O "Magnificat", cântico de jubilosa despretensão

Após haver recebido a excelsa comunicação de apressou-se em partir ao encontro de Santa Isabel, nas montanhas da Judeia. Ao chegar, exaltada por sua prima e profundamente reconhecida pelo ápice de dons com que fora galardoada, Maria entoou seu imortal Magnificat.

Deus, autor da grandeza de Nossa Senhora

O pensamento fundamental desse cântico poderia ser assim expresso por Nossa Senhora: “Deus realizou em mim coisas extraordinárias, as quais são obra d’Ele e não minha. Não sou a autora de toda essa grandeza. Foi Ele que houve por bem depositá-la em mim, e Eu a aceitei em obediência aos seus superiores desígnios. Essa grandeza, portanto, enquanto habita em mim tornou-se minha, mas a causa dela vem de fora e do alto. Por mim mesma, não sou senão uma pequena criatura”.

De fato, embora concebida sem pecado, e tendo correspondido à graça do modo mais perfeito possível, Nossa Senhora era uma mera criatura, e assim tais grandezas não podiam ter origem na natureza d’Ela. Provinham-Lhe de Deus Nosso Senhor. Este é o pensamento despretensioso e fundamental do Magnificat.

Cabe aqui uma aplicação a nós, filhos e devotos de Maria, que tanto desejamos imitá-La. Se era essa a posição que a Imaculada tomava em face de suas excelências, a “fortiori” deve ser a nossa diante das graças que Deus nos concede, a nós que somos pecadores a dois títulos. Primeiro, porque concebidos no pecado original; segundo, porque agravamos essa condição com as faltas perpetradas em nossa vida, de sorte que, mesmo perseverando no estado de graça, trazemos conosco o fardo dos pecados que outrora cometemos.

De outro lado, as honras que possam nos caber são incomparavelmente menores que as de Nossa Senhora. Desse modo, é preciso nos esforçarmos em adquirir o mais elevado grau de despretensão ao nosso alcance. Não incorramos no erro dos presunçosos, que julgam inerentes à sua própria natureza, e não a um dom ou misericórdia de Deus, todas as suas qualidades e aspectos bons.

Pelo contrário, compenetremo-nos de que todo o bem existente em nós é dado e favorecido pela graça divina, embora conte com nossa voluntária aceitação e nosso empenho em desenvolvê-lo. São qualidades e talentos que não nasceram de nossa natureza decaída, mas foram nela depositados pela generosidade do Criador. Se formos despretensiosos, teremos consciência disso, não nos embevecendo com o que devemos a Deus.

Esse é, precisamente, o ensinamento que nos deixou Nossa Senhora, quando elevou aos céus o seu Magnificat.

Alegre e contínua retribuição a Deus

Diz Ela: “A minha alma engrandece o Senhor”. Ou seja, canta, vê, admira, ama e proclama com amor a grandeza de Deus, Aquele que domina, Aquele que pode, Aquele que é tudo.

“E o meu espírito exulta em Deus meu Salvador”. Então a alma d’Ela se transporta em santas alegrias,

porque Deus “lançou os olhos sobre a baixeza de sua serva”, e por isso “de hoje em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada”.

Nossa Senhora proclama a magnitude de Deus por ter deitado o olhar sobre Ela, por Lhe ter conferido uma tal excelência que todas as nações passariam a aclamá-La como bem-aventurada. E ao reconhecer que isto Lhe vem d’Ele, seu espírito atinge o ápice da alegria!

Como não ver nessa atitude a perfeição da despretensão? Nada de falsa e dolorosa probidade: “Ó Senhor! como gostaria de dizer que tudo vem de mim, mas sou obrigada a declarar o contrário”, etc. Não! “Meu espírito exulta em proclamar que veio de Vós”.

Ao mesmo tempo, porém, Ela afirma a glória que Deus Lhe outorgou: “Todas as gerações me chamarão bem aventurada”. A palavra bem-aventurada encerra um matiz que a faz designar uma pessoa não apenas nimbada de felicidade, mas também aquela que alcançou êxito em todas as suas realizações. Portanto, acertar na vida, ser bem aventurado, é tornar-se santo e servir a Deus.

E Nossa Senhora continua a cantar: “Porque fez em mim grandes coisas Aquele que é poderoso, e cujo nome é santo”. O adjetivo poderoso tem aí todo o cabimento, pois Ela se reconhece objeto de maravilhas tais, que só um Ser onipotente as poderia operar. Ora, Maria se sabia não-onipotente. Logo, proclamava que apenas Deus podia ter feito n’Ela aquelas “grandes coisas”.

É um modo indireto de dizer: “O que foi realizado comigo é tanto que eu, simples escrava, por mim mesma jamais o teria alcançado. O Todo-Poderoso, cujo nome é santo, fez essas maravilhas, essas excelências que só poderiam sair de suas divinas mãos”. Em última análise, trata se de uma contínua e alegre retribuição a Deus da grandeza d’Ela.

Uma cordilheira de misericórdias

“E cuja misericórdia se estende de geração em geração, sobre aqueles que O temem”.

Nossa Senhora manifesta neste trecho a ideia de que a misericórdia da qual Ela foi objeto é o lance supremo de uma imensa série de misericórdias que, desde o início até o fim do mundo, alcança os que têm o temor de Deus. Pode-se dizer que este seria o Everest, o ponto muitíssimo mais alto da compaixão divina, acima de um universo de montículos, colinas, montes e montanhas de misericórdias que ao longo da história têm sido espargidas sobre os homens.

É como se Maria Santíssima dissesse: “Essa misericórdia é ainda mais bela porque é o marco central de um incontável número de excelsas benevolências dispensadas por Ele, o Rei, o Deus, o Pai de todas as misericórdias”.

A soberba é causa de decadência

Continua a Santíssima Virgem: “Manifestou o poder de seu braço; transtornou aqueles que se orgulhavam nos pensamentos de seu coração”.

Ou seja, ao passo que estende sua misericórdia aos que O temem, Nosso Senhor mostra o poder de seu braço confundindo os desígnios dos soberbos. Quem são estes? Os que se vangloriam e se exibem pretensiosos em relação a Deus, que não consideram a grandeza d’Ele, nem Lhe têm temor. E que, portanto, não O amam. Para estes não há misericórdia. Então Deus os humilha, os quebra, os dissipa, mostrando sua força.

Essa atitude de Nosso Senhor com os que se afirmam independentes d’Ele é um belo convite para estabelecermos uma filosofia da história. Para isto, temos de observar não só os acontecimentos históricos, mas também os fatos de nossa vida cotidiana, e neles verificar a confirmação desta regra: os homens tementes a Deus, conscientes de que não valem nada, atribuindo seus predicados e aptidões à misericórdia divina, progridem na vida espiritual. Os que são voltados a adorar-se a si próprios, a considerar tudo quanto têm como vindo deles mesmos, estes são os soberbos que Deus dissipa, e declinam na prática da virtude.

Quantas vezes não observamos, nessa ou naquela alma, um processo de decadência cuja causa é a pretensão? Em determinado momento, a pessoa começou a se embevecer consigo mesma: “Que maravilhosa, grande e estupenda criatura sou eu, considerada nos predicados morais de minha natureza!” É o primeiro passo de uma lamentável deterioração.

Portanto, Nossa Senhora lança o princípio: os soberbos não vão para a frente, enquanto progridem os que temem a Deus. Donde tudo nos coloca em relação a Ele numa postura de inteira despretensão.

O triunfo dos humildes

“Depôs do trono os poderosos, e exaltou os humildes.”

Temos aqui uma seqüência do pensamento anterior. O poderoso é o que atribui a si todo o poder, que precede a Deus e não O teme, julgando-se capaz de tudo fazer sem Ele. Esse é deposto de seu trono, ou seja, daquilo do que  se ensoberbece. O humilde, pelo contrário, é glorificado e favorecido por Nosso Senhor, obtém resultados nas suas ações, na sua vida interior, no seu apostolado, etc.

Completando essa linha de pensamento, Maria acrescenta: “Cumulou de bens os famintos, e despediu os ricos com as mãos vazias”.

Os famintos são os necessitados, os que se abaixam diante de Deus e Lhe suplicam auxílio. Estes são atendidos, e saem repletos de bens. Os ricos são os orgulhosos, aqueles que se aproximam de Nosso Senhor dizendo não precisarem de nada. Então são mandados embora sem receberem qualquer benefício.

Cumpre-se a promessa do Messias

Em seguida, a Santíssima Virgem faz uma referência à exaltação do Povo Eleito, por nele ter se verificado a Encarnação do Verbo. Diz Ela: “Tomou cuidado de Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia; conforme tinha dito a nossos pais, a Abraão, e à sua posteridade para sempre”.

Com efeito, Deus havia misericordiosamente prometido que o Messias, seu Filho unigênito, se encarnaria e nasceria do povo de Israel. Ele se lembrou de sua promessa, gerando Jesus Cristo nas entranhas puríssimas de Maria.

A Igreja, muito belamente, completa esse hino maravilhoso com o “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo; assim como era no princípio, agora e sempre, pelos séculos dos séculos. Amém”.

Esta seria uma interpretação do Magnificat como o cântico da despretensão jubilosa de Nossa Senhora.

“Minha alma engrandece a Igreja Católica!”

Para concluir, cabe ainda um último desdobramento dessas considerações.

Como eu gostaria de, com toda  a alma, poder cantar o Magnificat em relação à Igreja Católica! Como é verdadeiro dizer: “Magnificat anima mea Ecclesiam, et exultavit spiritus meus, in matre salutari mea” – A minha alma engrandece a Igreja Católica e o meu espírito exulta na Igreja minha mãe!

E assim por diante, que lindíssima paráfrase do Magnificat poderíamos fazer contemplando a Igreja, que é a Arca da Aliança, a imagem visível de Deus e de Nossa Senhora na terra.

Sirvam, pois, estas palavras de incentivo para que reportemos todos os nossos dons, nossas virtudes e predicados a Deus em Jesus, a Jesus em Maria, e a Maria na Santa Igreja Católica Apostólica Romana, da qual nos vem tudo o que temos de bom. Dessa maneira, o enlevo, o encanto, o entusiasmo, a fidelidade, a dedicação de nossa vida, nossa alma e nosso sangue sejam inteiramente oferecidos para o serviço e glorificação da Esposa Mística de Cristo.

Espírito Santo, alma da Igreja

“Convém a vós que Eu vá; porque se Eu não for, o Consolador não virá a vós, mas se Eu for, enviá-lo-ei” (Jo 16, 7) — prometeu Jesus a seus discípulos, na véspera de sua Paixão e Morte. Essas divinas palavras se cumpririam cinqüenta dias depois da gloriosa Ressurreição do Salvador, durante as festividades de Pentecostes. No Antigo Testamento, essa comemoração judaica recordava a entrega das tábuas da Lei a Moisés, no Monte Sinai. Na era cristã, a Igreja lembra nessa data a descida do Espírito Santo sobre Nossa Senhora e os Apóstolos, reunidos no Cenáculo.

Ao comentar os ricos aspectos dessa festa católica — celebrada este ano no dia 30 de maio —, Dr. Plinio costumava salientar a união perseverante dos discípulos em torno da Santíssima Virgem, como sendo razão preponderante para que sobre eles viessem os dons do Espírito Paráclito e os frutos extraordinários daí decorrentes: “Em Pentecostes se verifica, por assim dizer, a constituição definitiva da Igreja. Antes desse acontecimento, os Apóstolos eram incapazes de conhecer e compreender de maneira cabal a grandiosa obra que lhes foi confiada. Essa incapacidade se dissipou com a vinda do Espírito Santo, passando a Igreja a viver neles de outro modo.

Poder-se-ia pensar que, antes de Pentecostes, a Igreja era como um boneco de barro, que recebeu então o sopro de vida, como o primeiro homem no Gênesis. Tudo se transformou, tudo começou a existir e a pegar fogo no mundo, e a contagiá-lo, até o apogeu dos dias de hoje em que o Evangelho é pregado a todos os povos. Quer dizer, no pior    momento da Paixão e Morte do Mestre, eles, porque se congregaram junto de Nossa Senhora, receberam toda espécie de graças, culminando na maravilha do dia de Pentecostes.”

Ainda sobre esse fundamental papel do Espírito Santo como vivificador da Esposa Mística de Cristo, deixou-nos Dr. Plinio estas outras belas e tocantes palavras: Ao ver as coisas da Igreja, sentia eu uma impressão curiosa. Mais do que uma instituição, Ela me parecia uma alma imensa que se expressa através de mil aspectos, que possui movimentos, grandezas, santidades e perfeições, como se fosse uma só grande alma que se exprimiu através de todas os templos católicos do mundo, todas as liturgias, todas as imagens, todos os sons de órgão e de todos os dobrares de sinos.

Essa “alma” chorou com os Réquiens , se alegrou com os bimbalhares da Páscoa e das noites de Natal; ela chora e se alegra comigo. Pensava eu: “Como eu gosto dessa ‘alma’! Tenho a impressão de que minha própria alma é uma pequena ressonância dela. Trata-se de algo no qual minha alma vive inteira, como dentro de um templo material. Tudo de que eu gosto é como ela é, e ela é como tudo de que eu gosto. À maneira de alma, isto é o ideal de minha vida, para isto quero viver, assim eu quero ser. Eu me sinto com relação a essa alma um pouco como um sol se espelhando numa gota de água. Eu sou a gota de água, essa ‘alma’ é o sol”.

Depois vim a saber que “aquilo” que eu percebera era o Espírito Santo, a alma da Igreja. É Ele quem atua na minha própria alma, templo d’Ele em razão do batismo, para se tornar receptiva à influência da Igreja.

Assim, o Espírito Santo é um cantor magnífico, que me concede o senso artístico necessário para apreciar o seu canto. E quando eu O louvo ou admiro suas obras, O louvo ou admiro pela luz que Ele mesmo fez incidir em mim…”

Festa de Pentecostes

A Festa de Pentecostes, celebrada neste ano no dia 20 de maio, recorda-nos o magno episódio da Igreja nascente, quando, reunidos os Apóstolos e a Santíssima Virgem no Cenáculo, de repente veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo (At 2, 2-4).

A importância dessa Festa, própria aos nossos pedidos de renovação espiritual e santidade, imbuídos de inteira confiança na infinita misericórdia do Paráclito, era assim comentada por Dr. Plinio: “Depois de sua dolorosa Paixão e Morte, Nosso Senhor ressuscitou e subiu aos Céus. Embora os Apóstolos tenham acompanhado de perto esses acontecimentos, sua fidelidade ainda precária não significava uma regeneração. Houve, da parte deles, atos de Fé bem expressos, reconhecendo e dando testemunho da ressurreição de Jesus, mas não se tem a impressão de que tenham mudado substancialmente.

“Após a Ascensão, eles se reúnem com Nossa Senhora no Cenáculo e passam os dias em oração. Em determinado momento, desce sobre eles o Espírito Santo, em forma de línguas de fogo, e dá-se então a mudança completa: os discípulos se transformam em luzeiros de ouro. Cada um deles, por assim dizer dotado de nova alma, feita de fervor, de vontade de realização, de sacrifício e de carismas extraordinários, converte-se em coluna viva da Igreja de Deus. No passo seguinte, eles se disseminam pela Terra e levam, às mais diversas regiões do mundo, a glória e o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Para nós, o que quer isto dizer?

“Significa que devemos sempre contar com graças muito especiais do Espírito Santo, sobretudo quando estivermos entravados, estagnados e descontentes na vida espiritual. Peçamos a Ele, a rogos de Nossa Senhora, constantemente, que desça sobre nós com uma abundância de dons, de maneira tal que nos transforme por completo.

“Dessa necessidade vem a linda prece a Ele dirigida: ‘Emitte Spiritum tuum, et creabuntur, et renovabis faciem terrae — Mandai, ó Senhor, vosso Espírito, e todas as coisas serão criadas, e renovareis a face da Terra’.

“Ou seja, antes de tudo, a face dessa nossa “terra” interior, da nossa própria alma, pode ser renovada de um instante para outro, por uma graça do Espírito Santo. Igualmente por uma particular intervenção d’Ele, há de ser regenerada a face do mundo, através do apostolado de autênticos católicos, inspirados pela Sabedoria divina, cheios de força e valor para enfrentar os inimigos da fé, assim como para atrair e fazer o bem a todos que devam pertencer à Santa Igreja.

“Compreende-se que tais graças nos sejam concedidas com maior abundância por ocasião da Festa de Pentecostes e que, portanto, importa-nos rogá-las e esperar que as recebamos nessa data. Sem nos esquecermos de fazê-lo por intermédio de Nossa Senhora, Esposa do Divino Espírito Santo e medianeira onipotente junto a Ele. Que o Espírito Paráclito desça e paire sobre nós, cumulando-nos dos dons celestiais que tanto desejamos. Amém.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 2/6/1965)

Vinde, consolador das almas desoladas!

Tocado de modo especial pela prece de Santo Agostinho ao Espírito Santo, Dr. Plinio no-la comenta, aproveitando a oportunidade para nos incutir uma fervorosa e humilde confiança no auxílio do Divino Esposo de Maria — tanto mais humilde e fervorosa, quanto mais sentirmos o peso de nossas debilidades e carências.

 

No ensejo da Festa de Pentecostes, creio que seria oportuno considerarmos algumas das belas invocações que Santo Agostinho dirige ao Divino Espírito Santo, na oração por ele composta [em destaque na página 21].

Amparo e remédio em nossas aflições

Vinde, vinde doce consolador das almas desoladas, refúgio no perigo e protetor na aflição desamparada.

Nesse pensamento do santo se nota a ideia de uma doçura forte ou de uma força doce. Com efeito, é próprio ao sabor das coisas celestes nos fazer sentir a bondade e a suavidade de Deus, ao mesmo tempo que nos comunicam uma grande firmeza espiritual.

Por exemplo, quando somos tocados por uma graça especial que nos comunica algo da doçura do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, nos tornamos mais resistentes às tentações, mais fortes no perigo, mais perseverantes na Fé.  Quer dizer, trata-se de uma doçura que comunica força.

Doce consolador das almas desoladas, diz Santo Agostinho. A desolação é uma espécie de auge de tristeza. Quando, na linguagem comum, alguém se mostra desolado, significa que experimenta um grande pesar, e nele não há quase senão tristeza. Para momentos de desolação, é o Espírito Santo que nos consola, ou seja, nos recobre de força para enfrentarmos a dificuldade.

Por outro lado, é nosso refúgio nos perigos.  Quais perigos?  Não são, primordialmente, os que afetam o corpo, mas a alma. Nossa salvação depara, a todo momento, com circunstâncias adversas que a comprometem. Nessas horas de incerteza, nosso refúgio e protetor é o Espírito Santo, com suas graças e sua ação nas profundidades de nossa alma.

Essa verdade nos deve incutir extrema confiança no Céu e, particularmente, na intercessão de Nossa Senhora. Quantas vezes, ao considerarmos nossos problemas e defeitos, nos pomos desanimados e hesitamos no caminho da salvação! Pois bem, cumpre termos então em vista que o Espírito Santo é o Esposo da Virgem Santíssima, e não recusa coisa alguma a Ela. Portanto, nossas preces, feitas por meio da Esposa Imaculada, serão sempre ouvidas pelo Esposo Divino. Tenhamos ânimo e coragem, pois em todas as nossas necessidades, encontraremos remédio no Espírito Santo.

Além disso, Ele é também o que nos protege em nossas desventuras, em nossos desamparos semeados de aflição. Quantas situações de vida espiritual não existem assim?  Rezamos, imploramos, e quando menos imaginamos, qualquer coisa nos toca a alma e nos sentimos aliviados. É a ação do Espírito Santo no fundo de nossos corações, ordenando-os e os tranquilizando.

Purificador das nossas misérias

Vinde, Vós que lavais as almas de suas sordices e que curais suas chagas.

Assim se exprimindo, Santo Agostinho quis assinalar como o Espírito Santo é, por excelência, quem lava as almas de suas misérias e as cura de suas chagas.

Mais uma vez aparece a ideia de um alento cumulado de doçura. Compreende-se: não raro, as pessoas consideram o interior de suas almas e as percebem tomadas de tantas chagas purulentas, de tantas sordices, que tendem ao desânimo. Como não desanimar? Não sentem forças para vencer a si mesmas!

Ora, esse é o momento de intervir a graça do Espírito Santo. Ele nos traz aquela força do Céu, com imensa suavidade, como uma luz dulcíssima, que penetra no âmago da nossa alma e a cura, a rejuvenesce. Tenhamos a certeza desse auxílio, e sentiremos outro ímpeto, outra coragem para subir, para continuar em frente no caminho da virtude.

Doutor das almas humildes

Vinde, doutor dos humildes e vencedor dos orgulhosos.

Outra bela invocação: Doutor dos humildes. O Mestre que esclarece e ensina às almas humildes, antes de tudo em face d’Ele. Ou seja, aquelas que reconhecem as próprias limitações e sabem que somente o Divino Espírito Santo possui a solução para todos os nossos problemas.

Aquelas que compreendem a necessidade da oração perseverante, a importância de pedir, implorar, e de fazê-lo com humildade. Eu, Plinio, sozinho, nada resolvo, porque não sou capaz de solucionar todas as dificuldades. Mas, se eu rezar ao Espírito Santo, por meio de Nossa Senhora, Ela, que é Mãe de Misericórdia, pedirá por mim e me alcançará as graças de que preciso. Esse é o caminho fácil, seguro e rápido para ser atendido. Essa verdade deve me manter alegre e de pé no meio das aflições pelas quais  todo homem passa nesse vale de lágrimas.

Somos órfãos na peregrinação por este mundo

Vinde, pai dos órfãos, esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência.

Essa invocação também nos leva a considerar o ponto que Santo Agostinho teve em vista ao compor a prece: a santificação daquele que a reza. Então, implora ao Pai dos órfãos.

De fato, quanto órfão há em matéria de vida espiritual! Se pensarmos, por exemplo, em todos aqueles que, num bendito dia, encontraram a vocação de servir a Igreja em nosso movimento, podemos dizer: “Se não fosse o fato de terem sido tocados pela graça e seguido o chamado de Deus, o que seria deles? A quantos riscos de se extraviar nos caminhos desse mundo estariam expostos? Como haveriam de, no fundo, sentir‑se órfãos?”

O pensamento é mais pungente: como o homem, ao longo da viagem nesta terra, é um órfão! Ainda que ele atinja os 80 ou 90 anos, é um órfão. Donde, essa bela invocação ao Divino Espírito Santo, como Pai daqueles que sentem a terrível orfandade dessa vida.

Esperança dos pobres, tesouro dos que estão na indigência. Antes de tudo, os pobres de espírito, que não têm nada a esperar e que, internamente, sentem sua própria carência, sem título nem méritos que os autorizem a pedir alguma coisa. Vivem somente da misericórdia. Desses é o Divino Espírito Santo o Pai de bondade e acessibilidade infinitas. É o seu tesouro inesgotável: peçamos, com confiança e humildade, e Ele, a rogos de Maria, nos ouvirá.

Estrela dos navegantes, porto seguro dos náufragos

Vinde, estrela dos navegantes, porto seguro dos náufragos.

Santo Agostinho expressa aqui dois conceitos que se relacionam. Primeiro, refere-se ao Espírito Santo como a estrela dos navegantes. O que lembra a invocação a Nossa Senhora como Estrela do Mar, o norte dos que navegam pelas águas turbulentas desta vida. Ora, pergunta-se: convém aplicar a Nossa Senhora o que Santo Agostinho afirma do Espírito Santo?

Sim, pois o que se diz do Esposo, se diz ao mesmo tempo da Esposa. Maria é a estrela dos navegantes por ser a Consorte mística daquele que é, por excelência, o astro de luz divina que nos guia pelo mar da existência terrena, com seus riscos, problemas, aflições.

Em segundo lugar, Santo Agostinho se refere aos náufragos. Quer dizer, o navio se estraçalha, o passageiro se agarra a um destroço e vai por onde as águas tocam. De repente, as correntes marítimas o levam para junto de um porto. Este porto é o Divino Espírito Santo.

Quer dizer, os vagalhões das tentações e das paixões impelem a alma do homem de um lado para outro. Ele se vê entregue às apetências mais desregradas, aos assomos de orgulho mais tumultuados, aos desregramentos sem remédio. Para ele, não há mais porto. Não? Engano. Sempre haverá, graças à intercessão misericordiosa da Santíssima Virgem junto a seu Divino Esposo. São Eles o porto seguro dos que naufragaram.  Rezem. Entrem nesse porto, e tudo se resolverá.

Salve, ó Deus, o que vai morrer te saúda!

Vinde, força dos vivos e salvação dos moribundos.

Outro belo jogo de conceitos: força dos vivos e salvação dos que morrem. Para o vivo, a existência terrena é uma luta na qual ele necessita de forças sempre renovadas.  Mas, ao morrer, precisa de uma graça especial, própria àquele supremo momento, a graça da boa morte. E essa salvação do moribundo está ao alcance de todo aquele que a implora ao Espírito Santo.

Essa circunstância lembra a pungente cerimônia que, na Roma antiga, desenrolava-se nas arenas onde se davam os jogos de gladiadores. Estes entravam em ordem, cada qual com suas armas de combate, paravam diante da tribuna do Imperador e bradavam, em latim: “Ave Caesar, morituri te salutant — “Ave, ó César, os que vão morrer te saúdam!”

Pungente! O César — o mais das vezes um soldado tosco e cheio de vícios, acomodado na segurança da tribuna imperial — vê se aproximarem dele, em passo de marcha, jovens robustos, munidos de espadas, tridentes, redes e lanças, para começar o combate, e que lutarão apenas para diverti-lo. Situação triste na vida, mas infelizmente assim se apresentava: aqueles eram os “morituri”.

Ora, numa comparação não desprovida de beleza, todo homem, na iminência da sua morte, pode dizer, não a um César impudico, mas a um Deus infinitamente perfeito:  “Ave, ó Deus, o que vai morrer te saúda!”  É a derradeira saudação antes da morte. Pois bem, para que essa saudação seja ouvida como um pedido de clemência e salvação, façamo-la ao Divino Espírito Santo, sempre a rogos de Maria, sem a qual nada alcançamos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1990)

 

Não perdi nenhum!

As considerações a respeito da solenidade de Pentecostes, por vezes se ignora um aspecto essencial, tão bem salientado por São Luís Grignion de Montfort no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem: “Quanto mais, em uma alma, Ele [o Espírito Santo] encontra Maria, sua querida e inseparável Esposa, mais operante e poderoso Se torna para produzir Jesus Cristo nessa alma, e essa alma em Jesus Cristo” (n. 20). Somente dessa maneira se tornará efetiva a renovação da face da Terra.

 Renovação que deve ser iniciada na alma de cada fiel, de maneira a ele se tornar uma tocha ardente de amor a Deus para atear em toda parte o fogo do Espírito Santo. Sem essa iniciativa misericordiosa da graça, com a vinda do Paráclito sobre as almas, pouco poderemos esperar do insuficiente esforço humano. “Em Pentecostes — comenta Dr. Plinio — os Apóstolos estavam reunidos em torno de Nossa Senhora, e eles rezavam. Se não fosse eles rezarem, podiam fazer a ascese que quisessem, não chegariam ao ponto onde chegaram num minuto, quando, atendendo aos rogos de sua Mãe, Nosso Senhor cumpriu a promessa enviando o Espírito Santo. Num minuto eles se transformaram”.(1)

É, pois, a difusão da verdadeira devoção a Nossa Senhora condição indispensável para o novo Pentecostes desejado pelas almas santas e requerido pela glória divina. É Maria que “produziu, com o Espírito Santo, a maior maravilha que existiu e existirá — um Deus-homem; e Ela produzirá, por conseguinte, as coisas mais admiráveis que hão de existir nos últimos tempos. A formação e educação dos grandes santos, que aparecerão no fim do mundo, Lhe está reservada” (n. 35), afirma São Luís Grignion.

Em consequência, tomando as palavras do santo mariano, podemos afirmar que a grande questão de nossos dias, na perspectiva sobrenatural, não é outra senão saber: “Quando chegará o dia em que as almas respirarão Maria, como o corpo respira o ar? Então, coisas maravilhosas acontecerão neste mundo, onde o Espírito Santo, encontrando sua querida Esposa como que reproduzida nas almas, a elas descerá abundantemente, enchendo-as de seus dons, particularmente do dom de sabedoria, a fim de operar maravilhas de graça” (n. 217).

Veremos, então, a transformação de povos inteiros por meio do que São Luís Grignion denomina o Segredo de Maria. Será, comenta Dr. Plinio, “uma operação da graça tal que se diria que a alma, objeto dessa operação, não tem mais livre-arbítrio, embora isto seja o auge do livre-arbítrio. Eu já vi almas passarem de repente por transformações tais, que me pareciam estar privadas do livre-arbítrio, de tal maneira elas mudavam e floresciam […]. Esse dia, creio eu, virá afetuosamente, amorosamente, pacientemente, de maneira que Nossa Senhora olhará para todo o rebanho d’Ela e dirá: ‘Eu Vos dou graças, meu Deus, porque de todos os que Vós me destes, Eu não perdi nenhum.’ Ela nos acompanhou pelos extravios, pelas infidelidades, pelas prostrações, pelas conspurcações, pelos olvidos, pelas ingratidões, por toda a poeira e lama do caminho. Mas a todo o mundo e a cada um, em determinado momento, Ela terá dito a palavra que os salvou”.(2)

 

1) Conferência de 1/9/1973.

2) Conferência de 26/4/1974.

Pentecostes

“Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae! — Senhor, mandai o vosso Espírito e todas as coisas serão criadas, todas as coisas reviverão, e a face da terra será mudada.”

Onde o Divino Espírito Santo se faz presente, Ele vence, assim como venceu no dia de Pentecostes, depois de descer sobre os doze Apóstolos reunidos no Cenáculo. Transformados, estes passam a pregar aos habitantes de Jerusalém. As conversões se tornam torrenciais. O inesperado se realiza. Homens de todas as partes do mundo se deixam tocar e mudam completamente, como outros tantos pregoeiros da grande nova: “Um Deus nasceu, um Deus se encarnou numa Virgem; morreu por nós e nos resgatou. As portas da salvação se abriram para nós!”

Tinha início a aurora da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, nimbada de glória a partir de Pentecostes.

Estrela do Mar e Porto de Bonança

Estrela do mar reluz com a bela e caridosa missão de orientar os navegantes que, em meio às vagas incertas e furiosas, correm o risco de se extraviar. Assim é Nossa Senhora que, na noite desta vida, brilha constantemente fixa e luminosa, indicando-nos o caminho do Céu.

Ela é, também, o nosso porto seguro. Quantas vezes nos debatemos em meio às ondas das provações inerentes à vida espiritual, ou decorrentes da fidelidade à Igreja! Ora é a prática da virtude, que parece não progredir; ora são as inevitáveis vicissitudes de nossa existência terrena, sempre nos pedindo cuidados, e muitas vezes nos trazendo dissabores. É, então, como se navegássemos num mar sem ponto de referência, esforçando-nos por atingir o fim de nossa trajetória.

Para tais ocasiões, a solução é o recurso à Santíssima Virgem, rogando-Lhe:

“Vós sois o Auxílio dos cristãos, o Refúgio dos pecadores. Está na vossa grandeza, ó minha Mãe, considerar meus defeitos, minhas necessidades, meus sofrimentos, e serdes para mim como um porto, abrigando-me neste mar alto e turbulento. A medida de vossa grandeza é também a de vossa misericórdia.

Tende pena de mim e acolhei-me!”

A expansiva piedade de São Crispim de Viterbo

Hino de exaltação à virtude da humildade, a vida deste santo italiano constitui uma iluminura na qual se retrata a inocência medieval aliada à santidade franciscana. Comentários de Dr.Plinio.

 

Alguns episódios da vida de São Crispim de Viterbo [ver quadro anexo], irmão leigo capuchinho, despertam nossa admiração pela extrema piedade que neles se revela.

Fez da cozinha conventual um lugar de devoção mariana

Nascido em 1668, foi consagrado desde a idade de 5 anos a Nossa Senhora, por quem teve especial devoção durante toda a sua existência. Tendo ingressado na Ordem dos capuchinhos, quis ficar entre os irmãos leigos, tomando como modelo São Félix de Cantalício.

No mosteiro, trabalhava nos jardins, fazia compras, cuidava dos doentes, passando as noites em oração e nas práticas de penitência. Ao ser encarregado da cozinha, nesta erigiu um altar à Santíssima Virgem. Aí era visitado por grandes senhores, cardeais e pelo próprio Papa Clemente XI que, certa vez, ali foi venerar a imagem da Mãe de Deus.

Chamo a atenção para a piedade contagiosa de um autêntico irmão leigo capuchinho. Era tão comunicativa que os grandes da época, tanto os da Igreja quanto os da sociedade temporal, dirigiam-se a esse altar erguido na cozinha do mosteiro, atraídos que eram pela devoção do santo.

Nossa Senhora concedeu-lhe o dom dos milagres. Certa vez, tendo curado uma pessoa chegada ao Sumo Pontífice, o médico afirmou: “Vossos remédios têm mais virtude que os nossos”. E o santo respondeu: “Senhor, sois um médico sábio e a cidade de Roma vos reconhece como tal. Mas, a Santíssima Virgem é muito mais sábia do que vós todos, médicos do mundo!”

O bom odor de Jesus Cristo, em Orvieto

Como irmão encarregado da despensa do convento, logo tornou-se estimado na cidade de Orvieto. O governador conversava com ele, e o Cardeal-Bispo da sua diocese detinha a carruagem em que ia para se entreter com o pobre frade na rua.

Imagine-se tais cenas encantadoras! Orvieto, já então cidade de certa importância na Itália, com sua linda catedral gótica, cuja fachada reluz ornada de lindos mosaicos coloridos. Fim de tarde, os trabalhos de todas as corporações encerrados, o movimento da cidade vai diminuindo, os sinos começam a tilintar, convidando os fiéis para a bênção do Santíssimo Sacramento ou para as Vésperas. Envolto numa penumbra azulada, ergue-se o palácio do Governo. Ali, também desobrigado de seus afazeres diários, o governador descansa e se entretém, sem empáfia, sem petulância, mas com naturalidade, com o humilde frade capuchinho. Embevecido, o magistrado dá graças a Deus por receber a visita do santo religioso.

Percebe-se, nesse contato, a beleza da lei dos contrários harmônicos; regozija-nos ver um grande personagem enlevado na conversa com um pequeno, embora, do ponto de vista sobrenatural, este último seria talvez maior que aquele.

O frade sai do palácio e segue seu caminho pelas ­ruas tortuosas da cidade. De repente, um ruído de ferros e de ferraduras, e uma carruagem se detém ao lado dele. A carruagem do Cardeal. Distinguindo-a, o frade mantém os olhos baixos, em atitude de respeito e reverência. Porém, o Príncipe da Igreja abre a porta do carro e diz:

— Entre, Frei Crispim, vamos conversar um pouco…

— Oh! Eminência!

— Que notícias o senhor me conta?

O frade narra-lhe alguns fatos da vida do convento, ou então, com toda a naturalidade, comenta:

— Tive uma visão assim…

O Cardeal é todo ouvidos, imerso em admiração.

Creio não ser difícil compreender como nos aproveita à alma recompormos cenas como essas, pois constituem o sabor de um passado no qual, segundo expressão de São Paulo, sentia-se o “bom odor de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Cor 2, 15), tão diferente dos cheiros perniciosos que vão se espraiando no mundo hodierno.

Na hora da morte, não quis “atrapalhar” a festa de seu padroeiro

O resultado dessa expansiva piedade foi que os habitantes de Orvieto não o deixavam ir-se embora. Nas vezes em que o transferiram de convento, o povo negou-se a dar esmolas para os religiosos. Quer dizer, era preciso fazer voltar Frei Crispim, senão os frades passariam fome…

Durante anos seguidos foi insultado por uma religiosa à porta da qual vinha bater. Dela, dizia sempre o santo: “Deus seja louvado, pois há em Orvieto uma pessoa que me conhece e me trata como mereço!”

Não vem a ser uma atitude “heresia branca”(1), mas um genuíno fioretti(2). Pois o justo cai sete vezes (Pr 24, 16) e, portanto, não se deve considerar isento de ouvir  rabugices e desaforos.

Frei Crispim ficou gravemente enfermo poucos dias antes da festa de São Félix de Cantalício, seu padroeiro. Como os frades lhe dissessem que logo compareceria diante de Deus, respondeu-lhes que isso só ocorreria após a comemoração de São Félix, pois sua morte atrapalharia a festa do santo.

Outro fioretti!

O santo irmão leigo capuchinho faleceu em Roma, em maio de 1750.

Contrastes que formam a beleza da Civilização Cristã

Sem dúvida, uma existência admirável, que nos proporciona não apenas um motivo de enlevo, um exemplo a ser imitado, mas também um ensinamento que merece ser ressaltado.

Com efeito, no ambiente em que ele viveu, houve toda uma floração de irmãos leigos capuchinhos, talvez não tão eminentes na virtude, mas todos daquela escola que engendrou São Félix de Cantalício e o nosso próprio santo, constituindo uma nota de exaltação da humildade.

Dir-se-ia que esses religiosos eram ecos da paz, da serenidade de alma, da bondade características da cristandade medieval, dessa Idade Média entretanto tão gloriosa pela sua pompa e por suas batalhas. E é justamente nesse encontro harmônico de contrastes que reside a quintessência da beleza. Se quisermos compreender o esplendor da Idade Média combativa, consideremos a serenidade de um São Crispim de Viterbo ou de um São Félix de Cantalício. Se desejarmos entender a bondade desses dois santos, contemplemos a pugnacidade peculiar àquela época histórica.

Desse conjunto de contrastes harmônicos depreende-se a grandiosa beleza da Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/5/1967)

 

1 ) Expressão empregada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental e adocicada que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc.

2 ) “Florzinhas”, em português. Significam pequenos propósitos a praticar, ou a descrição de algum fato edificante da vida de alguém. Célebres são os fioretti de São Francisco de Assis. Vale notar que em italiano o singular é fioretto. Dr. Plinio, porém, costumava usar o plural, atendo-se ao título da mencionada coletânea franciscana.

Auxílio dos pequeninos

Nossa Senhora Auxiliadora Se apresenta a nós com o Menino Jesus no braço para indicar a relação materna que Ela tem com o Divino Infante. Relação de intimidade absoluta, com a disposição de atender as últimas e menores dificuldades de uma criança, com aquele afeto, aquela bondade que se tem para com o pequenino e o fraco.

Maria Santíssima é também a Mãe do Corpo Místico de Cristo e, portanto, de todos os cristãos. Em relação a cada um de nós, a posição d’Ela é de querer que sejamos como o filho carregado no colo a quem Ela dá muito mais do que pede, e até mesmo o que ele não sabe pedir.

Mas a condição para receber é pedir com essa intimidade e a certeza de ser atendido, como uma criança de colo. A esse título, Ela nos auxilia com aquela multidão de auxílios dados aos pequenos.

O maior dos auxílios que Nossa Senhora pode nos conceder é nos comunicar seu espírito de santidade, sua autenticidade de virtudes, sua força e a vitória contra o demônio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/5/1966)

 

Madre Thérèse-Camille de l’Enfant-Jésus

Mais importante do que fazer uma imponente obra é edificar pelo exemplo. Eis a lição tirada por Dr. Plinio da conturbada vida da Madre Thérèse-Camille de l’Enfant-Jésus.

 

A  24 de julho de 1784, recebia o véu no Carmelo Mademoiselle Camille de Soyécourt(1), filha da mais alta nobreza da França. Jovem, entretanto, tão franzina e acometida, segundo os médicos, de uma moléstia incurável do coração, que todos julgavam não poder permanecer mais de seis meses no convento. Contudo, ela não somente sobreviveu muitos anos como, sem dúvida, sua personalidade teve destaque notável, embora desconhecido, na preservação do Carmelo de Paris durante a Revolução Francesa.

Familiares guilhotinados

Em 1792, seu convento foi invadido e as religiosas dispersas. Irmã Camille, liderando o grupo delas, instalou-se numa casa, firmemente decidida a manter vivo o espírito carmelitano. Denunciada, a pequena comunidade foi presa. Quando obteve a liberdade, Mademoiselle de Soyécourt refugiou-se em casa de sua família, mas por pouco tempo, pois seus pais e duas irmãs foram encarcerados.

Após numerosas peripécias, empregou-se numa fazenda. Durante todo esse tempo não deixou de cumprir o mais rigorosamente que pôde os preceitos do Carmelo: jejuava, recitava o Ofício nas horas devidas e confessava-se, com grande dificuldade, semanalmente, com um padre refratário.

Um dia teve a notícia da condenação de seus familiares, todos guilhotinados. Soube então que sua irmã deixara um filho, pequeno ainda. Apesar de sua dolorosa situação, Irmã Camille foi tutora do sobrinho até a morte.

Expulsa da fazenda onde trabalhava, pois a morte de seus pais traiu sua pessoa, a religiosa mendigou algum tempo. Tendo encontrado uma Irmã de seu convento, decidiu restabelecer sua Ordem. Com o dinheiro das esmolas e com auxílio de padres refratários obteve a capela de um seminário, recomeçando os ofícios religiosos.

Copiava e distribuía a Bula de excomunhão de Napoleão

Terminado o Terror, Mademoiselle de Soyécourt, então uma figura alta, pálida, grave e suave, decidiu reobter para seu sobrinho e para seu convento a fortuna de seus pais. Causava espanto aos notários e homens da lei a presença dessa mulher paupérrima, falando de milhões, de venda de terras e de compra de imóveis.

Mas conseguindo integralmente o que desejava, a religiosa chamou para junto de si as suas Irmãs dispersas. E o convento carmelita de Paris reinstalou sua comunidade. Aí ela viveu mais de 45 anos, não sem problemas. Por exemplo, em janeiro de 1811, Fouché foi informado de que uma senhora carmelita, superiora do Carmelo, ocupava-se ativamente em copiar e distribuir a Bula de excomunhão do próprio Imperador. Foi por isso presa num lugar bem distante do convento, o que não a impedia de atender sua comunidade, fazendo-lhe visitas inteiramente disfarçadas, e passando, desse modo, diante dos guardas, com toda a segurança.

A Restauração tirou-a desse exílio. Quando suas dificuldades morais pareceram diminuir, começaram as físicas. Seu corpo tornara-se quase diáfano, por causa dos jejuns e penitências. Aos 85 anos, ainda dormia sobre uma tábua, apesar da gota dolorosíssima e de dores de estômago que não lhe permitiam repousar. Manteve, entretanto, como sempre em sua vida, inalterável bom humor e sua proverbial intrepidez. Repleta de dores, veio a falecer, em 1849, aos 92 anos de idade.

Vida cheia de inusitados contrastes

Gostaria que nos colocássemos diante dessa biografia(2), não no ponto de vista de quem simplesmente a lê, mas de quem a viveu. Então, vermos tudo quanto foi acontecendo para ela como próprio a uma vocação, a um objetivo muito definido, nos quais ela se adentrou com todo o empenho de sua alma.

Ela entra no Carmelo, forma-se, e poderia esperar ter, por exemplo, uma vida como a de Santa Teresa de Jesus ou de Santa Teresinha do Menino Jesus, ou seja, transcorrida inteira no Carmelo, com essas ou aquelas dificuldades, mas dentro da vida carmelitana. Com certeza, ela tivera mil apetências sugeridas pela graça para isso.

Entretanto, o que aconteceu? Ao invés de levar essa vida, eclode a Revolução Francesa e a Irmã Camille vai para o cárcere. Suponhamos que ela tenha pensado na hipótese do martírio: “Vou dar a minha vida, ficarei uma santa. Está bem, aceito com todo o gosto”. Conformidade… Ora, ela foi posta em liberdade.

Ela, que esperava viver ao menos sozinha para Deus, transforma-se em chefe de família, apesar de solteira, e fica tutora de um sobrinho.

Tendo sido uma moça rica, perde a fortuna. Os pais vão para a guilhotina e ela se torna criada numa fazenda, isto é, trabalhadora manual. Ela, que dera sua vida à Igreja, de nobre passa a religiosa e depois a trabalhadora manual em fazenda. A biografia não entra nesses pormenores, mas nada exclui a hipótese de que ela tenha tido que limpar estábulos e realizar outras tarefas prosaicas desse gênero.

Depois, é posta fora desse emprego e vira mendiga, tendo que cuidar ainda do menino. Começa a mendigar de um lugar para outro e, de repente, passada a Revolução Francesa, ela se transforma em mulher de negócios. Começa, então, a bater os cartórios para recompor a fortuna à qual tinha direito.

Tudo isso era completamente contrário ao que ela queria. Porém, ela sempre com o mesmo objetivo: ser carmelita. A tal ponto que reconstitui o Carmelo. Então, começa a vida normal de carmelita, mas vem a prisão que a interrompe novamente. Afinal, ela volta para o Carmelo. Dir-se-ia que ela vai levar uma vida tranquila. Então se inicia outro gênero de provação.

O que é ser pessoa realizada?

Poder-se-ia pensar: “Bem, coitada, é a fase final. Agora ela vai morrer e repousar em Deus.”

Nada de repousar em Deus! Vai ainda lutar na Terra até o último alento. Vive até os 92 anos, sempre praticando penitência, sendo modelo de religiosa, aguentando doenças e, afinal, morre numa idade que, com certeza, nunca podia imaginar atingir.

Aos olhos do espírito moderno, como considerar isso? Foi uma vida frustrada ou realizada?

Para os homens de hoje a vida realizada seria se ela tivesse entrado no convento e ficado religiosa direitinho até o fim. Como houve fatos que atrapalharam sua vida e a obrigaram a ser uma porção de coisas que não queira, ela cem vezes durante sua existência deveria ter se sentido frustrada, abandonado a vocação. E quando chega a doença, ela devia ter dito: “Não tem mais solução. Deus me entregou. Porque agora que eu poderia levar a vida normal de uma carmelita, começo a ter uma existência de doente”.

 Nós, entretanto, dizemos que foi uma grande vida realizada. E é impossível ouvirmos essa narração sem sentirmos a maior admiração por ela.

Mas então nos perguntamos: o que vem a ser a realização? Aqui entra o choque do homem moderno contra o espírito católico.

Segundo o espírito do mundo, ela não foi uma pessoa realizada porque não levou a vida que desejava. Teve uma existência inteiramente diferente daquele ponto para onde tendiam os seus esforços. Ela, portanto, não realizou a obra que empreendeu. Em última análise, a noção de indivíduo realizado que nós vemos por aí é, ou quem levou a vida que quis, ou o que ganhou muito dinheiro, suposto sempre que todo mundo quer adquirir dinheiro. Ora, ela não ganhou muito dinheiro e não levou a vida que quis. Logo não foi uma pessoa realizada.

Mas é impossível ouvirmos a leitura dessa ficha sem vermos que ela foi realizada. Então, no sentido verdadeiro da palavra, o que é a realização? Não é o que o espírito moderno pensa. A realização é, no sentido mais imediato – não no supremo –, a realização de si próprio. Quer dizer, vê-se que ela efetivou uma grande personalidade. Foi uma pessoa de grande virtude que, no esplendor de sua virtude, manifestou um grande número de qualidades até naturais de que a Providência a tinha dotado. Levou até a perfeição mil coisas que nela estavam potencialmente. É como uma semente que deu inteiramente uma esplêndida árvore.

Então, realizar-se, nesse sentido mais imediato da palavra, é o atingir a sua própria perfeição. Se fez ou não o que quis, não tem importância. O importante é ter chegado à sua própria perfeição.

Nunca se sentiu quebrada e sempre caminhou para a frente

Ademais, ela realizou essa perfeição, não através de uma série de fracassos consumados, mas vê-se que sua vida teve uma continuidade. Embora não fosse tudo como ela queria, eram os planos que Deus traçara a respeito dela. Ela, portanto, fez a vontade da Providência.

Quando acabamos de ler essa síntese de sua vida, percebemos a grande obra da Irmã Camille para a glória de Deus entre os homens. Não foi tanto de acabar fundando um convento – o que é uma obra excelente –, mas uma coisa muito maior: ter deixado um grande exemplo de perseverança, resolução, força de alma, confiança na Providência divina, obediência aos desígnios de Deus nas circunstâncias mais adversas da vida.

De maneira que, enquanto sua memória for conhecida pelos homens, haverá pessoas fracas, em condições difíceis, que terão um alento maior para enfrentar as dificuldades da vida, por causa do exemplo dela. E Irmã Camille vai ser a força dos fracos, a luz daqueles que estiveram na incerteza, na penumbra. Por quê? Porque foi o grande exemplo que ela deixou; isso é algo muito maior do que fazer uma grande obra.

Um grande convento é uma coisa esplêndida, mas se não fosse, ele mesmo, um grande exemplo, não adiantaria de nada. Abaixo do culto a Deus, a melhor coisa que podemos fazer é edificar pelo exemplo. As nossas palavras e ações vêm abaixo do exemplo. As palavras movem, o exemplo arrasta.

Irmã Camille deixou um exemplo de força de alma, e se percebe que, através de todas as incertezas da sua vida, ela foi sempre forte. Nunca se sentiu quebrada, sempre caminhou para a frente fazendo o dever de acordo com o que queria a Providência, sem perder a unidade do que ela estava realizando.

Mas entendendo que, fazendo o dever do momento, ela cumpria a vontade de Deus. No Céu ela está vendo essa unidade que Deus quis. E ela talvez não tivesse calculado que o seu exemplo irradiaria tanto, pudesse ser tão conhecido.

Trata-se de uma personalidade extraordinária, uma pessoa que talvez ainda venha a ser canonizada. Essa é a vida de alguém que cegamente vai seguindo diante das dificuldades, agindo e não se incomodando. No fim vem a glória de ter dado um bom exemplo, obedecendo a Deus. A meu ver, eis a grande lição que esta nota biográfica nos ensina.            

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/2/1970)

 

 

1) Serva de Deus, cujo processo de beatificação, aberto em 1938, ainda está em curso.

2) Não dispomos das referências bibliográficas.