Santo Estevão – Perfeito guerreiro e devoto de Nossa Senhora

A Igreja, vista na sua totalidade, possui uma harmonia de aspectos opostos, mas afins, que mostra toda a sua beleza. Santo Estêvão foi um exemplo dessa harmonia: incomparável em toda forma de misericórdia, mas por isso mesmo um homem forte, combativo, que lutou intrepidamente pelo bem.

 

As fichas a serem comentadas hoje versam sobre a vida de Santo Estêvão, Rei da Hungria, retiradas do livro Vida dos Santos, de Rohrbacher(1).

Particular devoto da Santíssima Virgem

Santo Estêvão é o grande monarca a cujo Batismo se deveu a conversão da nação húngara, até então pagã. O que Clóvis foi para a França, ele significou para a Hungria, com a imensa diferença de que Clóvis se converteu, mas ficou muito longe de ser um santo. Enquanto, pelo contrário, Estêvão foi um verdadeiro santo. Também os descendentes imediatos de Clóvis não foram santos, mas Santo Estêvão teve um filho canonizado: Santo Américo, sucessor de seu pai no trono real.

Esta primeira ficha nos traz um dado especial sobre Santo Estêvão: sua devoção a Nossa Senhora.

Santo Estêvão sempre manifestou predileção particular pela Santíssima Virgem. Por meio de um voto especial, colocou sua pessoa e seu reino sob a proteção de Nossa Senhora. Quanto aos húngaros, ao referirem-se à Mãe de Deus, não Lhe davam o nome de Maria, ou qualquer outro; diziam apenas “A Senhora” ou “Nossa Senhora”. À simples menção dessas palavras, inclinavam a cabeça e dobravam o joelho.

O santo rei mandou construir em Alba Real magnífica igreja em honra da Rainha do Céu. Os muros do coro eram ornados de esculturas, o piso de mármore, possuía várias mesas de altar de ouro puro, enriquecidas de pedrarias, e um tabernáculo para a Eucaristia maravilhosamente trabalhado. O tesouro estava repleto de vasos de ouro e prata, cristal e de ricos paramentos.

Santo Estêvão sempre desejou, pedindo mesmo em suas orações, que sua morte ocorresse no dia 15 de agosto, Assunção da Santíssima Virgem. Sua vontade foi satisfeita. Antes de expirar, erguendo as mãos e os olhos, exclamou: “Rainha do Céu, Co-Redentora do mundo, é ao vosso patrocínio que entrego a Santa Igreja, com os bispos e o clero, o reino com os grandes e o povo”; e, tendo recebido a Extrema-Unção e o Santo Viático, rendeu a sua alma.

Guerreiro e juiz

A segunda ficha apanha outro aspecto da personalidade dele: Santo Estêvão, guerreiro e juiz.

À piedade e ao zelo de um apóstolo, Santo Estêvão da Hungria juntava a coragem de um guerreiro e herói. Nas instruções a seu filho, Santo Américo, ele próprio observa que passara quase toda a sua vida na guerra, repelindo invasões de nações estrangeiras. Logo que subiu ao trono, ainda duque – ele foi duque até o momento de se converter, quando o Papa o elevou à dignidade de Rei da Hungria –, procurou manter a paz. Porém, dirigidos pelos fidalgos, seus súditos, ainda pagãos, revoltaram-se. Pilhavam cidades e campos, matavam seus oficiais e insultavam o próprio Duque.

O Duque Estêvão reuniu suas tropas e, levando nos seus estandartes a imagem de São Martinho e São Jorge, marchou contra os rebeldes que sitiavam Veszprém. Tendo-os derrotado, consagrou suas terras a Deus.

Em 1002, tendo seu tio Gyula, Duque da Transilvânia, atacado a Hungria por várias vezes, Estêvão marchou contra ele, fê-lo prisioneiro, assim como sua família, e juntou seus Estados à monarquia húngara. Venceu e matou com as suas próprias mãos Kean, duque dos búlgaros. Com o mesmo êxito repeliu os bessos, povo vizinho da Bulgária. Mas sua justiça igualava seu valor. Atraídos por sua fama, sessenta bessos da nobreza deixaram sua terra, levando com eles famílias e riquezas, e vieram pedir ao santo Rei permissão para se estabelecerem no Reino da Hungria.

Os fâmulos de um comandante de fronteira, levados pela cobiça dos despojos, atacaram-nos de improviso matando alguns, ferindo outros, e arrebatando os seus bens. Santo Estêvão deu ordem para que o comandante e suas tropas se apresentassem na corte. Ao defrontá-los, recriminou-lhes a desumanidade e comunicou-lhes que faria o mesmo com eles. Imediatamente mandou-os enforcar dois a dois em todas as avenidas do reino, a fim de que todos soubessem que a Panônia estava aberta aos estrangeiros e que nela encontrariam hospitalidade e proteção.

A Civilização Católica é a fonte de todo bem e de toda grandeza temporal

Aqui encontramos essas verdadeiras maravilhas da Igreja Católica sobre as quais jamais será suficiente insistir. Quando nos deparamos com uma acusação à Igreja, devemos procurar sua unilateralidade. Porque, em geral, tratando-se de uma acusação histórica, entra uma mentira; sendo uma acusação doutrinária, há uma unilateralidade. Os adversários da Igreja não querem tomar em consideração que ela, vista na sua totalidade, tem uma harmonia de aspectos opostos, mas afins, que faz toda a beleza da Esposa de Cristo. Aliás, também no universo, os contrários harmônicos constituem a beleza da ordem criada por Deus. Não se pode possuir verdadeiramente o espírito da Igreja se não se têm os olhos voltados para esta verdade e o espírito enlevado com ela.

Essas duas fichas nos dão a fisionomia completa de Santo Estêvão e, portanto, da Igreja que o canonizou. Porque quando a Esposa de Cristo canoniza alguém, declara que esse Santo teve perfeitamente o espírito dela. De maneira que cada Santo, a seu modo, é uma imagem do espírito da Igreja. Assim, se raciocinarmos com uma lógica elementar, com um bom senso primário, encontramos a plena justificação de ambos os aspectos na vida de Santo Estêvão.

Primeiro, o aspecto varonil e enérgico. Santo Estêvão está às voltas com inimigos irredutíveis que o odeiam por não ser pagão, querem depô-lo porque ele deseja trazer a luz do Evangelho para seu povo, e por isso se revoltam contra ele, dentro do reino, ou marcham de fora para o interior de seus domínios para exterminá-lo e eliminar a porção da nação húngara que já aderiu à verdadeira Fé. Esses homens são esses invasores, revoltosos, os inimigos da salvação eterna do povo húngaro.

Ao mesmo tempo, são inimigos da soberania do povo húngaro, do direito que tem esse povo de escolher a verdadeira Fé, de atender ao apelo de Nosso Senhor Jesus Cristo, dessa liberdade que o homem tem quando obedece a Deus.

Portanto, Santo Estêvão via seu povo atacado nos seus bens espirituais mais altos, porque a Fé é a fonte de todos esses bens, e agredido na sua própria soberania, no que ela tem de mais importante, porque o distintivo da soberania de uma nação é a mesma coisa do que o selo da liberdade de um homem: consiste em, sem embaraços, poder obedecer e servir a Deus. Essa é a própria definição de liberdade. Negar ao povo húngaro essa liberdade era recusar-lhe a sua soberania no que ela tem de mais essencial. Significava, ademais, comprometer o progresso do povo húngaro, porque a Civilização Católica, correspondendo inteiramente aos princípios da ordem natural e dando ao homem as forças sobrenaturais para obedecer aos princípios dessa ordem, é a fonte de todo bem e de toda grandeza temporal. De maneira que querer afastar a Fé católica de um país é desejar mantê-lo num paganismo abjeto e impedir seu verdadeiro progresso. Logo, tudo quanto consistia para a Hungria uma razão de ser e de viver estava empenhado nessa luta de Santo Estêvão.

O centro da resistência de um país era o rei

Naquele tempo a alma e o centro da resistência do país era o rei. O modo de desmantelar essa resistência era matar o monarca. Se um rei pagão pretendia eliminar Santo Estevão, não era belo, simbólico e nobre que o Rei santo o eliminasse com sua própria espada e suas próprias mãos? E que assim a infâmia cometida por um sangue régio fosse reparada pela fidelidade de outro sangue régio? Isso não é conveniente e bonito? Santo Estêvão cumpriu seus deveres de soberano, defendendo assim seu povo e a Santa Igreja Católica.

Por que ele agiu de um modo tão enérgico com os indivíduos que mataram e roubaram essas pessoas que iam se asilar na Hungria? Elas pertenciam à própria nação do rei que ele tinha morto, ou que ia matar. Eram pessoas de categoria que, descontentes com o rei pagão, querendo se converter, passavam com seus rebanhos e suas economias para o território da Hungria. Elas chegam à fronteira – naturalmente desejavam se batizar – e pedem: “Nós queremos ingressar no reino de Estêvão e no reino de Cristo. Pedimos licença para entrar impunemente nós e os nossos.” Consulta-se o Rei, o qual diz: “Podem entrar, eu dou garantias para as pessoas e para os bens.” Abrem a fronteira e elas entram com toda a confiança, deixando as armas de lado – naquele tempo todo homem, sobretudo o chefe de família, era um guerreiro.  Mas aparecem uns bandidos infames que assaltam, matam algumas pessoas para serem donos dos haveres. São assassínios vulgares, agravados pelo aspecto da traição. Então, Santo Estêvão, que punia com pena de morte um assassinato comum, não haveria de mandar castigar esses homens? Alguém dirá: “Mas eles foram muitos.” Prova a mais de que se devia punir com pena de morte. Porque, se são muitos os criminosos, isso prova que o povo não está muito distante da prática desses crimes. E então é necessário punir para que o crime não se repita. O fato de serem muitos é uma prova a mais de que precisava punir.

Praticou a justiça e a misericórdia ao mesmo tempo

Ele cumpriu o dever inerente à majestade régia. O rei tem os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. É o supremo juiz do país. E os antigos, aliás muito acertadamente, consideravam o Poder Judiciário mais alto do que o Legislativo. Porque as Leis fundamentais são feitas por Deus. E o rei é o juiz que julga de acordo com as Leis fundamentais. O monarca não possui a plenitude do Poder Legislativo, enquanto o Poder Judiciário ele tem no sentido de que aplica a Lei de Deus. Então, Santo Estêvão agiu perfeitamente bem.

Esse homem podia, portanto, quando rogava para Nossa Senhora, dirigir-se a Ela com o espírito completamente tranquilo, com a consciência inteiramente distendida. E verdadeiramente chamá-La de Mãe de Misericórdia, implorar a compaixão d’Ela porque ele usou de misericórdia. Ao castigar essa gente, Santo Estêvão foi misericordioso para com os que eram ou poderiam vir a ser vítimas desses homens maus, se não fossem intimidados; quer dizer, ele praticou a justiça e a misericórdia ao mesmo tempo. Então, nós deduzimos daí que Santo Estêvão agiu perfeitamente bem.

Temos, então, a imagem do perfeito guerreiro e devoto de Maria. Incomparável no perdoar, no estimar, em toda forma de misericórdia, mas por isso mesmo homem forte, valente, que passou o tempo inteiro na luta.

Fisionomia do combatente católico por excelência

Lembro-me de que certa vez, conversando com um senhor de uma lógica muito estrita, muito clara, com base em premissas extremamente pobres e limitadas, abrangendo sempre uma parte infinitesimal do horizonte, ele me dizia:

“Eu não gosto do livro Imitação de Cristo. Li e não compreendo, porque se eu fosse fazer constantemente o que está ali – voltar o outro lado do rosto, não tomar em consideração o mal que os outros nos fazem, perdoar sempre, etc. –, eu me deixaria roubar, saquear! É a conclusão lógica da Imitação de Cristo.”

Pensei com os meus botões: Para esse homem não há explicação possível. Ou lhe faço um simpósio, que de nenhum modo ele quer ouvir, ou ele não pode entender isso, porque se colocou previamente fora das perspectivas necessárias para essa compreensão.

É preciso exatamente compreender que a Imitação de Cristo foi escrita para um ambiente no qual esses princípios que apresentei eram claríssimos, e havia até a tendência a exagerar o lado belicoso. Então, a Imitação de Cristo constituía uma nota dentro de um concerto, ou seja, a insistência em uma das vias que, conjugada com a outra, dá a perfeição da Moral Católica.

Sem dúvida, sempre que possível é preferível perdoar, praticar a mansidão e não a violência. Mas não sendo possível é preciso arregaçar as mangas e lutar!

Nisso se vê nossa fidelidade aos princípios da Igreja Católica, pelo auxílio e bênção de Nossa Senhora. Por vezes, as pessoas não compreendem o desassombro com que enfrentamos o que imaginam ser a opinião pública. De outro lado, não entendem também como somos corteses, gentis, amáveis e nunca tomamos a iniciativa do ataque. Entretanto, quando atacados, damos uma surra! É a fisionomia do combatente católico por excelência: enquanto não me agridem, não agrido. Porém, ai de quem me agredir, porque saio “com um quente e dois fervendo!”(2) É uma pequena aplicação do que acabamos de ver na vida de Santo Estêvão.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/9/1971)

 

1) Cf. ROHRBACHER, René François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. vol. XV, p. 423, 428-430 e 442.

2) Antiga expressão popular portuguesa, significando aqui uma reação imediata e indignada.

Santa Helena

Santa Helena, Imperatriz e mãe de Constantino Magno, foi o grande tipo de mulher que vive só para Nosso Senhor Jesus Cristo. Matrona de alma elevada, de horizonte largo, compreendendo as coisas a partir dos seus aspectos mais sublimes, e que, com sua extraordinária influência, contribuiu para transformar um Império pagão em ordem temporal católica. Acima de tudo, foi a santa que encontrou e deu ao mundo um presente imensamente grandioso: a verdadeira Cruz de Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Pio X, modelo de varão católico

Quero que o último ato de meu intelecto e o último pulsar de meu coração seja um brado de amor e fidelidade ao Papado”, costumava repetir Dr. Plinio até seus derradeiros dias. Na verdade, depois  e sua entranhada devoção ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora, por nada tinha ele mais apreço do que à divina instituição do Papado, pela qual nutria imensa veneração. Sentimento que transparece nas palavras aqui transcritas, com as quais recorda a figura de um dos maiores Pontífices que já ocuparam a Cátedra de Pedro: São Pio X, cuja festa se celebra no dia 21 de agosto.

 

Em 1903, após um dos mais longos pontificados da História, e numa idade muito avançada, faleceu o Papa Leão XIII. Logo depois das exéquias, de acordo com o secular costume da Igreja, todos os cardeais se reuniram na Cidade Eterna para o Conclave que elegeria o novo Sumo Pontífice.

Conta-se que o então Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, foi um dos poucos, se não o único, a se dirigir a Roma tendo já em mãos o bilhete de passagem da volta, tão certo estava de que sobre ele não recairiam os votos de seus pares.

E os fatos pareciam confirmar as despretensiosas expectativas daquele Purpurado, pois, ao final de alguns escrutínios, o sucessor de Leão XIII estava praticamente escolhido. Tratava-se do Cardeal Rampolla del Tindaro, que fora Secretário de Estado do falecido Papa, e cuja orientação de governo ele haveria de manter durante o novo Pontificado.

Manteria, se uma inesperada atitude não viesse mudar o rumo dos acontecimentos. Tão logo se tornou claro qual seria o resultado da votação, levantou-se, trêmulo e indeciso, o Cardeal-Arcebispo de Praga, dizendo: “Eu tenho uma comunicação a fazer da parte do meu soberano, o Imperador da Áustria. Prevalecendo-se do direito que têm os monarcas austríacos de vetar alguém eleito para o Papado, quando tal escolha lhe parecer nociva aos interesses e às conveniências da Igreja Católica no seu país, o Imperador Francisco José, meu senhor, dá ordem de vetar o Cardeal Rampolla del Tíndalo para Papa”.

Esse uso do veto ou seja, de proibição escandalizou todo o Conclave, porque há muito tempo os soberanos austríacos não exerciam esse direito. Era, portanto, um papel por demais antigo que Francisco José retirava da gaveta. Mas… retirou e mandou: não podia ser. O Cardeal Rampolla estava fora de cogitação.

Sabendo que não seriam possíveis tratativas nem apelações, os cardeais dão início a novos escrutínios, fazendo valer a célebre subtileza da diplomacia romana dos grandes tempos. A cada turno de eleição eram proclamados os resultados, e em duas ou três vezes os votos para o Cardeal Rampolla retomaram por baixo e foram crescendo o suficiente para significar um desafio ao Imperador da Áustria, não porém o bastante para elegê-lo. Foi uma jogada astuta e inteligente, bem ao estilo do Vaticano…

A eleição do Cardeal Sarto, futuro São Pio X

Como era de se  esperar, caiu em definitivo a votação do Cardeal Rampolla, enquanto se levantava outro candidato: o Cardeal Sarto, Patriarca de Veneza, futuro São Pio X.

Em suas Memórias do Papa Pio X, narra o Cardeal Merry del Val então monsenhor e secretário do Conclave que, depois de um daqueles decisivos escrutínios, fora encarregado de procurar o Cardeal Sarto, a fim de demovê-lo da resistência que este opunha à sua eleição. Entrando ele na Capela Paulina, reservada aos Purpurados, encontrou ali o Patriarca de Veneza, ajoelhado no solo de mármore, a cabeça entre as mãos, chorando e rezando diante de uma imagem de Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano.

O prelado se ajoelha por sua vez junto do Cardeal Sarto, e com voz baixa lhe confia a mensagem de que era portador. Lentamente, o Patriarca levanta a cabeça, volta para o secretário a face sulcada de lágrimas, e lhe pede que anuncie a sua recusa formal ao sólio pontifício. Santo como era, tinha plena consciência de que o Papado significava uma responsabilidade tremenda, em meio a árduos combates em defesa da Igreja. Parecia repetir, daquele modo, as palavras do Divino Redentor no Horto das Oliveiras: “Pai, se for possível, afasta de mim este cálice”…

Compadecido daquele varão que dava tais mostras de humildade, Monsenhor Merry del Val -, ele mesmo homem de rara virtude e futuro braço direito de São Pio X –, a fim de animá-lo e fazê-lo aceitar o cargo, disse-lhe:

Coragem Eminência, o Senhor o ajudará!

Novamente ocultou o Cardeal Sarto a cabeça entre as mãos, para terminar sua prece. O secretário do Conclave se afastou. “Nunca esquecerei” comenta ele “a impressão que me produziu este encontro, à vista de uma angústia tão intensa. Era a primeira vez que me punha em contato com Sua Eminência, e pressentia ter me achado em presença de um santo”.

Poucas horas depois, o Cardeal Sarto, premido pelas reiteradas e insistentes  solicitações de vários membros do Sacro Colégio, decidiu desistir de sua oposição. Na manhã seguinte, era eleito por uma grande maioria, e aceitava a missão de suceder a São Pedro, sob o nome de Pio X.

“O Anjo guardião do Paraíso”

Homem de origem assaz modesta, o Cardeal Sarto (em italiano, sarto quer dizer alfaiate) nasceu na pequena aldeia de Riese, na qual até hoje se conservam a casa em que ele veio ao mundo e todas as lembranças de sua história desde menino. Riese tornou-se um lugar de peregrinação. Adolescente, Giuseppe Sarto deixou o lar paterno para ingressar no seminário da diocese de Treviso. Depois de completar seus estudos em Pádua, foi ordenado sacerdote, e, três décadas mais tarde, sagrado Bispo de Mântua. Em 1893 tornou-se Cardeal e Patriarca de Veneza, de onde partiu para ser eleito Papa.

Apesar de sua ascendência humilde, São Pio X possuía tanta dignidade moral, e uma tal estampa pessoal que um jornalista francês, depois de entrevistá-lo, fez o seguinte comentário: “Quem se encontra e conversa com o Papa, conhece um homem tão forte e tão puro, que tem a impressão de estar diante do Anjo que a Escritura descreve como guardando a entrada do Paraíso Terrestre, com uma espada de fogo à mão”.

De fato, diversos traços da vida de São Pio X revelam que ele foi realmente uma figura angélica, um modelo super-acabado de pureza e de fortaleza. Homem de alta estatura, muito robusto, como são em geral os italianos da região do Veneto, era dotado de vigorosa personalidade, e sobretudo, formado numa integridade e firmeza de princípios, bem como numa completa renúncia de si mesmo, que caracteriza o verdadeiro Santo da Igreja Católica.

Por isso, assim que o mundo conheceu o nome do novo sucessor do Príncipe dos Apóstolos, uma intensa manifestação de júbilo e de louvores a Deus perpassou a Cristandade. Estavam os fiéis convictos de que Nosso Senhor lhes havia dado um Pastor sábio e virtuoso, atilado e prudente, em cujo coração pulsava zelo e amor ardentes pela Esposa Mística de Cristo, que a Providência acabava de confiar a suas firmes mãos de Soberano Pontífice. E ele de tal maneira a dirigiu com maestria e paternalidade, que a Igreja passou a viver um período de esplêndido florescimento, de brilho extraordinário, de profunda unidade e coesão na sua estrutura sagrada.

O papa das primeiras comunhões

Entre os inestimáveis benefícios que a Religião Católica lucrou no governo de São Pio X, destaca-se o de ele ter estabelecido a Primeira Comunhão para as crianças. Até então, a tendência corrente era de que uma pessoa só a fizesse quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças se aproximem dela, pois não teriam critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E mesmo nesse início da vida de pensamento aquelas graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé.

É este um dos principais motivos pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia. Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, passando a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Observadas essas condições, São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. E datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas e capelas nos dias de Primeira Comunhão, e os trajes cerimoniosos com que meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus Sacramentado, símbolos da alma inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Atmosfera santificante cobrindo a Igreja

Outro  precioso fruto do governo de São Pio X foi o espraiar-se de uma atmosfera sacrossanta por todos os ambientes católicos que dele recebiam a influência, produzindo um efeito vantajoso, santificante e magnífico. De tal maneira que, anos depois de sua morte, ainda persistiam o perfume e os ecos de seu pontificado. Tal se verificou sobretudo nos países distantes da Europa, aos quais naqueles tempos tardavam em chegar as transformações ocorridas no Velho Continente.

Por exemplo, no Brasil. Eu nasci em 1908, quando há cinco anos já se encontrava São Pio X à frente  da Igreja. E fiz a minha formação religiosa envolto naquela atmosfera sacrossanta, a qual conduzia os fiéis a um respeito, uma confiança e uma admiração indizíveis por toda a sagrada hierarquia eclesiástica. E não apenas pelo que essa hierarquia tem de fundamental e organizado por ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo portanto, algo de suma perfeição como também pelos homens investidos nesses cargos, pois nos pareciam santos como era santa a missão deles, e como era santo o Papa Pio X.

Assim, no meu espírito, como no de incontáveis católicos, os padres, os religiosos, as freiras, os bispos, e daí para cima até o Soberano Pontífice, todos se nos afiguravam de uma venerabilidade sem nome, dignos do nosso maior acatamento e inteira dedicação.

Um remédio corriqueiro… e misterioso

Ao longo de onze anos viveu a Igreja sob essa firme, paternal e abençoada proteção de São Pio X. Em agosto de 1914, após o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando aliás, amigo do santo Pontífice -, arrebentou a Primeira Guerra Mundial.

O Papa, que antevira o terrível conflito e suas trágicas conseqüências para os povos nele envolvidos, via redobrarem suas responsabilidades de pastor e guia das almas, aumentando-lhe o já pesado fardo que trazia sobre os ombros. Contudo, a despeito das graves e constantes preocupações, da grande amargura que lhe causavam os horrores da Guerra, seu estado físico não inspirava maiores cuidados. Animava-o o mesmo vigor e o zelo de sempre, até a noite de 18 de agosto, quando, depois de encerrados os compromissos do dia, despediu-se de seus assistentes e se recolheu aos aposentos pontifícios. Antes de se deitar, tomou um remédio corriqueiro que os médicos lhe haviam receitado para uma ligeira indisposição catarral. Nada de maior importância, afirmaram eles. Segundo estes, tratava-se de um incômodo trivial, motivado pela temperatura excessivamente alta daquele verão de 1914.

Na manhã seguinte, porém, o Cardeal Merry del Val é chamado às pressas ao Vaticano: o Papa despertara com muita febre, e seu estado de saúde agravara-se de modo alarmante. Assim que o secretário entrou no quarto de São Pio X, este o reconheceu, estreitou-lhe as mãos com força, e apenas lhe pôde dizer: “Eminência… Eminência!”. Passaram-se alguns minutos, e as últimas palavras que o Cardeal ouviu de seus lábios foram um ato de entrega nas mãos da Providência: “Resigno-me totalmente”, disse o santo Vigário de Cristo. Pouco depois ele perdia a capacidade de falar, embora permanecesse consciente e dirigisse àqueles que o circundavam seu olhar sempre vigilante e perscrutador.

Como piorou durante o dia, Papa recebeu o Viático e a Extrema-Unção com as menores formalidades possíveis, pois todos temiam um rápido desenlace. Ali estavam suas fiéis irmãs, chorando em silêncio, o secretário de todas as horas, e alguns de seus mais próximos auxiliares. Subitamente, ouviu-se o timbre do grande sino de São Pedro, que começava a dobrar pro Pontífice agonizante. A este sinal, foi exposto o Santíssimo Sacramento em todas as basílicas patriarcais de Roma, dando início às rogações especiais. Os graves acentos do bronze subiam aos céus, juntamente com as preces do povo fiel que, na praça do Vaticano, pedia a Deus por seu Pastor moribundo.

Algumas horas depois, na madrugada do dia 20 de agosto, São Pio X suavemente adormeceu no Senhor. Nas páginas de suas famosas Memórias, o Cardeal Merry del Val, deixa transparecer certa estranheza em relação a essa misteriosa morte. “Ninguém”, escreve ele, “pôde explicar ainda a brusca mudança que se produziu na saúde do Papa, durante aquela noite…”

A Igreja chorou a perda de seu “Anjo guardião”, que por ela velara com tanta diligência. Modelo de Pontífice e de varão católico, foi elevado às honras dos altares quarenta anos depois de partir para a eternidade.

Santa Rosa de Lima

Normalmente, imaginamos ser necessário arquitetar grandes planos, praticar ações dignas de louvor ou realizar vultosas obras para tornarmo-nos notáveis ante nosso tempo. Entretanto, uma jovem pode provar ao mundo como a santidade e o amor a Deus são de maior eficácia: Santa Rosa de Lima, Patrona da América.

No livro “El verdadero rostro de los santos”(1) há alguns dados biográficos sobre Santa Rosa de Lima.

“Nascida no dia 20 de março de 1586, em Lima, Isabel Flores de Oliva — mais tarde conhecida como Rosa de Lima — era da antiga nobreza espanhola. Porém, quando ainda jovem, seus pais empobreceram.

“Inclinada à vida religiosa desde a mais tenra idade, Santa Rosa sofreu contrariedades, sobretudo por parte de sua mãe, que se havia empenhado em casá-la.

“Aos vinte anos fez-se Terceira Dominicana, sob a proteção de Santa Catarina de Siena. Vivia em uma cela no jardim da casa paterna e ajudava seus pais fazendo bordados e cuidando das flores que a família depois vendia.

“No que se refere à mortificação, ninguém a superou. Certa vez, quando se achava acabrunhada por mil inquietações, ouviu a voz do Senhor que lhe dizia: ‘Aquele que deu a vida e o sangue por ti saberá cuidar também de teu corpo. As leis naturais foram criadas por ele e são para ele’. Rosa destinava dez horas do dia à oração, dez horas ao trabalho, e apenas o que sobrava concedia ao sono. A cada dia, no decurso de horas inteiras, via-se assaltada por terríveis tormentos, temendo que o Senhor a abandonara, considerando esse suplício pior do que a morte. Porém depois, sentia-se fortalecida por novas sensibilidades da graça divina.

“A uma comissão de teólogos que a interrogava acerca de sua oração, confessou: ‘Rezar não me custa nenhum trabalho. Minhas energias concentram-se no meu interior como o ferro atraído pelo imã e se sentem embriagadas por tal doçura que nenhum mal é mais possível. Meu coração arde. Sinto a Deus em todo o meu ser e tenho absoluta certeza de sua adorável presença. Tal contemplação não me cansa, e minha única alegria é sentir Deus presente em minha alma. Ver-me privada d’Ele seria para mim um inferno e nada criado poderia consolar-me.’

“O último pedido que saiu de seus lábios, na hora da morte, foi em benefício de sua mãe: ‘Senhor, deixo-a em vossas mãos. Dai-lhe forças, não permitais que seu coração se dilacere de tristeza’. Tão logo expirou, viu-se sua mãe tomada por um tal consolo e alegria que precisou retirar-se para ocultar a felicidade que seu rosto estampava.

“Faleceu em 26 de agosto de 1617.”

Família da antiga nobreza, porém empobrecida

Vários aspectos da vida de Santa Rosa são dignos de comentário. Em primeiro lugar, o fato de pertencer a uma família nobre, porém empobrecida, é notável.

À semelhança da Sagrada Família de Nazaré — a qual também não dispunha de recursos em abundância, mas era de estirpe real —, a família de Santa Rosa passava por uma situação sumamente penosa, difícil, e, a esse título, também sumamente abençoada, em que a dignidade da linhagem e do caráter deve brilhar sozinha, sem os recursos tão prestigiosos e tão úteis das riquezas.
Compreende-se, de imediato, um traço da predileção divina.

Símbolos da elevação de sua alma

Há episódios na história dos santos permitidos pela Providência com a intenção de ornamentar a história de suas almas, e proporcionar que vejamos, através dessa beleza secundária e quase episódica, algo de mais profundo dentro da santidade, e de nos atrair à admiração para com a vida virtuosa.

Sob esse aspecto, é muito bonito considerar Santa Rosa vivendo reclusa em uma cela, no jardim da casa paterna, e ajudando seus pais através da confecção de bordados e cuidando das flores que a família vendia.

Eram bordados feitos por uma jovem santa, que se retirara para reclusão inteira, e na clausura também cultivava flores.

Isso causa tal encanto ao início de sua vida, que não poderia deixar de ser comentado.

Missão de caráter universal

A mortificação à qual se dedicava era particularmente preciosa para os tempos em que Santa Rosa viveu.

A vinda dos ibéricos para a América colocava-os numa situação moral das mais perigosas. Encontrando aqui uma natureza tropical exuberante, com condições climáticas que infelizmente favoreciam a luxúria, muitos se deixavam dissolver num ambiente onde a vulgaridade e a corrupção moral debandavam.

Ora, nestas circunstâncias, ela suscitava em torno de si o espírito de penitência e de mortificação. Com tal atitude, naturalmente, ela freou em grande parte a corrupção dos costumes e criou condições menos favoráveis à Revolução, o que determinou, por sua vez, uma marcha mais lenta desta em nosso continente.

O admirável é que Deus não suscitou para a América inteira um grande pregador — Ele pôs, nas mais variadas partes, grandes pregadores, porém de âmbito restrito —, mas sim uma mulher que tivesse uma missão de caráter universal. Santa Rosa de Lima fez, no plano da comunhão dos santos, o necessário para salvar a América.

Vemos o poder de uma alma entregue a Nossa Senhora, à misericórdia de Deus e à penitência.

Sustentação nos sacrifícios, consolações na oração

Essa posição é quase incompreensível caso não consideremos o que, em contrapartida, está dito por ela a respeito da oração. Durante a oração, Santa Rosa recebia consolações extraordinárias, sentindo um verdadeiro Céu na Terra durante dez horas por dia. E isso dava-lhe ânimo para suportar depois uma vida de dor e sofrimento.

Vias de oração na santidade

Entre os santos há semelhanças e dissemelhanças.

Santa Teresinha do Menino Jesus dizia estar tão habituada ao sofrimento que, quando chegasse ao Céu, precisaria ela desabituar-se de padecer para se sentir verdadeiramente feliz. Nisto se vê uma enorme analogia com o conceito de Santa Rosa de Lima sobre o sacrifício.

Porém, no que diz respeito às vias da oração, como eram diferentes! Santa Rosa de Lima sentia muita sensibilidade ao rezar; Santa Teresinha do Menino Jesus passou muitas vezes por aridez durante a oração.

Entretanto, uma e outra oração eram igualmente aceitas por Nossa Senhora e encaminhadas a Deus Nosso Senhor como sendo variantes de uma mesma coisa, inteiramente coerente e uniforme consigo mesmo: a santidade.

Resignação, profunda paz de alma

Uma observação de proveito para a vida espiritual é a seguinte: sabendo que sua mãe sofreria muito com sua morte, Santa Rosa pediu a Deus, então, que esta tivesse forças para resistir a tal dor. Pois bem, ela foi tão amplamente atendida, que a mãe não só teve força, mas também uma inexplicável alegria com a morte da filha.

Como se pode explicar essa felicidade?

É que a resignação cristã constitui uma tristeza com tais contrafortes de paz e de alegria, que há mais felicidade numa alma cristã profundamente triste — mas resignada — do que noutra repleta de uma alegria natural.

A resignação cristã é filha da consolação

Consolar, do latim “consolare”, significa dar força, ou seja, conceder capacidade de aguentar a dor. A verdadeira consolação consiste em robustecer a alma para aguentar o sofrimento.

A resignação cristã é exatamente filha da consolação, filha da aceitação da dor. De maneira tal que essa consideração dá ao homem uma alegria superior em meio às suas tristezas.

Então, à vista de considerações tão elevadas, a alma ao mesmo tempo deplora a morte e encontra uma estabilidade, uma fixidez em face dela, uma posição de equilíbrio. Isto se chama resignação cristã.

A graça pode acentuar essa alegria que existe na resignação. E foi exatamente o que aconteceu com a mãe de Santa Rosa de Lima: ela recebeu tanta força, e sua alegria dentro da resignação foi de tal maneira acentuada pelo Divino Espírito Santo, que ela precisou se esconder para que não a julgassem mal.

No que essa alegria consistia? Com certeza, uma participação da alegria de Santa Rosa que já estava inundada pelas felicidades celestes.

Peçamos a Santa Rosa de Lima que interceda por nós, a fim de — à sua semelhança — termos a coragem de nos deixarmos fazer santos e assim realizarmos grandes obras.

Estão aqui algumas considerações a respeito da vida de Santa Rosa de Lima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 29/8/1966 e 29/8/1967)

1) Wilhelm Schamoni: Barcelona, 1951.

São Bernado – Alma de fogo, de sofrimento e de luta

São Bernardo era um monge da Ordem religiosa cisterciense, uma rama dos beneditinos, reformada por ele e destinada a praticar uma austeridade maior do que a imposta pelas regras monásticas  ais duras de seu tempo. Ele tinha a convicção de que, por meio do sofrimento, o homem expia os próprios pecados e os dos outros.

oi uma alma de fogo, que queria de todos os modos evitar o paganismo o qual ia ressuscitando ignobilmente de dentro de sua própria sepultura, para dar no neopaganismo moderno: era a  Revolução nascente.

São Bernardo resolveu ser um homem de sofrimento e de luta, e recolheu-se no claustro, para onde chamou muitas almas generosas.

A Europa encheu-se de conventos cistercienses, cujos monges começaram a praticar uma regra que até hoje é o espanto e a admiração dos homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/9/1989)

São Bernardo – Venerado sobre os ombros do Imperador

São Bernardo é um dos sóis da Igreja Católica e da devoção mariana. É o “Doctor Mellifluus” – Doutor Melífluo – que como ninguém elogiou a bondade e a misericórdia de Nossa Senhora. Ele é, por excelência, o homem da penitência e da mortificação, como também da polêmica com os adversários da Igreja do seu tempo.

Este Santo Abade de Claraval era, ao mesmo tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente. Ninguém sabia falar da Santíssima Virgem com tanta unção quanto ele. De outro lado, era um polemista tremendo que alcançou sucessos extraordinários.

Certa vez, estando na Alemanha, São Bernardo entrou numa cidade onde se encontrava também o Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o mais alto dignatário temporal da Cristandade. A fama de santidade do Abade cisterciense era tal que todo o povo foi correndo de encontro a ele. E São Bernardo teria sido esmagado pela multidão se o próprio Imperador não o tivesse tomado nos braços e feito montar sobre seus ombros. Desta maneira, foi ele um Santo que se apresentou à veneração pública montado num imperador! Glória extraordinária para uma época que possuía, muito mais do que outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/4/1971)

Confiança e alegria

Neste mês em que a Igreja celebra a realeza de Maria Santíssima, reveste-se de particular propriedade a recomendação que, com desvelada insistência, Dr. Plinio dirigia a seus discípulos para confiarem sem limites na Rainha e Mãe de Misericórdia:

“Ao discorrer sobre o pecado, São Francisco Xavier dizia ter mais temor, não da queda em si, mas do desânimo em relação à indulgência divina no qual pode cair o pecador após cometer a falta.

“Ora, a maneira de não incorrermos nesse desânimo é nos lembrarmos da Mãe inesgotavelmente misericordiosa que temos. E em possuindo essa misericórdia inexaurível, Nossa Senhora nos alcança as graças para nos emendarmos, e sua clemência se exerce perdoando, contemporizando, regenerando.

“De sorte que nunca será demasiado insistir: confiemos, confiemos e confiemos na Santíssima Virgem. Lembremo-nos sempre da extrema meiguice e da extraordinária condescendência de nossa Mãe para com as misérias de cada um de nós, individualmente considerado, e como, imbuídos dessa confiança, na oração da ‘Salve Rainha’ A honramos enquanto Soberana do universo, mas, ao mesmo tempo, A invocamos como Mãe, e Mãe de Misericórdia.

“Importa termos continuamente presente essa ideia da insondável clemência de Nossa Senhora, pois qualquer devoção, qualquer vida de piedade que não a tenha, corre o risco de ser completamente estiolada. Sem esta noção da misericórdia de Maria nada caminha, nada se realiza. Pelo contrário, tudo anda e cobra vigor com a ideia dessa providência indizivelmente suave, materna e contínua de Nossa Senhora sobre cada um de nós.

“Portanto, pensemos nessa verdade e procuremos cumular nossa alma de confiança e de alegria, pois quem possui uma Mãe assim não tem razão para se desesperar nem se abater com nada.”

Nossa Senhora tudo resolve, desde que nos voltemos para Ela. Devemos pedir-Lhe sempre o seu amparo, recordando-nos daquela sentença de Santo Afonso de Ligório: “Quem reza se salva, quem não reza, se condena”. Aquele que pretendesse passar a vida praticando atos de virtude sobre atos de virtude, porém sem rezar, primeiro não passaria a vida praticando atos de virtude e, segundo, acabava se perdendo. Por outro lado, quem vive no pecado mas reza, este ainda é capaz de se salvar.

“Supliquemos muito à nossa Mãe de Misericórdia que tenha pena de nós. Olhemos para as nossas dificuldades espirituais, para os nossos problemas de apostolado, para as nossas necessidades da vida quotidiana e roguemos com insistência o auxílio de Maria Santíssima. Ela nos atenderá infalivelmente. O Coração Imaculado de Maria é a porta na qual, em se batendo, nos é aberta; ao qual, em se Lhe pedindo, nos é dado. Na Mãe de Misericórdia a promessa do Evangelho se realiza com toda a integridade: [pedi e recebereis, batei e ser-vos-á aberto (Mt 7,7)].

“E se me permitam dizer, não receio mentir garantindo-lhes: rezem, peçam, e serão atendidos.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 16/11/1964)

"Vi, decidi e entrei!”

Analisem a fisionomia do Santo Ezequiel Moreno Díaz. É um rosto inteiramente distendido, sem a menor contração. Porém, não é a distensão comum do homem que dorme. Há algo  nesse modo de estar distendido que corresponde àquela espécie de distensão que os irresolutos não possuem. Estes têm a distensão da moleza.

Nele vemos a distensão das grandes resoluções tomadas, do homem que resolveu tudo e entrou rijo no caminho por onde tinha de entrar e disse: “Eu vi, decidi e entrei. Agora vamos até o fim!”

As dúvidas ficaram para trás e todos os sacrifícios que esse caminho trouxesse consigo, de algum modo ele os mediu, aceitou e pediu a Nossa Senhora que o ajudasse a não recuar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1980)

Santa Helena, Imperatriz Alma elevada e de horizonte largo

Para Dr. Plinio, não se pode deixar de reconhecer “com muita alegria” o trabalho realizado pela Imperatriz Santa Helena, cuja boa presença junto a seu filho, o Imperador Constantino, não só o converteu como o fez conceder a liberdade à Santa Igreja Católica. E além de estar na origem da irradiação do cristianismo, a partir de Roma, por todo o Ocidente, devemos a Santa Helena esse inestimável presente: a descoberta da verdadeira Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Celebra-se no dia 18 de agosto a festa de Santa Helena, Imperatriz e viúva, mãe de Constantino Magno. A ela se deve a invenção, isto é, a descoberta da verdadeira Cruz na qual Nosso Senhor Jesus Cristo foi crucificado.

Benéfica e salutar influência materna

Em vez de considerar este ou aquele aspecto da vida de Santa Helena, gostaria de ressaltar a impressão que o todo de sua personalidade nos comunica. Nesse sentido, eu diria que se trata de uma santa cuja importância para o panorama da Igreja redunda, não apenas do fato de ter sido imperatriz, mas também porque teve sobre Constantino uma evidente e salutar influência.

Quer dizer, temos Constantino, o primeiro imperador que faz uma promessa de dar livre curso ao culto católico no Ocidente, caso se visse auxiliado por Nosso Senhor Jesus Cristo na batalha de Ponte Mílvia. Ele recebe a célebre visão do “in hoc signo vinces” — “com este sinal vencereis” —, portanto uma confirmação do socorro divino, conquista a vitória e cumpre sua promessa. Com o Edito de Milão ele concede liberdade à Igreja Católica, e a partir daí começaria a ruir o paganismo sobre o qual o estado se assentava.

Diante desse acontecimento de fundamental importância para a Cristandade, não se pode deixar de reconhecer a materna e católica influência de Santa Helena sobre o filho. Quando nos lembramos de Santa Mônica rezando por Santo Agostinho e obtendo do Céu a conversão dele, ou quando recordamos o papel de Santa Clotilde junto a seu esposo, Clóvis, trazendo-o igualmente para o seio da Igreja Católica e, com ele, o povo franco, é difícil não pensar que Santa Helena impressionou a fundo Constantino, e que a atitude dele foi motivada, em grande medida, pela ascendência da mãe.

Na raiz da ordem social e temporal católica

Ora, se, católicos que somos, desejamos de toda a alma uma restauração da ordem social e temporal católica como a que vigorou nos dias áureos da Civilização Cristã, não podemos deixar de reconhecer, com muita alegria, o trabalho feito por Santa Helena com esse objetivo: não só fazer cessar as perseguições à Igreja no império romano pagão, mas também fazer com que o imperador começasse a edificar uma ordem temporal católica, prólogo da plenitude de catolicidade que alcançaria o Estado medieval.

Início este, diga-se, por vários lados verdadeiramente glorioso. Pela liberdade franqueada à Igreja, pelo fim dos cultos pagãos, e por esse ideal de unidade social católica que desabrocharia nos esplendores da Cristandade européia, os quais perdurariam ao longo de séculos.

Portanto, pela sua oração, pelo exemplo de suas virtudes, Santa Helena esteve na raiz de uma série de realizações gloriosas, de idéias grandiosas, de princípios que repercutiriam mesmo após o ocaso do Sacro Império Romano Alemão, até os nossos dias. Razão pela qual nos é particularmente cara a devoção a essa grande santa.

Oração que conduz à ação eficaz

Chamo a atenção para esse ponto acima mencionado: as orações de Santa Helena. É necessário compreender aqui o equilibrado do papel dessa oração.

Com efeito, seria equivocado imaginar que, uma vez recitadas as preces, não adianta fazer coisa alguma. Basta rezar e deixar as realizações concretas ao beneplácito da Providência. Às vezes, quando as vicissitudes o impõem, não se pode pretender outra coisa. Porém, é apropriado esperar que a oração nos mova à ação que realiza o fim almejado. E desse teor foram as preces de Santa Helena.

Enquanto a mãe rezava, o filho lutava e agia. Constantino, protegido pelo socorro do Céu, levando no seu lábaro o emblema de Nosso Senhor Jesus Cristo, combateu e alcançou a vitória. Em seguida, agiu vigorosamente, com a força temporal do Estado, para libertar a Igreja e extinguir os restos do paganismo.

 Creio ver nessa circunstância o equilíbrio perfeito entre oração e ação. Santa Helena reza, e sua oração é acompanhada certamente de atitudes e palavras evangelizadoras junto ao filho, e este cuida dos meios materiais para concretizar aquilo que, sem dúvida, sua mãe desejava realizar. A oração é a razão mais fecunda do desencadear dos fatos; os fatos produzem os frutos da prece atendida.

Aquela que tirou das entranhas da terra o Santo Lenho

Cumpre considerar, ainda, este outro e não menos belo florão na vida de Santa Helena: foi ela que encontrou a verdadeira Cruz, um acontecimento cercado de milagres e dádivas especiais de Deus. É o Santo Lenho do qual se espalharam relíquias para serem veneradas pelos fiéis do mundo inteiro.

Que glória para essa mulher ter sido, ao mesmo tempo, a mãe do primeiro imperador cristão e aquela que tirou das entranhas da terra a verdadeira Cruz, com todos os benefícios espirituais oriundos dessa descoberta!

Então admiramos ainda mais o vulto dessa Santa, conhecemos melhor a estatura dessa alma, um grande tipo de mulher que vive só para Nosso Senhor. Matrona de espírito elevado e de horizonte largo, compreendendo as coisas a partir dos seus aspectos mais sublimes e de maior alcance. E que, por causa dessa envergadura espiritual, transforma um Império e dá ao mundo o presente imensamente grandioso da verdadeira Cruz de Cristo. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 18/8/1964)

 

O maravilhoso na vida de Santa Clara de Montefalco

Muito maiores que as belezas do universo material são aquelas existentes nas almas dos Santos. A vida de Santa Clara de Montefalco está repleta de maravilhas. De tal modo ela amou a Cruz do Redentor que, após sua morte, em seu coração foram encontrados símbolos de instrumentos usados na Paixão de Nosso Senhor: cravos, coroa de espinhos, lança, açoite, esponja, coluna; e até mesmo três pequenas esferas representando a Santíssima Trindade.

Vamos considerar uma ficha a respeito da vida de Santa Clara de Montefalco.

Admirável virgindade

Santa Clara de Montefalco nasceu no ano de 1268 em Montefalco, cida-de da Úmbria, na Itália, e morreu em 1308. Ela conservou, durante toda sua vida, um grande ardor na oração. Na idade de cinco anos, compreendendo os perigos da vida no mundo, ela pediu a sua irmã, Joana, para admiti-la na pequena comunidade que essa irmã Joana dirigia, e que seguia as regras da Ordem Terceira de São Francisco. E a irmã só atendeu a esses pedidos ao cabo de um ano.

Uma vez, na idade de nove anos, ela deixou, ao dormir, seu pequeno pé nu sair da cama. A sua irmã Joana, que observou, a repreendeu, e lhe disse que isso não era conveniente a uma virgem. A pequena Clara teve tanto pesar que, depois disso, ela sempre envolvia muito estreitamente seus pés, antes de dormir.

Mais tarde, ela não permitiu nem sequer às religiosas de tocá-la com a mão. Ela recomendava às suas filhas nunca descobrir seu próprio corpo, mesmo na obscuridade. Ela observava isso tão estritamente para si mesma, que nunca quis mostrar ao médico nenhuma parte de seu corpo sem um véu.

Ela dizia também que as virgens não devem ter familiaridade nem com homens, nem com mulheres casadas, porque essa integridade perfeita dá a imortalidade ao corpo, que embalsamado pela flor da virgindade é preservado, assim, de toda corrupção.

Com a morte de sua irmã, Joana, ela foi eleita abadessa, e preencheu esse cargo com tanta prudência que jamais o demônio pôde alcançar êxito em enganá-la, por qualquer artifício que fosse. Como ele tinha observado que ela era muito assídua na contemplação da Paixão de Jesus Cristo, apareceu-lhe uma vez sob a forma de um crucifixo, com o corpo completamente descoberto a fim de despertar nela, por essa via, pensamentos ignóbeis. Mas a virgem reconheceu a arma escondida do adversário e deu risada. O demônio, furioso, desapareceu.

Deus lhe deu uma tal inteligência das coisas divinas que ela ousou combater uma heresia de seu tempo, participando de discussões, onde ela convenceu publicamente um de seus adeptos de mentira e de dissimulação.

Ela conhecia o pensamento oculto das pessoas e, por vezes, tinha o dom de profecia.

Nosso Senhor Jesus Cristo, Ele mesmo, veio uma vez lhe dar a Comunhão.

Após a morte, seu corpo permaneceu incorrupto

Ela teve, certo dia, um ligeiro movimento de impaciência em relação a uma irmã, que lhe assegurava que, apesar de seus esforços, não encontrava nenhuma suavidade na oração.

Não foi necessário mais do que isso para que ela fosse imediatamente privada, ela mesma, de toda consolação, acabrunhada de penas interiores. A noite de alma em que ela foi mergulhada não durou uma semana, nem um mês, mas onze anos inteiros. Depois dessa noite espiritual, o Divino Sol inundou sua alma com sua imortal claridade, e ela se viu elevada por uma concatenação de êxtases, parecendo pertencer mais ao Céu do que à Terra. Nesse estado ela ouvia o concerto dos Anjos, via o Menino Jesus na manjedoura do pobre estábulo de Belém, os Magos ajoelhados para adorar o Menino Jesus.

Certo dia, ela ouviu essas palavras dos lábios de Nosso Senhor:
— Venha Clara, venha! Tua vinda me será agradável.
— Senhor — respondeu ela — eu desejaria me dissolver para me unir a Vós.
— É preciso esperar mais um pouco, minha filha. Teu dia não chegou — respondeu o Senhor.

Uma outra vez o Senhor lhe apareceu na figura de um peregrino, carregando uma cruz sobre os ombros, e lhe disse:

— Minha filha, procurando o que poderia te oferecer de mais agradável a teu coração, me pareceu que minha Cruz seria a coisa que mais te conviria. Recebe-a, oscula-a e dá-me teu coração, a fim de que possas morrer para a Cruz, sobre a Cruz.

Ela morreu no ano de Nosso Senhor de 1308, no dia seguinte da Assunção, na idade de quarenta anos. Seu corpo foi enterrado em seu mosteiro, onde repousa ainda hoje. Conservado inteiro, e com a carnatura flexível como se acabasse de ser sepultado ontem, seu corpo é branco como o alabastro. Sua completa conservação foi constatada de novo sob o pontificado de Pio IX, de feliz memória.

Em seu coração, os instrumentos da Paixão

A santa alma de Clara, deixando seu corpo, nele fixou sinais evidentes de sua glória. E como as irmãs conhecessem sua terna devoção para com a Paixão, e tinham ouvido Clara dizer várias vezes, antes de sua morte, que ela carregava Jesus Cristo crucificado em seu coração, elas foram tomadas de desejo de se inteirarem exatamente desse fato, antes de confiar seu corpo à terra. Decidiram, portanto, fazer a autópsia e examinar o mistério de seu corpo; constataram, antes de tudo, que seu coração estava muito inchado e tinha o tamanho da cabeça de uma criança pequena. Demais, uma região estava completamente dura.

Segundo os médicos, é impossível a uma criatura humana viver nesse estado. Abriram o seu coração e nele encontraram, naturalmente em ponto pequeno, os instrumentos da Paixão. Uma irmã dividiu o coração em duas partes, e sua mão foi tão feliz que nenhum dos instrumentos da Paixão que ali estavam foi atingido. As irmãs, profundamente surpresas e felizes, deram graças a Deus pelo fato.

Na parte direita apareceu marcada a imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, preso à Cruz, mais ou menos da grossura do polegar. Nosso Senhor tinha os braços estendidos, a cabeça inclinada à direita, avançando um pouco sobre os ombros. O flanco direito era lívido com a chaga aberta e sangrando. Em torno dos rins havia um tecido manchado de sangue. Havia também, nessa parte do coração, três nervos aos quais estavam presos três pregos duros e pontudos, um deles notavelmente maior que os outros. Por cima dos pregos, um nervo cor de ferro, terminado em ponta dura. Essa ponta era aguda, penetrava como ferro, e representava a lança com a qual Longinos tinha transfixado o flanco do Salvador.

Enfim, na mesma parte do coração, estava ainda uma bola de nervos menores, representando a esponja com a qual o fel e vinagre foram tornados presentes a Nosso Senhor. Na parte esquerda se encontravam os açoites: eram cinco nervos entrelaçados com muitos nós e reunidos por um cabo comum. Depois do açoite se encontrava um nervo maior, representando a coluna da flagelação, cercada por nervos sangrando, figurando as cordas com as quais o Senhor foi ligado. Por cima da coluna, a coroa de espinhos, formada por nervos entrelaçados como espinhos duros e pontudos. Todas essas insígnias, ainda que formadas de carne, eram duras como os instrumentos reais da Paixão de Nosso Senhor.

Quando as religiosas viram todas essas maravilhas e consideraram uma a uma com respeito e admiração, elas informaram — na ausência do Bispo de Spoleto — ao seu vigário Béranger, que fez um exame minucioso e pôde se inteirar da realidade do que acaba de ser dito. Ele espantou-se, sobretudo com o fato de que esses instrumentos, separados do coração, tinham toma-do consistência pela dureza da madeira e da pedra. Várias dessas insígnias foram postas nas mãos do Papa João XXII, quando ele fez o exame da vida de Clara, para a beatificação.

Símbolo da Santíssima Trindade

As irmãs recolheram o sangue que corria do coração, quando ele foi aberto e o puseram em uma ampola de vidro.

O sangue difundiu, nesse momento, um odor suave. Ele permaneceu coagulado até hoje. E quando uma tempestade grave ameaça a Igreja, vê-se que esse sangue se agita e se põe em ebulição, o que significa a cólera de Deus.

A região endurecida foi aberta igualmente e examinada pelos médicos. Ali encontraram três pequenas esferas, cor de cinza e manchadas de vermelho; eram todas as três da mesma grossura e do mesmo peso, duras como sílex, e colocadas em forma de triângulo. Elas representavam manifestamente o mistério da Santíssima Trindade; eram absolutamente iguais umas às outras em tudo. O que causa maior admiração é que cada uma dessas bolas era exatamente do mesmo peso que as outras duas.

Isso é mais notável, porque parece uma contradição: pondo numa balança de duas conchas as três bolas, cada vez que se punha uma bola separada, ela pesava tanto quanto as outras duas. Isso é altamente teológico, porque é outro modo de exprimir que as três Pessoas da Santíssima Trindade são tão iguais entre si, que não se pode dizer que duas valham mais do que uma. O que é o auge, o suprassumo da igualdade.

E ao ser colocada numa das conchas da balança uma das bolas e, na outra, uma pedra ou qualquer objeto de peso igual, e que se acrescentasse as outras duas esferas na balança, onde já havia uma, a balança permanecia imóvel como na primeira operação.

Sem dúvida, um verdadeiro milagre.

Era um sinal manifesto da Santíssima Trindade; una quanto à essência, diversa quanto às Pessoas. Uma das três bolas partiu-se por si mesma no momento em que a França, maculada pela heresia de Calvino, causou tantos males à Igreja.

Santa Clara de Montefalco foi canonizada por Leão XIII, no dia 8 de dezembro de 1881.

O universo é repleto de maravilhas

Trata-se de uma vida toda ela feita para causar certo arrepio no homem contemporâneo. Enquanto estava lendo, olhei meus ouvintes com os olhos do espírito, quer dizer, com o conhecimento que tenho do homem de nossos dias, e me pareceu que, para além da ficha que eu lia, sentia no ar algumas vozes se levantarem dentro de alguns — que quero crer não tenham dado consentimento a essas vozes — dizendo interiormente o seguinte:

“Mas como pode ser uma coisa dessas? Como é possível tanta maravilha, uma em cima da outra? Isso deve ser inventado, porque uma maravilha, vá lá; duas maravilhas, vá lá; mas cinquenta maravilhas acumulando-se uma em cima da outra sobre essa freira! Manifestamente, tantas maravilhas juntas não pode ser.”

Eis a curteza de vistas a que o positivismo leva o homem contemporâneo. A mania de só tomar em consideração a realidade concreta, e a ideia de que a maravilha é algo excepcional; que o normal das coisas é que elas não sejam maravilhosas, e que já é puxado aceitar uma maravilha; é duro demais aceitar duas, ou três, ou cinco…

Precisamos compreender até que ponto essa ideia é absurda.

O universo que nos cerca é cheio de maravilhas. Cada estrela é uma maravilha. Olhem para o céu: quantas estrelas percebemos? Deus, que fez tantas maravilhas, realizou ainda maiores para ilustrar a alma de alguns Santos. Tudo quanto existe foi criado para a santificação do homem.

Ora, para santificar os homens, terá Deus feito maravilhas maiores do que os Santos, que eram objeto de todas essas maravilhas? Quer dizer, o meio foi melhor do que o fim? O poder, a sabedoria e a bondade de Deus foram mais extraordinários nos instrumentos do que na realização da meta deles?

Num mundo opaco, horrendo, trágico, conspurcado e abandonado…

Tornando mais clara a argumentação:

Tudo quanto existe no universo visível foi criado para a santificação do homem. Não tem outra razão de ser. Portanto, estrelas e todas as outras maravilhas são belas a fim de que o homem tenha uma ideia da perfeição e da beleza divinas, para que assim santifiquem os homens. Logo, tudo isso não é senão um meio para a santificação. O meio tendo sido tão maravilhoso, o fim precisa ser muito mais maravilhoso, porque seria um absurdo Deus fazer o meio mais belo do que o fim. O meio é sempre inferior ao fim.

Se é assim, Ele há de ter posto nas almas dos Santos maravilhas incomparavelmente maiores e mais numerosas do que as que vemos em torno de nós. Portanto, é muita mesquinharia de espírito, lendo uma vida de Santo, dizer: “Deus não há de ter feito tanta maravilha para uma só pessoa.”

Pois se Ele fez tantas maravilhas para a pessoa ficar santa, não faria maiores ainda no realizar a santidade dessa pessoa, que é o ponto terminal da operação d’Ele? Quem pode pôr isso em dúvida? Que um ateu duvide, compreende-se. Mas que um católico ponha isso em dúvida é o auge do irracional.

Isso nos leva a uma outra consideração, a meu ver muito importante. Eu a formulo da seguinte maneira:

Devemos compreender que é por causa desse mundo revolucionário, dos pecados que temos cometido, do castigo divino em relação a esse mundo, que Deus se ausenta dele e deixa–o como está: opaco, horrendo, trágico, conspurcado e abandonado. Esse é o mundo do qual se retirou o amor de Deus, e que está entregue à sua cólera.

Então, não se notam hoje as maravilhas de outrora. Mas antigamente, quando as maravilhas de Deus apareciam num mundo a quem Ele amava e que amava a Deus, isso tudo tinha qualquer coisa de paradisíaco e a Providência era muito mais larga com sua generosidade, com sua bondade, do que é nos dias de hoje, em relação aos filhos da Revolução.

De maneira que devemos ter o espírito pronto para a seguinte ideia: É verdade que na atual ordem da Providência, a maravilha, o milagre é uma exceção. Mas não é algo tão raro quanto se pensa. Ademais, coisas maravilhosas não claramente milagrosas são muito mais frequentes do que se pensa. É questão apenas de se ter uma alma sedenta de maravilhas, crendo que estas podem ser numerosas e que Deus as multiplica ao longo de nossos passos. Pedindo-as e desejando-as muito, o Altíssimo fará as maravilhas em nós também. Sermos sedentos de maravilhas, maravilháveis, tornará maravilhosas as nossas almas. E Deus poderá fazer também por nós coisas que Ele realizou por Santa Clara de Montefalco.

…Nossa Senhora fará maravilhas ainda maiores

Assim nós devemos abrir os horizontes de nossas almas enormemente; e tomar outra envergadura; ter o espírito completamente voltado para uma outra dimensão, outro sistema de medir as coisas. E compreender que rezando, pedindo, esperando, desejando, nós poderemos receber incomparavelmente mais do que aquilo que conseguiríamos imaginar.

De algum modo nosso Movimento é isso. Eu estou lhes narrando, aos sábados, a história de nosso Movimento, e verificamos que ocorreram coisas as quais no começo da estacada se reputavam impossíveis. Estão feitas. Se o impossível está realizado, não há limite para o impossível. A partir do momento em que esta sineta colocada sobre minha mesa, por si mesma, se suspenda cinco centímetros, é igualmente fácil que ela chegue até a Lua. O primeiro ponto é ela levantar os cinco centímetros. Mas se há um poder sobrenatural que a ergue cinco centímetros, para esse poder não é nada levantá-la acima de todas as coisas da Terra; e não é nada levá-la até a Lua, ou a qualquer outro astro. A questão é levantar os cinco primeiros centímetros.

Nossa Senhora levantou os “cinco primeiros centímetros” na história de nosso Movimento. E é preciso reconhecer que nós fizemos força em sentido contrário…

Essa é talvez a maior das maravilhas: a aeronave subiu com muita gente dentro chorando de saudades da Terra, e olhando pela janelinha, dizendo adeus para círculos mundanos, pulando para ver se a aeronave não subia. A aeronave subiu cinco centímetros. Se nós aproveitarmos bem lições como essa, o que há de maravilhoso na vida de Santa Clara de Montefalco, então compreenderemos bem quanto é de esperar que Maria Santíssima faça ainda mais maravilhas muito maiores. Essa é a lição que a vida de Santa Clara de Montefalco nos traz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/12/1973)