da cidade, nas margens do rio chamado Ires. Esse templo era dedicado à deusa Cibeli, que as fábulas chamavam “a mãe dos deuses”. Teodoro, encontrando a ocasião favorável, pôs fogo durante a noite no templo, que foi reduzido a cinzas, com os ídolos que nele existiam.

Pela discussão que vem depois, vê-se que, entre outras intenções, estava a de mostrar que os ídolos não valem nada, qualquer um ateava fogo neles. Era, portanto, uma prova de que ele tinha razão, mas também um escárnio aos idólatras.

O que São Gregório de Nissa relata como uma generosidade louvável, se bem que o Concílio particular de Euvira pareça censurar ações desse gênero. Teodoro, apesar disso, não ocultou sua ação; ele se gabava até publicamente, nas rodas, que era ele quem tinha posto fogo. Pelo que foi denunciado e compareceu perante o tribunal do governador com tal segurança que mais parecia juiz do que acusado.

É extraordinário! Com a Fé resplandecendo na fronte, sendo o juiz de seu juiz, sabendo que ele caminhava para a morte terrível.

Ele reconheceu o fato que lhe era imputado. O juiz lhe perguntou por que ele tinha queimado a deusa do lugar, em vez de adorá-la. O Santo respondeu que ele tinha acendido uma lenha para pôr à prova a deusa e ver se era combustível ou não. E que o fogo a tinha atacado e queimado, porque toda a força dela tinha consistido apenas em matéria e isso se queima.

Ora, ele estava dando um argumento para não adorar: “Como é uma deusa, se eu a queimei? O que vale isso?” O juiz fez o que tantas vezes fazem os ímpios, isto é, quando os bons dão um argumento, não contra-argumentam porque não têm o que dizer. Então ficam indignados.

O juiz se encolerizou e mandou chicoteá-lo e o ameaçou de outros suplícios muito mais rigorosos, se ele não obedecesse às ordens dos imperadores.

Como ele era de uma família influente, o juiz mandou chicoteá-lo, mas não o condenou à morte. Queria ver se ele apostatava, para não ter encrenca com a família, ou ao menos uma encrenca tão pequena quanto possível.

O Santo respondeu que os suplícios mais terríveis não o fariam obedecer aos homens contra o que Deus mandava, e que a esperança que ele tinha nos bens do Céu lhe tirava todo o temor dos males que o ameaçavam nesta Terra.

Um dos lados de seu corpo foi rasgado com unhas de ferro

O governador, vendo-o insensível a essas ameaças, trata de suborná-lo por promessas magníficas que lhe faziam esperar honras, dignidades e até a qualidade de pontífice de um desses deuses.

Teodoro escarneceu dessas promessas para voltar às suas ameaças, cujo efeito era muito próximo; ele assegurou ao juiz, fazendo um sinal da Cruz sobre todo seu corpo, que ainda que o juiz o fizesse derreter no fogo, o cortasse em pedaços, ele não cessaria de confessar Jesus Cristo até o último alento.

O juiz, renunciando então a todos os meios de doçura, fez colocar o Santo sobre um cavalete. E ordenou lhe rasgassem um dos lados com unhas de ferro, o que foi executado com tanta crueldade que os seus ossos ficaram todos postos a descoberto.

Podemos imaginar a dor lancinante que uma coisa dessas causa!

Ele nada disse ao juiz, mas cantava: “Eu bendirei Deus em todo o tempo, sempre o seu louvor estará na minha boca”.

Ele cantava esse versículo de um salmo. “Em todo tempo” quer dizer no tempo bom, mas também no tempo ruim. “Por mais que sofra, eu O louvarei!” Se isso não é grandeza de alma, não sei o que é grandeza de alma!

Luzes pairavam sobre o Santo

O juiz, espantado por uma tão rara força no sofrimento, disse-lhe:

– Tu não tens vergonha, miserável como és, de pôr tua confiança neste homem que chamas Cristo, que houve quem fizesse morrer como um infeliz? Tu não tens vergonha de te dispor inconsideradamente aos tormentos e aos suplícios?

Respondeu Teodoro:

– Essa vergonha é para mim e para todos os que invocam o nome de Jesus Cristo uma razão de alegria e de glória.

Ele então foi exposto à tortura e depois mandado para a prisão onde Deus manifestou as maravilhas de seu poder a propósito de Teodoro. Porque, segundo conta São Gregório de Nissa, escutou-se durante a noite a voz de uma multidão de pessoas e viu-se algo como uma multidão de lâmpadas. O carcereiro, surpreso com esse duplo prodígio entrou no cárcere e não viu outra coisa senão o Santo que descansava placidamente no meio dos prisioneiros.

É uma coisa admirável! Um homem que sofreu essas torturas conseguir dormir! É inconcebível! Na véspera de outras torturas, tranquilamente.

As vozes e luzes pairavam sobre ele e se tornaram notórias ao carcereiro.

O juiz mandou, na manhã seguinte, que ele fosse levado de novo para o submeter a outras torturas. E considerando-o invencível em todos os pontos, pronunciou a sentença de morte e o condenou a ser queimado vivo, o que foi feito imediatamente.

Fortaleza sobre-humana dos mártires

Termina, assim, a história de São Teodoro. Se não fosse o fato de haver uma caudal de episódios semelhantes, ele poderia ser chamado “São Teodoro, o grande”. Mas a questão é que o conceito de grande tem dois sentidos: um é perante Deus, e nessa acepção todos os Santos são grandes; outro é diante dos homens. Neste sentido, por mais profundo que seja o conceito de grandeza, chamam-se “grandes” os que são maiores do que os do mesmo gênero. Ora, os mártires gloriosos são tão numerosos que se hesita em dizer que ele é maior do que muitos outros. Entretanto, pudemos ver como ele é grande!

Consideremos agora a repercussão desses fatos na opinião pública. Nós não temos os documentos diretos, tanto mais quanto as fontes pagãs não tratam do Cristianismo a não ser muito pouco e de passagem. Como então podemos saber qual é a reação da opinião pública? Pela marcha progressiva das conversões. Torturas, conversões; torturas, conversões… Compreende-se que, diante de um mundo dividido, atos como esses despertavam, no fundo das almas, restos de razão natural naufragados dentro da podridão romana. Junto com esses restos vinha a graça de Deus que dava às almas um discernimento, uma apetência de bens sobrenaturais que, de si, a natureza humana não tem, despertando por sua luz, por sua força, mesmo nas almas mais pútridas, ímpetos generosos.

Na luta de séculos entre os mártires e seus perseguidores vemos duas coisas espantosas. De um lado a fortaleza sobre-humana dos cristãos ao suportar tamanhos tormentos. De outro, a crueldade dos algozes.

Causa surpresa ver que instrumentos não cirúrgicos, e sim de tortura, manipulados não por mãos de cirurgiões votados ao êxito da cura e a que doa o menos possível, mas empenhados em maltratar, os quais pegam o ferro quente e põem a fundo, regozijando-se quando o paciente geme, e que cortam, recortam e estraçalham… Que pessoas dotadas da nossa natureza tenham aguentado coisas dessas é um milagre patente! O ser humano não tem forças para isso por sua natureza. Terá vigor para ir a um combate, sempre com a esperança de sair ileso, mas caminhar para a tortura dessa maneira o homem não tem força.

Ora, os mártires aguentam desafiando e morrem na serenidade de suas almas. Como se pode compreender isso sem o milagre? Há, pois, um milagre evidente convidando essa gente a se converter.

Força de Deus que penetra, embebe e toma conta de tudo

Outra coisa que também excede a estatura humana é a maldade dos homens que ordenam essas execuções e as praticam. Dir-se-ia que a criatura humana desce abaixo de si mesma quando faz isso. Encontram-se menos raramente homens que realizam isso, mas que multidões inteiras o pratiquem é inimaginável! Ainda mais multidões do maior, mais civilizado, mais culto e mais rico império que havia na Terra. Essas multidões se entregarem ao prazer de ver o tormento dos outros, essa manifestação de sadismo coletivo que dá a impressão de psicose sem o ser, isso é uma coisa também inacreditável, dentro da qual se vê a ação do demônio combatendo contra a ação de Deus. Esse é um choque maior do que os homens empenhados, de lado a lado, que dá toda beleza ao episódio. A pulcritude do episódio vem de um modo relevante, a meu ver, disto: o choque no qual Deus vence e escarnece do demônio.

Com efeito, ao longo de uma tortura dessas, na opinião pública muitos ficam piores. Entregam-se dessa maneira ao demônio! Alguns ficam melhores. Esses alguns já sabem que, melhorando, vão se expor a uma tortura daquelas, e que o caminho deles é o que estão vendo. Não é como uma conversão de hoje, em que o indivíduo é batizado, o padre felicita, ele vai para sua casa tranquilo; se sua família é católica ainda faz uma festinha para ele. Não é isso, não! Naquela época, o convertido sabia: “Isso vai me levar àqueles padecimentos. Minha conversão está me pondo na fila dos que vão morrer. Está bem, eu entro na fila!” É qualquer coisa de admirável!

Poder-se-ia objetar que o efeito disso na opinião pública é nulo. Uma opinião pública de gozadores e bandidos só pode ser insensível a isso, e jamais os católicos deixarão de ser uma minoria.

Sem dúvida, a aparência era essa. Os católicos viviam por debaixo da terra. Quando Constantino deu liberdade à Igreja e fez um edito mandando fechar os templos pagãos, não houve protestos e tudo acabou, porque, a bem dizer, não havia mais pagãos em Roma.

A ilusão era de que os pagãos tinham a popularidade e todo o poder. De fato, existe uma dinâmica do mal à maneira de um gás venenoso que se dilata e conquista facilmente. Contudo, há uma força de Deus que muitas vezes é subterrânea, não se percebe, mas que penetra, embebe, toma conta de tudo sem que se tenha ideia. Em determinado momento, quando se vai ver, Ele venceu.

Sejamos como São Teodoro e vamos para a frente com coragem!

Isso se dá com os que, em nossos dias, lutam pela Contra-Revolução. Constituem uma minoria açoitada por todas as severidades da guerra psicológica revolucionária; acossada com múltiplas formas de tortura do desdém, da ignorância, da perseguição dos seus mais próximos, e dentro da própria Igreja, de tal maneira que um católico contrarrevolucionário poderia dizer: “Alienus factus sum in domus matris meæ” – Tornei-me um estranho na casa de minha mãe (cf. Sl 69, 9). De tal maneira o contrarrevolucionário é insultado, isolado, ejetado de todos os lados. Dir-se-ia: “Minoria sem futuro, condenada eternamente a ser insignificante e para quem não trabalha a vitória”.

Sejamos nós como “Teodoros” e vamos para a frente com coragem! Quiçá não percebamos, como São Teodoro não notou as conversões que ele mesmo ia determinando; mas uma coisa é verdadeira: o sofrimento dos que padecem por Nossa Senhora é semente de novos cristãos. Eis a lição que São Teodoro nos dá. Rezemos a ele.            v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/8/1981)

Revista Dr Plinio 251 (Fevereiro de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XIX, p. 261-266.

 

Adoração da Pessoa de Nosso Senhor

Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão supremo em função do qual Dr. Plinio concebia a verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como também o relacionamento humano.

A escola filosófica pela qual o conhecer a biografia do filósofo não interessa em nada, limitando-se em considerar as ideias dele, priva-se de alguma coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento da verdade, da beleza e do bem.

Pedra angular

O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda que não queira, notas da sua luz primordial(1) e do atraente que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é conhecido no que tem de mais profundo.

Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como “Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que se poderia chamar a sua luz primordial.

Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus crucificado(2). Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles, aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim”(3), em vez de dizer: “É Deus que vive em mim”.

No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à consideração da sociedade temporal, foi um modo especial de analisar o “bonum, o verum, o pulchrum”. Mas o elemento fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana e divina.

O que há de mais profundo na minha alma é essa visão religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra de ângulo a partir da qual todo o “verum, bonum, pulchrum” se deslinda.

Em menino, fazendo a análise psicológica de Nosso Senhor

Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?

Eu O considerava através das imagens que via em mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História Sagrada, etc.

Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…” Porque ela considerava que, ao contar a história, já estava provando ser verdadeira. E para a criança é realmente assim.

Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus — porque mamãe, ao tratar disso, deixava claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica de Nosso Senhor.

Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade que deixava qualquer outra pessoa sem nenhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura inacessível ao homem.

Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem, resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima Trindade.

A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações de um simples ser humano, Ele conhecia todas as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe dava o direito ex natura rerum(4) a esse contato.

Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito. Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora, noto que era isso.

Fuga do bom para o ótimo

O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma contato com essas almas?

Não posso saber como é nos outros, mas posso perceber como é esse contato de almas estudando-o em mim. Eu me sinto, antes de tudo, elevado algum tanto acima de mim mesmo, por ver essa grandeza do ser e do cogitar d’Ele.

De onde se abre em mim uma luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para olhar mais do que eu. E quando saio da minha vida de menininho e percebo algo em mim que vê mais do que eu, que é mais do que eu, tenho a impressão de que eu escapo, fujo do bom para o ótimo, ponho-me ali na ponta dos pés e me alegro.

Outro ponto: eu noto que, ao mesmo tempo em que contemplo assim essa vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse.

Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro. E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas, se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas que me tornavam doente sem eu saber.

Entrevendo a luta que aparece no horizonte

Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero me acusar de uma imperfeição que não estava em mim, mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições proveniente do pecado original.

Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso, mas quando passasse o mais intenso disso, essa ação corretiva ser-me-ia duro manter. E, portanto, em certo momento eu teria que sofrer e lutar muito.

Eu tomava conhecimento dessa realidade, mas, à maneira de uma criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora, e aqui está tão bom, que deixo isso para depois”. Tinha mais curiosidade de fixar a minha atenção no que Deus estava me mostrando — sem saber ser Ele Quem mostrava — do que naquilo que eu poderia deduzir por mim mesmo, e que era o combate. Por isso, eu apenas entrevia e deixava meio de lado.

E, olhando para os meninos com quem eu vivia, notava que alguma coisa dessas Jesus fazia em suas almas também, mas eles davam muito menos atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros, uma indecência.

Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou mais tarde.

Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um choque que me levasse diretamente para a luta.

Ação direta e ação supletiva

Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos morem juntos.”(5) Eu formava com aqueles meninos um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir: “Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!” Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu me sentia posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica — cuja noção começava a aparecer no meu espírito —, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo! — e nos que me circundavam também.

De maneira que era um mundo todo católico dentro do qual eu sentia a complementação normal da felicidade, que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por meio dos outros.

Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.

O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo eu considerava como sendo igualmente bom.

Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele tempo, e que eu supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um sol que não cessava de brilhar

Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando. Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era um defensor que pairava acima de todos.

Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão presente em tudo isso, que me dava a ideia de que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente era que tudo em torno de mim fosse “cristiforme” também.

Depois veio a Primeira Comunhão, com suas graças características, o conhecimento mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos regulares de Catecismo, da História Sagrada.

Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo habitava e Se fazia sentir de um modo especial por uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que era como um sol que não parava de brilhar.

Daí a ideia — complementar do convívio com meus próximos — de uma grande instituição que era a fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido a essa fonte, pois era um ambiente católico.

Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso. Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso, na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando: “A partir daqui começa a casa d’Ele!”

Ato de humildade

Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é essa. E Plinio, preste atenção! Você é objeto da ação dessa graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente bem. Mas você tem seus doze anos e já sente as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que as suas resistências resultam de alguma coisa que existe de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente, você não é digno de nada disso. Agradeça o fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade, e querer oscular a soleira da porta compreendendo que você se honra com esse gesto, pois não seria digno nem sequer disso.”

Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas atuando muito mais profundamente em mim. Depois vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava meu ato de humildade com todas as minhas forças, por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo era sentir essa proximidade.

Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a Fé Católica na minha alma.

Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!

À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso; a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos disso, por causa dessa radical maldade existente em mim, que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

Provações contra a pureza e o choque com a Revolução

Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto, era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia viver a não ser assim.

Começa a época das provações contra a pureza, do choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como que o momento da falta de energias e de mobilização própria para entrar na luta.

De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários, o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas. Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!

Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro! Eu me resolvo a arcar com essa luta?

O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você tinha… Veja bem quem é você!”

Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo esse caso?

Aparece o ”arco-íris”

Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria, aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha Mãe!

Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela, tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco, tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim e como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais Eu sou boa do que você é ruim! E passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, trago-o para junto de Mim.”

Daí brotar de meus lábios: Salve Regina, Salve Regina, Salve Regina! E daí também o sentido da palavra “salve”: o de me salvar! Eu não a considerava como uma saudação; não estava pensando em protocolos na hora em que eu naufragava. Era S.O.S.! “Salve Regina…”

Esse era o aspecto “vida interior” de algo que transbordaria, no contato com a vida, numa noção da Cristandade, num conceito completo de Revolução e Contra-Revolução.

Qual é o papel do “verum, bonum e pulchrum” — de que eu falava há pouco — nessa visão das coisas, da sociedade temporal e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente com isso?

Ardor no conhecimento do verum

Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra “enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente — para indicar a disposição de nossa alma em relação a Ele.

Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração do “verum, do bonum ou do pulchrum”?

É uma coisa evidente que no ato de adoração existe simultaneamente um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e um deslumbramento pelo pulchrum.

Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como na unidade da Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica!

De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!

O verum aqui está não só em que isso é assim, mas numa outra coisa: como tudo é coerente dentro disso! É lógico, deve ser assim! E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída.

Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”, porque o ato de Fé em mim precedeu de muito esse raciocínio; mas é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não vem suprimir; vem servir a essa ação meio mística dada pela Fé.

De tal maneira que eu ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir, e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha Fé!” Porque a partir da firmeza da minha Fé, no que eu dela deduzo, tenho muita certeza; ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum! No que eu não deduzo, não tenho essa certeza.

Por outro lado, também o modo categórico com que distingo uma coisa má de outra boa. A boa deve ser praticada, favorecida, estimulada, louvada. A má deve ser execrada, detestada; deve-se viver no reconhecimento e na desconfiança constante do mal que aquilo representa, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente.

Pulchrum e simbolismo

Sobre o pulchrum, o que dizer?
Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum. Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum, ela os contém com a luz própria a cada coisa.

Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo; não significa que ele não existe. Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O pulchrum tem no meu pensamento grande papel. Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas este próprio sensível precisa ser entendido.

São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto, agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo, olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.

Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu pensamento.

O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma — de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.

Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito grande.

O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos, como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é sedentíssima disso.

Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo criado de Deus que completa o que as graças de ordem mística fazem perceber.

Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo faz de algum modo perceber também pelos sentidos, iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile(6) espiritual, simbólico e digno de ser tocado pela graça.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/4/1989)

 

1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este assunto, ver Revista Dr. Plinio, n. 54, p. 4.
2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.
3) Gl 2, 20.
4) Do latim: pela própria natureza das coisas.
5) Sl 133, 1.
6) Do latim: deleitável.

São José e a fecundidade da vida interior

Quando alguém se refere aos grandes vultos da história, imediatamente nos vem à memória a figura de um genial estadista, de um celebrado filósofo, de um brilhante general. Todavia, tudo isso não é nada em comparação com a sublimidade de ter colaborado na realização da Redenção. Eis a incomparável vocação de São José, destacada por Dr. Plinio, que no-lo apresenta como modelo a ser seguido por todos os católicos.

A ignorância religiosa em que vivemos tem produzido, entre outros efeitos nocivos, o desvirtuamento inteiro do significado real de algumas determinações da Igreja, que, quando mal  interpretadas, são inteiramente estéreis de frutos espirituais, e quando bem compreendidas, são férteis em graças e proveitos de toda ordem.

São José, modelo de todas as grandes virtudes

É o que se dá, por exemplo, em relação ao culto de São José que, proposto pela Igreja como modelo dos chefes de família e dos operários, é também, pelo imenso acervo de virtudes com que foi enriquecido pela graça, modelo ideal de todas as grandes virtudes católicas.

A maioria dos católicos, porém, não pensa seriamente em tomar São José como seu modelo. De um lado, a imensa santidade do pai [jurídico] de Jesus, a quem a Igreja cultua com a suprema dulia, parece um ideal absolutamente inatingível. De outro lado, a fraqueza humana de que nos sentimos repletos, solicitada por toda sorte de inclinações, nos afasta por tal forma de qualquer ideal espiritual, que julgamos muito já ter feito quando nos libertamos do jugo do pecado mortal e venial, e vivemos uma vida espiritual estacionária, relativamente suave, pois que se limita à conservação do terreno conquistado, mas inteiramente estéril para a Igreja e para a maior glória de Deus.

Em busca da perfeição espiritual

A Igreja certamente não pretende que seus filhos igualem em glória e em virtude aquele que, depois de Maria Santíssima, foi o mais elevado expoente de virtudes da humanidade.

Por outro lado, porém, ela não quer de modo algum que limitemos nossos horizontes espirituais a uma vida piedosa banal, amesquinhada pela errônea ilusão de que seria falta de humildade aspirar-se à santidade que brilhou no gênio de São Tomás, na combatividade de Santo Inácio, no recolhimento de Santa Teresa e na caridade de São Francisco.

A Igreja desmascara esta falsa humildade, apontando nela, ou um pretexto especioso da covardia espiritual, ou uma concepção orgulhosa da virtude, considerada mais como fruto do esforço humano do que da misericórdia de Deus. E, ao mesmo tempo, ela se serve do exemplo de seus grandes santos para “levantar ao alto” nossos corações, indicando-nos que a única preocupação real desta vida, o único problema verdadeiramente importante de nossa existência, é a aquisição daquela perfeição espiritual que será o único patrimônio que conservaremos, a despeito das crises financeiras, das comoções sociais e da fragilidade das coisas humanas, para, finalmente, transpormos com ele os próprios umbrais da eternidade.

É disto exemplo frisante o grande São José. Nascido de família ilustre, arrasta, no entanto, uma existência obscura que, contrastando com o brilho de seu nome, o colocou na mais baixa camada da sociedade de seu tempo. Escasseiam-lhe os dotes naturais com que os homens se fazem grandes. Não dispõe de exércitos nem de súditos, que levem ao longe a glória de seu nome. Não dispõe do dinheiro com que galgar às altas posições. Vive humilde e desprezado, à sombra do Templo majestoso, e no próprio país em que reinara a sabedoria de Salomão.

No entanto, brilha nele a chama da caridade. Um intenso amor de Deus, uma espiritualidade e uma vida interior admiráveis fazem de sua alma objeto da complacência da Santíssima Trindade, e este homem humilde é chamado a co-participar de modo direto em acontecimentos dos quais decorreriam os mais notáveis fatos da história do mundo.

A Religião católica, coluna da civilização

A Redenção do mundo, que é o fato central de toda a nossa história, determinou a queda do paganismo, o aparecimento e o triunfo da Igreja Católica, a implantação de uma civilização baseada em concepções inteiramente novas da família, do Estado, do indivíduo e da Religião, que foram os fatos iniciais e a causa do grande progresso que hoje admiramos.

A família pagã, transformada e sobrenaturalizada pelo contato com os Sacramentos da Igreja, transformou-se em foco admirável de perfeição espiritual e em escola austera da disciplina dos instintos inferiores.

O Estado pagão, transformado em sua base pelo Catolicismo, deixou de ser privilégio de plutocratas ou demagogos, para ser antes de tudo um admirável meio de distribuição equitativa da justiça e proteção a todos os indivíduos.

O indivíduo, que no paganismo era presa de suas paixões, viu abrir-se diante de si o admirável ideal de perfeição espiritual pregado pelo Homem-Deus; e o homem medieval, descendente dos sibaritas da Antiguidade, se transformou no cruzado, no asceta ou no filósofo cristão.

A Religião, enfim, conseguiu trazer ao mundo, com seus Sacramentos, com a graça de que é veículo, e com o admirável apostolado hierárquico da Igreja, uma continuidade de ação santificadora que tem sido a coluna da civilização.

Todos esses acontecimentos gloriosos tiveram sua origem na Redenção. São José, pela admirável correspondência à graça com que se distinguiu, colaborou de modo eminente no plano divino da Redenção. E, como tal, é merecedor de grande parcela da glória que, legitimamente, cabe ao Divino Salvador, pela imensidade de benefícios com que nos cumulou.

Inestimável valor de uma vida espiritual intensa

Vemos, pois, a admirável fecundidade de uma vida que todas as circunstâncias naturais tendiam a tornar estéril. Vemos a prodigiosa capacidade de ação da santidade que, no recolhimento e na humildade, colaborou diretamente em acontecimentos muito mais importantes e teve uma participação incalculavelmente mais notável em toda a história da humanidade do que Alexandre com seus exércitos, Kant com seu saber arrogante, ou Maquiavel com sua diplomacia astuta e amoral.

Vida interior, portanto. Vida interior intensa, constante, ilimitadamente ambiciosa, no sentido espiritual da palavra, eis a grande lição que (o exemplo) de São José nos deixa.

Intimamente unidos a Nossa Senhora como o foi São José, não nos deve desanimar, ante a grandeza dessa lição, a escassez de nossas forças, pois que devemos exclamar como encorajamento: “Omnia possum in eo qui me confortat — Tudo posso n’Aquele que me conforta”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 116, de 26/3/1933. Título e subtítulos nossos.)

Lourdes e a mediação universal de Maria

Em 11 de fevereiro comemora-se a festa de Nossa Senhora de Lourdes, recordando a primeira aparição de Maria à camponesa Bernadete Soubirous. Aberta nas montanhas dos Pireneus, a Gruta de Massabielle tornou-se lugar de predileção do sobrenatural, onde uma impressionante sucessão de milagres tem beneficiado, não apenas os corpos, mas sobretudo as almas. Para Dr. Plinio, tais prodígios, alcançados a rogos da Santíssima Virgem, constituem espetacular confirmação da vontade divina de nos conceder todas as graças pela mediação da onipotência suplicante de Maria.

Dentre os muitos aspectos da devoção a Nossa Senhora de Lourdes, um há que me parece insuficientemente acentuado, e sobre o qual gostaria de fazer incidir os presentes comentários.

Rainha e Medianeira

Para se compreender o Reino de Maria, cumpre ter em mente essa verdade fundamental: por vontade de Deus, Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Porque, para ser autenticamente Rainha, deve Ela conseguir do Rei (isto é, de seu divino Filho) tudo quanto quer e dessa forma governar o mundo.

Por sua natureza humana, Maria não detém mais poder do que os seus semelhantes. Assim, para reinar sobre o universo inteiro — anjos, santos, homens, todo o mundo material, etc. — Ela precisa possuir a graça de Deus. E como ponto de convergência de todos os favores celestes, Maria Santíssima é Rainha. Vale recordar que a intercessão de Nossa Senhora foi chamada, adequadamente, de onipotência suplicante, pois é por meio da súplica que Ela tudo pode junto ao Todo-Poderoso.

Portanto, a realeza da Virgem se acha em íntima conexão com o fato de Ela ser o canal de todas as graças. As dádivas divinas nos são concedidas pelas mãos de Nossa Senhora, e por seu intermédio são apresentados ao Altíssimo os pedidos feitos pelos homens. É geralmente aceita pelos teólogos a sentença segundo a qual, se todos os anjos e santos do Céu rogarem algo a Deus sem a mediação de Nossa Senhora, dificilmente lograrão êxito; enquanto que Ela, pedindo sozinha, tudo alcança. Por onde se compreende como o foco da predileção divina se concentrou em Nossa Senhora e através d’Ela se esparge sobre o conjunto da criação.

A mediação universal corroborada em Lourdes

As aparições de Lourdes se inserem numa série de outras célebres manifestações de Maria Santíssima a partir do século XIX, as quais culminariam com as revelações de Fátima, no início do século XX. Poder-se-ia dizer que, na noite cada vez mais profunda na qual a civilização contemporânea se vai deixando soçobrar, tais aparições formam um pontilhado de luzes anunciando a vinda do Reino de Maria. E creio ser de grande interesse analisar, em cada uma dessas visões, a presença das idéias da mediação universal e do reinado de Nossa Senhora.

Em Lourdes, tais noções se verificam patentes, considerando que Nosso Senhor Jesus Cristo poderia ter proporcionado essa estupenda fecundidade de milagres em algum santuário a Ele dedicado. Na própria França, onde se encontra a Gruta de Massabielle, ergue-se a magnífica basílica de Paray-le-Monial, votada ao Sagrado Coração, pois ali o Redentor fez suas revelações a Santa Margarida Maria Alacoque. Ora, Jesus poderia dispor que aqueles prodígios de curas e conversões ocorressem nesse lugar ou em outros santuários erigidos em sua honra.

Porém, quis o Salvador que a maior fonte de milagres conhecida na história da Igreja e do mundo brotasse num local consagrado a Nossa Senhora. Ou seja, que aquelas curas espetaculares fossem obtidas sob a égide da Santíssima Virgem, mediante súplicas a Ela impetradas.

Assim agindo, Nosso Senhor parece desejar comprovar a verdade de fé da mediação universal de Maria, dando aos homens claras razões para compreenderem que sua Mãe tudo pode. Pelos rogos da Virgem são debelados os maiores males, as piores doenças, os sofrimentos mais horrorosos. Ela consegue suspender as leis mais inflexíveis da natureza, vence qualquer obstáculo, e logra, por exemplo, que um cego de nascença, sem nervo ótico, adquira visão!

Maior glória, abaixo do esplendor divino

Essa é a onipotência suplicante, o poder da Soberana, medianeira de todas as graças.

Recordo-me, a esse propósito, de uma piedosa canção entoada no meu tempo de moço, a qual dizia:
Salve, ó Mãe! Salve, ó Virgem Santíssima!
Do universo portento primor.
Mais esplêndida glória que a tua,
Só tem Deus do universo Senhor!

Com efeito, a conclusão de quanto acima consideramos, é esta: mais esplêndida glória que a de Maria, só possui Deus, Senhor de todo o universo. Nossa Senhora se acha infinitamente abaixo do Criador, mas quão incomensuravelmente acima de todas as outras criaturas!

Milagres físicos para fazer bem às almas

Pessoas existem que se impressionam com os milagres de Lourdes, e entretanto pedem à Santíssima Virgem apenas favores materiais, esquecendo-se dos espirituais e mais importantes. Não compreendem que os dons temporais, dos quais necessitamos, devem nos induzir a desejar os que aproveitam à nossa salvação eterna. Aliás, é por essa forma que verdadeiramente Deus atrai as almas para Si, pois todos os dons concedidos por Ele têm o objetivo maior de beneficiar o espírito humano.

Assim, não se deve pensar, por exemplo, que Nossa Senhora curará um homem capenga(No sentido físico da palavra)(1), movida apenas pelo sentimento de pena para com a sua deficiência. Claro, tem Ela compaixão do aleijado, se compraz em corrigir seu defeito. Porém, mais do que isto, a Virgem se serve de um milagre físico para fazer bem à alma do enfermo e às dos que presenciam ou têm conhecimento do prodígio.

Tal benefício consiste, sobretudo, em infundir nos corações uma imensa fé na verdade de que Ela é a Medianeira universal de todas as graças.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Com freqüência e de modo bondoso, Dr. Plinio empregava a palavra “capenga” no sentido metafórico, a fim de indicar certas debilidades de alma manifestadas por filhos das gerações que o sucederam. Estes apresentavam deficiências espirituais análogas às de um coxo. E assim como o capenga de corpo precisa de uma muleta para caminhar, o de alma, por ser inseguro, inconstante, volúvel, necessita sempre de especial apoio para progredir na vida espiritual.

A grande lição de Lourdes

Dentre os inúmeros relatos das aparições de Nossa Senhora em Lourdes, muito significativo é o de um funcionário público dessa localidade dos Pirineus. Sem fugir ao costume de seu tempo, era ele um homem cético para com as coisas de Deus e da religião, até o momento em que a Providência determinou tocar sua alma e o levou a presenciar um dos colóquios de Santa Bernadette com a Imaculada Conceição. Seu testemunho, de insuspeitada franqueza, é uma das eloquentes provas da autenticidade dessas aparições. Eis um bonito trecho de sua narrativa: De repente, como se um raio a houvesse tocado, ela (Bernadette) teve um sobressalto de admiração e pareceu nascer para uma segunda vida. (Uma luminosidade especial) a envolvia toda. Espontaneamente, sem cálculo, com um movimento maquinal, os homens que lá estávamos tiramos nossos chapéus e nos inclinamos como as mais humildes mulheres. A hora das objeções passara e, a exemplo de todos os que assistiam a esta cena celeste, olhávamos da moça estática para o rochedo, do rochedo para a moça.

Sorridente ou séria, Bernardette aprovava com a cabeça, ou parecia mesmo interrogar. Quando a Senhora falava, ela estremecia de felicidade. Quando, ao contrário, era ela que fazia ouvir suas súplicas, humilhava-se e se comovia até as lágrimas. Comumente, a vidente terminava suas preces por saudações dirigidas à Senhora invisível. Eu conhecia o mundo talvez até demais. Encontrara já pessoas que eram modelos de graça e distinção, mas jamais vi alguém saudar com a graça e distinção de Bernardette. Ao terminar a visão, porém, voltamos a ter diante de nós somente a figura amável, mas rústica, da filha dos Soubirous.

Após a cena que acabo de descrever, eu me sentia como um homem que acabou de sonhar e me afastei da gruta. Não conseguia voltar a mim, e um mundo de pensamentos me agitavam a alma. A Senhora do rochedo ocultava-se bem, mas eu sentira a sua presença, e estava convencido de que o seu olhar maternal voltara-se para mim. Oh! hora solene de minha vida! Perturbava-me até o delírio pensando como eu, o homem das ironias e das presunções, tivesse sido admitido a ocupar um lugar perto da Rainha do Céu.

O cético acreditou e se converteu

Por suas comovedoras palavras, entende-se que esse homem, todo embebido de orgulho e ceticismo, foi ali objeto de uma graça insigne e se converteu. Tinha ele se dirigido à gruta — segundo confessa — mais disposto a se divertir do que a acreditar nas aparições. Porém, ao reparar nas atitudes de Santa Bernadette durante os diálogos com Nossa Senhora, teve ele, por uma intuição psicológica direta, a noção de que a Interlocutora da menina realmente existia. Ela não podia ser uma abstração, algo tirado do vácuo, uma fantasia. A jovem camponesa estava falando com alguém, e seu modo de proceder tinha todas as características objetivas de quem entabula uma conversa com outra pessoa. De maneira que era inimitável a autenticidade da cena. E, portanto, a Santíssima Virgem existia, e estava ali presente. O cético acreditou e se converteu.

Enobrecida no trato com Nossa Senhora

Não deixa de ser muito interessante um dos indícios que ele aponta da veracidade das aparições, ou seja, a também inimitável distinção de atitudes da vidente, no momento dos colóquios.

Santa Bernadette era uma moça rústica. Quem a vê nas fotografias, nota tratar-se fundamentalmente de uma camponesa.

Pois bem, apesar disso, ao estar com Nossa Senhora, ela Lhe falava e A cumprimentava com uma elegância extraordinária. Tanta que o funcionário público declara não ter conhecido pessoa — e ele privara com muitas — mais distinta que Bernadette. Porém, terminando a visão, ela voltava a ser a filha dos camponeses Soubirous.

Quer dizer, era uma nobreza comunicada a ela pelo contato com Nossa Senhora. Passada a aparição, ela mudava de jeito. Seria mais ou menos como se uma pessoa de condição muito modesta fosse chamada a conversar com a rainha da Inglaterra e, nesse encontro, tivesse atitudes e maneiras mais finas do que no seu cotidiano.

Haveria uma espécie de filtração dos predicados da rainha para a pessoa com quem ela se dignou estabelecer uma interlocução. O mesmo se dava nas aparições de Lourdes.

Primeira gota de uma inundação de graças

Outro fato interessante a salientar é a própria conversão desse homem. Ele diz que saiu da gruta ao mesmo tempo humilhado e pasmo, pois não podia crer que alguém tão cheio de dúvidas e ceticismo como ele houvesse sido tão bem tratado por Nossa Senhora. Na verdade, deu-se um milagre gratuito em favor dele, uma vez que o convertido de nenhum modo merecia ter esta espécie de visão indireta da Virgem Imaculada. E, com o simples reflexo da presença d’Ela sobre a figura de  Santa Bernadette, Maria comoveu a alma desse homem e acabou com todos os seus orgulhos.

Pela expressão curiosa dele, vê-se que seu pensamento é o seguinte: “Eu era muito presunçoso, estava contra- indicado para receber essa graça, mas agora me sinto tocado por ela. Como é misericordiosa a graça que bate em portas tão conspurcadas, de modo que não se possam recusar a abrir!”

Foi, portanto, uma obra maravilhosa feita pela graça na alma desse homem, precursora do que se realizaria com tantos milhares e milhares de almas que passariam por Lourdes e seriam colhidas pelo milagre. E de tantas outras que, mesmo longe da gruta de Massabielle, se converteriam ouvindo falar dos prodígios ali operados por Nossa Senhora. Foi a primeira gota de uma verdadeira inundação de graças que viria para o mundo, iniciando-se em 11 de fevereiro de 1858.

Preciosos ensinamentos

Esses, como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento. Até nossos dias, vemos manifestarem-se em Lourdes algumas atitudes de Nossa Senhora — e da Providência, com quem Ela vive em íntima união — diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, essas atitudes têm sua razão de ser, apesar de parecerem até contraditórias.

De um lado, chama a atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos físicos dos homens. Numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende seus rogos e pratica milagres para lhes curar os corpos.

Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.

Mas existe outra realidade em Lourdes, não menos significativa: são os inúmeros doentes que de lá voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?

Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem.

É por meio das provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, não compreende absolutamente nada. É por essa forma que, via de regra, os homens alcançam a bem-aventurança eterna.

E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de 8º sacramento.

Ora, Nossa Senhora agiria contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está que, para determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura.

Estupendos milagres morais

Como Mãe que ajuda os filhos a carregar seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares de origem imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e de contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados.

Há mesmo o fato de não poucos doentes, vindos dos mais distantes países da terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão da própria cura, em favor daquelas.

Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. É um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor de Deus. Milagre moral, arrancado ao egoísmo humano; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.

Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das freiras do convento carmelita de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de  expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que eles vão ali suplicar. Nunca pedem sua própria cura, e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Padecem horrores, levam às vezes uma vida inteira de sofrimentos ou morrem de uma morte prematura, com esse intuito especial de fazer bem a outras almas.

Quando deitamos um olhar no mundo a nosso redor e consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor próprio, que constituem um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas em Lourdes. Esses atos demonstram que a primordial intenção de Nossa Senhora é produzir esses milagres de caráter moral que conduzem as almas ao Céu.

Pois Nossa Senhora não seria Ela, se aparecesse em Lourdes para fazer bem aos corpos que perecem, e não o fazer às almas imortais. Nem seria verdadeiro esse amor d’Ela aos homens, se não tivesse por principal objetivo levá-los ao amor de Deus.

Porque nada de melhor para nós se pode desejar.

O grande ensinamento de Lourdes

Então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante.

Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso, se for preciso. Alguém objetar á: “É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.

Encontramos a resposta na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Pai Eterno: “Se for possível, afaste-se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”.

O resultado é que veio um Anjo consolar Nosso Senhor. Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, que elas sejam afastadas de meu caminho. Porém, seja feita a superior vontade de Deus e não a minha. E a exemplo do que ocorreu com Jesus no Horto, a graça nos consolará também, nas provações que Maria Santíssima nos enviar.

Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.

 

O rochedo saltará como um cabrito

Estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução gnóstica e igualitária. Assim como em Lourdes Maria Santíssima realizou e realiza inúmeros milagres, Ela fará com que esse rochedo se esboroe.

A respeito de Nossa Senhora de Lourdes, na biografia de Santa Bernadete Soubirous, a vidente de Lourdes, escrita pelo Pe. Trochu(1), encontramos alguns dados que nos  falam a respeito da devoção dessa Santa a Nossa Senhora.

O Rosário era sua devoção preferida A devoção à Santíssima Virgem tinha que ser particularmente terna e particularmente filial. “Maria, seu ideal vivo, ocupava em seu  coração um lugar muito próximo a Nosso Senhor” — declarou sua vizinha de enfermaria, Sóror Marta du Rais. Tinha que ouvi-la quando recitava a Ave-Maria.

Que acento de piedade, especialmente quando pronunciava as palavras “pobres pecadores”. Quando dizia “Minha Mãe celestial”, não podia dizer mais. Alguém se atreveu a  perguntar-lhe se a lembrança da aparição se tinha apagado em sua memória. “Esquecer-me? — exclamou com tom de censura — Oh, não, jamais!” E levando sua mão direita sobre a fronte, dizia: “Está aqui”.

“Teria que nos fazer — sugeriu-lhe uma companheira — uma descrição de como era a Virgem, posto que a senhora sabe como era Ela. Não poderia nem saberia fazê-lo — foi a única resposta que deu. Eu para mim não necessito; levo-A no coração.”

A devoção mariana encheu de certo modo toda a sua vida. Tinha necessidade de meditar sobre a Virgem. Via Maria em tudo e por tudo com seu coração e seu entendimento. Nunca, para uma alma religiosa, a oração de quietude podia ter sido mais desejada. Quando rezava à Santíssima Virgem — atesta Sóror Gonzaga Champy —, parecia ainda que estava vendo. Quando alguém lhe pedia que alcançasse alguma graça, imediatamente respondia que pediria à Santíssima Virgem.

Arrebatada pelo Cântico dos Cânticos — informa um grande servidor de Maria — Sóror Maria Bernadete se comprazia em louvá-La, fazê-La conhecer, amá-La e servi-La.

Esforçava-se por imitar suas virtudes, especialmente sua humildade e sua renúncia. Dedicou-se, para sua devoção, a compor acrósticos. A primeira dessas modestas composições se refere à Santíssima Virgem, e era:

Mortificação
Amor
Regularidade
Inocência
Abandono

No dia da Assunção, na capela, a Madre Henri Fabre, que estava situada um pouco distante de Sóror Maria Bernadete, de modo que lhe era fácil poder observá-la, “às palavras do canto ‘é minha Mãe, eu vejo’, eu a vi — conta — como se ela tivesse um arrebatamento e uma comoção de alegria”. […]

Toda sua vida desfiou o Rosário como tinha feito em Lourdes. “O Rosário era sua devoção preferida”, disse uma Superiora Geral. Mais de uma vez, na enfermaria, a Irmã Gonzaga Champy alternou as Ave-Marias com ela.

“Então — recorda essa religiosa — os olhos escuros, profundos e brilhantes de Bernadete pareciam como se estivessem vendo Nossa Senhora.” Pela noite, quando ia dormir, recomendava a uma companheira: “Toma o Rosário e durma rezando. Farás o mesmo que fazem as crianças pequenas que adormecem dizendo ‘mamãe, mamãe’.”.

Vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima

Esses dados sobre Santa Maria Bernadete atestam bem a ardente devoção que ela teve a Nossa Senhora. Mas há uma coisa curiosa na vida dessa Santa: ficou provado que ela tinha essa grande devoção a Nossa Senhora, mas ela não deixou transparecer senão muito pouca coisa. Quer dizer, algum dado novo, alguma reflexão nova, algum  enriquecimento da Mariologia, algum sistema de devoção novo, algo que pudesse, enfim, representar um impulso para a devoção a Nossa Senhora, ela não deu.

Isso porque Santa Bernadete teve uma vocação muito parecida com a de Lúcia de Fátima. Quer dizer, ela teve a vocação de revelar ao mundo as aparições de Lourdes. Uma vez que ela revelou essas aparições, ela as prestigiou tornando-se freira e sendo canonizada pela Igreja.

Embora a Igreja não mande crer nas aparições de Lourdes, porque são de caráter privado — e em matéria de fatos sobrenaturais nós só somos obrigados a acreditar nos fatos oficiais, não nos privados —, roça pela heresia quem conteste as aparições de Lourdes. Porque seria preciso admitir que uma Santa canonizada pela Igreja tivesse tido essas ilusões.

Ora, isso é uma coisa que não se pode admitir. De maneira que a vida e a santidade de Santa Bernadete de algum modo atestam a autenticidade das aparições de Lourdes.

A santidade de Bernadete atesta a autenticidade das aparições Aliás, também exuberantemente atestadas pelo fato dos milagres que se operaram depois, e que são uma  prova de que em Lourdes realmente é a graça que atua. Santa Bernadete Soubirous, durante uma das visões — o povo não via Nossa Senhora, mas percebia que ela falava com uma pessoa que ninguém via —, a certa altura essa pessoa disse a ela: “Passe a mão na terra, revolva-a, que daí vai nascer uma fonte.” E, num lugar onde ninguém supunha que existisse água, viu-se ela meter diretamente a mão na terra — era uma camponesa — e a água brotar. Daí veio exatamente a fonte de Lourdes e ela disse que  nessa fonte se operariam muitas curas.

Ela fez uma profecia: nessa fonte maravilhosamente aparecida haveria curas, e depois houve as curas. De maneira que cada uma dessas coisas é milagrosa por si. Além disso, a vida de santidade dela atestava o seu equilíbrio mental e, portanto, a autenticidade das visões e dos fatos milagrosos que em Lourdes se deram.

Depois que esses fatos se deram, ela não teve uma missão pública, mas privada. E por causa disso ela se calou. Isso é muito bonito para nós vermos a diferença de vocações dentro da Igreja, e como a Providência suscita cada pessoa para ordenadamente seguir uma determinada vocação.

Um tem uma tarefa, um segundo outra tarefa, um terceiro tem outra. Nossa Senhora distribui essas missões de maneira tal que ninguém se mete na tarefa na qual não foi chamado e cada pessoa se dedica inteiramente à missão para a qual foi escolhida.

Temos, então, Santa Bernadete Soubirous como uma espécie de testemunho vivo do milagre de Lourdes. Em Lourdes Maria Santíssima quis ser conhecida enquanto  sumamente benfazeja. Por isso, nas nossas orações devemos ser ousados, fazer pedidos arrojados — não insensatos; é uma coisa profundamente diferente —, difíceis de alcançar, e precisamos, ao mesmo tempo, pedir com muita insistência.

Por exemplo, pedir uma graça que diga respeito à nossa santificação. Isso nos leva a refletir um pouco em nossa vida espiritual. E, por essa forma, a ter uma visão de nós mesmos e de nossas atividades, de nossos rumos, mais precisa. E leva-nos a fazer uma oração grata a Nossa Senhora.

Mais do que os corpos mortais, Nossa Senhora quer curar as almas imortais Não devemos nos esquecer de que as doenças do corpo, no Evangelho, costumam ser  consideradas, pelos comentaristas e exegetas, como sendo símbolos das doenças da alma. E que assim como alguns sofrem de paralisia do corpo, outros sofrem de paralisia
da alma; sofrem de cegueira do corpo, outros, da alma; e assim surdez, mudez e outras enfermidades. O que é mais difícil: curar o corpo  ou curar a alma? Evidentemente,
para a Rainha do Céu e da Terra não é difícil nem uma coisa nem outra.

Aquilo que Nossa Senhora pedir, Ela obtém. Se Ela cura tanto os corpos, vamos pedir-Lhe para curar as nossas almas também. Se tivermos defeitos da alma que gostaríamos de corrigir, seria o momento adequado para levarmos aos pés d’Ela esses nossos defeitos e rogar- Lhe que nos cure. Esse pedido tem muita razão de ser, porque se a Santíssima Virgem quer tanto curar os corpos perecíveis, mortais, quanto mais Ela quererá curar almas imperecíveis e imortais. Nosso Senhor Jesus Cristo não veio à Terra para salvar corpos, e sim para salvar almas, e por isso nossos pedidos não podem deixar de ser muitos gratos a Ele. Podemos rogar por nós ou a favor de alguém por quem  nos interessamos, com quem façamos apostolado, por uma alma cujas dificuldades nos amedrontam, por um amigo cujas aflições ou tentações pelas quais passa constituem para nós uma fonte de preocupação.

A Festa de Nossa Senhora de Lourdes nos inspira, contudo, outra consideração e nos traz à memória, naturalmente, a gruta bem conhecida de Massabielle na qual se encontra o nicho com a imagem da Imaculada Conceição, onde há os dizeres dirigidos por Nossa Senhora a Santa Bernadete Soubirous: “Eu sou a Imaculada Conceição.”

Embaixo, o Rio Gave que espuma e, pouco adiante, as piscinas nas quais se fazem os banhos dos doentes, e onde ocorrem os milagres. Bem acima, numa posição bonita, encontra-se a Basílica. Confirmando o dogma da Imaculada Conceição Nesse quadro clássico, temos uma nota que diz tudo. A Santíssima Virgem quis aparecer e manifestar-se em Lourdes para dar especial força à Fé dos fiéis quanto ao dogma da Imaculada Conceição. Para isso, a Igreja tinha quase dois mil anos de ensino e, definindo o dogma por sua autoridade infalível, este foi aceito por quase toda a Cristandade. Foi recusado apenas por alguns que saíram ingloriamente, torpemente da Igreja nessa ocasião, a tal seita dos Velhos Católicos.

Nesta situação, entretanto, Nossa Senhora quis que um milagre, a aparição d’Ela a uma pastorinha, Santa Bernadete Soubirous, ainda realçasse isso, para que a crença dos fiéis na Imaculada Conceição fosse bem firme.

Para ainda tornar este milagre mais evidente, Maria Santíssima prolongou-o numa espécie de rosário de milagres através dos séculos. Será que realmente Nossa Senhora apareceu a essa pastorinha? Será que ela não foi sugestionada pelo  clero? Será que não foi paga, não foi ensinada?

Qual a prova do contrário? É o milagre. É uma cura, duas, dez, incontestáveis,  indiscutíveis, perfeitas, que provam ao longo dos tempos, como um sino que toca longamente, e de vez em quando soa de novo e não se contenta com seu próprio eco, mas se prolonga a si próprio na sua atividade, pela noite adentro… Assim também, na noite da impiedade que ia avançando pelo mundo, os sinos dos milagres de Lourdes continuaram a tocar.

As curas operadas em Lourdes

A esta importância do milagre se contrapõe, entretanto, também outra situação. Não é só mais a Imaculada Conceição cuja confirmação é a finalidade essencial dos milagres, mas há também outro aspecto a considerar: os doentes com todas as misérias que podem afligir o pobre corpo humano, e que ali vão para serem curados.

Algumas curas são claramente milagrosas. Outras, de cujo caráter milagroso não há prova científica, mas que são curas autênticas. Apenas a Igreja não declara oficialmente que são milagres porque são doenças, em última análise, curáveis também por outro agente. E a Igreja se dá ao justo e sábio luxo de só reconhecer aquelas curas de doenças realmente incuráveis.

Mas, quantas curas de doenças curáveis! Quantas pessoas que palpitam ali aos pés da imagem da Imaculada Conceição em Lourdes e cantam, rezam, choram e suplicam  porque trazem fardos no corpo, os fardos das doenças; trazem sofrimentos, provações terríveis e pedem a Nossa Senhora que as cure.

A respeito dessas curas, qual é o ensinamento da Igreja? Descartadas outras circunstâncias a considerar, esta pesa fundamentalmente: é preciso que o doente tenha Fé católica apostólica romana viva, acesa. E que ele creia no milagre que vai acontecer. Desmentindo o que estou dizendo, há casos de ateus que se curaram.

Analisando os fatos, verifica-se que eles eram acompanhados muitas vezes por gente que tinha Fé, a velha mãe, a irmã piedosa, o irmão católico ardoroso que rezavam, em atenção a cujos rogos os milagres foram dados aos ateus.

Se alguma vez a cura foi concedida a um homem desacompanhado de pessoas e que não tinha Fé, havia em algum lugar do mundo uma alma reta, uma alma justa que, sem rezar por aquele homem individualmente cuja existência ignorava até, entretanto orou para que a glória de  Nossa Senhora se manifestasse. Esta é a realidade. Quer dizer, o que determina, o último elo para que o milagre toque no miraculado e a luz do Céu penetre, assim, aos olhos dos incrédulos para provar a Imaculada Conceição, é a Fé  daquele que pediu; a Fé que move as montanhas.

Estamos diante do maior rochedo da História: a Revolução Ora, nós estamos aos pés do maior rochedo da História, que é a Revolução, e devemos crer que a nossa força de alma aplicada, cotidianamente, contra esse rochedo o moverá. O sinal de nossa Fé é o ímpeto da força. Para usar a metáfora do aríete, é preciso que no impulso desse aríete cada um coloque toda a sua força.

E, não adianta dizer que qualitativamente a força de um de nós pode valer mais do que a do outro, porque é um argumento errado. Assim como Nosso Senhor quer que uma gota d’água esteja misturada ao vinho para operar- e a transubstanciação na Santa Missa, assim também, por este exemplo augusto, quer Ele nos provar que o esforço do menor tem que estar somado, por inteiro, ao esforço do maior.

O que é a força no caso? É aquela violência que move os Céus. Está dito: “O reino dos Céus é dos violentos” (Mt 11,12). E é essa a violência que nós devemos ter. Violência com que Jacó lutou contra o Anjo e obrigou-o a dar a bênção. Assim nós temos que lutar contra as circunstâncias e obter da Santíssima Virgem que o Anjo d’Ela desça do Céu e nos dê a sua bênção.

Então a Providência exigiria de todos nós que aplicássemos, cada um, toda a força sobre o rochedo dizendo: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…” Um dia, quando menos  esperássemos, o rochedo saltaria como um cabrito. Nossa Senhora terá, nesse momento, premiado dias, meses e anos em que, sem cessar, a alma foi aplicada com toda a intensidade. Dia virá em que o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria ordenará ao rochedo: “Salte!” E ele saltará.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 10/2/1965, 11/2/1967 e 12/2/1982)

Lição das flores

A rosa, a orquídea, a tulipa, três belas flores criadas por Deus. Que ensinamentos elas nos dão? Acompanhemos Dr. Plinio na consideração destas maravilhas.

 

Há três flores que especialmente me agradam: a tulipa, a rosa e a orquídea.

A rosa

Para meu gosto pessoal, a rosa ocupa o primeiro lugar entre as flores. Ela é inteiramente bonita, perfeita e acabada, é uma glória, uma beleza, uma maravilha.

A rosa é eminentemente ordenada. Nela, todas as pétalas estão postas em ordem e todas as suas formas de beleza obedecem a um raciocínio. Eu estaria longe de afirmar que a rosa é planejada, mas dir-se-ia que, como que, um poeta a planejou. Sim, Deus Nosso Senhor a planejou, a destinou.

Ela tem o perfume próprio à sua forma de beleza. A rosa tem a beleza da ordem prevista, racional e explícita, ela é uma soberba explicitação do conceito da beleza.

A orquídea

Depois da rosa, na escala das flores, está uma que é abundante no Brasil e na Colômbia: a orquídea.

Se a rosa traz consigo o esplendor da ordem, a orquídea é bem o contrário! Ela é singular, prega surpresas. Suas pétalas se “movem” semelhantemente a um “ballet”. Parece dançar um “ballet” vegetal para direções que ninguém imagina.

Sua parte central possui uma beleza magnífica, mas imprevista. Algumas destas flores têm, por exemplo, uma coloração branco-avermelhada na orla de suas pétalas que vai se intensificando e assumindo uma profunda cor vermelha à medida em que se aproxima da parte central, de modo que quanto mais se aproxima do interior da flor, mais misteriosa fica. Tem-se a impressão de que há um vermelhíssimo sublime que não se mostra, por uma espécie de recato.

Assim, as orquídeas possuem uma beleza fantasiosa, inesperada, de uma alta distinção, mas de uma distinção que parece dizer a quem a vê: “Confessa que tu não me imaginavas e que eu sou superior a tudo quanto pensavas”.

Há um “não me toque” na orquídea, que faz parte de outra família de beleza. Não é a beleza da desordem — porque a desordem não tem nenhuma forma de beleza —, mas é uma forma superior da ordem, que o raciocínio não constrói e que só a fantasia sabe compor.

Dir-se-ia que a orquídea é semelhante ao espírito de duas nações latino-americanas psicologicamente muito parecidas: Brasil e Colômbia.

O capricho, o inesperado, o entusiasmo; às vezes, o ressentimento, a vingança; conforme a ocasião, a violência, mas sempre seguida de uma reconciliação afetuosa; todo este “vai-e-vem temperamental” muito comum no brasileiro e no colombiano, estão marcados de alguma maneira na orquídea.

A tulipa

A tulipa, por sua vez, é uma flor tão bonita que, quando a vemos, nos perguntamos se algo pode ser mais belo do que ela. É grande sua variedade de cores, mas entre as mais belas está a bordeaux. Ao contrário das cores da orquídea, a tulipa tem uma coloração leal, estável, definida.

Enquanto a orquídea é, como que, uma parasita, o todo da tulipa fala de autossuficiência, de independência. Ela se levanta altaneira, e carrega, bem na ponta, uma espécie de equilíbrio. É um equilíbrio um pouco altivo, as próprias folhas cercam a haste e se desprendem para deixar passar a haste, a qual vence todos os obstáculos, se afirma quase como uma lança.

Alguém poderia perguntar: em síntese, qual é então a beleza da tulipa? Eu diria que é beleza da harmonia. Há uma proporção entre a altura, o diâmetro, o tamanho de cada pétala, que faz dela uma obra-prima de coerência. E quando se admira isto, sente-se alegria de ser um ente racional, sente-se a beleza da razão. É uma ordem de belezas no estilo da maravilhosa Europa: equilibrada, racional!

Certa vez, ao saber que existiam tulipas negras, tive certa perplexidade e me perguntei: “Para que servirá uma flor preta? Será para cruzes de Missas de defunto? Eu não compreendo. Mas haverá uma razão qualquer para que Deus tenha criado a tulipa negra”.

Qual não foi minha surpresa quando, passando de automóvel por uma rua de Paris, vi um jarro com tulipas de várias cores, entre as quais havia também uma negra, posto junto à vitrine de uma loja.

O automóvel passou rápido — com a rapidez dos velhos táxis da França —, e eu arregalei os olhos com aquilo, mas, sobretudo, regalei minha inteligência, compreendendo a razão de ser daquela maravilha de Deus.

Ao analisar o jarro e ver como a tulipa negra realçava a beleza de todas as outras cores, eu compreendi por que Deus criou as tulipas pretas. Era tal o contraste produzido por ela junto às demais cores, que se alguém quisesse tirá-la de lá eu diria: não tire, porque é uma das notas mais bonitas do jarro.

Era uma forma de fantasia racional, à maneira francesa. Era um teorema a respeito de cores.

Escala de valores

A análise destas flores nos dá uma interessante lição:
Para muitos homens, só tem verdadeiro valor aquilo que for de primeira ordem; o que for de segunda não serve para nada, é lixo. Isto não é verdade, há uma gradação entre as coisas, a qual nos incita a amar a beleza própria a cada grau.

Bela como a rosa, para meu gosto, a tulipa não é. Entretanto, ela não é de “segunda classe”, no sentido pejorativo da expressão.

A escala hierárquica não impõe um achatamento do inferior, mas sim um “resplandecimento” do superior.

Até entre as flores há uma hierarquia de valores. Aplicando o princípio de hierarquia à análise feita, podemos dizer que a rosa e a tulipa são as flores do anti-igualitarismo. Uma é bela no grau supremo; a outra, não sendo a primeira, dá a Deus glória, mostrando a beleza que há também nos graus intermediários.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/3/1971)

Santa Escolástica e o apostolado do sofrimento

Santa Escolástica, irmã de São Bento, desenvolveu uma obra entrelaçada com a deste, fundando as beneditinas.

Numa época em que a ação social destas religiosas pareceria tão necessária, elas se empenharam em algo muito mais importante: rezavam e se sacrificavam. E, pelo seu exemplo, deixaram bem claro que a fecundidade do ramo masculino devia-se ao fato de haver um ramo feminino que rezava e se imolava.

Vemos, assim, o papel admirável, insubstituível e incomparável de Santa Escolástica.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/2/1965)

Beato Pio IX, vigor e triunfo da Santa Igreja

Diante do racionalismo propagado ao longo de seu século, Pio IX, com  grande audácia, promoveu o triunfo da Santa Igreja.

Muitos foram os comentários de caráter litúrgico e piedoso que se fizeram a respeito da data da Imaculada Conceição. Entretanto, uma das reflexões que o assunto suscita, ficou completamente de lado. Cumpre recordá‑la, porque ela conserva, em nossos dias, uma atualidade palpitante.

 

Maus efeitos do racionalismo no século XIX

Não é fácil, para quem vive em nossos dias, ter uma ideia da devastação que o racionalismo e o modernismo fizeram na sociedade europeia e americana, em todo o decurso do século XIX. O espírito humano, profundamente trabalhado pelos materialistas, pelos revolucionários de todos os matizes, sentia dentro de si uma revolta ardente contra o sobrenatural, que o levava a repelir tudo quanto não pudesse cair diretamente sob a ação e o controle dos sentidos.

Por isto mesmo, todas as religiões, principalmente a Católica, na qual o sobrenatural se patenteia de forma visível e autêntica, foram como que postas de quarentena pela maior parte da opinião pública. E todos os espíritos procuravam, tanto quanto possível, libertar‑se da crença em uma ordem de fenômenos que não se enquadrasse rigorosamente dentro das leis da natureza. A bem dizer, talvez nove décimos da opinião europeia estavam eivados de racionalismo e de modernismo.

Evidentemente, essa contaminação não era igualmente extensa nem

igualmente profunda em todos os espíritos. No entanto, mais visível em uns, menos em outros, ela tinha se insinuado de tal maneira que, mesmo entre os católicos leigos os mais eminentes se podia notar uma ou outra infiltração daquelas tremendas formas de heresia. Quatro eram as posições principais tomadas pela opinião pública perante a grande crise religiosa da época:
 
 1 ‑ aqueles que, corroídos a fundo pelo vírus racionalista e modernista, tinham sido atirados aos extremos da irreligiosidade, isto é, ao ateísmo radical seguido de um anticlericalismo militante e não raras vezes sanguinário;

2 ‑ aqueles que, sem ter a coragem de romper com toda e qualquer convicção religiosa, estavam explicitamente colocados fora da Igreja, admitindo tão somente um espiritualismo ou um cristianismo vago, largamente acomodado aos princípios modernistas e racionalistas;

3 ‑ aqueles que, sem ter a coragem de romper com a Igreja, nem com o espírito do século, proclamavam‑se católicos, mas sustentavam seu direito de professar, em um ou outro ponto, doutrinas contrárias às da Igreja;

 4 ‑ aqueles que, sem ter a coragem de sustentar que divergiam da Igreja, e muito menos de se separar dela, procuravam, entretanto, interpretar capciosamente a Doutrina Católica, de forma a lhe alterar em alguns pontos o conteúdo autêntico e tradicional, e acomodá‑lo com os erros da época.

A dizer a verdade, os que estavam inteiramente fora dessa classificação, os que haviam rompido inteiramente com o espírito do século e que se conservavam sem nenhuma jaça de racionalismo ou de modernismo, eram poucos, especialmente nos círculos intelectuais e sociais elevados.

Grande gesto de audácia do Papa O aspecto que a Igreja apresentava era, então, a de um imenso edifício que se esboroa aos pedaços. De seus milhões de filhos, pouquíssimos conservavam seu autêntico espírito.

Na sua quase totalidade, eles conservavam apenas réstias de Fé, como o horizonte do crepúsculo, que conserva réstias de luz, vestígio derradeiro de um dia que está chegando ao seu fim. E a noite completa não haveria de tardar.

 Triunfo da Santa Igreja

À vista disto, como deveria agir a Santa Igreja?

As opiniões estavam divididas e, efetivamente, o assunto era dos mais delicados. Por um lado, uma reação clara e definida haveria de gerar uma imensa oposição, arrastando para a heresia explícita e categórica muitos espíritos que ainda se achavam ligados, mais ou menos, à Igreja Católica. Por outro lado, entretanto, se não se opusesse um dique formal e categórico à onda da heresia, que ia subindo, seria inevitável que, mais cedo ou mais tarde, os desastres assumissem proporções tais, que a Igreja viesse a conhecer os mais tristes e mais angustiosos dias de sua existência.

Pio IX optou por um gesto de energia e resolveu convocar o Concílio do Vaticano, a fim de estudar e de decidir sobre a Infalibilidade Papal. Um grande e largo gesto de audácia da Igreja enfrentava, pois, o espírito do século, em um desafio que parecia louco. Realmente, falar em dogmas naquela época já era uma temeridade. Definir dogmas novos, temeridade maior. E definir como dogmas exatamente a Imaculada Conceição e a Infalibilidade Papal, em uma época tremendamente racionalista, parecia uma verdadeira loucura.

Por isto mesmo, uma imensa celeuma se levantou nos próprios arraiais católicos, quando a deliberação do Pontífice foi conhecida.
 

O triunfo da atitude acertada

Por que isto? Porque discordassem delas? Não. Mas porque achavam que o espírito transviado do século XIX só poderia ser atraído ao redil por um largo sorriso de concessão e de tolerância; que não é com golpes de audácia, mas com uma invariável brandura, que se consegue a conversão das massas; que seria loucura das mais declaradas procurar desafiar o espírito público. Realmente, com esta atitude ousada, todos se irritariam e se confirmariam no erro. Seria necessário contemporizar e conquistar pela persuasão e pela doçura. Só esta tática é que seria viável.

No Concílio do Vaticano reuniu‑se a Santa Igreja através de seus Bispos, iluminados pelo Espírito Santo, e além da questão doutrinária este grande problema de estratégia foi discutido. A bem dizer, era talvez a primeira ocasião em que este problema estratégico se apresentava ao exame do Episcopado com tanto vigor, depois do Concílio Tridentino.

Os fatos pareciam dar inteira razão aos Bispos de opinião diversa da do Papa. Uma celeuma imensa se levantava pela Europa.

As apostasias se multiplicavam. As discussões no Concílio eram longas e apaixonadas. Em última análise, ao lado da questão doutrinária, se discutia o seguinte problema:

1 ‑ um gesto de vigor, tendente a preservar do erro as massas, conseguirá realmente imunizar os elementos não contagiados?

2 ‑ esse gesto não terá como consequência exacerbar os espíritos que vacilam, e levá‑los à heresia?

3 ‑ sobretudo, não produzirá ele o efeito de enraizar no erro indivíduos que poderiam talvez, pela persuasão, ser conduzidos à Verdade?

À primeira questão, o Concílio respondeu, “sim”. As outras duas, “não”.

Foi este o significado da promulgação solene daquele grande dogma.

Aparentemente, o Concílio errara.

Continuava a irritação da incredulidade. Rios e rios de tinta se gastaram para provar que o Concílio era retrógrado e obscurantista. A revolta contra a Igreja

era franca e declarada… Entretanto, os resultados desejados pelo Concílio não se fizeram esperar muito.

Em primeiro lugar, todos os católicos militantes deram sua adesão incondicional. No seio do povo, as verdades definidas pela Igreja foram aceitas graças ao vigor com que Igreja as promulgara. Até nos círculos intelectuais, o vigor com que agira o Papa lhe atraiu o respeito geral, e todo o mundo começou a respeitar e se interessar por uma Igreja dotada de tal vitalidade. O racionalismo e o modernismo foram decaindo gradualmente. (…)

Estratégia dos Pontífices de todos os tempos

Evidentemente, ninguém pode negar o alcance deste acontecimento histórico. Erram os que condenam as manifestações vigorosas da Fé, e que julgam imprudente e contraproducente qualquer gesto de energia e de vigor combativo dos filhos da Luz contra os filhos das Trevas.

Aí está o triunfo formidável e definitivo de Pio IX a prová‑lo. (…) [Enganar-se-ia] quem pensasse que, agindo assim, Pio IX empregou uma estratégia de cunho exclusivamente pessoal. O que o grande Pontífice fez, não foi senão a aplicação, ao seu século, dos tradicionais processos de apostolado da Santa Igreja. A estratégia de Pio IX foi a de todos os Pontífices que se viram em situação análoga à sua, e que venceram as grandes crises que assediaram a Santa Igreja no passado. E não seria difícil mostrar que foi idêntica a linha de conduta observada pelos Pontífices que, depois de Pio IX, se têm sucedido no trono de São Pedro. É a admirável continuidade pontifícia, que atesta de modo flagrante a assistência indefectível do Espírito Santo aos Papas, através dos séculos. Todos os capítulos da História da Igreja, em todos os séculos, [confirmam] esta admirável continuidade e proporcionam aos fiéis ensinamentos de inestimável valor.

 
(Extraído d’O Legionário de 11 e 18/12/1938 in RDP 02-2011, pgs. 16 a 19)

Lourdes, milagre da misericórdia de Maria

A fim de nos associarmos ao júbilo de todo o orbe católico pelos 150 anos das aparições de Lourdes, nada melhor do que recordarmos aqui palavras de Dr. Plinio, repassadas de devoção e entusiasmo diante das incontáveis maravilhas que a maternal clemência de Maria Santíssima tem prodigalizado aos homens no célebre santuário.

Quando menos esperava, a pequena camponesa Bernadette Soubirous foi objeto de uma graça indizível: a Providência a escolhera para ser a vidente à qual Maria Santíssima apareceria, numa gruta de Lourdes. A partir do dia 11 de fevereiro de 1858, as visões se sucederam, e foram o prenúncio da série de milagres que não estancaram até hoje, deixando a impiedade confundida e emudecida. Por outro lado, serviram de ocasião para uma imensa expansão da devoção a Nossa Senhora pelo mundo inteiro. As curas prodigiosas de Lourdes se repetiam e se transformaram num cântico de glória à Imaculada Conceição, dogma promulgado há pouco mais de três anos pelo Papa Pio IX.

Nossa Senhora se impõe ao desprezo dos ímpios

Lourdes é, na verdade, uma das mais extraordinárias manifestações da luta de Nossa Senhora contra o demônio, pois essa aparição se deu no auge das perseguições e depreciações movidas pelo anticlericlaismo do século XIX para enfraquecer a Igreja. Muitos, acovardados pelo respeito humano, fingiam não ter mais fé. Poucos professavam claramente a religião católica, e os que não o faziam, pediam provas dela.

Nossa Senhora então aparece e têm início os milagres, operados com a solicitude e magnanimidade maternais da Virgem Santíssima. Das pedras da gruta de Massabielle passou a jorrar um curso de água que ainda não existia. Naturalmente, os doentes, que pensam em tudo para aliviar as suas dores, puseram-se a se banhar nessas águas e — oh! maravilha! — começam a se curar em número surpreendente.

Não querendo dar a mão à palmatória, os ímpios logo erguem a voz, afirmam não se tratarem de doenças autênticas e, portanto, não o eram também as curas. Não podia haver milagre, porque a veracidade deste os esmagaria.

A fim de eliminar quaisquer dúvidas e fazer triunfar a insondável bondade de Nossa Senhora, a Igreja instituiu um centro médico especial, com todos os recursos mais modernos que a ciência possuía, para analisar e comprovar as enfermidades antes de os doentes se banharem. Munidos do atestado, eles entravam nas águas e pouco depois saíam — várias vezes, nem sempre — cantando as glórias de Nossa Senhora, porque tinham obtido a cura. Os médicos faziam novo exame e, conforme o caso, declaravam não haver explicação científica para o restabelecimento do doente.
No decorrer dos meses e dos anos as curas foram se multiplicando, e a piedade católica constituiu todo um dossier sobre essa maravilhosa manifestação da compaixão de Deus para com os homens.

Três atitudes de Maria face à dor humana

Esses milagres, assim como todos os acontecimentos de Lourdes, são ricos em ensinamentos para nós. A mais valiosa dessas lições será, talvez, a respeito do sofrimento.

Vemos em Lourdes três atitudes da Providência e, portanto, de Nossa Senhora diante da dor humana. Dentro da perfeição dos planos divinos, tais procedimentos têm sua razão de ser, apesar de parecerem contraditórios.

De um lado, chama atenção a pena que Nossa Senhora tem dos padecimentos dos homens, e como, numa extraordinária manifestação de sua insondável bondade materna, atende aos rogos deles e pratica milagres para curar seus corpos.

Por outro lado, Nossa Senhora tem igualmente compaixão das almas, e para provar que a Fé Católica é verdadeira, pratica milagres a fim de operar conversões.

Mas existe uma terceira realidade em Lourdes, não menos significativa que as anteriores: são os inúmeros doentes que para lá se dirigem e voltam sem o tão almejado restabelecimento. Por que misteriosa razão Nossa Senhora devolve a saúde física a uns e não a devolve a outros? Qual a razão mais profunda disso?

Creio que essa ausência de cura pode ser tomada como um dos mais estupendos milagres de Lourdes, se considerarmos que, para a imensa maioria das almas, o sofrimento e as doenças são necessários para se santificarem. É por meio dessas provações físicas e morais que elas atingem a perfeição espiritual a que foram chamadas. E quem não compreende o papel do sofrimento e da dor para operar nas almas o desapego, a regeneração, para fazê-las crescer no amor a Deus, quiçá não entenda que, via de regra, por essa forma os homens alcançam a bem-aventurança eterna. E tão indispensável nos é o sofrimento para chegarmos ao Céu, que São Francisco de Sales não hesitava em qualificá-lo de “oitavo sacramento”.

Ora, Nossa Senhora agiria então contra o interesse da salvação das almas, se as livrasse todas das doenças. Claro está, a determinadas pessoas, por circunstâncias e desígnios especiais, de algum modo convém subtrair-lhes o sofrimento. São exceções. A maior parte dos que vão a Lourdes voltam sem ter obtido a cura. E nisto podemos ver como a Santíssima Virgem, tão misericordiosa, entretanto respeita a vontade divina no que se refere aos sofrimentos humanos.

Milagres da caridade cristã

Porém, como a Mãe que ajuda os filhos a carregarem seus fardos, Nossa Senhora em Lourdes concede ao doente uma tal conformidade com o padecimento, que não se tem notícia de alguém que, ali estando e não sendo curado, se revoltasse. Pelo contrário, as pessoas retornam ao seus lugares imensamente resignadas, satisfeitas de terem podido fazer sua visita à célebre gruta dos milagres, e contemplar a bondade de Maria para com outros infortunados que não elas.

Há mesmo o fato de não poucos doentes, oriundos dos mais distantes países da Terra, vendo em Lourdes a presença de pessoas mais necessitadas de cura do que eles, dizerem a Nossa Senhora estar dispostos a abrir mão do próprio restabelecimento, desde que Ela o conceda àqueles. Quer dizer, aceitam o sofrimento e a doença em benefício do outro. Esse é um verdadeiro milagre de amor ao próximo por amor a Deus. Milagre moral arrancado à fraqueza humana; milagre mais estupendo que uma cura propriamente dita.

Se bela é essa resignação, mais bonita ainda é a generosidade cristã das freiras de um convento de clausura perto de Lourdes. São contemplativas recolhidas que têm o propósito de expiar e sofrer todas as doenças, a fim de obter para os corpos e almas dos incontáveis peregrinos as graças e favores que estes vão ali suplicar. De maneira que nunca pedem a sua própria cura e aceitam todas as enfermidades que a Providência disponha caírem sobre elas, em benefício daqueles peregrinos. Se Deus acolhe seus oferecimentos, levam às vezes uma vida inteira de provações ou morrem de uma morte prematura, com o intuito especial de fazer bem às outras almas.

Diante desse heroísmo, pergunta-se: há algo na Terra mais digno de admiração?

Não conheço. Riquezas opulentas, extraordinários dotes e qualidades naturais, grandezas de qualquer espécie no conceito humano, que valem perto do holocausto de uma dessas freiras ignoradas pelo mundo? Punhadinhos de barro, e nada mais.

Quando deitamos um olhar ao nosso redor, quando consideramos as misérias da natureza humana decaída pelo pecado original, compreendemos que semelhantes atos de abnegação se acham tão distantes do nosso egoísmo e causam uma tal repulsa ao nosso amor-próprio, que constituem de fato um milagre maior do que todas as espetaculares curas verificadas naquele santuário mariano.

O maior ensinamento de Lourdes

E então compreendemos o grande ensinamento de Lourdes. Não é o apologético, tão imenso, tão importante. Mas é esse da aceitação da dor, do sofrimento, e até da derrota e do fracasso se for preciso.

Alguém objetará: “É muito difícil resignar-se a carregar a dor por essa forma”.

A resposta encontramos na agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo, no Horto das Oliveiras. Posto diante de todo o sofrimento que O aguardava, Ele disse ao Padre Eterno: “Se for possível, afaste‑se de mim este cálice. Mas seja feita a vossa vontade e não a minha”. O resultado é que veio um anjo consolar Nosso Senhor.

Essa é a posição que cada um de nós deve ter em face de suas dores particulares: se for possível, sejam afastadas de nosso caminho. Porém, faça-se a superior vontade de Deus e não a nossa. E a exemplo do que se deu com Jesus no Horto, a graça também nos consolará nas provações que Maria Santíssima permita se abatam sobre nós.

Tenhamos, portanto, coragem, ânimo, compreensão do significado do sofrimento e alegria por sofrermos: estamos preparando nossas almas para o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 6/2/1965 e 10/7/1972)