Exemplo de constância e de fortaleza

Varão de espírito nobre, muito inteligente e culto, São Martinho I foi sujeito a uma das maiores humilhações a que um Papa tenha sido exposto, desde o começo da história do Pontificado.

 

Vamos analisar uma nota biográfica referente a São Martinho, Papa e mártir(1).

Condenado à morte por defender a verdade

São Martinho I sucedeu a Teodoro, no ano 649.

A alma do novo Papa deveria ser grande para suplantar as grandes dificuldades do momento. Para salvar especialmente as Igrejas do Oriente, devia anatematizar a heresia monotelista(2). E foi o que fez o novo Papa.

Imediatamente, por ordem do Imperador Constante II, foi preso numa emboscada e transportado num navio para o Oriente. Sofreu horrivelmente durante a viagem. Ao chegar a Constantinopla estava em extremo grau de debilidade; mesmo assim, manietado, arrastaram-no ao tribunal, chamaram testemunhas falsas que depuseram contra o Pontífice acusando-o de traidor e herético. Depois de condená-lo, carregaram-no para junto das cavalariças imperiais, onde se reunia incontável multidão.

São Martinho foi alçado a um terraço para que Constante pudesse vê-lo da sacada de seu palácio; depois o juiz que havia presidido o tribunal aproximou-se do ancião mofando: 

— Viste como Deus te livrou de nossas mãos, eras contra o imperador. Deus te abandonou.

Em seguida ordenou aos soldados que rasgassem as vestes do Papa e lhe arrancassem os calçados. Entregando-o ao prefeito, recomendou-lhe que o fizesse em pedaços. Como a multidão se mantivesse calada, o juiz incitou-a a anatematizar o condenado, mas ouviu-se somente a voz de umas vinte pessoas. As demais, olhos baixos, dispersavam-se silenciosamente.

Os carrascos então despojaram São Martinho de seus farrapos e do pálio sacerdotal. Revestiram-no com uma túnica aberta de ambos os lados, grotesca e humilhante. Rodearam-lhe o pescoço com uma argola de ferro, puxaram-no por uma corrente pela cidade até a prisão, que era a mesma dos criminosos comuns. Sob o frio intenso, tiritava. Permaneceu preso esperando a morte, mas sua pena foi comutada por prisão perpétua.

No exílio da Crimeia, seu martírio aumentou dia a dia até que o Criador o chamou para Si, no ano de 655.

Esse pontífice deixou cartas notavelmente bem escritas, cheias de vigor e sabedoria, bem como as respostas dadas no tribunal de Bizâncio. Seu estilo é nobre e sublime, digno da majestade da Sé Apostólica.

Constância e fortaleza em meio a injustos tormentos

Encontramos nessa narração vários aspectos desse martírio que são instrutivos para nós.

Em primeiro lugar, a suma respeitabilidade desse Pontífice e a forma especial de tormento a que ele foi sujeito. Por ser um santo, tinha na mais alta conta a dignidade do trono pontifício por ele ocupado, compreendendo perfeitamente tratar-se do maior cargo da Terra.

Não há dignidade de rei, nem de imperador, nem de nenhum outro que se possa comparar sequer de longe à dignidade do Vigário de Cristo na Terra, daquele que é sucessor de São Pedro, a quem Jesus Cristo deu as chaves do Reino do Céu, de maneira que aquilo que ele abrir estará aberto e aquilo que fechar permanecerá fechado.

Além disso, São Martinho era um homem de um espírito nobre, muito inteligente e culto, em cujas cartas se expressava com nobreza e elevação. Portanto, uma pessoa que gostava de tudo quanto é alto, sublime, digno.

Pois bem, ele foi sujeito a uma das maiores humilhações a que um Papa tenha sido exposto, desde o começo da história do Pontificado.

São Pedro, crucificado de cabeça para baixo, foi tão humilhado ou mais do que ele. Mas poucos foram os Papas que sofreram um martírio tão terrível como São Martinho.

Trata-se de um Pontífice romano, que se sabe Vigário de Cristo, e que é jogado no porão de um navio daquele tempo, desce na cidade de Constantinopla, é arrastado ao tribunal por hereges monotelistas, para ser condenado; depois é levado diante de uma imensa multidão, vestido de um modo ridículo, colocam-lhe no pescoço uma argola de ferro atada a uma corda, e o conduzem como se fosse um animal; encontrando-se já na iminência de ser morto, ele é arrastado, a pé e descalço, pela cidade até a outra ponta, para ser preso entre os prisioneiros comuns. Imaginem a humilhação de um homem que se preza, sofrendo tudo isso!

Mais ainda: fazia um frio intenso, ele já estava idoso e tiritava. Naturalmente tomavam o tremor dele como sendo por medo, e muitos terão caçoado dele.

Vê-se a crueldade desse Imperador Constâncio e dos hereges monotelistas, que o arrastaram. Depois ele foi mandado para a Crimeia e ali, submetido a trabalhos forçados, morreu por causa das intempéries, da idade, mas em consequência dos maus tratos. Por isso a Igreja o considera mártir. Até o fim ele não cedeu e, diante do interrogatório do imperador e do juiz, ele suportou com altivez e soube dizer ao juiz as verdades que deveriam ser ditas. É um nobre exemplo de constância e de fortaleza.

Crueldade e indolência, sintomas de um império que caía

Por outro lado, vemos o Império Romano que caminhava para seu fim. Haveria ainda alguns séculos para o termo final do Império Romano do Oriente, mas esse fim vinha sendo preparado de longe por sinais manifestos de decadência. Esse crime praticado pelo imperador na presença de todo o povo é um sintoma disso. O imperador manda expor o Papa num terraço onde ele o pudesse ver e, naturalmente, zombando do Pontífice sacrilegamente.

Todo o povo também presenciou a cena e o juiz estava querendo induzi-lo a vaiar o Papa. Mas a atitude do povo foi esta: ficou quieto e depois foi se dispersando. De dentro da multidão, apenas umas vinte pessoas — provavelmente pagas — vaiaram o Pontífice. A vaia não teve a menor repercussão, ninguém acompanhou, e as pessoas se dispersaram lentamente.

Há uma frase famosa que diz: “O silêncio dos povos é a lição dos reis”. Quer dizer, os povos não vaiam, não agridem, mas quando eles não aplaudem, os reis ficam compreendendo haver uma censura. Essa é uma frase do “Ancien Régime”(3), e isso era verdade antes da Revolução Francesa.

Quer dizer, resta sempre aos povos um recurso que ninguém tem o poder de lhes tirar: é o de não aplaudir. Como obrigar o povo a aplaudir? Uma multidão imensa, se não quiser aplaudir não aplaude, e não se pode matar a multidão por causa disso.

Entretanto, nota-se de um lado o prurido de independência dos imperadores do Oriente contra o Papa, o que acabaria desfechando no cisma e, posteriormente, na queda do Império Romano do Oriente. De outro lado, constata-se também a maldade do povo. À primeira vista, tem-se uma boa impressão do povo porque se recusou a aplaudir; era, portanto, menos corrupto do que o imperador. Contudo, não deixava de ser um povo corrompido também, porque se ele sabia que aquele ancião, sendo o Vigário de Cristo, não deveria ser tratado assim e merecia todo o respeito, o que fez esse povo que não se revoltou contra os algozes, não protestou e não vaiou aquele juiz?

Evidentemente, dispersando-se, a multidão se condenou porque provou saber que aquilo era mau, e mostrou que se tinha intrepidez de não aplaudir, entretanto, não possuía coragem de libertar. Ora, o Papa tinha o direito de ser liberto. Isso mostra o profundo apodrecimento do povo; era um império que caía de podre.

Rechaçados pela Justiça de Deus

Resultado: durante séculos essa rivalidade entre Constantinopla e Roma, as duas maiores cidades de cultura latina daquele tempo, foi aumentando. Quando no século XV os turcos assediavam Constantinopla, estava ali um personagem que pôde até assistir à queda da cidade e conseguiu fugir a tempo.

Nas cartas que esse personagem escreveu, ele pôs a seguinte nota: “O povo de Constantinopla, que era herege, tinha rompido com a Santa Sé, estava apavorado com aquela entrada feroz dos turcos, que fizeram uma carnificina, reduziram inúmeros indivíduos a escravos, entraram em conventos, destroçaram tudo”.

E fez este comentário: “Se se desse aos constantinopolitanos a opção entre salvar a cidade, voltando a aderir à Igreja Católica, ou continuar na heresia e serem destroçados pelos turcos, eles prefeririam a heresia e a morte a se unirem novamente à Igreja Católica”.

Quer dizer, um ódio tão cego à verdade que eles só queriam saber de aderir à heresia, e preferiam a morte com a heresia à vida, à dignidade e à honra. Vemos, por aí, como os adversários da Igreja podem ser fanáticos, a ponto de gostarem mais daquilo que representa o seu próprio destroçamento do que a união com o que significa a verdade integral.

Lembro-me de uma frase de Donoso Cortés(4), grande pensador espanhol, que dizia o seguinte: Os homens gostam de verdades, mas nenhum homem, a não ser pela graça de Deus, gosta da verdade inteira, da verdade global.

A Doutrina Católica oferece a verdade global. Esta, os inimigos da Igreja odeiam mais do que tudo, preferindo qualquer erro à verdade total. Assim eram os monotelistas, como também os cismáticos de Constantinopla séculos depois, e os modernistas do tempo de São Pio X. Tudo menos a verdade global. Resultado: serão rechaçados pela Justiça de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/9/1973)

 

1) Não dispomos das referências bibliográficas nas quais se baseia Dr. Plinio.
2) Monotelismo: heresia que nega a existência de duas naturezas — a humana e a divina — em Nosso Senhor Jesus Cristo.
3) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.
4) Juan Francisco María de la Salud Donoso Cortés y Fernández Canedo. Filósofo, político e diplomata espanhol (* 1809 – † 1853).

Quando o Céu e a Terra estavam próximos…

O jovem cônego Pedro González estava penetrado pelo pior dos mundanismos: o das coisas sagradas. Tocado pela graça divina, rompeu com o mundo e entrou para a Ordem dos dominicanos. Tornou-se célebre pregador e influenciou, com seus conselhos, o Rei São Fernando.

 

No dia 14 de abril comemora-se a festa de São Pedro González, dominicano, do qual tiramos umas notas do livro Vida dos Santos, do Padre Rohrbacher(1).

Gritos de admiração se transformaram em vaias e zombarias

Eis a síntese histórica:

Pedro González nasceu no ano de 1190 na cidade de Astorga, na Espanha, da qual seu tio era bispo. Após brilhantes estudos, foi nomeado, ainda jovem, cônego da catedral.

O tio lhe obteve de Roma a dignidade de deão do capítulo. Pedro devia tomar posse do cargo na festa do Natal. Jovem vaidoso, quis que tudo lhe ocorresse com pompa, e que toda a cidade assistisse ao ato.

Montado em um cavalo magnificamente ajaezado, atravessava as ruas da cidade. Chegando a um lugar repleto de pessoas, ferroou o animal para fazê-lo trotar com mais graça e assim aumentar a admiração do povo. Mas o cavalo deu um passo em falso e atirou o cavaleiro numa poça cheia de lama. Os gritos de admiração se transformaram imediatamente em vaias e zombarias.

Pode-se imaginar a confusão que sentiu González. Esta, porém, lhe foi salutar. No mesmo lugar exclamou bem alto: “Como! Este mesmo mundo que eu procurava agradar ri-se de mim? Pois bem, zombarei dele por meu turno. De hoje em diante dar-lhe-ei as costas para começar uma vida melhor.”

E, de fato, abandonou o mundo e entrou para a Ordem de São Domingos. Foi um ótimo religioso e mais tarde não menos excelente pregador.

Sua fama chegou até o Rei São Fernando, que lhe pediu um conselho a respeito da guerra contra os sarracenos. Mais tarde foi evangelizador dos pobres e particularmente dos marinheiros, tendo sido agraciado com o dom dos milagres. Pregou sem cessar, até seus últimos dias.

Predisse sua morte, falecendo em Tuy, assistido pelo bispo da cidade que muito o estimava. Os marujos de Espanha e Portugal o invocavam em todas as tempestades sob o nome de Santo Elmo.

Uma tradição muito razoável, pitoresca e psicológica

A vida dele é realmente pitoresca a começar por essa manifestação de mundanismo canonical. Era sobrinho do bispo que conseguira que ele fosse nomeado deão do capítulo, quer dizer, a principal figura do cabido.

Fazia parte dos costumes do tempo que quando uma pessoa assumia uma dignidade nova passeava pela cidade, revestida das insígnias de sua dignidade. Por exemplo, quando alguém era nomeado professor de universidade passeava pela cidade, com foguetório, alunos, etc., vestindo a beca e os trajes de mestre, montado a cavalo. Naturalmente era preciso saber montar a cavalo, porque a coisa não deixa de comportar alguns riscos.

Assim, quando o estudante se formava e voltava para a cidade de origem, tomava o traje da profissão que exerceria e passeava pelo meio da cidade. E o povo todo ficava vendo o novo profissional graduado, novo doutor, que iria adornar os meios sociais e intelectuais da cidadezinha à qual pertencia.

Algo disso conservou-se durante algum tempo no interior do Brasil. Até 1920, mais ou menos, se não me engano, quando um rapaz do interior se formava em São Paulo, ele ia para sua cidade e era acolhido, com banda de música, pelas autoridades municipais, e todos os que estavam na estação para recebê-lo acompanhavam-no até a casa, onde havia uma coisa horrendamente chamada “boca livre”, quer dizer a família oferecia, ao menos quando podia, uma refeição para todo mundo que quisesse comer quanto quisesse. E assim ficava entronizado o novo doutor.

Essa tradição que, aliás, é muito razoável, pitoresca e psicológica, aplicava-se até aos reis. A rainha, quando se casava com o rei e ia pela primeira vez à sua capital, tinha a “joyeuse entrée”, a alegre entrada, em que havia recebimentos e pompas.

Por exemplo, Luís XVI e Maria Antonieta, depois de casados, fizeram uma “joyeuse entrée” em Paris, porque era a primeira vez que ela ia àquela cidade oficialmente. Então, grande recebimento, grande reboliço. Isso é muito conforme à ordem natural das coisas.

No momento do sumo mundanismo, a hora da graça

Então, o novo cônego estava para entrar a cavalo na cidade, e este acontecimento deveria ser envolto em grande pompa e circunstância. Imaginem um homem guapo, montado num belo cavalo, com aqueles trajes bonitos de cônego, deão do cabido. Provavelmente havia clérigos acompanhando e confrarias fazendo coro.

Era uma época em que não existia anticlericalismo. Hoje não há mais propriamente anticlericalismo, mas é meio secundário aos olhos da opinião pública ter um cargo eclesiástico. É melhor um cargo eclesiástico do que não ter nenhum cargo, nem civil. Mas é muito melhor ter um cargo civil do que um eclesiástico, mais ou menos em igualdade de condições. Mas naquele tempo, não. Os cargos eclesiásticos eram de uma alta atração mundana.

Entra, pois, nosso cônego elegante a esporear o cavalo para trotar com mais graça. É que não havia ainda a “heresia branca”2. Esta não gostaria de um cônego que trotasse depressa. No conceito “heresia branca”, isso seria contra a caridade, não ter bom coração. Um homem que anda depressa a cavalo não tem pena nem das viúvas, nem dos pobres, nem do cavalo. Segundo esta ideia deturpada da piedade, o cônego, mesmo quando moço, deveria montar um bicho bem manso, largar as rédeas e seguir lentamente pelas ruas. Então todos diriam: “Como ele é bom!”

Mas vê-se que não havia ainda “heresia branca” e ficava bonito um cônego mostrar que montava bem a cavalo. Então a hora da graça o esperava nesse momento de sumo mundanismo, e o pior dos mundanismos que é o mundanismo das coisas sagradas. Ele monta a cavalo, esporeia o animal que começa a trotar, e espera os aplausos que principiam a se delinear. De repente, ele cai num monte de lama.

Modo da graça operar em um espanhol

Certa vez, Napoleão andava a cavalo pelo “Bois de Boulogne” ou “Champs Élysées” e o povo começou a aplaudi-lo. Então, o embaixador da Dinamarca que estava ao lado dele lhe disse:

— Majestade, que trono sólido!

Ao que ele respondeu:

— Senhor Embaixador, é um engano. Os povos se vingam dos aplausos que nos dão.

De fato, quem aplaude está pronto para vaiar. Esta é a miséria humana. Resultado: estavam aplaudindo, escarrapachou-se, irrompe a vaia. Neste momento vem a graça de Deus e converte o homem. Toca-o mostrando o vazio de todas essas vaidades, e dando-lhe um sentido de desafio àquele povo: “Como é, esse pessoal que me aplaudia, agora está vaiando? Romperei e não terei mais nada que ver com eles.”

Esse é um modo da graça operar em um espanhol. Porque a coisa se converte imediatamente em desafio tendente à tourada. Atitude sumamente bonita, que me agrada muito. Se rompeu, faça o desafio e pule em cima; e vá logo ao fim, seja radical! É bom que as coisas se passem dessa maneira, e assim fez o nosso Santo. Ele foi tocado pela graça e entrou para uma Ordem religiosa. Tornou-se dominicano e se celebrizou como pregador. Aliás, é bonito vê-lo influenciar, com seus conselhos a respeito da Cruzada, o Rei São Fernando.

Evocando um fato com saudade

Vejam que cena bonita: um chefe de Estado santo que manda chamar um pregador santo para confabularem a respeito da luta contra os infiéis. Como tudo isso está longe! Onde se encontra hoje o pregador santo? E o rei santo? Tudo isso se dissipou. E que nostalgia devemos ter desses valores que dizem tanto às nossas almas!

Imaginemos esse encontro: um rei sentado numa cadeira de espaldar alto, com braços, sobre um pequeno estrado na sala; o santo pregador entra e lhe faz uma profunda reverência desde a entrada, e o monarca lhe diz com amenidade:

— Frei Pedro, entre, esteja à vontade.

Então começam a falar e, de repente, a conversa sobe de ponto e dali a pouco estão tratando a respeito de Religião, de temas elevados, e isso dentro do palácio real.

Qual é o palácio onde hoje uma cena como essa se dá? Como isso nos faz sentir a desgraça do nosso distanciamento em relação a tantas coisas magníficas que, por essa forma, podemos entrever dentro da luz do passado. E como é útil, portanto, uma ficha biográfica que nos dê a possibilidade de nos recordarmos de toda essa felicidade.

Dante diz que nenhuma tristeza é maior do que no dia da miséria lembrar-se da ventura que se foi. Nós sofremos em parte isso. Estamos no dia da miséria e nos lembramos desses dias que se foram. Mas pelo menos ficamos sabendo que houve isso e que as coisas voltarão a ser assim. E nesse vale profundo, tão longe do que foi e – ao menos na ordem real das coisas, não cronologicamente – tão distante do que vem, nós evocamos isso com saudade.

Um modo de morrer na doçura e na paz de Deus

Depois, esse Santo exerce vários ofícios: evangelizador dos pobres e, sobretudo, dos marinheiros. Estes constituíam, então, uma ralé sem Fé nem lei, eram aventureiros. Ele se mete nesse ambiente e, sem nenhuma necessidade de ser padre operário nem de fazer concessões malucas, move essas almas porque é um Santo.

Até o fim de seus dias ele pregou, e previu a sua própria morte. É uma das graças especiais que Deus dá a alguns de seus servos: preverem a chegada da própria morte. É um modo de morrer na doçura e na paz de Deus. Isso não lhes causa pânico, porque lhes dá a esperança precisamente de chegarem ao Céu. Antigamente, isso se fazia com tal naturalidade que se conta que o Padre Anchieta, no vilarejo de São Paulo, soube com antecedência o dia de sua morte e avisou várias famílias, despedindo-se e explicando com toda a candura: “Eu vou morrer no dia tanto, tive uma comunicação a esse respeito, e queria agradecer-lhes tanta gentileza”.

É o modo mesureiro e cortesão, no sentido nobre da palavra, de se fazer visita de despedida no século XVI: “Vou morrer, preciso me despedir dos amigos”.

Podemos imaginar o assombro! Entretanto, não causava tanto espanto assim porque muitas vezes pessoas que nem eram tidas como santas viam-se favorecidas com essa graça, e anunciavam a própria morte. E quem as ouvia achava meio provável que acontecesse. Essas comunicações entre o Céu e a Terra não eram excepcionais.

Conaturalidade magnífica com o sobrenatural

Que susto se um padre hoje tocasse a campainha de nossa Sede e dissesse:

— Dr. Plinio, eu vim me despedir do senhor porque vou morrer.

Eu me sentiria, no primeiro momento, tão desconcertado que me julgaria obrigado a dizer:

— Não! O senhor ainda vai ter uma longa vida…

É o “happy end” idiota das coisas modernas.

Naquele tempo, não:

— Ah, o senhor vai morrer? Não diga… O senhor teve uma visão? Olhe, muito obrigado por ter vindo se despedir. Quando chegar no Céu lembre-se de nós. Diga de minha parte a Nossa Senhora tal coisa, fale com meu Anjo da Guarda tal outra, por obséquio não se esqueça.

— Ah, pois não, não tem dúvida, não esquecerei. Até logo.

— Até logo.

Quer dizer, é exatamente a conaturalidade magnífica com o sobrenatural. A harmonia com o celeste, o hábito do convívio com o sobrenatural que cria coisas magníficas como essas.

Por exemplo, no convento, o Santo caminhando de um lado para outro, de repente diz para o Prior:

— Padre Prior, eu julgava necessário que Vossa Reverência provesse alguém que me substituísse no apostolado dos marinheiros.

— Mas por que isso?

— Porque recebi um aviso de que vou morrer.

— Ah, então, está bem.

Já deixa o substituto indicado. O Santo morre na hora marcada, a comunidade está presente e assiste à morte. Ele adormece no Senhor, enterram-no em paz. Uma alegria geral, uma unção no pequeno local onde a morte se dá; o próprio bispo era muito amigo dele e assistiu a sua morte. Assim, ele morre sob as bênçãos e as vistas de seu pastor e com essa naturalidade vai para o Céu.

Como o Céu e a Terra ficam próximos! Que abismos se suprimem dentro desse florilégio da civilização católica! E quanta coisa bonita desapareceu também, as quais vamos rever no Reino de Maria!

Creio que no Reino de Maria não vai ser raro pessoas saberem com antecipação a data de sua própria morte. Quem sabe? Resta-me augurar que essa graça seja dada a todos nós.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1967)

Revista Dr Plinio 253 (Abril de 2019)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. Volume VI, p. 360-362.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Oração ao Santo Anjo da Guarda

Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, exercer especial papel na realização de minha vocação. Vós, com todos os espíritos celestes,  possuís uma missão altíssima na luta contra a Revolução. Dirijo-me  a todos vós tendo presente a vinculação que estas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco.

Em nome desse vínculo eu vos peço: Obtende da Rainha do Céu que vossa ação se intensifique e tome toda a magnitude proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, fraquezas, com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Eu vos peço, portanto, que intervenhais quanto antes sobre as pessoas e os acontecimentos de maneira que, libertos da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, possamos pertencer-vos  inteiramente e ser vossos guerreiros na grande luta que se aproxima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)

São Pio V, herói em meio às angústias!

A célebre batalha de Lepanto, na qual a Armada Católica logrou afastar o poderio otomano que se acercava do Ocidente Cristão, foi assinalada por insigne heroísmo. Entretanto, houve quem, apesar de não empunhar armas físicas, obteve de Deus o bom êxito dos guerreiros da Fé.

 

Tantos foram os comentários feitos a respeito da batalha de Lepanto, em vários anos sucessivos, que quase não há algo para acrescentar. Mas vou destacar um herói da batalha de Lepanto, a propósito do qual poucos historiadores falam. Esse herói foi o Papa São Pio V.

No século XVI, os cristãos da Europa estavam divididos

Em que sentido ele foi um herói, e por que é importante para nós reconhecermos o heroísmo dele?

São Pio V via o poder otomano crescer cada vez mais e o perigo de que eles se lançassem sobre a Itália, por exemplo, ou qualquer outra parte da Europa, e operassem uma invasão com efeitos talvez mais ruinosos do que a dos árabes na Espanha, no começo da Idade Média.

Isto porque no tempo de São Pio V, século XVI, os cristãos da Europa estavam divididos entre católicos e protestantes. Já havia, portanto, instalada entre os cristãos, essa lamentável divisão a qual enfraquece tanto as forças católicas e que nós desejamos remediar pela conversão de todos.

No século XVI, o protestantismo tinha um vigor incomparavelmente maior do que hoje;  estava ainda na sua fase de expansão, de luta. E era muito de se temer que os protestantes aproveitassem a agressão feita pelos maometanos a um país católico, para eles mesmos invadirem outros países católicos. Tanto mais que já havia disso uma experiência.

À Casa d’Áustria, que governava a Áustria e a Hungria, pertencia habitualmente, por eleição, o título de Imperador do Sacro Império Romano Alemão. Várias vezes ela se viu em dificuldades seríssimas por causa de combinações, ou ao menos de convergências claras, entre protestantes, do interior do Sacro Império, e otomanos, de fora dele, visando forçar a capitulação da Casa d’Áustria e liquidar de imediato o Catolicismo, pelo menos nos povos de língua alemã.

Assim, para a Santa Sé, a ameaça otomana era muito mais forte do que foi a ameaça árabe, a qual, entretanto, fora tão terrível. Porque no tempo de São Pio V os cristãos estavam divididos.

Indecisão de Felipe II

Nessa situação, São Pio V precisava apelar, naturalmente, para quem era o apoio temporal da Igreja em seu tempo: Felipe II, Rei da Espanha. Com efeito, o Papa só podia encontrar apoio, dentre as grandes potências católicas, em Felipe II e depois em Veneza, uma grande cidade marítima, a qual constituía uma república aristocrática, com largo desenvolvimento em todo o Mediterrâneo e com muitos bons navegadores e boas frotas. Se bem que o poder de Veneza fosse ponderável, o grande poder decisivo era de Felipe II.

Os historiadores reconhecem — mesmo aqueles que admiram Felipe II, e têm muitas razões para isso; eu sou um admirador dele —, entretanto, em Felipe II um homem extraordinariamente indeciso. Quando precisava resolver alguma questão, tinha vaivéns: concordava, depois discordava, mandava embaixadores, pedia prazo, deixava passar o prazo… Não era fácil vencer a indecisão de Felipe II.

São Pio V via o perigo crescer e todo o assunto ser resolvido numa sala do Palácio Real de Madri, ou do Escorial, por Felipe II sozinho, ou com seus auxiliares. Se, em última análise, Felipe II se retraísse, de repente a horda maometana desataria sobre a Itália, e depois atingiria toda a Cristandade; seria o fim da Civilização Cristã no Ocidente. Não seria o fim da Igreja porque Ela é imortal; mas ao que a Igreja poderia ficar reduzida ninguém sabe.

Pástor(1) narra as tratativas de São Pio V com Felipe II, e diz que constituíram para o Papa um verdadeiro martírio, tanto teve ele que pedir ao Rei de Espanha. Felipe II fazia exigências; São Pio V solicitava apoio para uns e para outros, a fim de atender as exigências financeiras e outras de Felipe II. Afinal conseguia, porém Felipe II queria mais. Depois Felipe II pedia que o Papa mandasse seus navios, mas o Pontífice não os possuía. São Pio V acabou arranjando os navios, e Felipe II já não queria enviar a esquadra dele. Entretanto, apenas os navios da Santa Sé não adiantariam…

É certo que, se não fosse a pressão de São Pio V, não haveria a batalha de Lepanto, porque a Espanha não teria mandado sua esquadra, a qual era o grande contingente decisivo entre as forças navais aliadas. Dessa forma, os historiadores de São Pio V reconhecem que para ele foi, ao pé da letra, um martírio lutar em tais condições; ele foi um verdadeiro herói em aguentar a angústia de tal situação, e ao mesmo tempo combater até o último momento, para conseguir afinal de contas que as tropas saíssem e a batalha se travasse.

Nossa Senhora aparece a São Pio V

Assim compreendemos melhor a razão pela qual houve a famosa aparição a São Pio V, quando ele estava reunido com cardeais, em Roma, tratando de algum assunto. Enquanto a reunião se desenvolvia, em certo momento ele se levantou e rezou um terço pela vitória dos católicos sobre os maometanos, porque ele tinha a noção de que, cedo ou tarde, deveria realizar-se uma grande batalha, a qual seria decisiva para a Cristandade.

Enquanto ele rezava, ou terminada a oração do terço, Nossa Senhora Auxiliadora apareceu-lhe e comunicou-lhe a vitória cristã na batalha de Lepanto. São Pio V, então, foi ao local da sala onde estavam reunidos os cardeais e informou-lhes: “Nós podemos nos tranquilizar. A batalha foi ganha. Eu tive uma revelação neste sentido.”

Naquele tempo não havia rádio, telégrafo ou televisão; e uma notícia dessas levaria um tempo enorme para, desde Lepanto, chegar até Roma. Entretanto, ele a recebeu no próprio dia da vitória. Ou seja, foi uma revelação sobrenatural feita por Nossa Senhora a São Pio V.

Por que a ele? Porque era o chefe da Cristandade, não tem dúvida. Mas também porque São Pio V tinha lutado a propósito dessa guerra e desenvolvido um esforço igual ou maior do que os batalhadores de Lepanto. Foi um verdadeiro herói, como Dom João d’Áustria e os outros grandes guerreiros que venceram em Lepanto.

Muitas vezes as dores morais atormentam mais que as físicas  

Alguém dirá: “Isso, Dr. Plinio, eu não compreendo, porque ele não arriscou a vida, mas ficou comodamente em Roma à espera de que viesse uma notícia. Se ele não arriscou a vida e não combateu, não pode ser herói”.

Este é o ponto, o prisma falso que devemos tirar de nossa cabeça.

Por certo, quem luta com as armas na mão é um herói. Mas a Doutrina Católica jamais admitiu a tese de que esta é a única forma de heroísmo.

O heroísmo não é apenas o ato pelo qual o homem enfrenta o risco de perder a vida ou a integridade física. Mas é a atitude pela qual o homem enfrenta qualquer grande dor ou grande infortúnio. Isso caracteriza o herói.

Há dores morais e dores físicas. E muitas vezes as dores morais atormentam incomparavelmente mais, sendo mais difícil enfrentá-las do que as dores físicas.

Um exemplo da heroicidade que há em enfrentar dores morais é a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual se divide claramente em duas partes: a Agonia e a Paixão propriamente, onde Ele foi preso, torturado e depois crucificado.

Na primeira parte, a Agonia, o Redentor desenvolveu um verdadeiro e perfeito heroísmo, no mais alto sentido da palavra. Porque todos os sofrimentos morais ocasionados pelos pecados, pela ingratidão da Humanidade, pela maldade de que Jesus seria vítima, atingiram tal ponto que Ele pediu a Deus que, se fosse possível, afastasse o cálice. Ele chegou a suar sangue, dentro da perspectiva do que ia acontecer.

Sofrimento moral de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras

A aceitação antecipada do sofrimento, a dor moral que Nosso Senhor teve no Horto das Oliveiras foi um autêntico heroísmo, embora ali não tenha combatido fisicamente contra ninguém. Mas Ele deliberou aceitar o tormento e a morte, apesar da inutilidade de seus sofrimentos para quem não correspondesse à graça e acabasse se perdendo.

Essa deliberação foi heroica. A dor de alma que tal deliberação Lhe causou foi uma dor autêntica, embora Ele fisicamente não estivesse combatendo.

Alguém dirá: “Mas Jesus ofereceu o risco da vida d’Ele; e esse risco é um elemento integrante do heroísmo.”

É verdade; entretanto Nossa Senhora não o ofereceu. N’Ela ninguém tocou. Seu sofrimento foi, de ponta a ponta, moral, sem nenhuma dor física. Ora, Maria Santíssima é chamada, invocada, aclamada pela Igreja como “Regina Martyrum” — Rainha de todos os mártires. Apesar de não ter sofrido fisicamente, ninguém, em toda a História do mundo, padeceu como Nossa Senhora pela Paixão e Morte de seu Filho.

Vemos assim que ter a força de alma para aguentar as decepções, calúnias, frustrações, enfim, tudo quanto o homem pode sofrer na vida, é um verdadeiro heroísmo. É uma tolice imaginar ser herói apenas quem combate de armas na mão.

Quanto a São Pio V, alguém poderia perguntar: “Dr. Plinio, na comodidade da sala do Palácio Pontifício, qual era o heroísmo dele?”

Foi um heroísmo de alma, que consistiu em enfrentar este sofrimento: ter lutado com Felipe II em condições tão difíceis, em vez de entregar os pontos e procurar não ver o perigo iminente. O que ele fez caracteriza o verdadeiro herói.

Confiança heroica

Devemos entender que, na nossa vida de todos os dias, temos ocasiões de praticar verdadeiramente o heroísmo. Inclusive aguentando os quotidianos  “rios chineses”, que nos fazem estar ziguezagueando continuamente em torno de algo que nunca chega ao fim. Isso é heroísmo.

Como foi heroico o profeta Simeão, esperando sempre, até a extrema velhice, para, afinal de contas, ver o Salvador que lhe tinha sido prometido! E Abraão que ofereceu Isaac, o filho da promessa, o qual ele teve na velhice!

Há uma confiança heroica pela qual nunca se desiste de esperar. Essa confiança dói, e a alma fica às vezes como que sangrando, mas a pessoa continua a confiar, dizendo: “A promessa interior, inefável, feita por Nossa Senhora não falhará! Eu confio na palavra d’Ela, cumprirei a minha missão. Vou para a frente. Que Maria Santíssima me ajude!”

 Qual é a palavra de Nossa Senhora? É uma voz da graça, uma apetência que sentimos, a qual nos leva a praticar a virtude e o amor de Deus. É com base nisso que devemos estruturar a nossa confiança.

Uma alma assim tem uma confiança heroica: por isso a oração dessa alma move as montanhas.

Em que consiste o verdadeiro heroísmo

Nossa Senhora só revelou a São Pio V o que tinha acontecido, depois de ele ter rezado um terço. Quer dizer, Ela quis mostrar o quanto Lhe é grato pedirmos tudo quanto precisamos por meio do rosário; por isso, resolveu esperar aquela ocasião para dar-lhe esse enorme galardão.

A Fé heroica move as montanhas.  Fé que crê apesar de todas as aparências em sentido contrário. Não desanima, não volta atrás. Continua a lutar apesar de ter apenas um palito, porque possui o que vale mais do que tudo: um terço na mão.

A nossa principal arma é a oração. E a oração é vitoriosa quando inspirada pela Fé que move as montanhas, segundo a expressão empregada por Nosso Senhor no Evangelho.

Imaginemos um exército católico, que se encontra bloqueado diante de uma montanha cujo túnel foi destruído. Um santo começa a cavar a montanha e milagrosamente a levanta com as mãos. O exército passa e o varão de Deus deixa baixar a montanha, abre o túnel e sai do outro lado. Consideraríamos esse santo um colosso. Um homem que carregou com as duas mãos uma montanha! Oh! Fantástico! Seria admirável. Porém, muito mais bonito é carregar uma montanha com a oração, do que com as duas mãos. Isso fez São Pio V por meio de sua prece.

Percebemos assim como é o verdadeiro heroísmo.

Nós devemos ter apetência de derramar o nosso sangue pela Igreja?

Pode ser que a graça nos dê essa apetência. Será uma coisa esplêndida!

O desejo de verter o sangue pela Igreja é uma vontade de doação total. É magnífico. Não tenho palavras suficientes para encorajá-los. Os mártires tinham esse desejo, e muitos morriam na alegria do sacrifício que faziam. Porém não posso aceitar que se entenda ser essa a única forma de heroísmo; que outras formas de lutar pela Igreja não são verdadeiro e autêntico heroísmo.

Então o que é o heroísmo? É a aceitação enérgica, firme, com espírito de Fé, de qualquer sofrimento extraordinário, seja físico ou moral, que põe em risco a nossa vida ou outros bens.

Heroísmo de um sacerdote que guardou o segredo de confissão

Houve um caso que se contava no Brasil antigo. Um assassino acabava de matar alguém numa igreja, e pediu ao padre que o atendesse em confissão. O sacerdote, vendo que ele estava contrito, deu lhe absolvição e logo depois foi ver no templo — cidadezinha do interior, de manhãzinha, a igreja ainda vazia — quem estava morto. Encontrou um homem apunhalado. O padre começou a tirar o punhal, que estava cravado no corpo da vítima. Entram pessoas na igreja que começam a gritar, dizendo que o sacerdote havia matado aquele homem.

O padre foi processado, condenado, preso, e passou muitos anos na cadeia, tido como um sacrílego, um degradado, um infame. O assassino tinha fugido e o sacerdote aceitou essa pavorosa humilhação, mas não declarou quem era o criminoso.

Uns dez ou quinze anos depois, certo dia o padre vê chegar à cadeia, onde ele cumpria a pena, pessoas tocando música, dando brados de viva ao nome dele.

O que sucedera? O assassino havia morrido e, pouco antes de falecer, tinha confessado que ele era o autor do crime e que o padre era inocente. Então o sacerdote foi absolvido e depois reintegrado no exercício do ministério sacerdotal.

Embora não tenha levado pancadas, esse padre sofreu intensamente. Acho que vários dos que estão aqui presentes prefeririam morrer a passar por isso. Ele foi um autêntico herói.

Heroísmo é a disposição de aguentar qualquer grande sofrimento, por amor a Nossa Senhora. E foi o que São Pio V suportou. Portanto, foi herói.

Compreendamos, então, o valor do heroísmo, ainda quando incruento. Admirando a quem Deus pede o sangue corpóreo na luta pela Igreja e pela Civilização Cristã, devemos entender que a muitos outros Ele pede o sangue da alma.

Quando temos uma grande dor, devemos dizer: “Quero sofrer isto, porque não há outro meio para chegar à finalidade que tenho em vista. Mas eu olho de frente tudo quanto estou sofrendo e meço grão por grão, milímetro por milímetro, todo o sofrimento que preciso aceitar. Está bem, eu aceito. Nossa Senhora me ajude e me dê força. Isto eu quero, porque o resultado vale mais do que eu sou”. Esse é o sofrimento heroico. 

(1) Ludwig von Pastor (1854-1928), historiador alemão, célebre por sua História dos Papas

(Extraído de conferência de 7/10/1975)  (RDP 164, novembro 2011)

 

Como um profeta do Antigo Testamento

São Vicente Ferrer foi grande na Ordem dos Dominicanos como, por exemplo, o foi São Tomás de Aquino em sua esfera própria. Exceção feita dos Apóstolos, provavelmente ninguém excedeu a São Vicente Ferrer como pregador popular.

Ele lutou enormemente para a moralização dos costumes. Pelo poder de sua pregação, sacudia as consciências adormecidas e foi, por excelência, o santo oposto à tibieza. Daí o número colossal de conversões operadas por ele.

Entretanto, por mais numerosas que tenham sido essas conversões, delas não surgiu um movimento organizado para combater a Revolução nascente. Ele converteu muitas almas, mas não a sociedade em seu conjunto. E isso porque os homens de seu tempo não o ouviram tanto quanto deveriam.

Este santo foi o dique levantado pela Providência, mas que a maldade dos homens destruiu. E, na abertura dessa torrente que começa a cair para o abismo, fica de pé a figura grandiosa de São Vicente Ferrer, anunciando as catástrofes que provinham do fato de ele não ter sido ouvido. Exatamente como um profeta do Antigo Testamento, vaticinando desgraças ao povo eleito porque este não dera atenção aos enviados de Deus.

Assim fica ele pairando sobre o firmamento da Igreja, num pórtico que é o fim da Idade Média, e pode ser considerado como o começo da Revolução.

Aí está a imensa figura de São Vicente Ferrer!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/4/1966)

Esvoaça do lado de fora, mas não entra

Certa ocasião, quando São Vicente Ferrer entrava em Barcelona — uma das maiores e mais ilustres cidades de seu tempo —, fizeram-lhe uma recepção tão extraordinária que de todas as janelas pendiam tapeçarias em sua honra, o povo o aclamava e ele caminhava debaixo de um pálio, cujas varas eram carregadas pelos principais da cidade. Então, alguém lhe perguntou, baixinho, ao ouvido:

— Irmão Vicente, e a vaidade?

— Esvoaça do lado de fora, mas não entra — respondeu ele.

A resposta de um orgulhoso seria: “Nem sinto tentação”. E um pusilânime diria: “Pobre de mim, estou inundado de vaidade”.

Este Santo deu a resposta certa: Como homem, posso e estou sendo tentado. Porém, a tentação esvoaça do lado de fora, mas, pela graça de Deus, ela não entra.

De fato, neste vale de lágrimas é normal sermos tentados. A tentação tempera a alma. Quem diz “não” para o demônio sai mais forte, mais pertencente a Nossa Senhora. O servo bom e fiel que foi provado e venceu manifesta a sua fidelidade, faz render na luta os seus talentos, colhe louros e os entrega à sua Senhora.

Somos soldados da Igreja Militante e devemos nos entusiasmar com isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/1/1970)

Santo Isidoro de Sevilha e a virtude nas boas maneiras

A compostura, o modo de andar, a gravidade nos gestos, podem não ser apenas meras atitudes externas, mas o reflexo de uma alma virtuosa. Verdade esta freqüentemente esquecida pelos adeptos desenfreados do estilo “descontraído” e “espontâneo”, porém lembrada de modo persuasivo nas palavras de Santo Isidoro de Sevilha, aqui comentadas por Dr. Plinio.

 

Comemora-se no dia 4 deste mês a festa de Santo Isidoro de Sevilha, Arcebispo, Confessor e Doutor da Igreja. Dele diz o martirológio ter sido insigne pela santidade e doutrina. Engrandeceu toda a Espanha com seu zelo pela fé católica e observância da disciplina eclesiástica. Considerado um dos homens mais doutos de sua época, lutou tenazmente contra os arianos(1). Irmão de São Fulgêncio, Bispo de Cartagena, de Santa Florentina, religiosa e de São Leandro, a quem sucedeu no arcebispado de Sevilha.

Sábios conselhos de um santo

Faço notar, antes de tudo, a beleza encantadora presente numa floração simultânea de santos como se deu na família de Santo Isidoro. Nas Obras escolhidas deste Doutor da Igreja há um capítulo intitulado Lamentações de uma alma pecadora, do qual destacamos o seguinte trecho:

“Em todos os teus atos, em todas as tuas obras, e em todo o seu trato, imita os bons, emula os santos, tem diante de teus olhos o exemplo dos mártires, considera os exemplos dos justos, imitando-os; que o exemplo dos santos e os ensinamentos dos Padres sejam para ti incentivo de virtude. Tem bom espírito, guarda tua boa fama e não a diminuas com nenhuma ação e não a deixes cair em descrédito.

“Demonstra o que professas em teu porte e andar. Haja em tua apresentação a simplicidade; em teu movimento, a pureza; em teu gesto, a gravidade; em teu passo, a honestidade. Que não demonstres o vergonhoso, o lascivo, o petulante, o insolente, o superficial. O gesto do corpo é o sinal da mente. Teu andar, por conseguinte, não represente tua superficialidade, teu passo não ofenda a ti ou a teu próximo. Não te prestes a ser espetáculo dos outros; não permitas que te denigrem; não te unas a pessoas vãs.

“Evita os maus, rechaça os indolentes. Foge das reuniões excessivas com homens, mormente dos que, por sua idade, são mais inclinados aos vícios. Acompanha-te dos bons, deseja sua companhia. Busca o convívio dos bons, junta-te aos santos. Se fores partícipe do seu trato, também o serás de sua virtude. O que caminha com os sábios, será sábio; o que caminha com os estultos, será estulto, pois os semelhantes gostam de reunir-se aos semelhantes. É perigoso viver entre os maus, é pernicioso acompanhar-se daqueles que têm vontade perversa. Tu te nutrirás de sua infâmia se te juntas com os indignos. É melhor sofrer o ódio dos maus que a sua companhia. Assim como muitos benefícios traz consigo o viver com os santos, assim muito mal traz a companhia dos maus, pois aquele que toca um imundo, é por ele contaminado.”

Devemos espelhar o que há de bom em nossa alma

Desse lindo trecho de Santo Isidoro de Sevilha devemos destacar, em primeiro lugar, o aspecto profundamente “ambientes e costumes”(2), quando fala do modo de apresentação do homem, da forma pela qual convém se externar aos olhos dos outros. Toda pessoa precisa compor para si um personagem. Ninguém deve ser inteiramente espontâneo — como pretendem certas pessoas “modernas” — no sentido de que sua presença exterior seja sugerida simplesmente por seus movimentos desalinhados, desataviados, incontrolados.

Em seu modo de ser, de olhar, andar, por seu porte e seu procedimento geral, o homem necessita procurar espelhar aquilo que há de bom em sua alma. Nem sempre as qualidades morais transparecem de maneira natural. Muitas vezes, alguém possui grandes virtudes, mas estas não se refletem no seu exterior se ele não tomar cuidado em manifestá-las e reprimir atos espontâneos que possam dar impressão do contrário.

E quanto aos nossos defeitos de alma, temos obrigação de evitar que transpareçam, não por hipocrisia e vaidade, mas por compostura, respeito aos outros e, sobretudo, a Deus, convictos de que o mal não tem direito de se expor à luz do sol.

Portanto, cada um tem necessidade de compor para si mesmo uma linha de conduta externa, um conjunto de gestos, de frases, de vocabulário, de modos de olhar, de ser, que são expressões autênticas de muitos aspectos de sua alma.

Isto não seria assim se o homem fosse concebido sem pecado original. Porém, tendo havido a queda de Adão, é preciso esse esforço. Por isso, nas civilizações que atingem certo grau de perfeição, ensina-se às pessoas a terem porte, maneiras e a constituírem para si seu próprio personagem. Lembro-me que o inimitável Saint-Simon(3) dizia: “Fulano transpõe os umbrais de uma porta com total inconsequência”. A expressão é muito interessante, porque todo limiar de porta que se ultrapassa, em si tem conseqüência. O umbral é um marco.

Noutra feita, criticando os modos de determinada pessoa, afirmava ele: “Trata-se de um homem a quem não se ensinou a dançar…”. As danças daquela época — que nada têm de comum com as de hoje — eram de alta compostura, superior finura de porte e apresentação, e proporcionavam ao indivíduo a arte de ter boas maneiras em tudo. Compreende-se, assim, o pensamento, a doutrina que estavam subjacentes a essas frases de Saint-Simon.

Incentivo à prática da virtude

Afirma Santo Isidoro: “Demonstra o que professas — quer dizer, o que pensas, o que és — em teu porte e andar”. Como se pode obter isso sem estudar uma postura e modo de caminhar adequados? Essa recomendação indica ser necessário o controle de si mesmo e que há certas maneiras de andar e de se portar significativas de algo bom e outras de alguma coisa má. Portanto, tal conselho nada tem de mundanismo. Pelo contrário, é um incentivo à prática da virtude.

Continua o Santo: “Seja tua apresentação a simplicidade”.

Simplicidade não é o mesmo que simploriedade. Aquela é o modo de ser do indivíduo não complicado nem afetado, sem ademanes e requebros inúteis. O homem simples procura ser útil, e age de maneira ao mesmo tempo intencional, produto da educação, e autêntica.

O gesto do corpo é o sinal da mente

“Em teu movimento, a pureza”.

Faço notar a beleza desta ideia! Os gestos da pessoa pura são diferentes dos da impura. Por exemplo, no volver a cabeça para atender alguém e perguntar: “O que é?”, pode-se perceber às vezes tratar-se de uma alma casta, ou então o contrário. Vê-se, pois, como é profundo o pensamento de Santo Isidoro.

Ele continua: “Em teu passo haja honestidade”. Ser honesto não significa tão-somente — como se julga hoje — não furtar. Em latim, “honestus” quer dizer composto, apresentando certa beleza, distinção e elegância.

“Que não demonstres o vergonhoso, o lascivo, o petulante, o insolente, o superficial. O gesto do corpo é o sinal da mente”.

Este é um magnífico princípio que deve nortear a vida do católico. E o Santo acrescenta: “Teu andar, por conseguinte, não represente tua superficialidade, teu passo não ofenda a ti ou a teu próximo. Não prestes a ser espetáculo dos outros, não permitas que te denigrem”.

Ouçamos as recomendações de Santo Isidoro

Em seguida, Santo Isidoro fala das boas e más companhias. Tais conselhos são muito importantes para combater certo erro moderno, segundo o qual se deve fazer apostolado introduzindo-se, sem nenhuma ou com pouca prevenção, no meio dos maus. Quando alguém se infiltra entre os ímpios para evangelizar, expõe-se ao risco de se tornar mau, assim como o convívio com os virtuosos pode tornar bom quem era ruim.

Isso se aplica de modo particular aos movimentos como o nosso, dedicados a atrair as almas para Nosso Senhor Jesus Cristo e a Igreja. Qualquer conselheiro Acácio(4) poderia dizer: “Se vocês frequentassem os ambientes mundanos, poderiam ter mais relações sociais e assim fazer maior bem”.

Ora, isso todo mundo sabe. Agir assim seria bom em tese, caso não houvesse inconvenientes: um deles, a fuligem inoculada nas almas de quem voluntariamente vive nos meios onde se ofende a Deus…

Temos aqui, então, comentadas algumas preciosas recomendações de Santo Isidoro de Sevilha, as quais devemos não apenas ouvir, mas praticar, adotando-as no nosso existir quotidiano como verdadeiros exercícios de piedade que nos façam crescer em perfeição, no amor a Deus, a Nossa Senhora e ao próximo.

 

1) Sectários da heresia difundida por Ario (280-336), padre de Alexandria (Egito), que negava a natureza divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.
2) Dr. Plinio fez inúmeras exposições mostrando a importância dos ambientes e costumes para a formação ou deformação das almas. O aspecto “ambientes e costumes” de um assunto consiste em considerá-lo sob esse ângulo.
3) Duque de Saint-Simon (1675-1755), escritor francês que, em suas “Memórias”, descreveu com penetração, finura e charme a vida de corte em Versailles, na época de Luís XIV.
4) Personagem de uma obra do escritor português Eça de Queiroz (1845-1900). O conselheiro Acácio dizia, de modo sentencioso, coisas evidentes.

Os fulgores da Ressurreição

Contemplando os esplendores e mistérios que envolvem a Páscoa da Ressurreição, Dr. Plinio tece interessantes hipóteses e comentários sobre o significado dos acontecimentos narrados no Evangelho.

 

Nas cerimônias litúrgicas do tríduo pascal, a Igreja sempre soube impregnar de tristeza a atmosfera quando se tratava de ficar triste; e depois marcar de alegria os momentos em que se deveria estar alegre.

Pudemos ver, por exemplo, essa nota de tristeza, sobretudo, ontem: a cerimônia da Sexta-Feira Santa estava pungente!

Agora, o júbilo. O “Gloria in Excelsis Deo” dá-nos a impressão de ser o reflexo da alegria de quando Nosso Senhor ressuscitou!

A primeira visita ao Santo Sepulcro

O Evangelho lido hoje narra que Santa Maria Madalena e a outra Maria encontraram o sepulcro aberto e um anjo sobre a lápide que antes vedava o túmulo. O anjo rolou a pedra e sentou-se nela.

Por ser o seu rosto como o raio e a sua vestimenta como a neve, ele incutiu grande terror àqueles guardas que tomavam conta do sepulcro, e que então fugiram. Duas simples mulheres não tiveram medo, e ele falou com elas familiarmente.

Tem-se a impressão de que elas estavam muito intimidadas, porém não medrosas, o que é uma coisa diferente.

Outra manifestação da intimidação delas é o fato de ter sido necessário o anjo dizer-lhes que entrassem no sepulcro. Seria normal elas penetrarem ali, vamos dizer, com as reverências devidas a um lugar sacrossanto, fazendo assim a primeira visita ao Santo Sepulcro! Uma honra, aliás, enorme! Todas as gerações dos séculos posteriores visitaram o Santo Sepulcro. Elas foram as duas primeiras. É formidável! Como honra, é algo extraordinário!

Elas entraram e viram que Nosso Senhor não se encontrava lá. Estava tudo explicado.

Um acontecimento pleno de simbolismos

Agora, eu teria muita vontade de saber qual era o sentido simbólico do rosto como fulgor e das roupas como neve.

Evidentemente o fulgor indica o poder de Deus. Mas indicará de que maneira? Será um fulgor de vitória, de festa triunfal em que não se está mais pensando no inimigo, ou desse tipo de celebração de triunfo na qual se tem a sensação de estar calcando aos pés o inimigo? É uma pergunta. Qual seria o feitio desse fulgor?

Se soubéssemos como os exegetas consideram esse fulgor, talvez pudéssemos ter aí um elemento para formar um juízo sobre isso.

As roupas como a neve. Percebe-se que era neve refulgindo ao clarão desse fulgor. A neve é a pureza do espírito. Um puro espírito porque não tem carne e, além disso, é um espírito puro, ou seja, é santo! Compreende‑se bem que a túnica — seria provavelmente uma túnica — era como a neve. Mas quais são os outros significados dessa neve?

Por que ele não pairava no ar ou não estava de pé sobre a pedra, mas sentado?

Cada uma dessas coisas tem um significado. É claro que nós teríamos vontade de conhecê-los. Aumentaria nossa alegria pela Páscoa da Ressurreição.

Por que um anjo anunciou a Ressurreição?

Se o objetivo da manifestação angélica era dar uma prova apologética da Ressurreição, debaixo de certo ponto de vista, essa prova poderia não ser muito concludente. Sobretudo para os homens do século XX, cuja mentalidade os levaria a dizer:

“As duas foram caminhando para a sepultura cada vez mais compenetradas. Quando chegaram lá, estavam no auge da excitação. Então julgaram ver um anjo. E os guardas estavam fora porque tinham saído para — em linguagem nossa — tomar um cafezinho. A sepultura estaria aberta? Quem pode garantir? Qual é a prova que se tem disso? Não seria mais interessante haver um magote de dez homens importantes como, por exemplo, Lázaro, José de Arimateia, Nicodemos que dissessem terem visto? Por que um anjo?”

Eu julgaria uma objeção completamente inválida, mas é uma pergunta que se poderia fazer.

A essa pergunta devemos dar a seguinte resposta:

Deus, nas suas manifestações, não visa principalmente àqueles que não creem, mas aos que creem. Um episódio como esse — que foi a primeira manifestação da Ressurreição, depois vieram muitas outras — seria calculado conforme a conveniência da piedade e do aumento no fervor do punhado de fiéis reunidos em torno de Nossa Senhora. Era a esses que se tratava de afervorar, de alimentar, de preparar para Pentecostes, que seria o próximo grande lance.

Sendo assim, compreende-se que fosse um anjo e não um homem. Porque não existe proporção entre dez homens e um anjo. Ademais, poderia haver entre eles pequenos desacordos a propósito de um ponto ou outro, e até mesmo algum que, ao contar o fato, ficasse vaidoso…

Poder-se-ia, inclusive, levantar outra objeção: Nós não acreditamos muito nesses homens que estão servindo de testemunhas, porque nenhum homem estaria à altura de testemunhar tal acontecimento; só um puro espírito. Parece-me, portanto, inteiramente concludente e apropriado o aparecimento de um anjo para anunciar a Ressurreição.

A honra de remover a lápide do Sepulcro

Em uma de nossas comissões de estudo estamos lendo textos de São Dionísio Areopagita que tratam sobre a hierarquia dos Anjos. Segundo ele, dos nove coros angélicos existentes, o menos elevado é o dos simples Anjos.

A palavra “anjo” significa “emissário”. E esses são os emissários. Um anjo de uma categoria mais elevada é um Arcanjo. Os outros têm categorias mais altas: Principados, Virtudes, Potestades, Dominações, Tronos, Querubins e Serafins.

E São Dionísio Areopagita dizia que embora a categoria dos Anjos seja a menos elevada, ela completa a hierarquia angélica. De tal maneira que esta ficaria cambaia como um vaso do qual se serrasse a base, caso não houvesse o coro dos Anjos.

Quer dizer, a categoria menos alta é tão preciosa que constitui um elemento sem o qual toda aquela ordenação que está acima ficaria desajustada. É, pois, um importantíssimo papel. Por que Deus teria enviado um simples anjo e não um serafim para realizar uma missão como essa?

Provavelmente porque remover uma pedra não é tarefa para um príncipe. E podemos imaginar esses anjos menos elevados fazendo uma humilde e razoável súplica diante de Deus para ser dada a eles, e não a uma categoria mais elevada, a honra de mover a pedra do Santo Sepulcro:

“Senhor, Vós que nos mandais exercer missões que tocam mais diretamente na matéria, desta vez que se trata de operar a mais nobre remoção da matéria, Vós nos tirais essa ocasião única?! Ela não está na natureza de nosso ofício?”

A qualquer pessoa pareceria um argumento difícil de responder…

Duas maneiras de imaginar a Ressurreição

Mas considerando a Ressurreição em si, poderíamos imaginá-la de duas formas:

Em certo momento, Nosso Senhor começaria a dar sinais de vida. Seu Corpo sagrado se tornaria de uma luminosidade extraordinária, e no instante em que sua Alma o reassumisse, sua primeira atitude seria uma glorificação do Padre Eterno e um ato de amor ao Espírito Santo. E levantando-Se com uma majestade indizível, caminharia dentro do sepulcro transformado, de repente, numa catedral feita de luzes, cânticos e glória.

Chegando junto à porta do túmulo, o anjo rolaria a pedra. É-nos legítimo imaginar que no interstício entre a Ressurreição e o encontro com Santa Maria Madalena, em virtude do deslocamento rapidíssimo dos corpos gloriosos, Ele tenha estado no Cenáculo e se manifestado a Nossa Senhora. De maneira a ter sido Ela a primeira pessoa a contemplar seu divino Filho ressuscitado. Logo depois, Jesus teria Se apresentado a Santa Maria Madalena, conforme nos descreve o Evangelho.

Essa seria uma modalidade de conceber a Ressurreição.

Poder-se-ia figurá-la de outro modo, conforme a piedade e o feitio de cada pessoa. Por exemplo, em meio às trevas densas, de repente reluz algo à maneira de um corisco sublime! A montanha, como que, racha e Nosso Senhor se levanta como um raio. E num instante já está junto à porta, um anjo rola a lápide e Ele aparece diante dos olhos estupefatos. Acabou!

A Páscoa: uma festa triunfal

Em todo caso, a Páscoa não é uma celebração qualquer, é uma festa de triunfo. Portanto, não pode ser considerada, como muitos supõem, apenas como uma festa caseira para despertar a bonomia familiar, distribuindo ovos e todos se abraçando. Tudo isso é muito legítimo, acho um encanto, mas a Ressurreição tem qualquer coisa de um estouro, de uma explosão magnífica!

Sem dúvida, pode-se imaginar a Ressurreição acompanhada pelo maior e mais majestoso dos raios desferidos numa aurora.

Vários quadros representam o divino Ressuscitado assim, saindo com o braço direito levantado e tendo os dedos em posição de quem ensina ou abençoa, mas com um ar de desafio vitorioso: “Já atravessei!” Isso deveria causar no Inferno o terror diante da inutilidade de tudo quanto fizeram contra Ele.

Aí está um pequeno comentário para participarmos juntos das alegrias pascais.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 18/4/1981 e 21/4/1984)

Santa Maria Egipcíaca, exemplo de contrição

Após levar uma vida pecaminosa, aos 29 anos Santa Maria Egipcíaca foi tocada pela graça de um modo inusitado… Então, converteu-se e viveu no isolamento, sujeitando-se à mais austera penitência.

 

Tenho em mãos um texto da Légende Dorée, de Jaques de Voragine, sobre Santa Maria Egipcíaca, que passarei a ler e comentar. Há quem pergunte se tal fonte é histórica. Ora, o mundo necessita da existência de coisas dessas, as quais realmente alimentam a alma, sem indagações históricas nem outras preocupações dessa natureza, pela beleza intrínseca que elas contêm.

Santa Maria Egipcíaca, também chamada a Pecadora, durante 47 anos levou no deserto uma vida de arrependimento e privações. Sua história foi por ela mesma contada ao Abade Zózimo, que certo dia a encontrou.

Ao pedir o religioso que lhe dissesse quem era e de onde vinha, aquela estranha figura de mulher, negra e curtida pelo sol, respondeu:

“Pai, perdoai-me, mas se vos revelar quem sou, fugireis como à vista de uma serpente e vossos ouvidos serão manchados por minhas palavras e vós sereis empestado por minha impureza. Eu me chamo Maria e nasci no Egito. Vim para Alexandria com 12 anos de idade, e durante 17 anos aí levei má vida. Mas um dia, como alguns habitantes dessa cidade fariam uma peregrinação para adorar a Santa Cruz, em Jerusalém, pedi aos marinheiros que me deixassem embarcar também.

“E assim se fez a viagem. Mas eis que em Jerusalém, como eu me apresentasse com os outros peregrinos na porta da igreja, senti-me repelida por uma força invisível que não me permitiu entrar no templo. Vinte vezes aproximei-me das portas e vinte vezes essa força invisível me reteve, enquanto que todos os outros entravam livremente, sem que nada os impedisse. De tal sorte que, voltando ao albergue, compreendi que aquilo era uma consequência da minha vida criminosa. Então comecei a ferir-me, a verter lágrimas amargas, a suspirar do mais profundo do meu coração.

Depois, vendo na parede uma imagem da Bem-aventurada Virgem Maria, supliquei-Lhe que me obtivesse o perdão dos pecados e a permissão de entrar na igreja para adorar a Santa Cruz. Em troca, prometi renunciar ao mundo e viver na castidade.

“Essa oração me deu confiança e de novo me apresentei às portas da igreja; então pude entrar sem nenhum impedimento. E enquanto adorava piedosamente a Santa Cruz, um desconhecido deu-me três moedas, com as quais comprei três pães. E ouvi uma voz que dizia para atravessar o Jordão e vir para este deserto, onde vivo há 46 anos, sem jamais ter visto figura humana, alimentando-me dos três pães que trouxe comigo, os quais, tendo-se tornado duros como pedra, ainda são suficientes para minha alimentação. Quanto aos meus vestidos, há muito que se fizeram em pedaços, e durante os primeiros 17 anos de minha permanência no deserto fui atormentada por tentações. Mas no momento, pela graça de Deus, eu as venci inteiramente. Eis minha história. Eu a contei para que peçais a Deus por mim”.

Então, o ancião, prostrando-se em terra, bendisse ao Senhor na pessoa de sua serva. E esta lhe disse: “Ouvi o que vou pedir-vos: no dia da Páscoa, atravessai novamente o Jordão, trazendo convosco uma hóstia consagrada. Eu esperarei na margem e receberei de vossas mãos o Corpo do Senhor, porque não mais comunguei, desde que aqui cheguei”.

O ancião voltou ao seu mosteiro e no ano seguinte, estando próxima a festa da Páscoa, voltou ao Jordão levando consigo uma hóstia consagrada. Eis que percebeu a mulher, de pé, na outra margem e, tendo feito o sinal da Cruz sobre as águas, ela andou sobre as mesmas e assim chegou até o ancião. Este, maravilhado, quis se prostrar humildemente a seus pés, mas ela lhe disse: “Meu pai, guardai-vos de vos prosternar diante de mim, sobretudo agora que trazeis o Corpo de Cristo. Mas dignai-vos voltar ainda o ano que vem”.

No ano seguinte, Zózimo não a encontrou na margem. Ele atravessou o rio e se dirigiu ao local onde a vira pela primeira vez. E lá a encontrou morta, estendida sobre a areia. Então, ele chorou amargamente e não ousava tocar seus restos. E, enquanto pensava como enterrá-la, leu uma inscrição sobre a areia: “Zózimo, enterrai meu corpo, dê minhas cinzas à terra e pedi por mim ao Senhor, pois fui liberta do mundo no segundo dia de abril”. Assim, o ancião abriu-lhe uma cova, sendo para isso milagrosamente auxiliado por um leão, que aí apareceu. E o ancião voltou ao mosteiro glorificando a Deus.

Pulcritude do contraste entre o pecado e a penitência

A Légende Dorée está inteira nessa narração. Podemos analisá-la ponto por ponto. Preliminarmente, consideremos a pulcritude do contraste aqui estabelecido entre o pecado e a penitência. Ela era uma pecadora péssima, uma mulher que durante 17 anos tinha vivido na pior das situações. Mas de repente, ela é tocada por vias imprevisíveis da Providência, e chega até o momento da conversão. Sabendo que haveria uma festa em Jerusalém, ela viaja por curiosidade e chega até à igreja; então à noção do pecado — do pecado escancarado e com sua hediondez — opõe-se a visão de um Deus três vezes santo e que tem horror ao pecado. Por vinte vezes, ela procura entrar na igreja, mas uma força invisível a impede: é Deus, infinitamente puro, infinitamente santo, que tendo horror ao pecado não quer a presença do pecador maculado em seu santuário.

Entretanto, há ao mesmo tempo a graça e a misericórdia de Deus. Ela volta para a hospedaria e começa então a cair em si, na solidão de seu quarto. Ela pensa:

“O que fiz eu? Ah! o meu crime é o meu pecado: “peccatum meum contra me est semper”, eu pequei contra Ti só e o meu pecado está continuamente de pé, increpando-me e censurando-me. Então percebo o mal que fiz; a cólera do Céu me aparta do resto das criaturas. E enquanto as portas do santuário estão abertas misericordiosamente para todo mundo, a mim Deus rejeita. Como eu caí baixo!”

Notamos como isso é teológico e explica o grande arrependimento e a grande penitência que vieram depois.

Providencialmente há uma efígie de Nossa Senhora em seu quarto; Maria Egipcíaca encontra então a Mãe de Misericórdia e a Porta do Céu, reza para obter o perdão e é convidada para uma penitência extraordinária: ela se afasta completamente dos homens e vai fazer uma dessas penitências de assustar. O pecado de assustar recebeu uma prevenção ou advertência de assustar, que é um convite admirável e de deslumbrar para uma penitência de assustar: ela atravessa o rio Jordão e se coloca num deserto, onde passa 47 anos sem ver ninguém. Então sua beleza de pecadora se esfuma no sol; ela está torrada, preta, causticada, endurecida, os seus trajes caem como andrajos. Ela está continuamente a rezar, numa solidão cheia de amor de Deus.

Para receber a Comunhão, Santa Maria Egipcíaca caminha sobre as águas

Numa primeira fase, Maria teve tentações, mas depois as tentações se retiram e ela fica fazendo uma penitência que é mais a penitência da inocência do que a do pecado. Porque ela se colocou num nível tão alto de virtude, que o perdão é inteiro. Quer dizer, faz uma penitência que já não é só por ela, mas naturalmente por todos os pecadores. E Deus queria que, antes de morrer, ela recebesse essa suprema prova da reconciliação: a Comunhão.

Então acontece que um santo varão — varão como era comum naquele tempo: de barba branca, todo vestido de preto, com um capuz comprido e pontudo, usando um bordão — vai andando pelo deserto, parando para abençoar uma coisa, exprobar um crime, condenar um tirano, fazer um milagre, curando um doente, rezar diante de um ícone. E depois continua a caminhar sozinho pelas estradas. Eu só encontrei, em nossa época, algo de semelhante na vida do Bem-aventurado Charbel Makhlouf, cuja leitura recomendo. É admirável, toda feita desse encanto primitivo, magnífica!

Então, o santo varão chega até o outro lado do deserto e a vê; pergunta quem ela era, e sua resposta é bem no tom sentencioso e grave daquele tempo: “Pai, perdoai-me, mas se vos revelar quem sou, fugireis como à vista de uma serpente, vossos ouvidos serão manchados por minhas palavras e vós sereis empestado por minha impureza. Eu me chamo Maria e nasci no Egito”.

“Eu me chamo Maria e nasci no Egito”. Essa introdução da biografia dela tem uma grandeza e um senso literário verdadeiramente extraordinários.

Santa Maria Egipcíaca está de tal maneira elevada no amor de Deus que, para receber a Comunhão, ela caminha sobre as águas. Deus perdoou tudo, esqueceu tudo, Se fez completamente amor para ela, a qual vive num conúbio com a graça divina o mais íntimo que se possa imaginar.

No ano seguinte, o santo varão volta e ela não está à margem do rio. Ele atravessa o Jordão e encontra o corpo dela estirado no chão; sobre a areia ela escreveu algumas palavras, recomendando-lhe que a enterrasse.

Para os funerais dessa espécie de anjo do deserto, vem o rei do deserto. Quer dizer, é altamente poético e arquitetônico que também um leão ali apareça. O leão, que domina o deserto, é a glória e o brilho do deserto, vem para ajudar os funerais. O santo varão velho e o leão cavam a sepultura, na qual ela é colocada; mais nada. Resta apenas essa história de Santa Maria Egipcíaca, um “apenas” que é uma página de ouro dentro da Légende Dorée. Notamos que maravilha se pode fazer através de uma narração de um grande acontecimento referente a uma grande alma.

Contrição e amor de Deus

Vemos também aí a beleza da contrição, a respeito da qual nossa época faz uma ideia completamente falseada, julgando que a contrição nos vem exclusivamente do temor de Deus, o qual nos afasta do seu amor; de onde a contrição é, debaixo de certo ponto de vista, o contrário do amor de Deus.

Nada mais mal pensado do que isso. Em primeiro lugar, porque o autêntico temor de Deus é um dom do Espírito Santo. E o que procede do Espírito Santo não pode nos afastar do amor de Deus; pelo contrário, só nos une a Ele. Quem tem, portanto, verdadeiramente a graça de um saliente temor de Deus encontra nele um meio para subir ao amor. E notamos pela narração como, pelo arrependimento de seu pecado, Santa Maria Egipcíaca chegou até o auge do amor.

Além disso, precisamos considerar que a atrição é provocada pelo temor, o qual é, aliás, um sentimento salutar. Mas é o amor de Deus que provoca a contrição. E uma pessoa pode passar a vida inteira contrita pelo pecado que cometeu, até crescendo em contrição e, ao mesmo tempo, em amor e em sagrada intimidade com Deus, Nosso Senhor.

Por exemplo, São Pedro. Diz-se que até velho ainda chorava o pecado cometido ao negar Nosso Senhor, e que lágrimas percorriam sua face de maneira a abrir nela dois sulcos. Por quê? Com certeza, porque o olhar de Jesus permaneceu diante de seus olhos a vida inteira. E ele foi crescendo no amor a Nosso Senhor, na consideração daquele olhar, até extremos inimagináveis. Era a contrição que aumentava o amor, e o amor que aumentava a contrição e a intimidade com o Redentor.

Quer dizer, essas coisas se entrelaçam. E a vida de Santa Maria Egipcíaca não nos deve causar terror, mas enlevo pela figura patriarcal e primitiva dessa grande penitente. A Igreja é mais ou menos como um dia luminoso: o sol tem seu colorido da aurora e de todas as horas do dia. E todas essas cores são bonitas. A Esposa de Cristo possui um colorido para cada era de sua vida. E aqui é o colorido da Igreja primitiva: das grandes mortificações, das grandes penitências, dos grandes pecados, das grandes contrições, das inocências virginais, da austeridade requintada. É o velho som de um sino que nos vem do passado, lembrando-nos exatamente aquela velha gravidade, aquela seriedade da Igreja primitiva, tão capaz de empolgar as almas que verdadeiramente procuram amar a Nossa Senhora.

Assim, pensar em Santa Maria Egipcíaca é um refrigério para nós. E devemos pedir a ela que nos dê uma contrição verdadeira de nossos pecados, mas uma contrição na paz, sem escrúpulos; uma contrição verdadeiramente santa, que aproxime nossas almas de Nossa Senhora.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 31/3/1967)