Escravidão de amor, desponsório místico e troca de vontades

Cada pessoa deve procurar levar uma vida de tal modo unida a Nosso Senhor que seus pensamentos, olhares e gestos, por mínimos que sejam, se conformem à mentalidade do Redentor.

 

Pedem-me para comentar a frase de São Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Embora nunca tenha lido comentários de exegetas sobre isso, vou dar a impressão que me causa este texto tão conhecido.

Cada um deve atingir um tipo de santidade para imitar perfeitamente Nosso Senhor

Nosso Senhor Jesus Cristo tem a respeito de cada um de nós um desígnio enormemente abrangente. Um modo superficial de considerar o texto de São Paulo seria afirmar que “não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim” significa realizar os desígnios de Nosso Senhor a meu respeito e, portanto, devo abandonar meu próprio egoísmo e fazer a vontade d’Ele. Nisto está a vida d’Ele em mim.

Tudo isso é correto, mas é uma concepção muito limitada a respeito dessa vida d’Ele em cada um de nós. A meu ver, chega-se ao fundo do assunto considerando o seguinte:

O desígnio de Nosso Senhor para cada homem não é apenas que um, por exemplo, seja religioso; outro chegue a uma alta posição num governo e faça um decreto estabelecendo a união entre a Igreja e o Estado, em termos muito convenientes para a Igreja; e que outro funde uma escola, uma Universidade Católica… Sem dúvida, isso tudo faz parte dos desígnios da Providência, mas nunca, absolutamente nunca, os desígnios divinos sobre um homem se cifram exclusivamente naquilo que se poderia chamar a obra da vida dele.

Deus tem o desígnio de que sejamos inteiramente configurados em nossa alma, de maneira a realizar um tipo de santidade, pela qual, sendo cada qual o que é, imite a Ele perfeitamente, dentro desta via que procede das peculiaridades de cada um. E seja, por assim dizer, uma reedição d’Ele. É isso que Ele quer.

A personalidade de Deus é imensamente rica. E todos os homens que Ele criou, desde Adão até os últimos que vão existir, constituem uma série dentro da qual cada um deve imitar a personalidade d’Ele num ponto, como se Ele não tivesse sido senão aquilo. Assim todos os homens repetem de algum modo, num grau maior ou menor, Nosso Senhor Jesus Cristo, à maneira de uma coleção. De maneira que, visto o conjunto, dê uma superimagem de Nosso Senhor que apresente no Céu uma noção global d’Ele. De modo que Ele, olhando a humanidade toda glorificada no Céu, Se veja representado. E nessa representação encontre sua glória.

Esse é um pensamento que tem seu fundamento no fato de Deus ter feito a Criação ao longo de seis dias, e no sétimo descansou. E ao contemplar os seres criados, viu que cada coisa era boa, mas o conjunto era melhor (cf. Gn 1, 31).

O modo de fazer todas as coisas envolve uma perfeição espiritual

Assim também a Nosso Senhor Jesus Cristo, enquanto Homem-Deus, vai ser dada essa glória de que todos os homens no Céu, no seu conjunto, representarão a Ele, como a Criação representa a Deus. Cada bem-aventurado no Céu O representa bem, mas o conjunto representa melhor, e proporciona uma noção global d’Ele que nenhum homem deu; exceção feita da Santíssima Virgem. Porém Ela também faz parte do conjunto que representa a Ele, embora seja a parte mais esplêndida, mais gloriosa — de longe! — entre as meras criaturas. A tal ponto que sem Nossa Senhora tudo isso não valeria nada; mas com Ela vale inimaginavelmente.

Então, Ele quer que eu toque toda a minha vida — mas a minha vida abrange meus olhares, meus pensamentos, meus gestos, por mínimos que sejam, e que, no fundo, exprimem algo de minha mentalidade. Ele quer que seja como a mentalidade d’Ele, vista nesse ângulo minúsculo que se chama “a individualidade de Plinio Corrêa de Oliveira”. Mas isso é assim com todos aqueles que andam pela rua, inclusive os que estão se perdendo.

Por exemplo, eu poderia agora querer um copo d’água. Do ponto de vista moral, é inteiramente indiferente que eu beba ou não a água. Mas se eu bebê-la agora de modo oportuno, temperante, agirei de acordo com Ele; se eu ingerir essa água de um modo inoportuno, intemperante, por uma razão sem fundamento, embora o beber água seja neutro, a ocasião escolhida por mim para ingeri-la envolve uma razão moral.

O modo de fazer todas as coisas neutras envolve uma perfeição espiritual, com vistas a fazer a vontade d’Ele e ser a cópia d’Ele em tudo, mas aquela cópia que só eu serei, e mais ninguém. Se eu ratear, ninguém mais fará; e se fizer bem feito, estará bem feito por toda a eternidade.

Isso envolve a nossa vida inteira, em dois sentidos: toma-nos por inteiro, de um lado; e, de outro lado, é por uma vida procedida d’Ele que somos capazes disso. Porque Ele vê que pela nossa mera natureza humana, em consequência do pecado original, somos incapazes de alcançar essa perfeição. Por esta razão recebemos d’Ele a vida da graça, dom criado por Ele, que é uma participação na sua vida divina. Recebemos essa participação e passamos a viver com uma categoria por onde participamos da vida do próprio Deus, o que nos torna capazes de realizar o plano d’Ele a nosso respeito.  

Portanto, se eu considero minha vida assim e me entrego a isso, posso dizer que já não sou eu que vivo; nesse sentido de que não faço os meus planos, senão os planos de Deus.

É Ele que vive, mas de um modo singular, porque não sou como uma marionete nas mãos de Deus. Eu entendo, quero e sinto por iniciativa minha, proveniente da graça d’Ele, como Ele queria que eu fizesse. Ou seja, é um penetrar fundo, como mais profundo não se pode penetrar.

Belezas que dão realidades extraordinárias

Assim, compreendemos também os segredos da misericórdia de Deus, porque entendemos bem o amor que Ele tem a cada um de nós, para chegarmos a tal ponto que estejamos unidos com Ele. Quer dizer, ao sermos criados Deus teve o plano de que tal perfeição d’Ele, que nunca ninguém teria conhecido — ao menos entre os homens e exceção feita, naturalmente, de Nossa Senhora —, brilhasse em nós; é como se Ele tirasse de dentro de Si mesmo um raio de luz e o desse para nós. E é um dos como que infinitos modos de ser d’Ele. Ou seja, fazendo-nos isso, não poderia deixar de nos amar infinitamente, porque Ele é infinito.

O amor que o Criador tem a nós é um reflexo do amor que Ele tem a Si próprio. Compreende-se melhor também por que Nosso Senhor morreu por nós: para termos a graça e podermos realizar esse plano.

Estou apenas coligando dados correntes da Doutrina Católica. Mas esses dados conduzem a um plano suntuoso, fabuloso! E de um gênero de união como não se pode imaginar que exista, nem d’Ele conosco, nem entre nós. Porque como duas quantidades ligadas a uma terceira estão ligadas entre si, vê-se como o nexo existente entre todos os filhos da luz é uma coisa seríssima, gravíssima, dulcíssima.

Há uma realidade mais bonita ainda, que é a seguinte: De fato, nós constituímos assim um todo chamado Humanidade, que Deus honrou unindo a natureza humana hipostaticamente a Ele. Mas essa Humanidade é apenas uma unidade do universo, porque nós fazemos parte da Criação. E na Criação existem os Anjos; se bem que a união hipostática não se tenha dado neles, os Anjos por sua natureza são muito superiores a nós, são puros espíritos. E os Anjos deveriam realizar um universo assim também. Mas eles não realizaram porque muitos deles apostataram, e se tornaram demônios.

Os planos se superpõem, de maneira que nessa sociedade dos homens, tomados os que se salvem e entrem para o Céu, eles preenchem o lugar dos anjos decaídos. E nós ao mesmo tempo formamos com os Anjos um todo à parte. É de uma grandeza desconcertante! E isso, mais o Céu empíreo, mais a Criação que vai continuar — Sol, Lua, tudo isso vai continuar — forma então o todo dos todos, no pináculo do qual está Nossa Senhora, que é mera criatura. E acima d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Compreende-se nesta perspectiva a Encarnação, o “Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14); tudo isso forma, por sua vez, belezas que dão realidades extraordinárias, feitas para serem meditadas por cada um de nós.  

Às vezes nos regalamos, por exemplo, com um dito espirituoso francês. Entretanto muito mais são de regalar as coisas que Deus diz e faz. No Céu nós vamos contemplar isso eternamente.

E pensar que se põe em risco toda esta maravilha, por um mau olhar na rua… Cai-se morto na hora e vai-se para o Inferno. Quer dizer, o que nós nos expomos a perder, a qualquer momento, é uma coisa inimaginável! Somos uns doidos, uns cretinos, nem sei dizer o que somos, quando nos arriscamos a perder isso!

Desponsório místico que se realiza na alma de cada um que se entrega a Nosso Senhor

Há, entretanto, outra realidade a considerar que constitui um universo dentro desse universo.

Está na intenção de Nosso Senhor que certas perfeições d’Ele sejam especialmente representadas por outras criaturas; e para que essas perfeições brilhem bem, Ele quer uma família de almas. Então, às vezes, é uma nação; outras vezes, uma área de civilização; às vezes uma Ordem religiosa. São famílias de almas chamadas a representar de algum modo uma determinada perfeição ou uma constelação de perfeições d’Ele.

De todas essas representações, a família religiosa é a que tem mais riqueza de representação dos que as outras, porque a natureza do vínculo criado por ela é muito mais forte do que nas outras.

Entre os indivíduos de uma mesma pátria, por exemplo, há aquela vinculação natural baseada em tradições e laços históricos. Nesse conjunto natural há também os elementos sobrenaturais, que levam a constituir-se uma grande nação católica a qual pode formar um corpo místico dentro do Corpo Místico.

A doutrina do Corpo Místico chega a tal ponto que, por exemplo, eu vi certa vez uma referência antiga, da Idade Média, ao “corpo místico da Universidade de Paris”. A Universidade de Paris naquele tempo era uma espécie de crisol de ortodoxia muito especial, que a Santa Sé tomava muito em consideração.

Assim também uma família religiosa constitui um “corpo místico”, no qual o Fundador deve representar de modo mais excelente as qualidades que o corpo todo tem que espelhar. Mas cada um dos membros daquela família, chamado a espelhar determinada perfeição de Nosso Senhor, reflete essa qualidade enquanto existente no Fundador, e é uma repetição do Fundador, como o conjunto dos fundadores é uma repetição de Nosso Senhor.

Então, os vínculos de alma entre súdito e Fundador tomam toda a analogia com as relações existentes na sagrada escravidão a Maria, ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort.

A meu ver, a escravidão de amor não é senão o desponsório espiritual visto em seus efeitos. Porque se Nosso Senhor Jesus Cristo é o Esposo e a Igreja a Esposa, isso significa que a alma fiel deve portar-se face a Ele com a receptividade, o amor, a docilidade da verdadeira Esposa em relação ao verdadeiro Esposo.

Cada um de nós é um membro dessa Igreja. Portanto, esse desponsório místico se realiza na alma de cada um de nós.

Então, se alguém resolve fazer-se escravo de Nosso Senhor para ser obediente a tudo quanto os representantes d’Ele nos mandam, isto se dá por causa de um desponsório místico havido anteriormente, e que nós queremos tornar mais efetivo, mais consistente, mais durável, exatamente por meio dessa submissão.

Creio que a troca de vontades é a própria essência dos desponsórios. Feita a troca de vontades, está realizado o desponsório místico, o qual é um processo que se consuma no momento em que as vontades se uniram completamente. Assim, compreende-se que a escravidão de amor, o desponsório místico e a troca de vontades sejam aspectos de um mesmo processo unitivo; eles vão quase se revezando ou se sucedendo numa mesma realidade total.

Mas o ponto de partida é o momento em que nos enlevamos por Nosso Senhor Jesus Cristo, por Nossa Senhora, pela Igreja, e nos maravilhamos de tal maneira que aceitamos que Ele nos governe como acabo de expor. É a realização da frase de São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. 

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 9/7/1988)

A "Virgo Potens" vencerá

Sem dúvida, uma das características mais marcantes do espírito de Dr. Plinio é sua entusiástica devoção à Virgem Maria. Profundamente “cristocêntrico” — como o provam incontáveis matérias já estampadas nesta Revista —, compreendeu ele, desde muito cedo, que o caminho mais rápido e seguro para chegar a Jesus e glorificá-Lo é unir-se a sua Mãe Santíssima.

Se, pois, o amor deste varão católico ao Divino Salvador é inseparável do amor à Rainha do Céu, também o é seu entusiasmo e sua fidelidade à Santa Igreja Católica.

Assim, Dr. Plinio não hesitava em associar à promessa de indestrutibilidade da Igreja — “as forças do Inferno não poderão vencê-la”(1) — Aquela que, por ser Mãe da Cabeça, o é igualmente do Corpo Místico.

Uma autêntica Teologia da História leva-nos a encontrar no afastamento dos homens em relação a Deus a causa das crises que, ao longo dos tempos, assolaram a humanidade.  Crises que, na era cristã, ameaçaram — e, por vezes, pareceram até conseguir — envolver a própria Esposa de Cristo.

Contudo, na medida em que os povos se abriam à salutar influência da Igreja, as borrascas se acalmavam, como os ventos e o mar de Tiberíades ao obedecerem à voz do Divino Mestre(2), emanada a partir da barca de Pedro.

Ora, essa voz era humana, porque produzida por um corpo também humano, gerado no claustro virginal de Maria. Entretanto, era ao mesmo tempo divina, pois as palavras foram pronunciadas pela Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Depois da Ascensão de Jesus aos Céus, a Providência determinou que, para acalmar os ventos e os mares revoltos que arrastam e submergem no caos a Civilização Cristã, os homens obedecessem à Palavra, agora presente e viva na nau de São Pedro. Também nessa barca, a Santa Igreja, tem Nossa Senhora uma sublime missão: a de manter os fiéis unânimes e perseverantes na oração à espera do Paráclito(3).

O seguinte discurso, proferido provavelmente no início da década de 1940 e publicado por ocasião do mês de Maria(4), atesta uma vez mais a inabalável confiança de Dr. Plinio no poder da Mãe de Deus, sob cuja proteção a Santa Igreja encontrará sempre a solução perfeita para todas as crises.

Graças a Deus, cria raízes cada vez mais profundas entre os católicos brasileiros a convicção de que os destinos da humanidade contemporânea estão indissoluvelmente ligados à Igreja, de tal sorte que o único modo eficiente de trabalhar para a solução da crise tremenda em que nosso século se debate é trabalhar pela expansão da Doutrina Católica.

A História registra o caso de nações que conseguiram firmar seus alicerces sobre outras bases que não a Igreja, e que conheceram um relativo equilíbrio. Mas, enquanto esse equilíbrio falso se transformou no Oriente em estagnação letal, no Ocidente mostrou-se tão precário que provocou as revoluções sociais, a corrupção moral e, por fim, o desabamento da civilização greco-romana, humilhada nos seus últimos estertores pela vitória brutal das hordas dos bárbaros invasores.

Quanto à civilização ocidental, nascida da Igreja, criada sob o influxo dela, e constituída para a realização de um ideal de perfeição e de progresso que só a Igreja soube apontar ao homem, não lhe é possível encontrar fora da Igreja nem sequer o equilíbrio precário das civilizações que a antecederam.

A civilização europeia e católica foi inspirada no Cristo, e sua aurora na Idade Média refulgia com algo daquela insuperável majestade e daquela indescritível doçura com que o Cristo deslumbrou seus Apóstolos no alto do Tabor.

No recesso de sua prodigiosa fecundidade, continha ela os germes de um arcabouço moral e material superior, em grandeza e magnificência, às concepções mais ousadas dos filósofos gregos, dos estadistas romanos e dos poetas orientais. E está na inexorável ordem das coisas que, se essa civilização eleita não perseverasse na sublimidade de sua vocação, despencaria pelos abismos insondáveis e diabólicos da apostasia, cujos frutos políticos e sociais são estas duas irmãs gêmeas, paradoxalmente tão diversas e tão parecidas: a anarquia e a escravidão.

Para o mundo contemporâneo, não há outro caminho senão a ordem perfeita do Catolicismo ou o caos completo da aniquilação. Não é, pois, sem angústia que até mesmo alguns espíritos, nos quais não arde a Fé católica, indagam se a Igreja não soçobrará ao vendaval da crise moderna.

É para estas almas cegas que a invocação da ladainha lauretana “Virgo Potens” constitui tema de uma proveitosa meditação. Não é das baionetas, nem do ouro, nem de qualquer outro recurso humano que a Igreja espera o grande triunfo que salvará mais uma vez a civilização. A Igreja é divinamente indestrutível e sê-lo-á amanhã, como já o era ontem. É só de Deus, Nosso Senhor, que lhe virão no momento oportuno os milagres que asseguraram o triunfo de Constantino, o recuo de Átila e a vitória em Lepanto.

A respeito de Maria Santíssima, diz a Sagrada Liturgia: “Só tu esmagaste todas as heresias”. Mais forte do que os modernos Césares, há uma Virgem Poderosa que esmagará o mal em nossos dias; Ela que já esmagou outrora a cabeça orgulhosa da terrível serpente. Sua força, já o dissemos, não está no ouro nem nos canhões. Sua força está na sua caridade invencível, na sua humildade incomensurável, na sua pureza indizível.

Conjuguem-se, embora, contra a infalível Cátedra de São Pedro, o demônio, o mundo e a carne, a Virgem Potente triunfará. E, no momento da derrota, todo o ouro dos seus adversários ser-lhes-á inútil como se fosse lama, e seus canhões inoperantes como brinquedos.

Ao ouvir estas palavras, é possível que um sorriso desdenhoso exprima em certos lábios céticos uma desaprovação irritada. Um dia virá, porém — e quem sabe se não será amanhã — em que a Virgem Potente triunfará suscitando uma nova legião de cruzados, ou dando ao Santo Padre a vitória incruenta e gloriosa que teve outro Papa, São Leão I, quando, armado só com a Cruz de Cristo, fez recuar o terrível Rei dos Hunos.

A despeito do riso dos céticos, das injúrias dos perversos e da incredulidade dos medrosos, é a “Virgo Potens” que vencerá!

 

1) Mt 16, 18.

2) Cf. Mt 8, 26-27.

3) Cf. At 1, 14.

4) Excertos de um pronunciamento cuja data exata não consta dos nossos arquivos.

Olhar de fogo, grandeza e seriedade

São Bernardino de Siena foi quem popularizou a devoção ao Santíssimo Nome de Jesus. Não foi tanto um homem de estudos quanto um pregador, que reunia em torno de si multidões imensas, em praças muito grandes. Quando ele falava, a multidão ia se deslocando conforme o vento, para ouvir suas palavras. Notem seu rosto sério, do homem que se sente revestido de uma missão divina, chamado a dizer verdades duríssimas aos seus contemporâneos, e que as disse de fato.

Ele está cumprindo sua missão; e as brasas estarão acumuladas sobre a cabeça de quem não o ouvir. É uma alma povoada de ideias, de convicções a respeito da transcendência e da perfeição infinita de Deus, e do alto destino eterno.

Vejam como tudo está bem apanhado neste olhar de fogo. Não há clima para conversar com ele sobre bagatelas. Quanta grandeza e seriedade!

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 1965)

QUANDO VIRGINDADE E GRANDEZA RÉGIA SE OSCULAM

Não há louvores que não se possam fazer à virgindade.

Ela é o auge da dedicação em relação a Deus, porque o homem inteiramente casto renuncia às comodidades e aos legítimos  atrativos e aspirações da vida de família para servir um ideal superior. Um ideal que não lhe dá prêmios na terra, mas oferece recompensas no Céu. Trata-se, é claro, de um ideal católico, pois nenhum outro pode ser considerado autêntico e verdadeiro, quando desprovido do sentimento católico.

A virgindade é, então, o ápice da dedicação. É, outrossim, uma forma de grandeza. Mais ainda, é a grandeza por excelência. Consideremos um rei santo. São Luís IX era um soberano puríssimo que tinha, entre outras missões, a de perpetuar a dinastia da França. Casou-se, teve filhos, e guardou plenamente a fidelidade conjugal. É maravilhoso.

Contudo, quando ouvimos falar do Infante Dom Sebastião de Portugal — o rei casto, puro, virginal, imolado numa batalha contra os mouros nos vastos campos de Alcácer-Quibir — sentimos exalar-se um conjunto de idéias e grandezas, que adquire seu maior fulgor no fato de Dom Sebastião ser virginalmente casto.

Resplandece nele aquela auréola da castidade perfeita, não a respeitável castidade do matrimônio, mas a da inteira abstenção de qualquer contato carnal. Um varão régio e virginal, numa couraça lisa e rutilante, brilhando sob o sol da África, com uma lança na mão e uma coroa de Rei Fidelíssimo na fronte.

O trono da França era mais elevado que o de Portugal. São Luís foi um santo autêntico, canonizado pela Igreja. Esta não canonizou o Rei Dom Sebastião, e talvez houvesse certa temeridade em suas ousadias guerreiras, razão para não inscrevê-lo no rol dos Santos.

Não obstante, sua figura é cercada de uma auréola, de uma poesia, de um perfume típico de grandeza que nem o grande São Luís, nem o grande São Fernando de Castela tiveram. Nem o próprio Carlos Magno possuiu. É a aliança entre a majestade régia e a castidade perfeita, entre a virgindade e a coroa.

Nossa Senhora, a morte dos crimes

Certas pessoas podem ter a ideia de que as evoluções do mundo extinguirão os crimes. Verdadeiramente, a morte dos crimes já veio ao mundo com o nascimento de Nossa Senhora. Ela, segundo um lindo cântico gregoriano, é a “Mors críminum”, a “Morte dos crimes”.

Por sua influência, mediação, oração e comunicação de graças, Maria Santíssima mata os crimes, extirpa os pecados e elimina o mal da Terra, triunfando permanentemente sobre ele.

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferência de 18/8/1965)

Firmeza do guerreiro católico

Vemos aqui São Felipe Néri já idoso, com a barba inteiramente branca e o semblante de um homem que lutou muito, e ainda está no combate. E que está olhando atento e desconfiado para um adversário invisível para nós, mas que ele divisava ao longe.

Dir-se-ia que o Santo estava percebendo formar-se uma trama a certa distância dele, e que pensava na argumentação a ser dada e na rasteira a passar em quem avançava contra ele.

O caráter de luta, a meu ver, está não tanto no olhar, que dá muito a ideia de vigilância e de pugnacidade, mas no formato contorcido das sobrancelhas. Dir-se-ia que de tanto franzir as  sobrancelhas elas ficaram com essa forma singular. Como um guerreiro carrega as características da guerra, assim também as sobrancelhas dele carregavam o traçado de profundas preocupações.

Mas, se o olhar é vigilante, toda a atitude do rosto é plácida: é a firmeza do guerreiro católico que tem coragem.

O Rosário, caminho para a vitória!

Para bem compreender o valor da devoção ao Santo Rosário, analisemo-lo com maior profundidade. Após ser entregue diretamente por Nossa Senhora a São Domingos de Gusmão, a devoção ao Rosário se estendeu rapidamente por toda Igreja, ultrapassando os limites da Ordem Dominicana e ornando-se o distintivo de muitas outras ordens que passaram a portá-lo pendente à cintura.

Tempo houve em que todo católico o trazia habitualmente consigo, não apenas como objeto de contar Ave-Marias, mas como instrumento que atraía as bênçãos de Deus. O Rosário era  considerado uma corrente que liga o fiel a Nossa Senhora, uma  arma que afugenta o demônio.

Esplêndida conjunção da oração vocal com a mental

O que vem a ser o Rosário? Em síntese, o Rosário é uma composição de meditações da vida de Nosso Senhor e de sua Mãe, somada a orações vocais. Tal conjunção — da oração vocal com a mental — é verdadeiramente esplêndida, pois, enquanto se profere com os lábios uma súplica, o espírito se concentra num ponto. Assim o homem faz na ordem sobrenatural tudo quanto pode. Porque  através de suas intenções, se une àquilo que seus lábios pronuncia m, e por sua mente se entrega àquilo que seu espírito medita.

Por esta forma de oração o homem une-se intimamente a Deus, sobretudo porque esta ligação se dá através de Maria, Medianeira de todas as graças.

Alguém poderia perguntar: “Qual o sentido de rezar vocalmente a Nossa Senhora enquanto se edita em outra coisa? Não podia ser algo mais simples? Não seria mais fácil meditar antes, e depois rezar dez Ave Marias?”

A resposta é muito simples. Cada mistério contém, nos seus pormenores, elevações sem fim, as quais nosso pobre espírito está procurando sondar… Ora, para fazê-lo com toda a perfeição, precisamos ser auxiliados pela graça de Deus, e tal graça nos é dada pelo auxílio de Nossa Senhora. Ou seja, pronuncia-se a Ave-Maria para pedir que a Virgem Santíssima nos obtenha as graças para bem meditar.

Obra-prima da espiritualidade católica

No Rosário encontramos pequenos, mas preciosos tesouros teológicos que o tornam uma obra-prima da espiritualidade e da Doutrina Católica. Esta devoção contém enorme força e substância; ela não é apenas feita de emoções; pelo contrário, é séria, cheia de pensamento, com razões firmes. Ela constitui a vida espiritual do varão católico como um sólido e esplendoroso edifício de conclusões e certezas.

Além disso, a meditação de cada mistério da vida de Nosso Senhor proporciona ao fiel receber graças próprias ao fato que está contemplando.

Ao analisarmos as incontáveis graças que Maria Santíssima vem distribuindo por meio da recitação do Santo Rosário, vemos nele algo que o torna superior a outros atos de piedade mariana. Ora, qual é a razão disto?

Antes de mais nada, vale salientar que Nossa Senhora, sendo excelsa Rainha, tem o direito de estabelecer suas preferências! E Ela quis elevar esta devoção além das outras, distribuindo graças especialíssimas através da recitação do Santo Rosário.

Batalha de Lepanto

Entre as diversas graças insignes alcançadas pela recitação do Rosário está a vitória obtida pela Cristandade na Batalha de Lepanto.

São Pio V, então Pontífice, encontrava-se aflito diante da ameaça otomana que cercava a Europa cristã. Ordenou, então, que toda a Cristandade rezasse o Rosário a fim de suplicar a intervenção de Nossa Senhora.

Antes da terrível batalha ocorrida no Golfo de Lepanto, a sete de outubro de 1571, entre as hostes cristãs e muçulmanas, os soldados católicos rezavam o Rosário com grande devoção.

Segundo testemunharam os próprios adversários, a Santíssima Virgem apareceu-lhes durante a batalha, infundindo-lhes grande pavor.

Para comemorar a grande vitória obtida neste dia, o Santo Padre instituiu a festa de Nossa Senhora do Rosário, a qual, no século  XVIII, foi estendida a toda a Igreja Católica por determinação do Papa Clemente XI.

Uma vez que por meio do Santo Rosário a Cristandade tem obtido tão grandes vitórias, não temos razão suficiente para esperar, por meio da recitação desta oração, a vitória em todas as lutas travadas ao longo de nossa existência?

Resolução de rezar sempre o rosário.

Um fato ocorrido na vida de Santo Afonso Maria de Ligório mostra-nos que, sobretudo, numa grande luta o Rosário é penhor de vitória. O santo era conduzido em cadeira de rodas, por um irmão de hábito, através dos corredores do convento, quando perguntou se já haviam rezado todo o Rosário. O companheiro lhe respondeu:

Não me lembro.

Rezemos, então. Disse o santo.

Mas o senhor está cansado! Que mal há um só dia deixar de rezar o Rosário?

Temo por minha salvação eterna se o deixasse de rezar por um só dia.

 É justamente isso que devemos pensar e sentir: o Rosário é a grande garantia de nossa perseverança final. Devemos pedir à Santíssima Virgem a graça de rezar o Rosário todos os dias de nossa vida.

Gostaria ainda de dar uma recomendação para os membros de nosso Movimento: nunca deixarem o Rosário, de modo que, mesmo dormindo, procurem ter o Rosário à mão, de maneira tal que o sintam consigo. E, se tiverem receio de que ele caia — devemos tratá-lo com toda a reverência —, pendurem-no ao pescoço, ou o coloquem no bolso.

“Eu quisera ressuscitar com o Rosário em minhas mãos”

Quando as nossas mãos não puderem mais abrir-se nem fechar-se, e forem movimentadas por outros que nos assistam, tenhamos, como última atitude de oração, o Rosário enleado em nossos dedos, de maneira que, quando chegar a Ressurreição dos mortos e de dentro do caixão nosso corpo retomar a vida, entre seus dedos vivificados esteja o Santo Rosário. Quisera eu que, no momento em que todos os justos forem convocados à Ressurreição, meu primeiro ósculo fosse no Rosário que eu encontrasse em minhas mãos.

Eis um conselho para depois da Ressurreição — nunca ouvi dizer que se desse conselhos, ou se fizesse alguma combinação para essa hora, mas proponho uma combinação: Quando todos ressuscitarmos, entre os resplendores da Ressurreição, lembremo-nos: “Estava combinado!”, e então osculemos o Rosário! Assim este Movimento, que é de Nossa Senhora, ressuscitará tendo nas mãos seu Santo Rosário!

 

Plinio Corrêa de Oliveira, (Extraído de conferências de 7/10/1964 e 10/3/1984)

 

 

 

 

Meu filho, aprenda a sofrer!

O sofrimento, tão comum e tão evitado por todos os homens… Com a acuidade que lhe é própria, Dr. Plinio mostra como sofrer representa uma glória para o verdadeiro católico.

 

A dor é algo que não pode ser extinto da vida do homem. Para cada indivíduo ela se apresenta de uma maneira especial. Porém, há alguns sofrimentos que são comuns para todos: fazer os sacrifícios necessários para não pecar; não se limitar a evitar o pecado, mas crescer cada vez mais na virtude; salvar sua alma e também as almas dos outros.

Sobretudo para quem possui uma vocação especial como a nossa, a Providência tem a intenção de que salvemos certo número de almas. O esforço comum da organização à qual pertencemos deve visar salvar um número quase incontável delas, porque os males que há na civilização contemporânea são enormes, e muitas pessoas se perdem.

Assim, é preciso que nos ergamos contra a iniquidade praticada e lhe digamos como São João Batista: “Não te é permitido!”

É difícil calcular o número de pessoas que poderiam salvar-se caso tivéssemos a alma plena dessa convicção. Pois bem, nesse esforço comum cada um deve dar tudo o que recebeu da Providência para produzir o rendimento necessário. E isto significa carregar a cruz.

O ódio ao mal faz parte do amor a Deus

É preciso evitar o pecado, porém não apenas cumprindo este ou aquele Mandamento isoladamente; devemos, acima de tudo, amar a Deus sobre todas as coisas.

Ama-se a Deus desejando tudo aquilo que é conforme a Ele, e odiando tudo aquilo que se Lhe opõe. Por exemplo, considerando a Paixão, deve-se adorar Nosso Senhor Jesus Cristo na perfeição moral indizível, divina, que Ele manifestou ao sofrer tudo aquilo. E também encher-se de indignação contra os que O ofenderam.

Um indivíduo que fique com muita pena de Nosso Senhor, mas não se indigne contra quem praticou aquele mal, é um hipócrita e está mentindo. Porque se vejo uma pessoa praticar um crime e tenho muita pena da vítima, mas não tenho indignação contra o criminoso, estou querendo mentir a mim mesmo.

Até o rompimento com uma amizade má pode representar uma cruz

Por mais duro que seja, caso eu tenha uma amizade que me conduz ao pecado, devo romper com ela inteiramente. Neste caso, não posso fazer um rompimento leve, distanciando-me aos poucos. A ruptura precisa ser completa, porque, ou evito meticulosamente tudo quanto me leva para o mal, ou, no fundo, estou à procura do caminho da perdição.

E é um sofrimento a alma adquirir uma têmpera tão forte, que olha de frente cada dificuldade dessas e diz inexoravelmente “não” ao pecado! E realiza o sacrifício já, por inteiro e definitivamente.

Um sacrifício que se faz arrastando: Devo romper com tal amigo, mas não o faço hoje e deixo para a semana seguinte. Faço depois uma ruptura incompleta e dentro em breve encontro-me com ele num bar, num ônibus, e aquela relação péssima se refaz, e a tentação continua. Isto não vale nada. É preciso dizer que rompeu de vez; se não tem pretexto, é sem pretexto. Isso significa cruz, porque muitas vezes é dificílimo fazê-lo, mas devemos imitar nosso Divino Salvador que tomou a sua Cruz e foi para frente. Assim, preciso romper e não mais olhar para trás, de tal modo que nem me lembre mais daquilo; é um episódio de minha vida que se apagou.

Mas se eu lembrar um pouquinho, quando menos eu esperar, em casa de um parente que vou visitar ou em qualquer outra circunstância, lá está ele; e aquilo tudo renasce. Quer dizer, há certas coisas que devem ser extirpadas como um câncer: arranca-se de uma vez só, senão ele volta e todo o drama se reapresenta.

A gloriosa falange dos esquecidos por amor a Deus

Há outras coisas às quais se deve renunciar. A pessoa forma na vida tantos sonhos aos quais tem apego: gostaria de ser isto, aquilo, aquilo outro. Porém, aparece o jogo das circunstâncias na vida e a salvação eterna pede que ela não seja nada daquilo, mas tome outro caminho.

Por exemplo, um jovem imagina ser locutor de rádio porque nos círculos dele se considera isso uma maravilha. Ele já sonhou cem vezes falando no rádio e alcançando sucesso: o povo o espera para aplaudi-lo; quatro ou cinco pessoas disputam quem vai conduzi-lo de automóvel para casa; um outro grupo de indivíduos se oferece para levá-lo a uma confeitaria para comer coisas saborosas; todos querem falar com ele, julgando-o genial. Caso ele passe a fazer parte de algum movimento religioso e tenha de renunciar à carreira que almejava, certamente não vai obter o sucesso esperado anteriormente. Ele fará parte da gloriosa falange dos esquecidos. Neste caso ele, então, deve dizer: “Eu quero ser empurrado de lado, com Nosso Senhor Jesus Cristo. Aceito qualquer coisa, contanto que eu siga o Redentor.”

Combati o bom combate

Como isso é difícil! Em nossa vida, desde a infância até a ancianidade, quantas e quantas vezes circunstâncias análogas se apresentam, tendo como causa apenas o fato de sermos católicos, apostólicos, romanos, leais e fiéis, difundirmos aquilo que temos a vocação de difundir.

Assim, quando morrermos, poderemos dizer como São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa da justiça, que o Senhor, justo Juiz, me dará naquele dia”.

Segundo uma lindíssima tradição, ou lenda, com o grande Apóstolo — que, a bem dizer, converteu toda a bacia do Mediterrâneo, da qual depois se irradiou para o mundo a Igreja Católica e a Civilização Cristã — aconteceu o seguinte: levaram-no para junto a um tronco de árvore para ser decapitado com um gládio; ele se ajoelhou, a espada bateu com todo o vigor e sua cabeça rolou longe, pulando três vezes no solo, e dali nasceram três fontes. Tais fontes mostram a santidade de São Paulo e a divindade da Igreja. Até depois de morto, sua cabeça abriu fontes de água viva. Para trilharmos o caminho da santidade é preciso ter muita resolução de sofrer.

Às vezes, a Providência dispõe que infortúnios de outra natureza caiam sobre nós: uma doença, uma calúnia, etc.

Nosso Senhor Jesus Cristo disse que não cai um pássaro de uma árvore, nem um fio de cabelo de nossa cabeça sem que Ele saiba e queira. Se eu fui atingido assim, Jesus quis; se Ele quis, eu quero, assumo esse sofrimento até o fim.

A quem Deus ama, permite o sofrimento

Isto supõe uma lógica, uma coerência a toda prova. Não basta entender ser necessário o sofrimento; devo efetivamente sofrer o que está no meu caminho. E sem ter surpresa, porque preciso estar preparado. Não devo ter a ideia: “Quem sabe se eu escapo com um jeitinho, e Deus não me peça o sofrimento!” Porque se Ele não me enviar a dor, é sinal de que não me ama.

É claro, pois a cruz é uma honra, um sinal de predileção, que Nosso Senhor dá para os seus prediletos. As almas a quem Ele não faz sofrer são aquelas que preferem seguir as vias cujo termo final é o inferno.

Deus, na sua justiça infinita, dispõe que o pecador seja mais feliz na Terra do que quem vive virtuosamente. Isso parece um absurdo: o Criador não deve amar mais aqueles que são virtuosos? Amando mais os virtuosos, não é natural que Ele lhes dê mais felicidade?

Não, por uma razão muito simples: os sofrimentos da alma após a morte são muito maiores do que os havidos durante a vida. Enquanto se está vivo, pode-se sofrer muito, mas isso não é comparável às chamas do purgatório! E uma alma pode ficar um tempo indefinido dentro do purgatório, queimando! E a queimadura da alma dói muito mais do que a do corpo! Não nos deixemos levar pelo seguinte sofisma: “O purgatório, em última análise, queima a alma, mas não o corpo, o que seria pior”. A alma nos é muito mais interna do que o corpo. De maneira que meu eu é muito mais atingido por um fogo que queima a alma do que por chamas que queimam o corpo.

É algo misterioso que a alma, sendo espírito, entretanto pode ser atingida pelo fogo e por isso sofrer terrivelmente. E para poupar os bons das chamas do purgatório — já não falo do terrível fogo do inferno —, a Providência manda-lhes sofrimentos muito grandes nesta Terra para punir os males que praticam: pecados veniais, às vezes mortais já perdoados. Quando morrem, Deus lhes abre os braços e eles vão para o Céu diretamente.

Deve causar-nos alívio a ideia de que nossos sofrimentos obtêm a expiação dos nossos defeitos e, ao mesmo tempo, nos abre diretamente a glória do Céu. Algumas almas morrem já na alegria do Paraíso, sorriem, têm visões sobre a felicidade eterna. É que tudo já foi sofrido, a dívida está paga, e elas entram no banquete eterno do Céu.

Também os inocentes são chamados ao sofrimento

Há pessoas especialmente amadas por Deus a quem Ele pede uma coisa especial. O Homem-Deus, sendo a própria inocência, sofreu para expiar os pecados do mundo. E a Ele se reza: “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, miserere nobis — Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós”. Deus, para salvar certas almas que estão se perdendo, a fim de obter certas vitórias para a sua Igreja, quer não apenas o sofrimento do pecador.

O Redentor bate à porta de certas almas, dizendo: “Meu filho, tua alma é inocente; Eu a preservei até agora do pecado, e tu correspondestes à minha graça. Como Eu te amo, meu filho, quero de ti esta pedra preciosa que é o sofrimento do inocente; quero de presente um grande rubi, teu sangue não do corpo, mas da alma. Aceitas isso, ó meu filho inocente?”

Às vezes é para ganhar uma só alma, mas a partir desta Deus quer salvar muitas outras. E a alma inocente, que não é mole — inocente e mole são coisas contraditórias; o mole não é inocente, e o inocente não é mole —, a alma rija aceita e diz: “Senhor, quero sofrer por Vós. Não tenho palavras para Vos agradecer a inocência com que me preservastes. Além de sofrer como inocente, peço-Vos padecer tudo quanto queirais, de maneira que, quando cerrar meus olhos, eu possa dizer: Sofri tudo quanto Deus queria de mim, o cálice das dores eu o bebi até o fim, não hesitei, e o fiz em goles grandes e generosos. Cumpri vossa vontade. No Céu Vós me direis qual é o bem que quisestes fazer por meu intermédio.”

Os sofrimentos de Santa Teresinha do Menino Jesus

Lembro-me de fatos da vida de santos que são verdadeiramente desconcertantes nesse sentido. Um exemplo: Santa Teresinha do Menino Jesus. Desde muito cedo a alma dela, inocentíssima, foi convidada pela graça para sofrer pelo amor de Deus. Ela entrou para o Carmelo de sua cidade, Lisieux, e tinha um desejo ardente de morrer o quanto antes pelo Redentor.

De fato, ela teve que sofrer bastante no Carmelo…

Num convento carmelita, lugar onde as freiras são inteiramente dependentes de sua superiora, Santa Teresinha teve uma que, em vez de dar o exemplo de todas as virtudes, deixava muito a desejar… Para se ter ideia das coisas que fazia a superiora, cito apenas um exemplo: ela possuía um gato, e a freira que quisesse obter uma licença, um ato de misericórdia da superiora, deveria tratar bem o gato dela.

Além disso, a superiora era muito mundana e vivia recebendo visitas da pequena sociedade de Lisieux. Estas pessoas vinham contar-lhe coisas como as seguintes: Fulana brigou com a amiga; uma outra ficou noiva; uma terceira rompeu o noivado… E a superiora se intrometia para resolver esses casos. À noite, ela reunia as freiras para narrar-lhes tais acontecidos.

Nesse ambiente, as freiras não compreenderam a santidade de Santa Teresinha, nem o esplendor de sua pessoa.

Ela era de uma bondade celestial para com todos, sobretudo para as noviças, das quais foi nomeada mestra. Durante todo o tempo de sua vida no convento, fecharam os olhos para a sua virtude, exceto uma noviça que certa vez ajoelhou-se diante dela e disse: “Irmã Teresa do Menino Jesus, eu vos peço: rezai por mim, porque um dia vós sereis uma grande santa e todo o mundo dirá: Santa Teresa do Menino Jesus, rogai por nós. E eu me antecipo e digo: Ó grande Santa Teresa do Menino de Jesus, rogai por mim”.

Certa noite, Santa Teresinha expeliu sangue pela boca; era o sinal da tuberculose, doença naquele tempo considerada gravíssima, com muito menos possibilidade de cura do que hoje.

Chegou o dia de sua morte. Há muito tempo, Santa Teresinha não podia mais se mover, e uma pessoa que estava em seu quarto viu-a, em certo momento, erguer seu tronco e, com ar transfigurado de alegria, ela disse “Ó meu Deus!” Era uma última consolação de Deus, que lhe poupava o último instante de dor. Em seguida, caiu morta e um perfume de violeta espalhou-se por todo o convento.

Ela praticara a humildade na perfeição, e a violeta é o símbolo dessa virtude. Até mesmo a superiora, que não gostava de Santa Teresinha, foi beijar os pés do cadáver; a alma dela já estava no Céu.

Isto é sofrer até o fim. E cada um de nós, em relação aos sofrimentos que nos estão destinados, deve, por meio de Maria Santíssima, pedir a Nosso Senhor Jesus Cristo a graça que o Divino Salvador implorou no Horto das Oliveiras: “Meu Deus, se for possível, sejam diminuídos esses sofrimentos, mas faça-se a vossa vontade e não a minha”.

Roguemos a Nossa Senhora a graça de padecermos tudo quanto for inevitável, e de sofrermos até o fim, com coragem e decisão. Se assim caminharmos com passo decidido e forte, entraremos no Céu onde os anjos e os santos nos receberão.

Nossa fidelidade pode estar sendo sustentada por uma vítima expiatória

Em certo momento de minha infância, já entrando na adolescência, o peso da fidelidade me foi tão grande que muitas vezes cambaleei, não no sentido de que hesitasse em sair do bom caminho, mas eu percebia que as minhas forças não eram suficientes. Porém, na hora “H” essas energias se espichavam e eu conseguia mais um pouquinho e ia para frente, e assim cheguei até os 81 anos.

É possível que esta fidelidade tenha sido conseguida por alguma alma que tenha resolvido sofrer muito por mim. Lembro-me de que, com frequência, eu via nas igrejas uma mulher baixinha, com um cabelo preto liso e não muito abundante, bem penteado, com uma risca ao meio. Era pobre, mas muito limpa, com uns trajes comuns de mulher do povo. Porém ela não tinha nariz, e usava um pano que dava toda a volta na cabeça para tapar a hediondez do buraco no meio da face.

Ela andava depressa, em geral carregando diversos pacotes e um guarda-chuva. Via-se que ela tomava muito cuidado com a chuva — no clima de São Paulo é compreensível. Estava sempre com a fisionomia alegre e atraía os olhos de todo o mundo que passava, porque para uma mulher sem nariz olha-se ainda que não se queira.

Eu muitas vezes pensava: “Quem sabe se essa mulher — e eu notava que ela passava perto de mim e me fixava — está oferecendo por mim essa humilhação de não ter nariz, e todos os incômodos daí decorrentes. Certamente no Céu eu lhe agradecerei muita coisa, pois — caso ele tenha de fato feito tal oferecimento — eu seria um pernibambo se não fosse ela”.

Ela me olhava, mas poderia adivinhar que daquele moço nasceria nosso Movimento? E se essa pobre mulher ofereceu seu sacrifício nesse sentido — ela era bem mais velha do que eu, e deve ter morrido —, podemos imaginar a glória dela no Céu, ouvindo-me falar isto?

Aquele que se dedica à salvação do próximo, sofrendo como deve, em certo momento receberá uma glória indizível, porque quem salva seu irmão, salva sua própria alma e brilhará no Céu como um sol por toda a eternidade. Por uma alma! O que dizer de nosso Movimento que ajuda a salvar tantas almas em tantos lugares e frear a Revolução, para que venha ao mundo o Reino de Maria!

 A glória do sofrimento

É claro que na vida de um católico nem tudo é sofrimento; existem momentos de alegria. Porém precisamos nos habituar à ideia de que em certas etapas da existência há sofrimentos, sofrimentos e mais sofrimentos. Saibamos carregá-los, pois a glória de alguém não consiste em ser grande homem, mas grande sofredor. Sendo grande sofredor, será grande batalhador. E se for grande batalhador vencerá para conquistar o Céu. É isso que cada um de nós deve fazer.

 

(Extraído de conferência de 7/4/1989)

 

 

 

Um perpétuo mês de Maria

No mês de maio, mês de Maria, comentava Dr. Plinio, sente-se uma particular proteção de Nossa Senhora estender-se sobre todos os fiéis, uma alegria que brilha e ilumina nossos corações, exprimindo a certeza dos católicos de que o indispensável patrocínio de nossa Mãe celestial se torna, durante esse período, mais solícito, mais amoroso, mais cheio de visível misericórdia e exorável condescendência. 

Tais sentimentos nutriram a devoção de Dr. Plinio à Santíssima Virgem, desde os anos de sua infância quando, numa penosa conjuntura, viu-se pela primeira vez amparado pela clemência da Auxiliadora dos Cristãos. A Ela passou a recorrer constantemente e, de modo especial, durante o “mês de Maria”, celebrado no Colégio São Luís onde ele estudava, assim como em todas as paróquias. Já homem feito, recordaria com saudades aquelas fervorosas homenagens tributadas à Mãe de Deus:

“As igrejas ficavam repletas, tomadas pelos membros de associações religiosas consagradas a Nossa Senhora — Filhas de Maria, Congregados Marianos, etc. —, além da multidão de fiéis que, nas noites de maio, compareciam a ditas cerimônias. Em geral, o sacerdote puxava o Terço e outras orações, entremeadas de cânticos em louvor da Virgem. Em seguida, o padre, do alto do púlpito, dirigia algumas palavras à assembléia, exaltando as augustas virtudes de Maria e exortando os paroquianos a imitá-La.

“Na seqüência, o momento culminante da celebração com a Bênção do Santíssimo. O sacerdote, revestido de belos paramentos brancos, tomava em suas mãos o ostensório que esplendia raios dourados e, em movimentos solenes, meio envolto nas névoas perfumadas do incenso, traçava no ar o Sinal da Cruz para todos os lados da igreja. Logo depois, depositava o ostensório sobre o altar, recitava as orações prescritas para o encerramento da bênção e, terminadas, guardava novamente o Santíssimo Sacramento no tabernáculo. A cerimônia chegara ao fim. As associações religiosas se retiravam pela sacristia e cada um voltava para sua casa.

“A meu ver, porém, talvez um dos aspectos mais bonitos de tudo aquilo era essa post-cerimônia: o templo que se esvaziava, ecos de cântico religioso ainda ressoando no seu interior, resquícios de incenso flutuando no ar, o sacristão que ia apagando as várias luzes, balançando suas chaves, conferindo se ninguém esquecera algo sobre os bancos ou nos confessionários. Então só restavam ali as almas aflitas, as almas recolhidas diante desse ou daquele altar lateral: ora uma senhora muito idosa, vergada pelo peso das provações, ora um rapaz corpulento, saudável; um obeso senhor de meia idade, uma mãe de família igualmente madura, ou um menino — todos elevando uma premente súplica à Homenageada da noite.

“Afinal, o sacristão balançava com mais força o seu molho de chaves, e aquelas pessoas entendiam que era preciso sair. Lá fora, pelas ruas já despovoadas, podia-se acompanhar os últimos fiéis que se dispersavam: a senhora idosa com sua bolsa estreitada ao corpo, o homem obeso com ar sofrido, o rapaz alegre e esperançado, distanciando-se, como se fossem as derradeiras bênçãos daquela cerimônia que se dirigiam para os vários cantos da cidade. Atrás ficava a igreja, fechada, com sua torre voltada para o céu, sob as nuvens tocadas de luar, à espera da manhã seguinte em que abriria de novo suas portas.

“No dia 31 de maio dava-se o magnífico encerramento do mês de Maria, quando a imagem da Virgem, posta sobre um andor emoldurado de flores, era solenemente coroada. Enquanto um “anjinho” trazia numa almofada a coroa para colocá-la sobre a cabeça da imagem, o povo, genuflexo, acompanhava os cânticos entoados pelo coro, acentuados pelo timbre do órgão tocado à “toute volée”. Depois, conduzida por algumas pessoas, a imagem coroada percorria o recinto da igreja, seguida pelo celebrante revestido com paramentos de gala. Outras orações, outros cânticos, e tudo estava terminado.

“Todos se despediam de maio com imensas saudades. Gostariam que o ano inteiro fosse um perpétuo mês de Maria. E eu espero que, quando vier para o mundo aquela época luminosa e marial do triunfo do Imaculado Coração da Santíssima Virgem, prometida por Ela em Fátima, tenhamos nós esse imenso mês de Maria, em que todos os dias se preste homenagem a Nossa Senhora e cante-se sua glória como Rainha do Universo.”

Maria… fora de comparação!

“De Maria nunquam satis”. Com esta curta mas expressiva frase, afirma São Bernardo que nunca se louvou, exaltou, honrou, amou e serviu suficientemente a Maria. Dr. Plinio demonstrou sempre grande entusiasmo por esta tese. Apesar de sua imensa capacidade de expressão, gostava ele de reafirmar a insuficiência do vocabulário humano para exaltar convenientemente a Rainha do Céu e da Terra.

 

Neste mês de Maio, mês de Maria, nossos leitores gostarão certamente de conhecer uma significativa amostra dessas manifestações de devoção mariana. Para tanto, transcrevemos um pequeno trecho de seus comentários sobre o “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”.

Sendo Deus “Aquele que é”, nunca se passou nada que, de longe, pudesse ser tão importante como a Encarnação do Verbo. Este é um fato relacionado com a própria natureza divina, e tudo que diz respeito a Deus é incomparavelmente mais importante do que tudo que diga respeito ao homem. A Encarnação de Deus a tudo transcende em importância.

Por este motivo, o papel de Nossa Senhora na Encarnação situa bem o papel d’Ela em todos os planos divinos, e precisamente no que eles têm de mais importante e de mais fundamental.

Achamos admirável, por exemplo, Nosso Senhor ter escolhido Constantino para tirar a Igreja das catacumbas. Mas o que é isto, perto de ter escolhido Nossa Senhora para n’Ela ser gerado?  Absolutamente nada! Admiramos muito o Pe. Anchieta, porque ele evangelizou o Brasil. Mas o que é evangelizar um país, em comparação com o cooperar na Encarnação do Verbo? Nada!

Digamos que se tratasse de salvar o mundo de sua crise atual e de restabelecer o reino de Cristo, e suponhamos que Nosso Senhor escolhesse um só homem para esta tarefa. Nós acharíamos esta missão algo de formidável, e com razão. Mas, o que seria isto em comparação com a missão de Nossa Senhora? Nada! Ela situa-se num plano que está fora de comparação com a missão histórica de qualquer homem. A respeito de Nossa Senhora é-se sempre obrigado a repetir a expressão: “fora de comparação”, porque Ela faz estalar todo o vocabulário humano. Há uma tal desproporção entre Ela e todas as demais criaturas, que a única coisa segura que se pode dizer é que é “fora de comparação”…

* * *

Estava já em fase final de preparação este número de nossa Revista quando o Papa João Paulo II presenteou o orbe católico com a encíclica Ecclesia de Eucharistia (A Igreja vive da Eucaristia),  datada de 17 de abril, Quinta-Feira Santa. Nesse luminoso documento,  o Papa ressalta a suprema importância do Sacrifício do Altar, centro e ápice da vida cristã, e incita os fiéis do mundo inteiro  a darem todo o valor devido a este imenso dom de Deus, que é a presença real de Cristo na Eucaristia.

Por uma feliz coincidência, é este o tema da seção “Dr. Plinio comenta”: a grande alegria que dá a Jesus Cristo quem O recebe na Comunhão, ou ao menos faz uma curta visita ao Santíssimo  Sacramento, e a estreitíssima intimidade que Ele estabelece com a alma que O recebe.

Em consonância com os anseios manifestados pelo Santo Padre em sua valiosa encíclica, trataremos mais amplamente do tema da Eucaristia no próximo número, mês da festa do Corpo de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira