Um guerreiro que descansa…

Ao ver fotografias do Castelo de Coca (Espanha), Dr. Plinio analisa o estilo de vida que seus habitantes levavam, e a defesa que tal construção significava contra os inimigos.

 

A primeira impressão causada ao ver fotografias do castelo de Coca é que se trata de uma coisa irreal. Tem-se vontade de dizer: “Isto não existe”.

O artista soube fotografar o castelo numa hora de um contraste muito feliz: o céu sombrio e o castelo muito iluminado. Se o céu fosse azulzinho e não ameaçante, o castelo perderia algo.

Mas não se trata de um sombrio qualquer, pois nota-se no céu uma parte que está luminosa. Dir-se-ia que um raio acabou de passar por lá como um corisco, deixando um resto de luz a qual o ilumina tão magnificamente.

Que castelo! Tem-se a impressão de que é tão grande, têm tantas torres e muralhas, tantos salões e espaços, que se diria ser um castelo incomensurável, de conto de fada.

Imaginemos o viver delicioso dos que nele habitam. Capela interna magnífica e grande como uma catedral; estupendas salas de refeição, de recepção, de trabalho, de reuniões políticas; dormitórios extraordinários; todas as formas de conforto do tempo em que esse castelo foi construído, para um número indefinível de personagens. Personagens nobres, vestidos com riqueza, de maneiras requintadas; quando se encontram nos corredores saúdam-se com cerimônia e fazem grandes reverências, e ao mesmo tempo cochicham e fazem política uns para os outros, ou contra outros, no vai-e-vem da vida de todos os dias.

Realmente, esse castelo foi construído com uma preocupação artística muito apurada. Por exemplo, ele é marcado por umas listas brancas em toda a sua extensão: são pedras de outra qualidade, que formam uma espécie de alternância e concorrem para sua beleza.

Observado o castelo, nota-se em sua parte central um torreão, que é um maço de torres coligadas entre si. Diante desse torreão, percebe-se um pátio enorme, cercado por altas muralhas e grandes torres em cujas extremidades há um conjunto de torres especial que faz uma espécie de equilíbrio com o do centro. Depois, isso se repete, para se chegar ao pátio externo do castelo.

Parece que ele está separado por um valo de água ou um rio.

O castelo nos fala, sem dúvida, de uma requintada vida nobre com as mil delicadezas da civilização cristã. Entretanto, estas se deterioram quando existem num clima sem heroísmo. Ora, esse castelo é feito para combater. É uma fortaleza calculada para resistir a um cerco tão longo que as tropas do adversário vão ficando cada vez menos numerosas e acabem desistindo do ataque. Assim, os assediados podem mandar avisar os aliados, para que venham em socorro deles.

Esse castelo é tão enorme que quase não se imagina como uma tropa possa cercá-lo inteiro; sempre fica com uma portinhola livre para saírem os mensageiros ou entrarem os aliados. É inconquistável ou muito difícil de conquistar. Quando os adversários eram tão numerosos que conseguiam fazer o cerco do castelo, como o castelão se defendia? Mandava um aviso aos seus aliados por meio de pombo-correio, solto de uma das mais elevadas torres, a fim de levantar voo bem alto e não ser atingido pelas flechas do adversário. Numa das patinhas, levava amarrada por uma pequena argola, uma mensagem assinada pelo senhor deste castelo para algum aliado dele.

Às vezes, os castelos muito seguros tinham ainda um ou vários subterrâneos, que conduziam a lugares tão distantes, que o sitiante desconhecia: uma gruta, onde de repente se movia uma pedra e saía um mensageiro, rápido como um corisco; uma árvore, várias vezes centenária, na qual se tinha aberto uma saída de onde saltava um homem e corria levando um aviso. Em alguns casos, esses locais eram guarnecidos por um vigilante oculto, de maneira que se o adversário quisesse entrar ali, de repente uma flecha o atingia pelas costas e ele morria.

O sistema de defesa do castelo era o seguinte:

No primeiro plano se vê uma série de muralhas, no alto das quais devemos imaginar, nos grandes dias de cerco, arqueiros que atiravam flechas sobre os mais próximos inimigos; às vezes eram setas incendiárias que queimavam as pessoas atingidas; ou, lançadas na retaguarda onde estava  o nobre que dirigia o assalto, dificultavam a manutenção do ataque. Se porventura o sitiante conseguisse ultrapassar a primeira muralha, teria depois outras batalhas diante da segunda e por fim frente à terceira. De maneira que eram três guerras concêntricas.

Ora, os que assaltavam o castelo eram sempre pessoas que vinham de outras regiões. Os habitantes do lugar não lhes davam comida, indicavam-lhes caminhos errados. À noite, quando os sitiantes dormiam, a população ateava fogo em suas tendas. Durante o dia, quando os primeiros se apresentavam para combater, ficavam expostos ao ar livre enquanto que os sitiados lutavam detrás de muralhas. Compreendemos assim que um castelo destes é uma potência.

Da ideia de resistir sempre, e com coragem, provém um certo ar heroico deste castelo e que constitui o pináculo da sua elegância.

Uma das melhores definições da elegância, talvez seja esta: a leveza e a distinção do guerreiro quando descansa. Quem não é batalhador e polêmico, não tem verdadeira distinção, nem elegância. Aqueles nobres que lutavam assim contra as investidas maometanas, fortemente apoiados por seus camponeses nos quais eles viam filhos e que os tratavam como pais, fizeram, realmente, a defesa da Espanha e extirparam na Europa o perigo muçulmano. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 5/5/1984)

 

São Bernado

O aparecimento de São Bernardo na história foi como um esplendoroso nascer de sol. Ele é um dos sóis da Ordem Beneditina, é um dos sóis da Igreja Católica, é um dos sóis de toda a devoção mariana. É, por excelência, o homem da penitência e da mortificação. Homem que se transformou numa tocha ardente, numa chama de fogo deambulando pela Cristandade, purificando todas as  coisas pela sua eloquência e seu espírito repassado de indomável fervor. Homem da polêmica, que enfrentou e venceu em luta estrênua os maiores adversários do catolicismo no seu tempo.

Ao mesmo tempo, é o varão dulcíssimo, o “Doctor Melifluus” — Doutor com palavras doces como o mel  — , que soube como ninguém louvar a bondade e a misericórdia insondáveis de Nossa Senhora. D’Ela falou com tanta unção e arrebatamento, que pode ser considerado o literato, o poeta de Maria Santíssima na Igreja do Ocidente.

Plinio Corrêa de Oliveira

Assumpta est Maria, gaudent angeli!

Quando ascendeu ao Céu, Maria pôde contemplar os coros angélicos e a multidão de bem-aventurados que A receberam em festa. Considerações de Dr. Plinio manifestando seu encanto com a Assunção de Nossa Senhora

 

Devoção às alegrias de Nossa Senhora

Era costume entre os antigos reportar-se às alegrias da Santíssima Virgem. Essa era uma devoção bastante difundida, a ponto de um dos santuários marianos mais famosos do Brasil, o de Guararapes, em Pernambuco, ser dedicado a Nossa Senhora dos Prazeres.

Na vida de Nossa Senhora notamos inúmeros movimentos de alegria. O mais insigne deles é evidentemente o Magnificat.

Porém, nenhuma das alegrias que a Santíssima Virgem teve nesta vida foi tão grande quanto à da sua Assunção.

Após a “dormitio”(1), Maria ressuscitou no apogeu de seu estado físico, mas também no auge de sua vida espiritual, pois a maturidade do corpo e a maturidade da alma se relacionam.

No dia de sua Assunção, Nossa Senhora estava na plenitude da santidade. Sua alma santíssima, que não deixou de progredir um minuto sequer durante toda a sua existência terrena, tinha chegado ao clímax. A Virgem Maria chegara à suprema perfeição. Possuía incomparável beleza de alma, pois estava repleta de virtude; seu amor a Deus atingira o apogeu. Essa santidade transluzia em toda a sua pessoa e Lhe dava uma beleza incomparável.

Entrada de Maria no Céu

Podemos imaginar sua alegria, sabendo que, a partir daquele momento, entraria no Céu com corpo e alma. Passaria por um cortejo incontável de Anjos, que prestariam a Ela homenagens como nunca nenhuma rainha deste mundo, nem de longe, recebeu. E Ela compreendia a natureza de cada Anjo, sua luz primordial(2), a graça recebida por cada um, seu amor a Deus, e o amor de Deus para com cada um deles. Maria Santíssima tinha o conhecimento perfeito da hiperdulia que as miríades de Anjos Lhe prestariam. E Ela, tendo uma alegria completa por cada um desses louvores, sabia que os merecia, porque tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e seu espelho fidelíssimo.

Imaginemos que um Anjo da guarda aparecesse para um de nós e dissesse: “Meu filho dileto, você é extraordinário! Sobre você pousam todas as minhas complacências. Você é inteiramente digno de minha benevolência.” Esta pessoa teria grande tentação de vaidade. Um elogio desses, feito por uma natureza angélica, imensamente maior do que a nossa, é algo inebriante…

Sendo mera criatura humana, Nossa Senhora estava recebendo o amor entusiástico de todos os Anjos, e a corte que durante milhares de anos tinha esperado sua Rainha ficou transformada em algo lindíssimo, porque Ela estava chegando. A beleza do mundo angélico não atingira toda a formosura para a qual fora criado, porque era preciso que uma criatura humana o governasse. Nossa Senhora coroava com uma perfeição altíssima a beleza do Céu.

Certamente, Ela deve ter se encontrado com as almas santas que tinham subido ao Céu após a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, e sem dúvida encontrou-se com São José, com quem permutou uma saudação cheia de respeito e afeto sobre a qual nem sequer podemos ter ideia. Como deverá ter sido a alegria da alma de São José ao rever Nossa Senhora?

Beleza do transluzimento da santidade em Nossa Senhora

Maria Santíssima crescia continuamente em graça e santidade, por isso, quando chegou a hora de sua morte, Ela era muito mais santa do que quando São José morreu. Quando ele A viu ressurrecta, repleta de toda a santidade que deveria atingir segundo os planos de Deus — e que de fato Ela atingiu —, notou que a santidade transluzia em toda a sua pessoa com uma beleza incomparável. Com que veneração São José, afinal, via Nossa Senhora em corpo e alma, cujo esplendor era ainda maior do que Ela possuía na Terra!

São Joaquim e Santa Ana, sendo pais de Nossa Senhora, devem certamente ter tido o privilégio de assistirem, a partir de um lugar de destaque o ingresso d’Ela no Céu. Sabemos que os pais têm uma propensão natural por seus filhos, sobretudo quando são excelentes pais. Afinal, era justo que, tendo dado Maria Santíssima ao gênero humano, assistissem de um lugar especial a sua entrada no Céu.

Adão e Eva, os primeiros pais do gênero humano, deveriam estar ali presentes. Depois de verem tantas desgraças causadas por seu pecado, puderam contemplar o remédio concedido por Deus para solucionar esse pecado, fazendo nascer Nosso Senhor Jesus Cristo e glorificando de tal maneira a Mãe Imaculada do Redentor.

Podemos ainda imaginar o desfile maravilhoso das almas eleitas e dos Anjos que A receberam no Céu, por assim dizer gradualmente, num como que desfile esplêndido, cantando hinos de glória. E, afinal, todo o paraíso celeste pondo-se a cantar, enquanto Ela sobe até o trono da Santíssima Trindade.

Por fim, a Assunção chega ao seu auge: a coroação de Nossa Senhora como Rainha dos Anjos e dos Santos, do Céu e da Terra, pela Santíssima Trindade. Houve então uma verdadeira festa no Céu. Não é uma hipérbole, mas uma festa autêntica, em termos e modos que não podemos imaginar. Foi o mais alto grau de alegria que possa haver. Ela foi coroada por ser Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filha do Padre Eterno e Esposa do Divino Espírito Santo.

 

(Extraído de conferências de 15/8/1966 e 1/11/1975)

 

1) A morte d’Ela foi tão leve que se compara a uma dormição.

2) Dr. Plinio assim designava o conjunto de virtudes ou atributos divinos que cada Anjo, ou cada alma, é especialmente chamado a conhecer e amar.

A Assunção e o maternal legado da Virgem Maria

Ao concluir seu Evangelho, São João afirma que se fossem narrados todos os feitos do Salvador, “nem o mundo inteiro poderia conter os livros que seria preciso escrever”(1).

Não obstante a beleza e profundidade desta afirmação, quem de nós leu os Evangelhos sem se lamentar, nesta ou naquela passagem, da ausência de certos detalhes que julgávamos indispensáveis à nossa piedade?

Se isso ocorre com as narrativas evangélicas, o que dizer, então, dos episódios que, por misteriosos desígnios de Deus, nem sequer foram mencionados nas páginas sagradas?

Tal se dá com a Assunção da Santíssima Virgem, cujos esplendores ocultam-se misteriosamente sob o véu do silêncio, rompido apenas pela Tradição e pela elucubração teológica, entretanto suficientemente eloquentes para fundamentar tão augusta verdade. Com efeito, a força da Tradição, que Dr. Plinio relaciona intimamente a Maria nesta edição(2), afirma-se de modo incontestável no dogma da Assunção de Nossa Senhora ao Céu.

Como os Evangelistas, também a proclamação deste dogma mariano não fornece detalhes… Contudo, isso favorece a ação do Espírito Santo em nossas almas, permitindo-nos imaginar piedosamente aquilo que a Revelação e o Magistério não explicitaram.

Para Dr. Plinio(3), a Assunção começa com a manifestação de todas as glórias que havia em Nossa Senhora, como ocorrera com seu Divino Filho no Tabor, causando nos presentes exclamações de admiração.

Ao mesmo tempo, no auge dessa “mariofania”, todos devem ter experimentado uma tal intimidade e união com Ela, vendo-A “tão meiga, tão afagante, tão tonificante, tão reparadora e tão mãe, que se sentiam como ajoelhados junto a Ela, recebendo suas carícias, ‘embebidos’ d’Ela, como um papel pode estar impregnado de perfumado azeite”.

Em determinado momento, “começam os ares a se mover, e os ventos como que a tomar forma e flutuar de modo singular; definem-se figuras angélicas e o céu se revela sucessivamente povoado de Anjos a cantar. Nossa Senhora, atingindo o auge de esplendor indescritível, torna pálidos os puros espíritos, entretanto tão majestosos!

“Chega a hora da despedida… A Virgem Maria começa a mover-se, olhando um a um com afeto, na tentativa de transpor a distância física que aumenta a cada instante. Os Anjos cantam celestialmente e, por fim, Nossa Senhora desaparece no céu. Os cânticos angélicos fazem-se ouvir por mais alguns instantes para consolar os homens, mas depois vão desaparecendo também gradualmente.”

Restava à humanidade enlevada, a doce lembrança desse augusto momento, perpetuada ao longo dos séculos pela Tradição e por um certo imponderável, maternal legado da Santíssima Virgem que permitirá sempre, a qualquer fiel verdadeiramente sincero, reconstituir e reconhecer a face inteira da Igreja(4).

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Jo 21, 24.
2) Ver seção “Reflexões teológicas”, número 185 da Revista Dr Plinio, p. 22-25.
3) Citações adaptadas, extraídas de conferência de 15/8/1980.
4) Cf. “Reflexões teológicas”, no número 185 da Revista Dr Plinio, p. 25.

São Cura d’Ars

A um erudito advogado que retornava de sua visita à cidade francesa de Ars, perguntaram o que mais o havia interessado naquele povoado. “Vi Deus num homem”, respondeu o profissional das leis aos seus atônitos interlocutores. De fato, ele conhecera São João Maria Vianney, em cuja alma luminosa e perfeita se podia contemplar um magnífico reflexo da infinita santidade divina.

Muitos se convertiam apenas o observando a pregar no púlpito, de longe, admirando-lhe os gestos e a atitude, sem sequer conseguir ouvi-lo. Imbuído e compenetrado das doutrinas que ensinava, as pessoas tinham a sensação de um como que contato vivo com as verdades das quais ele era arauto.

O Cura d’Ars pertence a essa categoria de homens a quem Deus confere a missão de tornar de algum modo translúcido o sobrenatural. De sorte que, perto deles, sentimos o que os Apóstolos  experimentaram no Tabor, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 77 (Agosto de 2004)

Espelho fidelíssimo de Jesus

Nossa Senhora devia conhecer o dia de sua Assunção, porque Ela estava na plenitude de sua santidade. Sua vida espiritual, que não deixara um instante de progredir de um modo admirável durante toda a sua existência, tinha chegado àquele clímax em que Ela possuía a perfeição perfeitíssima, a beleza belíssima, a virtude virtuosíssima, que tinha chegado, portanto, ao apogeu dos apogeus, e seu amor de Deus nunca fora maior do que naquele momento. Ela então sabia que, imediatamente depois de ressuscitada, seria elevada ao Céu.

Imaginem o estado de espírito de Maria Santíssima ao saber que, a partir daquele instante, iria gozar da visão beatífica, que Ela passaria por um cortejo infindo de Anjos dos quais receberia as maiores homenagens possíveis; e tendo uma ciência perfeita da hiperdulia dos milhões e milhões de espíritos celestes, todos se dirigindo a Ela e aclamando-A com o maior amor, o maior respeito, a maior veneração!

Ao tomar conhecimento de cada louvor, a Santíssima Virgem sentia um amor e um gáudio completos, ciente de que esses louvores eram merecidos, porque Ela tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e o espelho fidelíssimo de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1966)

O fato mais glorioso da História, depois da Ascensão

Durante a Assunção de Nossa Senhora, toda a natureza e os próprios Anjos refulgiam magnificamente, como nunca, refletindo de modos diversos, à maneira de uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. Porém, nada disso podia se comparar com o esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu.

 

Um fato que chama a atenção, na História Sagrada, é Nosso Senhor ter querido subir ao Céu aos olhos dos homens; e que acontecesse o mesmo com a Assunção de Nossa Senhora. Por que a Ascensão e depois a Assunção deveriam dar-se à vista dos homens?

Ascensão e Assunção

Quanto à Ascensão há várias razões e a mais protuberante delas é de caráter apologético. Era preciso que os homens pudessem dar testemunho deste fato histórico duplo: não só de que Jesus ressuscitou, mas de que Ele subiu ao Céu, a sua vida terrena não continuou. Subindo ao Céu, Ele abriu o caminho para incontáveis almas e Se assentou à direta do Padre Eterno. Ele, na sua humanidade santíssima, foi a primeira criatura – e ao mesmo tempo é Deus – a subir aos Céus em corpo e alma, como nosso Redentor, abrindo o caminho dos Céus para os homens.

Mas havia uma outra razão: era necessário que Ele, tendo sofrido todas as humilhações, recebesse todas as glorificações. E glória maior e mais evidente não pode haver para alguém do que subir aos Céus, porque é ser elevado por cima de todas as alturas.

E aqueles que se salvarem transcenderão todo esse mundo onde nos encontramos, e irão para o Céu empíreo aonde Deus Nosso Senhor está, para se unirem a Ele eternamente. E assim como Nossa Senhora havia participado como ninguém do mistério da Cruz, o Redentor quis que Ela tivesse a mesma forma de glória, participasse como ninguém da glorificação d’Ele. E a glorificação de Maria Santíssima se dava por esta forma, sendo levada aos Céus. E no momento em que lá entrou, a Virgem Maria foi coroada como Filha dileta do Padre Eterno, como Mãe admirável do  Verbo Encarnado e como Esposa fidelíssima do Espírito Santo. Anjos rutilantíssimos Nossa Senhora teve uma glorificação na Terra e depois uma glorificação no Céu. Portanto, nós precisamos considerar a Assunção como tendo sido um fenômeno gloriosíssimo.

Infelizmente os pintores, a partir da Renascença, não sabem representar de um modo adequado a glória que deve ter cercado este espetáculo. Devemos imaginar o seguinte: É próprio às coisas da Terra que quando se quer glorificar uma pessoa, em sua residência, por exemplo, todos vestem seus melhores trajes, se exibem os mais belos objetos, colocam-se flores e tudo aquilo que há de  mais nobre para homenageá-la.

Tal regra está dentro da ordem natural das coisas e é seguida também no Céu. O maior brilho da natureza angélica, o fulgor mais estupendo da glória de Deus nos Anjos deve ter aparecido exatamente no momento em que subiu ao Céu Nossa Senhora. E se foi permitido aos mortais verem os Anjos com seus próprios olhos, eles deveriam estar rutilantíssimos, com um esplendor absolutamente invulgar. E se não foi dado a todos os mortais contemplar os Anjos nesta ocasião, é certo, pelo menos, que a presença deles se fazia sentir de um modo imponderável, porque muitas vezes na História isso ocorreu, embora não fosse propriamente uma visão, ou uma revelação deles.

A glória interior de Nossa Senhora ia transparecendo como no Tabor

É natural também que nesta hora o Sol tenha brilhado de um modo magnífico, que o céu tenha ficado com cores variadas, refletindo de modos diversos, como uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. E que as almas das pessoas felizes ali presentes tenham sentido essas glórias em si de um modo extraordinário, de maneira tal que houve uma verdadeira manifestação do esplendor de Deus em Nossa Senhora.

Mas nenhum desses esplendores podia se comprar com o próprio esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu. À medida em que Ela ia se elevando, certamente, como numa verdadeira  transfiguração, a exemplo do Tabor, a glória interior d’Ela ia transparecendo aos olhos dos homens.

Falando de Nossa Senhora, diz o Antigo Testamento: “Omnis gloria eius filiæ regis ab intus” (Sl 44, 14), toda glória da filha do rei lhe vem do interior, daquilo que está dentro dela, e com certeza essa glória interna que Maria Santíssima possuía se manifestou do modo mais estupendo quando, já no alto de sua trajetória celeste, Ela olhou uma última vez para os homens, antes de definitivamente deixar esse vale de lágrimas e ingressar diante da glória de Deus.

Relíquia concedida a São Tomé

Compreende-se que deve ter sido, depois da Ascensão de Nosso Senhor, o fato mais esplendorosamente glorioso da História da Terra, comparável apenas com o dia do Juízo Final, em que Nosso Senhor Jesus Cristo virá em grande pompa e majestade, diz a Escritura, para julgar os vivos e os mortos; e com Ele, toda reluzente da glória do Divino Salvador, de um modo indizível aparecerá também Nossa Senhora aos nossos olhos.

Devemos considerar a impressão que tiveram os Apóstolos e os discípulos quando A viram subir ao Céu, recordando o fato que a tradição narra a respeito de São Tomé. Ele duvidou da Ressurreição e por isso foi convidado por Nosso Senhor a meter a mão na chaga sagrada do flanco d’Ele, para comprovar que era realmente Jesus. Depois recebeu o Espírito Santo em Pentecostes, ficou um Apóstolo confirmado em graça e tornou-se um grande Santo. Mas conta uma tradição venerável que, por ter duvidado, na hora da morte de Nossa Senhora, São Tomé não se encontrava  presente. Quando a Santíssima Virgem estava subindo ao Céu, já a certa distância da Terra, São Tomé foi trazido por Anjos para contemplar o final da Assunção. Aí vemos aquilo que poderíamos chamar a índole de Nossa Senhora, para cuja qualificação a palavra “materna” não basta, seria uma índole super materna, arqui materna, incomparável.

E ao receber esse castigo pungente, merecido, por uma culpa tão reparada de não ter podido estar presente à morte e ao início da Assunção de Nossa Senhora, ele olhou para Ela. Então, a Mãe de Deus sorrindo concedeu-lhe uma graça que não deu a nenhum outro. Ela desatou o seu cinto e, de lá de cima, fê-lo cair sobre São Tomé, de maneira tal que ele recebeu não direi o perdão, porque já estava perdoado, mas uma suprema graça, que era uma relíquia d’Ela atirada para ele do mais alto dos céus.

Nossa Senhora é assim quando tem algo a perdoar de algum filho muito dileto. Às vezes Ela nem sequer pune, mas quando castiga Ela faz seguir essa punição de um sorriso bondoso, de um perdão completo e de uma grande graça. Poder-se-ia imaginar que São Tomé, voltando para casa com os Apóstolos, mostrou-lhes esse presente dado a ele e disse: “O felix culpa – Ó feliz culpa –,  eu por desgraça duvidei de meu Salvador, mas em compensação tive a felicidade de receber esta relíquia celeste de minha Mãe Santíssima”. O último sorriso, o último favor d’Ela, a amenidade mais extrema, a bondade mais suave Nossa Senhora deu exatamente a São Tomé, e isto nos deve encorajar.

Que a Santíssima Virgem nos prepare para os dias terríveis que se aproximam Não há nenhum de nós que em relação à Santíssima Virgem não tenha falhas, e não precise pedir algum perdão. Nós devemos rogar a Nossa Senhora, nesta preparação da solenidade da Assunção, que proceda assim maternalmente conosco; que Ela olhe para nossas falhas, mas nos dê um perdão.

E que esse perdão seja o seguinte: Nós estamos cada vez mais claramente na orla dos acontecimentos preditos por Nossa Senhora em Fátima, e é possível que, analisando as nossas próprias almas com aquela severidade implacável que a condição de seriedade de todo exame de consciência exige, consideremos estarmos chegando um pouco atrasados na nossa preparação espiritual para esses acontecimentos.

Pois bem, nós devemos fazer uma oração, lembrando-nos de São Tomé. Se chegarmos atrasados, que Ela nos dê o favor especial particularmente rico e suave, por onde, de um momento para outro, nos preparemos de maneira tal que, quando bater à porta de nossas almas a graça dos dias terríveis que se aproximam, estejamos prontos, cheios de enlevo e capazes de seguir a vocação que Nossa Senhora nos deu.

Esta é a reflexão que me ocorre por ocasião da Assunção de Nossa Senhora. Se quisermos fazer uma meditação bonita sobre a Assunção, podemos ler as revelações de Fátima, narrando o milagre do Sol, que se manifestou de um modo tão terrível e esplêndido naquela ocasião. O astro-rei há de ter sido esplêndido, sem terribilidade, por ocasião da Assunção de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira

REALEZA TRIIUNFANTE

A realeza de Nossa Senhora, fato incontestável em todas as épocas da Igreja, veio sendo explicitada cada vez mais a partir de São Luís Grignion de Montfort, até aquele 13 de julho de 1917, quando Maria anunciou em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” É uma vitória conquistada pela Virgem, é o seu calcanhar que mais uma vez esmagará a cabeça da serpente, quebrará o  domínio do demônio e Ela, como triunfadora, implantará seu Reino sobre as vastidões da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Coroação da Virgem”, Basílica de Santo Antônio de Pádua – Itália)

Cruzados da glória de Maria

O dogma da Assunção de Maria constitui mais uma das afirmações sobre a Santíssima Virgem que A coloca completamente fora de qualquer paralelo com outra criatura, justificando assim o culto de hiperdulia que a Igreja Lhe tributa.

Depois de uma morte suavíssima, a Mãe de Deus ressuscitou e subiu aos Céus na presença dos Apóstolos e de uma grande quantidade de fiéis. Essa Assunção representava uma verdadeira glorificação aos olhos de toda a humanidade até o fim dos tempos, e o proêmio da glória que Ela deveria receber no Céu. Não existindo descrições desse fato, é legítimo fazermos uma composição de lugar imaginando, conforme o gosto de nossa piedade, como a Assunção se passou: a presença dos Apóstolos, todos ajoelhados, rezando, em um ambiente inefavelmente nobre, sublime, recolhido, enquanto o céu enche-se gradualmente de Anjos, e vai tomando, aos poucos, coloridos os mais diversos, com matizações e irradiações magníficas, de maneira a apresentar um espetáculo absolutamente incomparável.

Se Maria Santíssima pôde produzir fenômenos tão excepcionais em Fátima, por que o mesmo não poderia ter-se dado por ocasião de sua Assunção?

Ressurrecta, Maria coloca-Se em pé, em oração; o respeito e recolhimento de todos vão crescendo à medida que a semelhança física que certamente existiu entre Ela e seu Divino Filho vai se acentuando cada vez mais. E a cada instante Ela Se manifesta mais Rainha, mais majestosa e mais materna também. Os mais esplêndidos Anjos do Céu acompanham-Na em sua elevação e, aos  poucos, toda aquela maravilha vai mudando, a Terra volta ao aspecto primitivo, os homens retornam para suas casas com uma sensação idêntica à que tiveram na Ascensão de Nosso Senhor: ao mesmo tempo maravilhados, com uma saudade sem nome, desolados, por um lado, mas levando na retina algo que nunca tinham visto, nem podiam ter imaginado a respeito de Nossa Senhora.

Começa o triunfo de Maria Santíssima no Céu. A Igreja Gloriosa inteira recebe-A, com todos os coros de Anjos, Jesus Cristo A acolhe, junto a São José. Ela é coroada Rainha do Céu e da Terra pela Santíssima Trindade. Assim Ela foi glorificada aos olhos de toda a Igreja Triunfante e Militante. Com certeza, também a Igreja Padecente teve uma efusão de graças extraordinárias nesse dia. E não é temerário pensar que quase todas as almas então presentes no Purgatório foram libertadas por Nossa Senhora. Eis como podemos imaginar a glória de nossa Rainha. Algo assim se repetirá  por ocasião da vinda do Reino de Maria, quando virmos o mundo todo transformado e a glória de Nossa Senhora brilhar sobre a Terra.

Ao meditar nisso, aproximamo-nos da festa da Assunção de Maria pedindo esta graça: que tenhamos o senso da glória d’Ela para compreender bem tudo quanto esta glória representa na ordem da Criação, como ela é a mais alta expressão criada da glória de Deus, e de que maneira devemos ser sedentos de afirmar e defender, por uma virtude da combatividade levada ao seu último extremo, a glória da Santíssima Virgem na Terra.

Que Ela faça de nós verdadeiros cavaleiros, cruzados d’Ela, lutando por sua glorificação na Terra. Esta parece ser a virtude mais adequada a pedir nessa festa de glória que é a Assunção de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Lourenço, Mártir

Colocado sobre uma grelha e assado vivo, São Lourenço passou para a História como exemplo para os séculos futuros…

Faremos alguns comentários, com base num texto da obra de Rohrbacher “A vida dos santos”, a respeito de São Lourenço, Mártir.

A perseguição de Valeriano intensificou-se sobremaneira no ano de 258. O Papa São Sisto foi preso com alguns membros do seu clero, quando estava no cemitério de Calisto para celebrar os Santos Mistérios. Quando o levavam ao suplício, Lourenço, o primeiro dos diáconos da Igreja Romana, seguia-o chorando e dizendo: “Aonde ides, pai, sem vosso filho? Aonde ides, Santo Pontífice, sem vosso Diácono? Não estais acostumado a oferecer o sacrifício sem ministro. No que vos desagradei? Experimentai se sou digno da escolha que fizestes de mim, para me confiar a dispensa do Sangue de Nosso Senhor”. Sisto respondeu-lhe: “Não sou eu que te deixo, meu filho, mas um combate maior te está reservado. Poupam-nos, a nós velhos, mas tu me seguirás dentro de três dias”.

Entretanto, o prefeito de Roma, julgando que os cristãos tinham grandes tesouros escondidos e querendo disso certificar-se, mandou chamar Lourenço, que como primeiro Diácono da Igreja Romana era custódio. Pediu-lhe que lhe entregasse os tesouros dos cristãos e Lourenço respondeu-lhe que lhe entregaria, após fazer o cômputo total do que possuíam. Reuniu todos os pobres e doentes de Roma, mostrando-os ao prefeito como únicos tesouros e os maiores da Igreja. Os pobres eram ouro, as virgens e viúvas, as pérolas e demais pedras preciosas. Furioso, o prefeito ordenou a morte do Diácono, mas exigiu que fosse lenta e cruel. Despiram-no e deitaram-no sobre uma grelha, tendo embaixo brasas semi-acesas. Os que assistiam ao suplício viram o rosto do mártir rodeado de esplendor extraordinário. Depois de muito tempo, disse o supliciado ao algoz: “Fazei-me virar. Já estou bastante assado desse lado”. Depois que o viraram, disse ainda: “Está assado, podeis comer.” Olhando então ao céu, rogou a Deus pela conversão de Roma e expirou. Senadores, convertidos pelo exemplo de sua constância, carregaram-lhe o corpo nas costas e o enterraram no Campo Verano, perto de Tivoli, numa gruta.

O sacrifício de um mártir

Há um grande número de dados preciosos nesse texto. O primeiro deles é o diálogo de São Lourenço com o Papa São Sisto. O santo sacrifício da Missa é a repetição incruenta do Santo Sacrifício da Cruz. De sorte que oferecer o Sacrifício da Cruz e oferecer o sacrifício da Missa é uma mesma coisa. O mártir, por outro lado, quando se oferece em holocausto, de algum modo oferece um sacrifício que é o dele e, sem renovar o Sacrifício da Cruz, entretanto imita a Nosso Senhor Jesus Cristo, que se imolou a Si próprio. Há, portanto, um conjunto de correlações entre o Sacrifício do Calvário, a Missa e o martírio. E foi em torno dessas correlações que girou o diálogo, entre todos admirável, do Papa São Sisto com seu Diácono.

O Papa foi preso e conduzido para a morte. E o Diácono dele, São Lourenço, lhe dizia: “Vós oferecestes tantas vezes o sacrifício comigo — era o papel do Diácono ajudar o Papa na celebração da Missa. Agora, vós não o quereis oferecer? Ireis me deixar nesta Terra, no momento em que vosso sacrifício vai ser feito? É como que a vossa Missa. Eu não sou vosso Diácono? Levai-me para eu ser morto convosco; uma vez que eu vos servi a vida in-teira ao pé do altar, quero servir-vos também ao pé da morte.”

Depois dessa maravilha de diálogo, São Sisto profetizou:
“Eu vou ter uma mor-te suave em comparação com a tua. Os moços vão ser menos poupados do que nós, velhos. Daqui a três dias chegará tua oca-sião e serás morto.”

Prenúncio do vínculo feudal

Realmente, essa fidelidade de São Lourenço a São Sisto traz consigo um primeiro lampejo de Idade Média. Trata-se de uma fidelidade que gira em torno de relações de caráter eclesiástico, mas é uma fidelidade feudal. O servidor se une àquele a quem serve, por um vínculo muito maior do que um contrato de locação de serviço; é um vínculo de amor e de dedicação de toda a alma, de consagração da vida inteira, de tal maneira que ele sente que não tem razão de existir a não ser em função daquele a quem serve. Na força desse vínculo vemos prenunciado o feudalismo, em que há os vínculos de fidelidade, já então de ordem temporal, mas concebidos religiosamente, porque a fidelidade é uma virtude religiosa, ainda quando praticada no âmbito temporal.

Nesse vínculo que ligava o Diácono ao Papa, vemos desabrochar a alma feudal, feita do senso do serviço, do senso da alienação e do senso de honra, pois aquele que serve coloca a sua honra em servir de fato àquele a quem se vinculou. Vemos nisso uma admirável alienação, o contrário da desalienação miserável que os revolucionários desejam. E um ante-sabor da Idade Média, onde as articulações das pessoas que constituíam a sociedade eram todas na base de uma alienação, de uma entrega, de uma proteção. Todo o perfume da Idade Média começa a evolar-se nessa lealdade, nessa dedicação, nesse senso de honra, nessa entrega, nessa alienação de São Lourenço para com o Papa São Sisto.

Os tesouros da Igreja…

De outro lado, temos o episódio admirável com os pobres.

Tendo ouvido dizer que os cristãos eram riquíssimos, o prefeito mandou chamar São Lourenço, ao qual, de acordo com a organização da Igreja naquele tempo, como Diácono, cabia a guarda dos objetos que constituíam o tesouro da Igreja romana. Pobre tesouro primitivo: alguns objetos doados pela nobreza romana, ou pelas pessoas ricas de Roma, para o culto. Era uma coisa que não tinha comparação com os tesouros hodiernos da Igreja.

Exigiu, então, que São Lourenço os entregasse. O santo Diácono disse-lhe: “Não tem dúvida. Eu vou trazê-los. Preciso de certo tempo para reuni-los todos para ver quantos são; depois eu os trago.” O prefeito respondeu: “Está bem. Então faça isso.”

No dia marcado aparece grande número de pobres de Roma, viúvas, estropiados, aos quais os romanos pagãos tinham um desprezo soberano; o pouco caso dos romanos em relação ao pobre era uma coisa incomparável. São Lourenço afirmou: “Aqui estão os tesouros da Igreja”. É uma admirável lição de espírito sobrenatural.

O mártir, quando se oferece em holocausto, imita a Nosso Senhor Jesus Cristo, que se imolou a Si próprio.

Por que o pobre é um tesouro? Antes de tudo, porque ele é homem, é cristão, batizado, filho da Igreja Católica. E o que vale no homem não é o que ele tem, sabe, pode ou faz; mas sim o fato de ele ser, acima de tudo, uma criatura de Deus. Em segundo lugar, que ele foi remido pelo Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em terceiro lugar, que ele custou as lágrimas indizivelmente preciosas de Nossa Senhora. Esses títulos fazem de qualquer homem, mesmo que seja um molambo, um verdadeiro tesouro, porque Nosso Senhor Jesus Cristo ter-se-ia encarnado e morrido na Cruz ainda que fosse só por causa dele.

Ora, duas quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si. Se aquele homem vale o Sangue de Cristo, como o Sangue de Cristo tem um valor infinito, aquele homem tem de algum modo um valor infinito. Então, por ser homem, por ser filho da Igreja, um pobre tem um valor incomensurável. Mas ele tem um valor ainda maior, não simplesmente pelo fato de ser homem, mas de ser pobre. Não no sentido revolucionário de que só o pobre tem valor. Aos olhos de Deus, há uma série de predicados humanos, até opostos entre si, se bem que não contraditórios, os quais tornam o homem digno de um amor especial de Deus, debaixo de certo título.

O sofrimento: uma forma de predileção!

Por exemplo, “simples de espírito”, no sentido corrente, atual da expressão — não no sentido antigo — quer dizer pessoas pouco inteligentes. Deus ama os simples de espírito de um modo especial; os ama na sua fragilidade porque são desnudados intelectualmente dos recursos necessários para viver, e a Providência Divina pousa sobre eles e os protege. Isso não quer dizer que Deus não ame o sábio. O fato de Deus amar com uma proteção especial aquele que é carente do ponto de vista intelectual não exclui que Ele, por outro título, ame imensamente um São Tomás de Aquino, ou Nossa Senhora, cujo conhecimento de todas as coisas deixava o de São Tomás de Aquino mais longe do que o de São Tomás dista de nós.

São títulos diversos, segundo os quais Deus ama cada coisa. De certa forma, isso ocorre com o homem que se encanta com a rosa, a rainha das flores, porque ela se abre lindíssima e se mostra no seu esplendor. Entretanto, o homem não se maravilha com a violeta pela razão oposta? Porque ela se esconde, é apagada, delicada, pequenina. Dizer que Deus ama o pobre não significa que Ele não ama o rico. Na pobreza há um título especial para o Criador amar quem é pobre. E qual é esse título?

Esse título é: Deus ama os que sofrem; bem entendido, os que padecem com resignação, em união com Ele; o sofrimento é uma prova de predileção. De maneira que quem vê um pobre porque sofre, vê no pobre um tesouro. O que significa que se eu devo amar a pobreza de um pobre, o pobre também precisa amar sua pobreza. É evidente.

Isso não quer dizer que o pobre não deva trabalhar, para deixar de ser pobre. Mas enquanto não consegue sair da pobreza, ele precisa, ao mesmo tempo, ver nela um sofrimento, mas deve carregá-la com resignação. E nós, vendo um pobre, devemos lamentar que ele seja pobre e, na medida em que podemos e tem propósito, precisamos ajudá-lo; mas devemos dar graças a Deus que não só criou os ricos, mas também os pobres. Porque há uma excelência especial da alma humana na aceitação da pobreza.

É como, por exemplo, a doença. Não se pode imaginar a que grau de degradação teria descido o mundo se não houvesse doenças.

Que cúmulo de imoralidades haveria na Terra, se elas não existissem! A Igreja é quem mais faz para acabar com as doenças, mas Ela dá graças a Deus por haver doenças invencíveis, porque é necessário para o homem que haja doenças. Assim, com esse equilíbrio muito grande das coisas, pode-se e deve-se dizer que o pobre, a viúva, o órfão, são verdadeiros tesouros reais dentro da Igreja Católica. São Lourenço deu uma admirável lição ao prefeito de Roma.

Lição para todos os séculos

A última lição ele a deu para todos os séculos: foi o seu martírio. Não se pode compreender sem um milagre, mas um milagre de primeira classe, que um homem aguente o que ele suportou. São Lourenço foi colocado sobre uma grelha, debaixo da qual foram postas brasas. E ele foi assando aos poucos. Podemos imaginar o que representa a dor de ser assado por essa forma.

E São Lourenço, com placidez e o rosto translúcido de alegria, quando percebeu que uma parte de seu corpo estava queimada — é um outro milagre ele não ter morrido com isso —, disse: “Um lado está assado, podem assar o outro lado.” Ele foi virado e na hora de expirar pediu a conversão de Roma; e foi atendido. Vários senadores que assistiram o seu martírio carregaram o seu corpo até a sepultura. Quer dizer, ele, um mero Diácono da Igreja, que vivia como perseguido nas catacumbas, é carregado por componentes do mais alto órgão legislativo da Terra naquele tempo, que era o Senado romano, levado aos ombros por aqueles que ele converteu com seu sofrimento.

Qual o resultado da humildade?

Isso foi o resultado de sua humildade. No Magnificat, disse Nossa Senhora: “Deposuit potentes de sede, et exaltavit humiles — Deus destituiu de suas cátedras os poderosos e exaltou aqueles que são humildes.” Vimos o que aconteceu com São Lourenço. Quem hoje houve falar do Imperador Valeriano? Está desfeito em poeira, apontado ao horror de todos os séculos, quando não, no esquecimento.

Um dos mais célebres palácios do mundo comemora a glória de São Lourenço: o Escorial, construído por Felipe II. Era festa de São Lourenço e Felipe II teria contra os protestantes franceses uma batalha muito árdua. Então, o rei propôs a Deus que ele faria construir uma Basílica magnífica em louvor de São Lourenço, se ganhasse aquela batalha. Ele desbaratou os hereges e mandou construir uma grande obra de arte, o Escorial, que tem exatamente a forma de uma grelha, para celebrar o instrumento do martírio de São Lourenço. E todos os turistas e peregrinos do mundo inteiro, que vão ao Escorial, ficam sabendo das glórias de São Lourenço. Sem falar, naturalmente, no culto que lhe presta a Igreja Universal.

O mártir sacrossanto está no mais alto do Céu, louvado por Nossa Senhora, pelos anjos, objeto de predileção de Deus; até o fim do mundo se celebrará a memória dele e por toda a eternidade os anjos vão cantar sua glória no Paraíso.

E os poderosos, que eram filhos da iniquidade e se orgulhavam do seu poder, foram jogados no chão. Valeriano onde estará?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/8/1969)