Paixão de Cristo

Embora fosse infinitamente superior aos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo chegou ao extremo de receber todos os ultrajes que Lhe foram feitos em sua Paixão, com imensa doçura.

Assim sua superioridade tornou-se não apenas régia, mas, por essa doçura, digna de ser amada. É uma elevação enquanto corolário da misericórdia, consentindo em colocar-se num plano indizivelmente menor, por amor àqueles que Lhe são inferiores.

Plinio Corrêa de Oliveira, 18/10/1989

De pé, como uma tocha de esperança

Na hora do Gólgota, no momento mais trágico que houve e haverá na existência da humanidade, Nossa Senhora permaneceu fiel. Não se entregou, não fraquejou, não traiu, não recuou.

E continuou de pé como uma tocha de oração e de esperança. Maria permanecia ereta, em toda a força de seu corpo e de seu espírito, com os olhos inundados de lágrimas, mas com o coração inundado de luz. Possuía a Fé inabalável, a certeza inamovível de que, após a grande tragédia, depois do abandono geral, viria a aurora da Ressurreição, viria o alvorecer da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, nimbada de glória a partir de Pentecostes. E de que, de cruzes em luzes, de luzes em cruzes, o mundo chegaria até o momento que em Fátima Ela prenunciou: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará!”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Uma devoção da cristandade…

Nosso Senhor Jesus Cristo morreu numa sexta-feira e ressuscitou num domingo. Ambos os dias foram-Lhe especialmente consagrados, de modo que, semanalmente, relembram a Paixão e a Ressurreição do Senhor. Porém, entre estes dias há outro: o sábado. Como faria a civilização cristã para solenizar este dia posto entre duas datas tão sublimes?

 

Na Idade Média, sob o impulso dos monges cluniacenses, o sábado passou a ser consagrado a Nossa Senhora. Mas, por que razão a piedade católica instituiu esse costume?

A Ressurreição

Embora os Apóstolos tivessem um misterioso instinto de que a história de Nosso Senhor não podia estar concluída e que a última palavra ainda não fora dita — caso contrário haveriam se dispersado —, eles ainda não tinham atinado com a ideia da Ressurreição.

Não concebiam eles que Quem ressuscitara Lázaro — fato que eles puderam comprovar —, ressuscitar-se-ia a Si próprio; não imaginavam que Nosso Senhor aceitaria o desafio lançado pelo mau ladrão crucificado a seu lado: “Se és o Cristo, salva-te a ti mesmo!”(1). Cristo fez muito mais do que descer da Cruz e curar-se a Si próprio: Ele consentiu em morrer para depois ressuscitar-Se.

De fato, a Ressurreição é algo tão extraordinário e miraculoso, que o espírito humano é propenso a sequer imaginá-la. Pois, se um vivo ressuscitar um morto é incomum, quanto mais o é um morto voltar à vida por suas próprias forças, sair dos abismos da morte e dizer a seu corpo: “Levanta-te!”… Esta é uma espécie de vitória dentro da vitória, de esplendor dentro do esplendor, que o espírito humano não pode sequer imaginar.

A Fé da Santíssima Virgem sustentou o mundo

Porém, havia alguém que possuía plena certeza na Ressurreição de Jesus: Maria!

No sábado que precedeu a Ressurreição de Nosso Senhor, somente Nossa Senhora, em toda a face da Terra, teve uma Fé completa e sem sombra de dúvida na Ressurreição. Ela possuía uma certeza absoluta, uma expectativa imensamente dolorida por causa do pecado que havia sido cometido, mas imensamente calma, com a certeza da vitória que se aproximava.

A cada minuto que passava, de algum modo a espada da saudade e da dor penetrava ainda mais seu Coração Imaculado. Mas, de outro lado, havia a certeza de uma grande alegria da vitória que se aproximava. Esta concepção inundava-A de consolação e gáudio.

Maria Santíssima, nesta ocasião, representou a Fé da Santa Igreja e, por assim dizer, sustentou o mundo, dando continuidade às promessas evangélicas, pois, se não houvesse Fé sobre a face da Terra, a Providência teria encerrado a História.

Maria foi a Arca da Esperança dos séculos futuros. Ela teve em Si, como numa semente, toda a grandeza que a Igreja haveria de desenvolver ao longo dos séculos, todas as promessas do Antigo Testamento e todas as realizações do Novo; tudo isto viveu dentro da alma de Nossa Senhora.

Podemos até nos perguntar se este episódio não foi mais bonito do que quando a Santíssima Virgem trazia o Messias em seu seio. Numa ocasião Ela gestava o Messias e carregava dentro de Si a salvação do mundo inteiro; noutra, tinha Ela em Si a Santa Igreja Católica Apostólica Romana, portanto, o Corpo Místico de Cristo.

É à noite que é belo acreditar na luz

Na obra Chanteclair, de Edmond Rostand, há uma linda frase: “É à noite que é belo acreditar na luz”.

Que mérito há em acreditar na luz ao meio-dia? Mas, acreditar na luz à meia-noite, ou mais ainda, às três horas da manhã, quando até a própria meia-noite já vai longe, tem-se a impressão de que o curso das coisas nos afundou nas trevas definitivamente; aí é que é belo acreditar na luz.

Ora, Nossa Senhora acreditou na luz durante a terrível meia-noite da morte de seu Filho. Apesar de presenciá-Lo “rompu, brisé, anéanti”(2), Ela não teve dúvida nenhuma.

Quando Jesus morreu e Nossa Senhora teve seu divino cadáver no colo, Ela fez um tranquilíssimo ato de Fé, dizendo: “Apesar destas chagas e desta morte estraçalhante, Ele ressuscitará! Eu creio porque Ele prometeu!”

Este foi, sem dúvida, um dos mais belos momentos da vida d’Ela.

A fidelidade de Maria fez-Lhe merecer, até o fim do mundo, ser lembrada especialmente aos sábados

Compreende-se assim, com que tato a Igreja escolheu para festejar Nossa Senhora este dia que lembra exatamente a hora trágica da dúvida e do abandono de todos.

No sábado, Jesus estava na sepultura, cheio de perfumes e de aromas, envolto no sudário. O sepulcro estava selado por uma enorme lápide e guardado por soldados. Para todos estava tudo acabado, exceto na alma d’Ela, onde uma tocha de Fé e de convicção ardia com a certeza de que Ele ressuscitaria.

Este é o Sábado Santo, dia especialmente consagrado a Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/11/1971)

 

1) Lc. 23, 39.
2) Roto, quebrado e aniquilado.

Fazei-me, enquanto viver, com meu Jesus condoer!

Um dos mais bonitos lances da Paixão foi o encontro de Nosso Senhor com sua Mãe.

Vinha Ele carregando a Cruz pela estrada, todo flagelado, coroado de espinhos, com todo o aparelhamento de horrores que conhecemos, quando, de repente, se encontra com Nossa Senhora. 

Imaginemos Jesus, o mais amoroso dos filhos, e Maria, a mais perfeita das mães. Como Ela há de ter chorado por ver seu Filho nessa situação, e como o Filho há de ter chorado por ver sua Mãe presenciar o infortúnio tremendo que acabava de cair sobre Ele?

Diante dessa cena, devemos nos perguntar: Como aliviar as dores de Nosso Senhor?

O ponto essencial para isso é pedir que sintamos verdadeira dor pelo que Ele sofreu. Devemos rezar a Nossa Senhora, fazendo esse pedido, pois, ao longo da Paixão, Jesus previa todo o futuro, previa todos nós que estamos passando pela vida e pela História, sofrendo como Ele, em união com os sofrimentos d’Ele.

Plinio Corrêa de Oliveira, 01/4/1995

Stabat Mater…

No Calvário, Nossa Senhora viu o céu encher-se de trevas, a terra tremer e o Templo sacudir-se. Ela, entretanto, manteve-se de pé!

Só A vemos sentada quando colocaram o Divino Cadáver sobre seus joelhos, para ungi-Lo com os aromas, conforme o costume judeu, antes de O depositarem na sepultura. Assim mesmo, Ela é representada com o busto ereto.

Daí vem a poesia famosa “Stabat Mater dolorosa, juxta Crucem lacrimosa” — Junto à Cruz, chorando, estava a Mãe cheia de dores. Mas “stabat”, em latim, não quer dizer simplesmente “estava”; significa “estava de pé”.

Assim deve ser a alma do verdadeiro católico!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/6/1988)

Per lucem ad crucem

A constatação de nossa insuficiência em face dos sofrimentos pode nos levar a fugir do caminho da cruz, indispensável à nossa santificação. Como estarmos preparados para oferecer, sem pânicos nem desânimos, os sacrifícios que nos venham a ser pedidos?

 

Devo tratar nesta conferência a respeito de como acondicionar a cruz para que a pessoa saiba andar com ela, entendendo-se desde já como cruz não apenas os sofrimentos lancinantes que dilaceram e estraçalham, mas também a vida cotidiana nos seus aspectos normais, com uma dose de felicidade ou de bem-estar normal, que não é a alegria de delirar, e as dores também normais.

Portanto, a matalotagem que o indivíduo precisa levar no caminho da cruz, e como ele deve ver esse caminho e a suportabilidade da cruz para nele andar.

Os grandes e os pequenos sacrifícios

Muitos pregadores — não os censuro por isso, acho normal — quando falam da cruz, querem levar as almas num só voo para a admiração e a eventual aceitação da dor no que ela tem de mais lancinante e terrível.

Então dizem: “Eu vou falar da cruz. Olha, São Vicente sofreu tal martírio assim… Este outro fez isso e suportou tal situação, etc.” Pergunto: Isso é bom ou não?

Para tratar da questão da cruz é preciso, antes de tudo, um discernimento dos espíritos, porque de fato a graça chama a alma para a cruz conforme as ocasiões, os momentos. Há determinados lampejos em que ela convida de uma vez a pessoa para o pináculo da cruz, e pode ser um principiante. Às vezes, ela não chama para o pináculo, mas vai se revelando lentamente, gradualmente.

Então, pode ser que para um auditório, em certo momento, em determinada situação, um pregador seja levado, pelo discernimento dos espíritos, a ensinar a cruz no que ela tem de mais terrível: “Meus caros irmãos, quereis saber o que é a cruz? Ouvi essas palavras: ‘Eli, Eli, lamá sabactâni?’”(1). Começar por aí e produzir um choque. Como também pode acontecer que inicie pela doutrina dos pequenos sacrifícios, de Santa Teresinha do Menino Jesus, porque a cruz é tão divina, tão enorme, tão complexa, que não a pega quem quer, do jeito que deseja. Cada um é atraído pelo Espírito Santo, pela graça, a apanhá-la de um jeito. E se pegar do jeito errado, não entra no caminho da cruz.

Admirar as pessoas mais perfeitas

A grande maioria dos fiéis tem que viver a cruz nas condições de vida comum, porque, do contrário, a sociedade temporal desaparece. Isso está ligado à teoria do estado de perfeição. A perfeição é sempre uma cruz, e uma cruz insigne. E o estado de perfeição, vivido em toda a sua autenticidade, é um estado de cruz.

Entretanto, o estado de perfeição deve ser praticado por muitos, não porém por todos. E esses muitos constituem uma multidão e ao mesmo tempo uma minoria. Porque, em absoluto, o número dos que seguem a perfeição é muito grande. Por exemplo, podemos dizer que a Igreja tem um número colossal de Santos. Não há exagero nem mentira nisso. Mas, se for comparado com o número de homens, é um pingo.

Então, são tantos que se poderia falar que há um número infindável de Santos. Mas, de outro lado, se poderia dizer também: é pequeno o número de Santos canonizados.

Na perspectiva de que esse número é pequeno, que há uma quantidade infindável de almas que não são chamadas para determinada perfeição, mas a admiram, embora sabendo que não irão adquirir aquela perfeição, elas devem ter uma espécie de tristeza de não serem chamadas para aquela perfeição. E só a alma que admirou profundamente a cruz para a qual ela não é chamada consegue ser correta.

Aqueles que admiram os mais corretos e os mais exímios conseguem ser corretos. A partir do momento em que o indivíduo deixa de ter um amor abrasado, um entusiasmo pela perfeição para a qual não foi chamado, ele começa a relaxar.

É um modelo que ele sabe que não tem proporção para seguir, e fica com certa nostalgia de não poder acompanhar. Este ponto é muito importante.

Um cuidado ao se levantar o estandarte da cruz

Então, pode-se pregar a cruz no que ela tem de mais terrível, tranquilizando as pessoas: “Não se tomem de um escrúpulo torturante ao verem que não são capazes disso, mas compreendam que podem amar sem ser tragadas por esse sofrimento que não lhes será pedido. Ou, se for pedido — porque não se sabe qual é o futuro do homem —, vocês receberão outras graças que não têm agora. Sentirem-se proporcionadas com isso no momento, não é sua obrigação”. Tenho a impressão de que, ao levantar o estandarte da cruz, a primeira precaução é essa; do contrário, perde-se o rumo.

Lembro-me de uma experiência pessoal. Eu tinha muita admiração pelos mártires, mas um medo enorme de passar pelos sofrimentos que eles tiveram. E me perguntava: “Você está embevecido de admiração por eles. Do que vale essa sua admiração? Eu queria ver se você, diante de um leão, tomaria a atitude deles. Não toma! É um fracalhão. Essa sua admiração é hipócrita!”

Eu sentia que isso me perturbava a fundo. Parecia uma increpação virtuosa, tinha seu quê de virtude, mas com algo mal visto, mal compreendido. Até que ouvi um padre dizer, de passagem, diante de mim: “A maior parte desses mártires tinha a graça no momento de chegar diante da fera”.

Para mim foi uma descoberta! Comecei a admirar os mártires sem me causar nenhum arrepio. Isso eu vi repetido, depois, em mil situações e de mil modos.

Portanto, eu colocaria como primeiro problema entender bem isso. Com o seguinte acréscimo: aquilo que se dá com os sofrimentos lancinantes, ocorre também com os padecimentos menores que conhecemos na vida de todos os dias. Vemos, de repente, alguém fazer um sacrifício de que nós não somos capazes. Admiremos! E admiremos sem remorsos, nem increpações tontas contra nós mesmos.

Alguém poderia dizer: “É bem verdade, essa cruz no momento não tenho que carregar. Eu terei que carregar algum dia? Como vai ser de mim quando precisar levá-la?”

A resposta é a seguinte: Não se ponha o problema. Admire debandadamente e sem restrições, e peça a graça — caso se ponha para você esse sofrimento — de ter a coragem de enfrentá-lo, mas sem certa forma de angústia que faz mal à alma.

O cálice por onde algo de superior penetra em nós

Quem de nós seria capaz de arcar com o sofrimento que teve Nosso Senhor Jesus Cristo ou Nossa Senhora? Não há um! Nem de longe nós temos substância para isso. Mas, de tanto admirar aquilo de que não somos capazes, algo daquela graça entra em nós.

A admiração é o cálice por onde a coisa superior entra em nós.

E, na medida em que eu admiro a capacidade de outro sofrer, entra em mim essa capacidade. Não quero dizer que entre tanto quanto há nele, mas, dentro de minhas proporções, recebo esta capacidade à força de admirar.

A alma capaz de admirar é aberta a todas as estrelas, a todos os sóis. A alma fechada à admiração está entregue a si mesma. Da alma invejosa, então, nem sei o que dizer! Esta apedreja, insulta as estrelas!

Como entrada no caminho da cruz, devemos admirar a cruz, naturalmente antes de tudo o Crucificado e a Corredentora, mas não nos limitemos a exemplos históricos. Procuremos ver a cruz naqueles que, em torno de nós, praticam o amor à cruz.

Porque ficar no mundo do que passou, é permanecer no zero. Eu só entro em nexo com aquilo que passou quando admiro algo de congênere que ocorre em torno de mim, e por aí chego até o passado. A Paixão de Nosso Senhor não passou, pois de algum modo ela é permanente.

Então deveríamos olhar admirativamente em torno de nós. E se não temos o costume de fazer exame de consciência para saber o que se passa em nossas almas, entram pedregulhos de inveja que causam relutância em relação a essas considerações. Não tenhamos ilusões, porque entram. A inveja é tal que, ou temos a certeza de tê-la expulsado, ou ela habita em nós. Não é alentador, mas é a pura verdade. Tratemos de vencê-la, portanto, e procuremos admirar, pois temos importantes razões para querer que nossas almas progridam nisso.

Pedir forças a Nossa Senhora

Se fosse possível fazermos uma meditação sobre nossa própria cruz, precedida de uma cuidadosa preparação na linha do que estou dizendo, sairíamos da pura teoria e teríamos condições para entrar no caminho da cruz. Se não for assim, não entramos verdadeiramente.

Pode acontecer que alguém tenha diante de si um sacrifício que não tem coragem de fazer. E o pior é o seguinte: não se trata de algo extraordinário, mas está abaixo das reais resistências do indivíduo. Porém, por ser ele um poltrão, não tem forças.

Então, se sou um poltrão, rezo: “Salve Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura e esperança nossa, salve!” Vou pedir para Ela me dar as forças que eu deveria ter e não possuo, que Ela tenha pena de mim. Vou rezar, rezar, e acabarei obtendo. Mas nunca devo me aproximar da cruz em seco, porque isso costuma causar muitos desvios!

Com essa postura a cruz se torna manuseável. Fora disso, não. E o exemplo foi Nosso Senhor, o Qual como que Se manifestou sem proporção com a Cruz d’Ele, a tal ponto que disse “Pater, si fieri potest…”(2); e a oração d’Ele, como não podia deixar de ser, foi gratíssima a Deus Pai que Lhe mandou um Anjo. E depois o Cireneu no percurso da “Via Crucis”, que O ajudou a carregá-la; a Verônica; o encontro com Nossa Senhora, etc.

Tudo isso é muito matizado, e sem essas matizações nós fugimos da cruz, o que é um disparate, pois se Deus matiza tanto para nós o caminho do sofrimento, por que havemos de imaginá-lo sem matizes?

A meu ver, para percorrermos esse tema sem constrição para nossas almas, seria absolutamente necessário considerar esses matizes como pórtico do tema da cruz.

Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição

Outro lado que ainda está no condicionamento da via da cruz é o seguinte: essas multidões de pessoas a quem nos referimos acima, aparentemente não são chamadas à perfeição. Por quê? Seria pelo fato de estarem destinadas à sociedade temporal? Esse é um erro.

É verdade que todos os que pertencem a Ordens religiosas são chamados para o estado de perfeição. O religioso que, consciente e voluntariamente, deixe de tender para a perfeição comete pecado grave. Essa é a doutrina da Igreja.

Contudo, se não houver entre os membros da sociedade temporal um bom número de pessoas que, dentro das condições próprias ao âmbito civil, pratiquem intencionalmente a perfeição, a sociedade temporal fenece, perece. De maneira tal que não devemos identificar a perfeição com a condição eclesiástica ou religiosa, e a imperfeição consentida e desavergonhada com a sociedade temporal. Cada pessoa é chamada para um grau de perfeição. Para o grau de perfeição dos religiosos, a grande maioria não é chamada, mas sim a um determinado teto de perfeição, dentro da vida que leva, e para isso deve tender.

Tomemos, por exemplo, a Igreja de São Basílio, em Moscou, com aquelas cúpulas. Aquilo poderia ser o gráfico das perfeições. Algumas perfeições são enormes, outras são pequenas, como os torreõezinhos que têm na ponta uma cúpula pequenininha também. Assim é a multidão das almas: cada uma é como um torreão que tem no alto uma cúpula, ou seja, uma perfeição própria para a qual deve tender.

Considerar que alguém pode até chegar ao Céu sem passar pelo Purgatório, por ter vivido retamente na sociedade temporal para uma perfeição menor que foi atingida, faz com que a pessoa esteja animada por ter encontrado para si um ideal muito belo. Com isso, creio que a alma fica arejada e balizada para entrar no caminho da cruz.

Esse caminho é lindo e cheio de surpresas, como uma navegação num mar ignoto, que apresenta as borrascas e as ciladas mais tenebrosas, mas também os panoramas mais magníficos.

Deus nos pede o sacrifício, mas nos sustenta com sua graça

Assim, há certas coisas que, para o comum das pessoas, constituiriam um sacrifício medonho a praticar; entretanto, quando se é chamado pela graça a uma vocação, a alma se enche de alegria e de consolação.

Exemplifico com a Gruta de Lourdes. Há voluntários que se esmeram em dar banho aos doentes em piscinas apropriadas.

Alguém diria: “Olhe, você vai ter contato com o que há de mais repugnante, mais terrível. Você precisará mexer naquela água de banhos imundos, onde há as cascas de feridas, o pus de todos os que por ali passaram e os micróbios mais ameaçadores de todas as doenças. Aquelas piscinas são anti-higiênicas no sentido mais violento e literal da palavra, e você porá as suas mãos limpas, que desinfetou antes, naquela água para lavar aqueles doentes! Isso será para você uma tortura todos os dias”.

Para quem se sentiu chamado por uma graça para fazer isso, não é uma tortura. Vá lá, mexa naquilo, a graça vai mexer na sua alma de outro jeito e você dará os banhos com naturalidade. Não considere, portanto, a situação como ela não vai ser.

Com muitas modalidades de sofrimento se dá isso. Sofre-se muito, mas não se percebe que a Providência pôs uma suavidade na alma a propósito daquele padecimento, de maneira que, quando o sofrimento acabou, tem-se gosto de se lembrar dele. E às vezes vai-se ao lugar onde se padeceu, para dar graças a Nossa Senhora por aquele sofrimento.

Convém, pois, cada um compreender que não deve confrontar o sofrimento futuro com o seu estado de espírito atual, porque, quando chegar a hora de sofrer, Maria Santíssima obterá as forças. Ainda mais, Ela, que é Mãe de Misericórdia, providenciará os meios para se padecer aquilo potavelmente.

Diz-se que quando Deus permite que fiquemos doentes, Ele mesmo prepara a cama para nos deitarmos.

Existe uma doçura especial no âmago do sofrimento, quando nos lembramos de que ele nos foi dado por Deus: é o travesseiro suave que a Mãe de Misericórdia nos preparou para aguentarmos tal padecimento. Vamos adiante porque, quando isso terminar, teremos saudades desses dias. Parece-me muito importante considerar isso também.

São das tais graças como a de Jesus com os discípulos de Emaús: no momento de ir embora, revela-Se. Na hora do sofrimento cessar, percebemos que uma mão estava nos segurando, e ficamos encantados!

Aversão à atitude de Múcio Cévola

Entretanto, as pessoas que tratam habitualmente da dor não a apresentam assim, mas à maneira de um Múcio Cévola(3). Sempre tive aversão àquele tipo de atitude. Queimar minha mão? Não! Fico apavorado, tenho horror ao fogo e não vou pôr nele meu braço! Porém, se eu receber uma graça especial, ponho. Mas numa perspectiva católica, como São Lourenço na grelha.

Há, portanto, atenuantes, acolchoados que nos conduzem àquilo. Não nos apavoremos! A entrada no caminho do sofrimento é, ao mesmo tempo, uma resolução heroica e viril, mas também uma ponderação dos mil acolchoados que entram dentro disso. Do contrário, não se viveu e não se sofreu catolicamente.

Fizemos juntos uma preparação para a entrada da cruz em nossas vidas e para o modo pelo qual devemos ver a cruz. Foi apresentado um equilíbrio entre a luz e a cruz, de tal maneira que se poderia dizer “per crucem ad lucem”(4), mas também “per lucem ad crucem”, que é o reverso da medalha que poucas pessoas consideram.

Plinio Corrêa de Oliveira(Extraído de conferência de 6/12/1985)

1) Mt 27, 46.
2) Do latim: “Pai, se for possível…” (cf. Mt 26, 39).
3) Conta Tito Lívio, historiador romano, em sua obra História de Roma desde a sua fundação, que em 508 a.C. Roma foi cercada por um rei etrusco de nome Porsena. Ante o perigo, um jovem romano chamado Gaio Múcio Cévola se voluntariou a matar o rei. Mas, ao entrar no acampamento inimigo, foi aprisionado. Levado ante o rei e questionado sobre a estratégia dos romanos, Gaio disse: “Sou um cidadão de Roma e vim para matar um inimigo ou morrer com valentia, e muitos como eu estão dispostos a fazer o mesmo.” O rei o ameaçou de queimá-lo vivo se não contasse detalhes dos planos romanos. Então, Gaio Múcio colocou sua mão direita em um fogo que havia ao seu lado, deixando-a queimar até os ossos, diante do rei e de outros nobres assombrados com tal ato de valentia.
4) Do latim: “pela cruz à luz”.

Hosana

Passar por reveses, derrotas, angústias, ansiedades, ver-se à beira da extinção, diante de imensos perigos, enfrentar aparentes decadências e, entretanto, pela graça de Deus acabar vencendo — eis o sentido cristão da palavra “admirável”. Exemplo paradigmático, a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os maiores milagres, os maiores êxitos, uma verdadeira aclamação como Rei em Jerusalém no Domingo de Ramos, e uma súbita e inesperada derrocada que desfecharia nas dores e aflições da cruz. Pouco depois, o espetacular triunfo da Ressurreição. Isto é ser, na inteira força do termo, admirável!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

O mundo aos pés do Trono da Verdade

Já tivemos ocasião de publicar numerosos artigos nos quais Dr. Plinio manifesta seu amor ao Papado. E muitos outros ainda se seguirão, pois este era um de seus temas prediletos. Transcrevemos aqui um artigo para o “Legionário” em 1946.

 

As notícias provenientes da Cidade do Vaticano informam que o Corpo Diplomático junto à Santa Sé fez uma démarche coletiva para obter da Secretaria do Estado o privilégio de participar de Consistório em que vão ser concedidos os chapéus vermelhos aos Cardeais recentemente nomeados. A atitude dos diplomatas não terá sido tomada sem o consentimento, pelo menos tácito, dos  respectivos governos. 

Assim, pode-se considerar que quase todas as nações do mundo  quiseram expressamente estar presentes àquele ato, manifestando de modo delicado e nobre, seu agradecimento pela honra que o Papa Pio XII lhes concedeu, com a internacionalização ainda mais ampla do Sacro Colégio.

Por sua vez, este gesto vem demonstrar o alto grau de importância moral e política que todos os governos do mundo reconhecem ao Papado. 

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma talvez, a universalidade da Igreja se tenha patenteado de modo mais evidente. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos. 

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da terra. Dir-se-ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas  fortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja ajudada por Deus chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos
corações. 

Do esplendor desta magnifica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”! Do que adiantou a [tantos inimigos] investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou […] procurar infiltrar-se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram.

Está dito, porém, que as alegrias neste vale de lágrimas nunca serão completas. Uma sombra passa diante de nossos olhos. Se é tal, tão universal, tão incontrastável o prestígio da Igreja, como explicar que ela esteja à margem da Organização das Nações Unidas? Como explicar que, precisamente neste fastígio de sua universalidade, ela seja mantida à margem da universal organização dos povos? Se a circunda uma auréola de prestígio, é impossível não reconhecer que é no exílio, é fora de seu trono natural, que é a presidência das nações cristãs, é fora  de tudo isto, que nasce em torno dela este arrebol de glória. Extraordinária expressão de sua força, que brilha até mesmo no isolamento. Mas motivo não menos extraordinário para que temamos por esta humanidade que vê a Luz, mas que não se utiliza dela para “iluminar a casa inteira”, para iluminar e dirigir a sociedade universal das nações. […] 

Como de direito, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclésia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclésia” (Onde está Cristo, aí está Deus; onde esta a Igreja, aí está Cristo; onde está Pedro, aí está a Igreja). E só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus. Dizem as notícias telegráficas que o Santo Padre pronunciará nesta ocasião um discurso de grande importância, seguido poucos dias depois de mais outro, igualmente importante. Aguardamos sua palavra com amor e confiança. Amor e confiança que, como de costume, se traduzem num inabalável propósito de adesão e submissão. 

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo- lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos; significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro, e o que ele ensina e a nossos olhos mortais pareceria fraco e errôneo. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 706, de 17/2/1946. Título nosso.)

IX Estação: Jesus cai pela terceira vez

Nesta meditação extraída de uma Via Sacra composta por Dr. Plinio em 1943, ele nos ensina a evitar uma concepção errada sobre uma importante virtude cardeal: na maior parte das vezes é mais  prudente recuar do que avançar.

 

Há mistérios que o vosso Santo Evangelho não narra. E entre eles eu gostaria de saber se me engano ao supor que essa vossa terceira queda foi feita, meu Senhor, para expiar e salvar as almas dos prudentes. 

A prudência é a virtude pela qual escolhemos os meios adequados para obter o fim que temos em vista. Assim, os grandes atos de heroísmo podem ser tão prudentes quanto os recuos estratégicos.

Se o fim é vencer, em noventa por cento dos casos é mais prudente avançar do que recuar. Não é outra a virtude evangélica da prudência. 

Entretanto… entende-se que a prudência é só a arte de recuar. E, assim, o recuo sistemático e metódico passou a ser a única atitude reconhecida como prudente por muitos de vossos amigos, meu Senhor. E por isto se recua muito… A realização de uma grande obra para vossa glória está muito penosa? Recuasse por prudência. A santificação está muito dura? A escalada na virtude multiplica as lutas em vez de as aquietar? 

Recua-se para os pântanos da mediocridade, para evitar, por prudência, grandes catástrofes. A saúde periclita?  Abandona-se, por prudência, todo ou quase todo apostolado, mediocriza- se a vida interior, e transforma-se o repouso no supremo ideal da vida, porque a vida foi feita, antes de tudo, para ser longa. Viver muito passa a ser o ideal, em vez de viver bem. 

O elogio já não seria como o da Escritura: “Em uma curta vida percorreu uma longa carreira” (Sab. 4, 13). Seria, pelo contrário, “teve longa vida, para o que teve a sabedoria de renunciar a fazer uma grande carreira nas vias do apostolado e da virtude”. Vidas longas, obras pequenas. E vossa prudência como foi, ó Modelo divino de todas as virtudes?

Quantos amigos tendes, que Vos conselhariam a renunciar quando caístes da primeira vez? Da segunda vez, seriam legião. E vendo-Vos cair pela terceira, quantos Vos não abandonariam escandalizados, achando que éreis  temerário, falto de bom senso, que queríeis violar os manifestos desígnios de Deus!? Que esse passo de vossa Paixão nos dê graças, Senhor, para sermos de uma invencível constância no bem, conhecendo perfeitamente o caminho do verdadeiro heroísmo, que pode chegar a seus limites mais extremos e mais sublimes sem jamais se confundir com uma vil e presunçosa temeridade. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 18/04/1943)

Santa Bernadete Soubirous

Aos olhos de um século orgulhoso e cheio de incredulidade, Santa Bernadete Soubirous não passava de uma camponesa pequena e miserável, insignificante e pobre. Aos olhos da Providência, porém, ela era a escolhida para ser o arco através do qual um raio de sol das maravilhas divinas iluminaria o mundo inteiro.

Aceitando sua humilde condição e suportando o desprezo e o descaso de seus semelhantes, soube ela conduzir sua alma até os limites da sublimidade. E seu amor ao sofrimento, aceito como algo mais precioso que as próprias aparições de Lourdes, transformou-a numa das mais rutilantes estrelas do firmamento católico.