Nascimento da criatura perfeita

Por que a Igreja festeja especialmente o Santo Natal de Nossa Senhora? Porque Ela foi tão grande que a data de sua entrada no mundo marca uma nova era na história do Antigo Testamento, a qual podemos dizer que se divide, sob este ponto de vista, em duas partes: antes e depois da Santíssima Virgem.

Porque, se o Antigo Testamento é uma longa espera do Messias, esta espera tem dois aspectos: os milhares de anos pelos quais a Divina Providência permitiu que esta expectativa se espichasse e, depois, o momento abençoado em que Deus resolveu fazer nascer Aquela que obteria o advento do Salvador.

O nascimento de Maria Santíssima é a chegada ao mundo da criatura perfeita que encontra plena graça diante de Deus, da única pessoa cujas orações têm o mérito suficiente para acabar com a espera e fazer com que, afinal, os rogos, os sofrimentos de todos os justos e a fidelidade de todos aqueles que tinham sido fiéis conseguissem aquilo que sem Nossa Senhora não se teria obtido.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1966)

Nossa Senhora de Coromoto Harmonia augusta, nívea e maternal

A insondável majestade e a infatigável solicitude materna de Maria Santíssima se unem e reluzem aos nossos olhos, salientadas nesses comentários de Dr. Plinio a uma bela imagem de Nossa Senhora de Coromoto, Padroeira da Venezuela, cuja festa é comemorada em 8 de setembro.

 

Ao contemplarmos essa linda imagem de Nossa Senhora de Coromoto, notamos de imediato o proporcionado do conjunto que com ela estabelece a base e a cadeira. Esta última possui um espaldar alto que sobrepuja a cabeça da Virgem, e apresenta em seu topo um arco singelo, porém elegante, semelhante a um dossel.

Majestade e intimidade

Trata-se de um detalhe interessante, pois ele frisa a ideia de que Maria Santíssima tem perfeita noção da própria majestade e, sendo a Rainha do Céu e da Terra, condescende em manifestar tanta bondade para conosco.

Por sua vez, a base, um tanto elevada, encontra-se numa proporção muito amena com a imagem, situando-a numa altura que transmite a noção da intimidade — repassada de sacralidade — que Nossa Senhora deseja estabelecer com seus devotos. Cumpre observar, entretanto, que a base e o dossel são apenas elementos auxiliares para visualizarmos o conjunto.

Nas laterais aparecem quadriláteros superpostos, encimados por dois triângulos que insinuam vagamente ­duas colunas, com seus capitéis, de uma hipotética catedral cuja abóbada seria representada pelo arco. Embora tais figuras geométricas pudessem ter sido concebidas de modo mais artístico, se fossem retiradas o conjunto perderia em expressão.

Brancura nívea

A qualquer hora do dia, a primeira impressão causada pela imagem é de uma brancura tal que se diria ser feita de uma matéria desconhecida nesta Terra. Ao substantivo “brancura” convém acrescentar o adjetivo “nívea”, que pode parecer exagerado, mas seria uma exceção permitida pelo rico vocabulário da língua portuguesa. Ele realça, exprime melhor esse tipo de brancura que admiramos na imagem de Nossa Senhora de Coromoto: brancura nívea.

Sobretudo à noite sente-se estar em presença de um material que teria vindo, por exemplo, da lua. Não da lua explorada pelos astronautas, mas da lua cantada em versos de poesia…

Escrínio da vida divina

Esta brancura nívea indica como a Virgem Santíssima está penetrada, repleta da graça de Deus. Realça uma transparência do Criador na alma de sua criatura eleita. Nas horas noturnas, naturalmente, tudo isso resplandece de modo mais acentuado. E não apenas porque a alvura se destaca no contraste com as sombras. Esta seria uma explicação verídica, mas evidente. O fato é que, de dia, tem-se a impressão de que o mármore reflete a brancura; e à noite, de que nele habita uma luz, causando-nos a sensação de que, se apertássemos aquela matéria da qual a imagem é feita, dela jorraria luz em estado líquido.

Mais ainda. A própria psicologia da personagem (no caso, Nossa Senhora) é imaculadíssima, puríssima, toda constituída para viver dentro desse níveo, que seria uma espécie de “substância” existente no Céu.

A meu ver, a primeira nota de majestade e grandeza que dela emana é um reflexo da participação de Nossa Senhora num outro mundo e da presença dentro d’Ela da vida divina, que A coloca acima de comparação com qualquer outra mera criatura.

Insondável solicitude materna

A partir dessas impressões iniciais, realçadas pela iluminação noturna, analisemos outras.

Maria Santíssima tem consciência de todos esses aspectos de sua pessoa, e demonstra estabilidade através da posição e atitude calmas, de quem se sente perfeitamente em ordem e não se acha impelido por pressa alguma. Para a imagem, o tempo como que não existe: Nossa Senhora passaria séculos acomodada onde está. É o que, com profundo respeito, se pode chamar “felicidade de situação”.

De outro lado, percebe-se que a Santíssima Virgem tem dupla atenção: uma para seus valores internos e celestes, e outra, minor, para a pessoa que d’Ela se aproxima. Dir-se-ia que Ela é toda solicitude materna, e não nota, porque não o quer, a extrema inferioridade de quem se ajoelha a seus pés. Maria não se compara com o filho que vem lhe apresentar uma súplica, dirigir-lhe uma prece. Assim, a Mãe de Deus eleva o devoto à categoria d’Ela, sem analisá-lo: “Você tem culpa ou não; é bom ou ruim”. Apenas diz: “Você existe e, portanto, tenho misericórdia. O que deseja?”

Nesta imagem transparece muito essa bondade maternal de Nossa Senhora, e a pergunta que dirige ao fiel — “O que deseja?” — é discernida no olhar e na leve inclinação da cabeça para frente, significando seu extremo desvelo e a disposição de atender até os nossos menores pedidos.

Rainha no pleno exercício de seu poder

Nota-se, também, um senso moral firmíssimo. Ela perdoa qualquer ofensa, mas tem total incompatibilidade com o mal. Quem, diante dessa imagem, pedisse algo de ruim, causar-lhe-ia horror e se sentiria fortemente censurado. Esses extremos harmônicos — bondade e rejeição do mal — fazem parte da beleza e da perfeição de Nossa Senhora de Coromoto.

Percebe-se outrossim sua majestade pela consciência que Ela possui de governo. É uma Rainha, tem a visão superior das coisas, as considera no seu conjunto e sabe como se compaginam na criação. Ou seja, por disposição divina, Ela tem o direito de mandar na ordem universal e o exerce de modo perfeito.

Esse governo se exprime de forma interessante pelo relacionamento d’Ela com o Menino. A Mãe de Deus O segura como quem pode lhe dar ordens; de outro lado, O aponta, como quem diz: “Se Eu tenho algum direito e valor, é por causa d’Ele, que é o Redentor. Se quiserem me agradar, voltem-se para meu Divino Filho, porque vivo para Ele. Sou apenas uma intercessora junto ao Verbo Encarnado”.

Ao mesmo tempo em que Ela manda n’Ele, é a primeira de seus súditos. O Menino é o cetro de Nossa Senhora, e a Virgem é o trono no qual Ele se senta. A soberania do Rei é realçada pela majestade da Rainha, e vice-versa.

Na delicadeza dos traços, a ideia de misericórdia

Julgo que a misericórdia se afirma no caráter virginal da imagem, na extrema delicadeza e harmonia dos traços de mãe e filho. Em suas fisionomias há um misto de medieval e sulpiciano(1), que são estilos incongruentes, mas aqui apresentam uma conjunção feliz: são hieráticos como o medieval, com qualquer coisa de sumamente acessível do sulpiciano.

O manto de Nossa Senhora, que cobre sua cabeça e deixa aparecer um pouco de seus cabelos, possui um pregueado muito amplo, bonito, majestoso, lembrando a toga de um magistrado e o manto de rainha. Indica também que Ela se acha inteiramente à vontade onde está e que — independentemente do que pensem, queiram, façam ou digam — tomou conta do lugar. É verdadeiramente a Soberana.

Augusta e maternal

Tudo o acima exposto seria a descrição da imagem. O passo seguinte é a exclamação que temos diante dela.

Desde logo: nívea! Porém, essa palavra requer um complemento que a enriqueça. Exclamar: “Ó Mãe nívea, ó Rainha nívea” não seria suficiente. Poder-se-ia acrescentar “augusta”, posto ser Nossa Senhora a obra-prima da mera criação.

Aprofundando essas cogitações, creio que os títulos “harmonia nívea, régia e maternal” exprimem em algo o conjunto da imagem. Corroborados pelo seguinte fato: a matéria de que ela é feita, considerada à luz dos presentes comentários, adquire um aspecto que cria a ilusão de estar numa relação de “transcendência” quanto à matéria comum da qual provêm esculturas semelhantes. Ela possui, ao mesmo tempo, predicados análogos e diversos dessa substância trivial, e nos introduz na ideia de branco absoluto, porque o níveo é uma impressão deste último.

Diante desse tipo de luminosidade nívea, tem-se uma sensação de contato com uma ordem de realidades parecida com a conhecida por nós, mas que não se imaginaria pudesse existir. Então, essa alvura nívea está para o branco comum, mais ou menos como as coisas divinas estão para as criadas. Possui algo da luz incriada. É semelhante aos outros brancos, mas inimaginável. Transcende-os. E nos conduz Àquele que é o transcendente por excelência, Deus.

Digamos, portanto, que a exclamação inteira, louvando essa linda imagem de Nossa Senhora de Coromoto, seria: ó harmonia nívea, régia, augusta e maternal!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) No século XIX, tendo como foco a igreja da Ordem Religiosa dos Sacerdotes de São Sulpício, em Paris, surgiu uma arte sacra denominada “sulpiciana”, que procurou realçar em suas imagens o afeto e a misericórdia dos personagens por elas simbolizados. Vale mencionar que os Sacerdotes de São Sulpício, além de sua presença na França, contam com membros em todo o mundo, especialmente no Canadá.

 

A maior fonte de bênçãos de todos os tempos

Com o nascimento de Maria Santíssima abriu-se a maior fonte de bênçãos de todos os tempos, cuja irradiação pessoal e ação de presença eram o prenúncio da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi o início daquilo que iria derrubar, afinal, as muralhas do paganismo.

A Natividade de Maria é, pois, uma festa de altíssimo significado na qual podemos implorar que, assim como Ela veio à Terra e imediatamente começou a pedir o advento do Messias e o fim daquela ordem de coisas embargada pelo pecado, Nossa Senhora nos dê um desejo ardente, sapiencial, refletido, ponderado, sério e profundo do Reino de Maria, que não deixe em nossas almas apego a mais nada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1966)

A severidade de São Corbiniano

Precisamos ter uma visão global da Doutrina Católica e, portanto, timbrar em conhecer as verdades esquecidas. Uma delas é a que os santos de nossos dias devem ser como São Corbiniano, em  muitas ocasiões de suas vidas. Pois nossa época é de extraordinária obstinação no pecado, sobretudo o de heresia, e a pior delas é a Revolução. Para vencer essa obstinação, em muitas  circunstâncias, o remédio é a severidade.

 

Segundo o Martirológio, em 8 de setembro se comemora São Corbiniano, Bispo de Freising, na Baviera, falecido nesse dia, em 730(1).

Recriminações a um príncipe

Regressando de Roma, onde se entrevistara  com o Papa Gregório II, São Corbiniano, ao chegar à fronteira dos Estados pertencentes a Grimoaldo, foi detido por guardas que este duque ali postara, com ordem de não permitir a passagem do bispo, se ele não aceitasse em fazer-lhe uma visita.

O Santo consentiu. Mas, ao dirigir-se ao castelo do príncipe, declarou que lá só entraria se Grimoaldo deixasse Piltrude, a viúva de seu irmão, com quem se casara. Como o príncipe não  obedecesse, perseverou na recusa, admoestando-o incessantemente com suas recriminações a fim de conduzi-lo à penitência.

Ao cabo de quarenta dias, Grimoaldo e Piltrude prometeram separar- se e o santo bispo mandou-os vir à sua presença. Absolveu-os, depois de terem pedido perdão de joelhos e lhe beijado os pés,  impôs-lhes penitências de esmolas, jejuns e orações. Depois entrou no palácio.

Jantando certo dia em companhia desse mesmo príncipe, São Corbiniano abençoou os alimentos servidos à mesa. O príncipe, que se distraíra, atirou um bocado ao seu cão favorito.

Imediatamente o santo homem derruba a mesa com um pontapé, dizendo que quem atirava a um cão semelhante bênção não era digno dela, e que desse dia em diante não comeria mais em sua  companhia.

Profundamente ferida pelo fato de São Corbiniano tê-la separado do príncipe, com suas admoestações, Piltrude aproveitou a ocasião para acusá-lo de crime lesa-majestade, merecedor de morte.

O príncipe, entretanto, que o tinha em grande e alta estima, mandou fechar as portas da cidade, temeroso de que o homem de Deus, em sua cólera, dela se retirasse. Acompanhado maiorais de sua corte, foi pedir–lhe perdão.

Noutra ocasião, quando se dirigia ao ofício da noite na Igreja de Santa Maria, o santo bispo encontrou no caminho uma camponesa, que se retirava carregada de ricos presentes. Já fora apontada como dada à prática de sortilégios. Interrogou-a sobre a razão dos presentes. Respondeu ela que curara o filho do príncipe, que estava atormentado por demônios, e que por causa disso fora  presenteada. Horrorizado, o bispo desceu do cavalo, espancou a mulher com suas próprias mãos, arrancou-lhe tudo quanto carregava e distribuiu entre os pobres à entrada da cidade. Mais do que tudo, lamentava a infidelidade do príncipe.

Para vencer a obstinação no pecado, em muitas circunstâncias o remédio é a dureza

Toda virtude concebida de maneira unilateral não é autêntica virtude. Se fôssemos imaginar um santo apenas muito suave, bondoso, invariavelmente amável em todas as circunstâncias de sua  vida, não estaríamos em presença de um verdadeiro santo, mas sim de um arremedo de santo. Como também se imaginássemos um santo que procedesse durante toda a sua vida explosivamente  como São Corbiniano agiu nesses episódios, nós estaríamos diante de um santo muito singular, porque não se pode conceber que um bispo, mesmo na era constantiniana, para remédio de todas as situações jogue as mesas no chão, etc. Mas há situações em que o dever consiste em agir assim, como existem ocasiões em que o dever se cifra em ter um procedimento diverso.

O que explica nossa insistência nesse exemplo de São Corbiniano? É que temos muitos exemplos em sentido contrário, e as virtudes “corbinianas” são extraordinariamente raras. De maneira que  encontramos aí uma razão muito boa para pôr em realce essa ficha.

Mas há uma razão mais profunda, evidentemente. Precisamos ter uma visão global da Doutrina Católica e, portanto, devemos timbrar em conhecer as verdades esquecidas.

Uma delas é que os santos devem ser assim, como São Corbiniano, em muitas ocasiões de suas vidas, sobretudo quando se trata de santos de nossa época. Época de uma dureza, de uma obstinação no pecado – e o pior deles que é o de heresia, e a pior das heresias é a Revolução, com o laicismo a ela inerente –, uma obstinação tão extraordinária que realmente não se sabe o que dizer. É claro que, para vencer a obstinação, em muitas circunstâncias, o remédio é a dureza.

Hoje, a prova de coragem consiste em enfrentar aqueles que promovem a Revolução

O primeiro exemplo do procedimento de São Corbiniano com o príncipe se explica pelo fato de que este era casado com uma mulher, a qual tinha com ele um grau de parentesco por ser viúva do  seu irmão e, portanto, precisava de uma dispensa da Santa Sé para contrair matrimônio com ela. Eventualmente, o príncipe não tinha pedido essa dispensa e vivia maritalmente com ela, e casou-se mesmo com ela, mas de um modo ilícito, sem a licença da  Santa Sé. Ele estava, portanto, numa situação que São Corbiniano não poderia tolerar.

Vimos com que extremos de severidade ele censurou a atitude do príncipe, e que humildade o Santo exigiu dele, como pedido de perdão.

Quem seria um personagem equivalente ao príncipe nos dias de hoje para um santo humilhar assim? Como poderíamos imaginar um confronto entre a fortaleza da autoridade espiritual e os  poderes temporais atualmente?

A Revolução deslocou das mãos dos príncipes, ou ao menos da maior parte deles, o poder e a riqueza. Enfrentá-los já não é grande prova de coragem. Mas é prova de coragem enfrentar aqueles  que hoje têm muito poder, ou muitos meios de subornar, de comprar. Entre esses nós temos em primeiro lugar, evidentemente, os ricos. Mas não só eles; também a imprensa, o rádio, a televisão, os instrumentos que manipulam a opinião pública, os demagogos, os chefes de correntes revolucionárias; a todos esses, se favorecem o mal, é preciso que um bispo saiba enfrentar.

O exemplo do Cardeal Mindszenty

Como é bonito, por exemplo, vermos um bispo proceder por essa forma, enfrentando o comunismo, a demagogia, a desordem e a Revolução! Nós temos hoje em dia um exemplo que vem a  propósito lembrar porque, ao menos pelo que se conhece, não é menos belo do que o exemplo de São Corbiniano. É o Cardeal Mindszenty(2), que está preso na Hungria, e a respeito do qual baixou  um tal silêncio que quase nos esquecemos de que ele existe. Pois bem, temos aí um exemplo de fortaleza extraordinária, que lembra a fortaleza de São Corbiniano.

A ficha narra outros dois episódios: um é do Santo que joga a mesa no chão porque o príncipe deu de comer alimentos abençoados a um cachorro. Alguém perguntará: “Mas ele não podia fazer de modo diferente? Por exemplo, dizer: ‘Príncipe, eu me levanto.’ Ou simplesmente manter silêncio sentido, em relação ao príncipe”. Uma pessoa mais moderada indagaria: “Ele poderia  simplesmente dizer: ‘Príncipe, para seu cachorrinho não seria demais um pão bento?’

Assim, São Corbiniano não captaria mais a simpatia e a benevolência do príncipe?”

Seriedade, respeito, confiança

É preciso sempre lembrar que a arte de tratar com as almas não consiste principalmente em incutir-lhes simpatia, mas sim, antes de tudo, em lhes granjear o respeito. E o respeito se granjeia pela seriedade. E a seriedade se documenta muitas vezes pela severidade. É tomando as coisas até as últimas consequências e punindo de acordo com a gravidade, que se mostra ser sério. E, mostrando-se sério por essa forma, impõe-se respeito, inspira-se confiança e  desse modo se dirigem as almas.

Um erro da propaganda hollywoodiana, e que o ambiente de hoje incute nas almas de um modo terrível, é a ideia de que o perpétuo “smiling”, o sorrir para todo mundo, arrasta as pessoas. Arrasta  coisa nenhuma. Os norte-americanos têm distribuído dólares e sorrisos à farta. Se houve uma potência no mundo que garganteou pouco o seu poderio foi a norte-americana. O grande poder  temporal mundial, anterior ao norte-americano, foi o da Inglaterra.

Como a Inglaterra levava a coisa de outro jeito! Antes da Inglaterra foi Napoleão. Os Estados Unidos exercem uma dominação velada, por detrás dos bastidores, com dólares, e garantindo a  independência desses países, pelo menos a independência política, e amenizando o conjunto com sorrisos. Contudo, eles estão sendo gradualmente abandonados pelo mundo inteiro. Por quê? Porque os Estados Unidos não incutem admiração. E não incutem admiração pelo fato de que não são sérios. Eles depositam toda a sua confiança no sorriso. O sorriso tem um certo papel na vida do homem, não tem dúvida. Não estou dizendo que nunca se deva sorrir. Mas que essa seja a guia régia, é um engano.

O sorriso precisa ser temperado, consertado com atos de grande valor, de grande energia. Quem não é capaz de meter um pouco de medo não é verdadeiramente santo. E por isso nós temos um  Santo de requintada bondade, mas que sabe impor medo, e consegue fazer o príncipe ficar quieto.

Na Idade Média, a virtude e a contrição dos pecadores são encantadoras

Por outro lado, é uma maravilha a atitude do príncipe. Na Idade Média, muitas coisas encantam. A virtude encanta, mas também a contrição dos pecadores é encantadora. O príncipe andou mal  porque, afinal, ele devia ter prestado atenção. À sua mesa estava um Santo que ele venerava como tal; o varão de Deus dá uma bênção nos alimentos, mas ele está pensando no cão. Contudo, em comparação com as coisas que fazemos hoje, quão ingênuo, quase se diria quão gracioso!

O príncipe leva uma admoestação tremenda, e sua primeira ideia é: “Segura o Santo porque eu quero pedir perdão para ele!” E como o Santo vai embora, manda fechar as portas da cidade. Depois pede perdão, ajoelha-se, o Santo se reconcilia e volta tudo à bonança. Nota-se que contrição entra nisso, que cordura, que brandura de alma, que inocência há numa atitude como essa. Não é verdade que, mesmo nessa penitência, há uma inocência mais profunda do que a falta cometida e que nos deixa maravilhados?

Finalmente, a sova na mulher que era uma espécie de bruxa e feiticeira e havia usado algum feitiço para curar o filho desse homem. Qual foi a atitude do Santo com ela? Eu pergunto: há casos semelhantes atualmente? Ainda hoje eu estava lendo a seguinte notícia: Houve a inauguração de um parque municipal em São Paulo, durante a qual foi realizada uma sessão ecumênica. Falou um padre, um bispo católico, logo em seguida um espírita e depois um rabino. Numa mesma sessão, em comum com o bispo. Onde está o exemplo de nosso Santo? Como estão mudadas as coisas…

Plinio  Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1969)

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XVI, p. 106-107.

2) Cardeal József Mindszenty (*1892 – †1975). Opôs-se tenazmente ao regime comunista, particularmente em seu país, Hungria. Foi perseguido, preso e morreu no exílio. Seu corpo, exumado em  1991, foi encontrado incorrupto, e em 1996 foi apresentada à Santa Sé a documentação para o processo de sua beatificação.

 

O início da vitória!

Bendito o dia em que Nossa Senhora nasceu; benditas as estrelas que a viram pequenina; bendito o momento em que seus pais constataram o nascimento d’Aquela que, permanecendo sempre virgem, fora chamada a ser a Mãe do Salvador!

 

Por que se festeja o aniversário de alguém? A razão é muito simples: o aniversário de uma pessoa representa o momento em que esta entrou no cenário da vida, o momento em que a sociedade humana se enriqueceu com mais uma presença.

Cada nascimento constitui um favor, uma graça de Deus, porque todo homem — por mais que seja concebido em pecado original ou traga alguma deficiência de família — é uma criatura de grande valor. E essa criatura representa um enriquecimento altamente ponderável para a humanidade.

Concebida sem pecado e repleta de dons sobrenaturais e naturais

Nestas condições, a festa da Natividade de Nossa Senhora leva‑nos a perguntar qual o enriquecimento que Ela trouxe para a humanidade, e a que título especial o gênero humano deve festejar seu aniversário.

Colocando-nos nessa perspectiva, ficamos sem saber o que dizer… Pois Nossa Senhora foi concebida sem pecado original.

Sendo Ela livre de qualquer mancha, um lírio de incomparável formosura, seu nascimento deve alegrar não só o gênero humano, mas também todos os coros angélicos!

Além disso, Nossa Senhora possuía todos os dons naturais que uma mulher possa ter. Nosso Senhor deu a Ela, segundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima e, a esse título, a presença d’Ela entre os homens representava um tesouro de valor verdadeiramente incalculável.

Além disso, com sua presença entre os homens, ganhamos os tesouros de graças que A acompanhavam e que são as maiores graças concedidas por Deus a alguém, graças verdadeiramente incomensuráveis.

Compreendemos, então, o que representa a entrada de Nossa Senhora no mundo.

O mais belo nascer do Sol é pálido em relação à beleza da entrada de Nossa Senhora no mundo; a mais solene entrada de um rei no seu reino nada é em comparação com isso.

A ação de Nossa Senhora nos períodos de provação

A Natividade de Nossa Senhora nos inspira também outro pensamento.

O mundo estava prostrado no paganismo; os vícios imperavam; a idolatria dominava a Terra; o mal e o demônio venciam inteiramente.

Mas, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, tudo mudou! Nasceu Nossa Senhora, a raiz bendita da qual nasceria o Salvador da humanidade. Começava assim a derrocada do demônio.

Quantas vezes não se passa algo semelhante em nossa vida espiritual! Há ocasiões em que nossa alma está em luta, com problemas, contorcendo e revolvendo dificuldades! Sequer temos ideia de quando virá o dia bendito onde uma graça extraordinária, um grande favor acabará com nossos tormentos, proporcionando-nos um amplo progresso na vida espiritual. E, de repente, há um nascimento no sentido especial da palavra: Nossa Senhora aparece qual aurora em nossa vida espiritual.

Isso deve nos dar muita alegria e esperança, com a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas ocasiões mais difíceis Ela nos visita, resolve nossos problemas, cura nossas dores, dá‑nos a combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que seja.

Desde o nascimento, influenciando o destino da humanidade

Assim como no Natal celebramos o momento bendito em que Nosso Senhor veio ao mundo e começou a fazer visivelmente parte da sociedade humana, a festa da Natividade de Maria exalta a ocasião em que Ela enriqueceu a humanidade com a sua presença.

Alguém dirá: “Mas o que um bebê, sem o uso da razão, pode acrescentar a uma sociedade?”

Ora, sendo concebida sem pecado original e possuindo o uso da razão desde o primeiro instante de seu ser, já no ventre materno Nossa Senhora tinha pensamentos elevadíssimos e sublimíssimos.

Se São João Batista, o qual não foi isento da culpa original, mas libertado dela antes de nascer, ao ouvir a voz de Maria saudando Santa Isabel estremeceu no seio materno(1), não poderia a Mãe do Redentor já em sua infância ter conhecimento do que se passava?

Nossa Senhora, desde o claustro materno, devido à altíssima ciência que lhe foi concedida pela graça de Deus, pedia pela vinda do Messias e pela derrota do pecado. Desta forma Ela influenciava os destinos da humanidade.

Diz-nos o Evangelho que da túnica de Nosso Senhor saía uma virtude capaz de curar(2). Se assim o era, também sua Mãe, o Vaso de Eleição, deveria ser uma fonte de graças a jorrar para todos que d’Ela se aproximavam.

E isto desde a sua mais tenra infância! Embora Ela fosse apenas uma criancinha, já em seu natal, graças enormes começaram a raiar para a humanidade. Seu nascimento constituiu o esmagamento do demônio e a vitória da Contra‑Revolução.

Compreende‑se, então, como a vinda de Nossa Senhora à Terra foi uma graça para todos os homens.

Qual “aurora” do luar…

Para concluir lembremo-nos da noite de Natal. Há séculos essa festa se repete, e nela temos a sensação de que uma bênção se renova, descendo do Céu sobre a Terra de maneira mais intensa. E, de algum modo, renova também as energias espirituais de todos os homens.

Nosso Senhor é o Sol que nasce para a humanidade, e seu Natal nos faz lembrar a aurora.

Assim sendo, sua Mãe Santíssima pode bem ser comparada à Lua. O nascer da Lua não tem a glória do nascer do Sol, mas quanto tem de análogo! Como ele é benfazejo, como ele alegra, como ele estimula, como ele consola!

O que pedir nesse dia?

Sendo filhos de Nossa Senhora — não por méritos, mas por vontade de Deus —, ao festejar seu nascimento podemos pedir a Ela uma graça especial. Peçamos, então, que a Santíssima Virgem estabeleça com cada um de nós uma aliança especial, um vínculo de filiação todo especial em nosso relacionamento com Ela, de maneira a tomar-nos sob seu amparo de modo todo particular.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

 

1) Cfr. Lc 1,41

2) Cfr. Lc 8,43-48

Um nascimento todo especial…

Quando Nossa Senhora nasceu, o mundo estava prostrado no paganismo; os vícios imperavam; a idolatria dominava a Terra; o mal e o demônio venciam inteiramente.

Mas, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, tudo mudou! Nasceu Maria Santíssima, a raiz bendita da qual nasceria o Salvador da humanidade. Começava assim a derrocada do demônio.

Quantas vezes não se passa algo semelhante em nossa vida espiritual! Há ocasiões em que nossa alma está em luta, com problemas, contorcendo e revolvendo dificuldades! Sequer temos ideia de quando virá o dia bendito onde uma graça extraordinária, um grande favor acabará com nossos tormentos, proporcionando-nos um amplo progresso na vida espiritual. E, de repente, há um nascimento no sentido especial da palavra: Nossa Senhora aparece qual aurora em nossa vida espiritual.

Isso deve nos dar muita alegria e esperança, com a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas ocasiões mais difíceis Ela nos visita, resolve nossos problemas, cura nossas dores, dá‑nos a combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

A alegria do mundo inteiro

Por que a Santa Igreja Católica comemora de modo particular a natividade de Nossa Senhora? A razão é simples. O nascimento da Virgem Maria marcou o início de uma nova era na História, pois foi através d’Ela que o Sol da Redenção brilhou para a humanidade.

Até então, o mundo estivera prostrado no paganismo, gemendo sob o ímpeto dos vícios e da idolatria. Durante séculos, enquanto o mal e o demônio venciam inteiramente, almas santas haviam rogado a Deus pela vinda do Redentor, porém, a hora designada por Deus ainda não havia chegado…

A partir do momento bendito em que Maria iniciou sua trajetória entre os homens, as relações de Deus com humanidade se modificaram: através das portas do céu, até então trancadas, começaram a como que filtrar luzes de esperança no sentido de que seriam abertas em breve, de par em par.

Desde a mais tenra idade, Ela começou a pedir o advento do Messias e o fim daquela ordem de coisas estabelecida pelo pecado. A ação de presença d’Ela era o prenúncio da salvação que seu Filho viria trazer.

***

Em outras épocas, Nossa Senhora opera uma repetição daquilo que então se passou, e podemos dizer que, na época presente, há uma nova interferência d’Ela na história do mundo. Prova disso é o fato de haver almas que anseiam pelo Reino de Maria, trabalham e rezam para que ele venha.

Dr. Plinio, durante toda a sua vida, não quis ser senão um arauto do Reino de Maria, e viver na perspectiva dele. Quem assim atende ao apelo marial faz o papel de Nossa Senhora no Antigo Testamento: ainda não veio a Luz, a libertação, a vitória; mas algo que é prenúncio da vitória já está presente, começa a espalhar as suas graças e a determinar movimentos entusiásticos de adesão.

Atitudes como estas são como que natividades, que preparam o dia pleno de alegria em que Nossa Senhora reinará no mundo.

***

Que Ela nos dê graças abundantes para que, também nós — assim como foi Dr. Plinio — vivamos no desejo ardente da vinda do Reino d’Ela, pedindo que cesse o quanto antes o domínio do pecado e do demônio sobre a terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

Lugar onde a Providência quis reunir suas maravilhas – I

Dr. Plinio sempre teve encanto pelo mar. Eis uma das razões pelas quais apreciava sobremaneira Veneza, a cidade construída sobre as águas. A causa mais profunda do surgimento de tal maravilha é o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem resulta tudo quanto há de bom e de belo na Terra.

 

Antes de comentarmos alguns aspectos de Veneza, parece-me conveniente considerarmos um pouco o que se passa no interior de nossa alma, vendo essa cidade. Externo aqui minhas reflexões ao visitá-la, pois o que vou dizer a meu respeito se dá mais ou menos com todo mundo.

Fascínio pelo mar

Tanto quanto me lembro, em pequeno eu tinha impulsos que me levavam a lamentar de não poder viver, não propriamente no mundo da fantasia, mas num mundo que não era aquele no qual eu vivia. Portanto, levar uma vida real numa atmosfera diferente da qual eu vivia.

Assim, por exemplo, recordo-me de, muitas vezes, estando em Santos ou, muito mais modestamente, numa estação de águas hidrotermal que eu frequentava por causa de minha mãe, onde havia um riachinho um pouco nutrido, corria um pouco de água, formava uma ilhota e umas coisas assim; olhava para as águas e sentia o fascínio que esse elemento produz. A água salgada do mar me fascinava além de todo limite. Foi toda a vida o encanto de minha alma considerar o mar.

Lembro-me do meu tempo de deputado, quando o prédio onde se reunia a Assembleia Constituinte ficava numa praça do Rio de Janeiro, no fundo da qual há um braço de mar. Meu gosto pelo mar era tal que, às vezes, eu estava sentado assistindo à sessão e me vinha à mente:  “Como seria interessante se eu pudesse estar olhando para o mar, por exemplo, sobre uma espécie de terracinho de madeira amarrado em estacas, posto na água de maneira a acompanhar o movimento da maré!” Aquilo me distraía a ponto de ter que fazer esforço com a minha inteligência para prestar atenção nas arengas, tanto era o meu gosto pelo mar.

Entretanto, nunca me passou pela cabeça imaginar um homem que, estando no mar, começasse a pensar na terra. Então, alguém se encontrando num navio, vendo a terra de longe, pensasse: “Ah, que delícia aquela terra! Pisar em solo firme…” O chão não é firme, mas duro; é diferente de firme. Para acharmos graça no chão é preciso calçá-lo com pedras bonitas, pôr um tapete para disfarçá-lo a fim de nos sentirmos à vontade em cima dele.

Pelo contrário, no mar não. Ele é delicioso! Debaixo de certo ponto de vista, quanto mais a pessoa possa estar no mar, sem pisar em nada que lembre a terra, melhor é. Se ela estiver nadando, metida na água que exerce sobre ela uma atração extraordinária, tanto melhor. É o fascínio produzido por um elemento onde o homem realmente não vive, mas no qual ele tem a impressão de que a vida seria ideal.

Palácios e jardins, nostalgia do Paraíso

Certa ocasião, estando em Petrópolis, no Rio de Janeiro, vi pela primeira vez um homem voar em asa delta. Percebi que do local onde me encontrava até o panorama marítimo da Baía de Guanabara não levava muito tempo. E notei que lá de cima o homem estava olhando para aquela baía, realizando assim a convergência de dois sonhos: a água e o ar. Pareceu-me delicioso estar lá em cima, apesar de umas inseguranças não pequenas. Mas ele se movia com tal desembaraço no ar, que percebi estar inteiramente seguro. Então, a ideia de estar seguro, planando no ar, longe da terra e olhando o mar, era uma coisa deliciosa.

De outro lado, há uma coisa que também atrai o homem. Não é propriamente a terra, mas o palácio. Folheando álbuns, vendo palácios lindamente decorados, os mais antigos com belos vitrais, os outros com pinturas lindas, ou tapeçarias bonitas, com um chão precioso, macetado com madeiras de cores diferentes, formando desenhos, com quadros, móveis luxuosos, e com o teto alto, o homem tem sedução por algo que esconde de todos os modos a realidade comum da terra onde ele vive. O palácio é uma espécie de esconderijo onde, sem sentir a instabilidade da água e da flutuação no ar, a pessoa também foge de algum modo da terra concreta e constrói um sonho dentro do qual ela entra. Este é o palácio.

Ademais, para encobrir ainda de algum modo a terra, o homem elabora jardins, por vezes ornados com chafarizes que fazem a água brincar no ar, caindo depois em tanques onde o elemento líquido fica refletindo o céu, o próprio jardim e o palácio.

Como se explica que o homem goste tanto de disfarçar a terra? A meu ver, porque ela é exatamente o elemento que mais traduz a punição e o desterro do homem por causa do pecado original. “Amaldiçoada será a terra por tua causa. Com sofrimento tirarás dela o alimento todos os dias de tua vida. Comerás o pão com o suor do teu rosto, até voltares à terra da qual foste tirado” (Gn 3, 17.19).

A terra é apresentada como um lugar de degredo onde é duro trabalhar, é preciso regar com o suor do rosto, ou seja, é penoso obter algum resultado. Ela é prosaica, não apresenta cores lindas, nem maravilhas de nenhuma espécie. A meu ver, por onde mais sentimos a nostalgia do Paraíso é precisamente no contato com a terra.

Palafitas para se proteger contra as feras

Reportemo-nos, agora, a uma remota reminiscência para compreendermos os desígnios da Providência, e como Ela dispõe tudo de modo maravilhoso.

Como demonstram as pesquisas arqueológicas, na Pré-História houve povos que, levados pelo receio dos animais ferozes, construíram as chamadas palafitas, conjuntos de estacas que sustentavam habitações construídas sobre as águas. Durante a noite, eles retiravam uma espécie de tabuleiro que lhes servia de ponte entre a palafita e a terra, e assim os animais podiam rondar em torno deles, mas não incomodavam. A água protetora os separava.

Podemos imaginar a sensação de progresso experimentada por esses primitivos quando eles construíram a primeira casinha e, à noite, ouviam as feras uivar dentro do mato; ao invés de ficarem apavorados, como no tempo em que viviam em grutas ou cabanas, dentro das quais um animal feroz podia de repente irromper, eles dormiam sossegados e se abanando deliciosamente, porque a fera não constituía mais um perigo. Que “civilização”!

Foi de uma situação análoga a essa que, do pânico de primitivos habitando um lugar pantanoso e inconsistente, nasceu uma das maiores belezas do universo. O local hoje ocupado por Veneza, outrora era muito pantanoso.

Um dos lugares mais bonitos da Terra

Em certo momento, um guerreiro terrível, Átila, desceu com seus hunos através da Hungria, invadiu a Itália e foi surrando tudo no caminho. O pavor que os latinos civilizados tinham dele era tal que se exprimiu por uma metáfora muito poética: por onde a patas do cavalo dele pousavam nunca mais nascia erva.

As populações daquelas regiões ficaram com pavor de Átila e se aprofundaram em seus pântanos, procurando lugares de mais resistência para se fixarem. Ali mais ou menos repetiram as palafitas.

Esses povos depois foram batizados, e o Batismo operou em suas almas o efeito regenerador que lhe é próprio; e de primitivos, mais ou menos vagabundos, passaram a ser homens de trabalho que, seduzidos pelas águas do Mar Adriático, entregaram-se à navegação. Tornaram-se grandes navegantes e se dedicaram ao comércio, passando a ser a maior potência marítima do Mar Mediterrâneo.

As riquezas voltavam para Veneza e com elas as possibilidades de trabalho, de organização. Aquelas ilhas resultantes do antigo pântano foram consolidadas, ajeitadas, fizeram correr água onde havia lodo outrora. As casas foram melhorando, as águas se tornaram de trânsito fácil e, no lugar do antigo pântano, constituiu-se um arquipélago que foi se enchendo de palácios de uma beleza famosa no mundo inteiro.

E ali, em vez do jardim que Veneza não tem, nasceu para o homem este sonho que se realizava: morar num palácio à beira d’água, com um céu lindíssimo. O céu de Veneza é uma espécie de céu dos céus, o colorido e as brumas são uma beleza, os anoiteceres são lindíssimos. E realiza-se assim esse ponto de eleição que é uma espécie de paraíso feito pelo homem, pela sua fantasia, pelo seu talento, pela sua capacidade de trabalhar, pelo seu desejo do maravilhoso, coisa tão distante do homem contemporâneo.

Então, realizou-se em Veneza esse ponto de encontro onde a terra feia, outrora pântano, é disfarçada pelo chão dos palácios, o pântano é coberto pelas águas do mar que correm, o céu maravilhoso e as águas se osculam, formado um dos lugares mais bonitos da Terra.

Maravilha que nasceu do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo

No centro desta narração está o desvendar de um enigma. Como povos tão primitivos puderam realizar uma coisa tão maravilhosa? Será por que se mesclaram com outros povos? A meu ver, se eles não fossem batizados isso não saía. Pode ser que se tenham mesclado com latinos decadentes. Mas do pântano do primitivismo e da decadência das grandes cidades em decomposição sair uma coisa assim, não era preciso um terceiro elemento que fizesse uma coisa verdadeiramente mais bela?

A meu juízo é evidente que sim.  É o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imolação no alto do Calvário obteve as grandes regenerações morais. É deste Sangue, a propósito de cuja efusão Nossa Senhora chorou e do qual resulta tudo quanto há de bom, de grande, de belo na Terra, que nasceram maravilhas dessas, pela regeneração do homem. Batizou-se, ficou trabalhador. Intensificou e disciplinou o seu desejo do maravilhoso, as maravilhas começam a nascer.

Foi à procura desse auge de realização do maravilhoso na Terra que me pus a sonhar sobre Veneza e a querê-la. Desde minha primeira viagem àquela cidade, meu espírito estava tomado por esta ideia: eu estava visitando uma junção incomparável e paradisíaca de coisas maravilhosas.

Poder-se-ia dizer, entretanto, haver mais algo ocupando no meu espírito um grande espaço, um ponto importante que procurarei condensar: das várias obras-primas existentes em Veneza, – oh, mistério! – nenhuma é tão grande e tão maravilhosa quanto o homem.

A “Sereníssima República de Veneza”

Se Deus tivesse criado Veneza, mas a cidade houvesse ficado sozinha para ser habitada pelos pombos, que valor ela teria? Muito mais do que simplesmente aquilo, há em Veneza o estilo de vida, o estilo artístico veneziano, a cultura, as instituições venezianas, que modelaram as fisionomias dos palácios. E, no plano da Providência, o palácio é modelado pela cultura do homem, mas o auxilia a modelar depois a sua própria cultura. Ajuda-o a se requintar. O céu, o mar e a terra foram feitos para, iluminando a casa ou o palácio do homem, iluminar a alma de quem ali reside.

Esta é a dignidade do ser humano. Tudo isso nos reporta ao fato de que a chamavam de “Sereníssima República de Veneza”. “Sereníssima” é quase mais bonito do que Imperial e Real. Dá a impressão de orvalhada por todas as calmas da noite. “Sua Alteza Sereníssima”, por exemplo, eu acho um título lindíssimo! E a República de Veneza, por ser soberana e querer se encaixar na hierarquia nobiliárquica e feudal da Europa, considerando que seu chefe tinha uma verdadeira dignidade de um duque, tomou para si o título de “Sereníssima”.

Veneza era uma república aristocrática, dirigida por uma nobreza inscrita num livro chamado “Livro de Ouro”. As famílias promovidas à nobreza tinham seus nomes inscritos nesse livro, e pertenciam a uma classe social que elegia uma espécie de Câmara dos Lordes. Havia também, para as várias categorias da plebe, câmaras, conselhos, etc.

Casamento de Veneza com o mar

À testa disso estava o Conselho dos Dez, chefiado por um doge que usava o barrete frígio das repúblicas contemporâneas, cercado de uma pequena coroa. Tratado como um príncipe, eleito de dez em dez anos, podendo ser reeleito, o doge era o ponto de partida de politicagens finíssimas, rasteiras jeitosíssimas, mais elegantes do que passos de minueto; com a beleza de quem se habituou muito cedo a burilar a política como quem burila um cristal. Aliás, por uma coincidência bonita, as fábricas de cristal começaram a aparecer. Daí vem o famoso cristal Murano. Há qualquer coisa de cristalino na República de Veneza.

Todo mundo conhece a festa anual de esplendor de Veneza. O doge, vestido com trajes fabulosos, ia até o alto-mar num navio todo folheado a ouro, chamado Bucentauro, seguido de um cortejo de embarcações com gente a bordo tocando violinos e outros instrumentos. Ao chegar a certa altura, fazia-se o casamento de Veneza com o mar, lançando no fundo do Mar Adriático um anel. Nesse momento, a música dava o seu todo, o pessoal aclamava. Ao cair da tarde, todos voltavam, em meio aos reflexos da água do mar de Veneza, e a festa continuava na terra. Aqueles canais eram percorridos por gente em gôndolas, lanternas bonitas iluminavam os terraços, de fora dos palácios se percebia a luz das festas que se estavam dando ali dentro. O tilintar dos copos de cristal, os vivas, os cânticos se prolongavam pela noite afora.

Se passarmos daí para as palafitas que constituíram a primeira Veneza, compreenderemos a enorme trajetória percorrida nesse lugar verdadeiramente privilegiado, onde a Providência quis reunir as suas maravilhas.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/12/1988)

Natividade de Nossa Senhora

Fonte de toda elevação e grandeza, Nosso Senhor escolheu por Mãe aquela que, abaixo d’Ele, veio ao mundo para ser o píncaro da criação. E um ápice com esta característica de particular excelência: possuía tudo na ordem do necessário, acrescido da elegância que se alça para o terreno do supérfluo.

Ela nasceu com o florilégio de todos os charmes possíveis, mil graciosidades, mil distinções, mil belezas que constituem, também, a sua incomparável glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Requinte e amor à Cruz

Por falta de amor à Cruz, as modas começaram a visar apenas o gozo da vida e foram perdendo a pompa e a majestade. Passaram do majestoso para o “raffiné”, do “raffiné” para o gracioso, do gracioso para o vulgar. A decadência da civilização se deu, no fundo, devido ao excesso de moleza que se projetou na arte, na literatura, na moda, na vida social.

 

Temos aqui um texto tirado da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, no qual São Luís Grignion, com uma linguagem inflamada, inculca mais especialmente a ideia das tribulações, por ver quanto o homem é tendente a fugir delas.

Deus nos visita por meio dos sofrimentos

[24] Não vos ufanais, caros amigos da Cruz, de serdes amigos de Deus ou de tal poderdes vos tornar? Resolvei, pois, beber o cálice que é preciso necessariamente beber para se tornar amigo de Deus. “Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt(1)”. O bem-amado Benjamin teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o frumento (cf. Gn 44, 1-12). O grande favorito de Jesus Cristo, [São João Evangelista], teve seu coração, subiu o Calvário e bebeu o cálice. “Potestis bibere calicem?(2)” É bom desejar a glória de Deus, mas desejá-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e extravagante: “Nescitis quid petatis(3)”.

“Per multas tribulationes oportet nos intrare in Regnum Dei” (At 14, 21): é preciso, “oportet”; é necessidade, é coisa indispensável, é preciso que entremos no Reino dos Céus por meio de muitas cruzes e tribulações.

[25] Gloriai-vos com razão de ser filhos de Deus. Gloriai-vos, pois, das chicotadas que esse bom Pai vos deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia os seus filhos.

Como a ideia de um Deus que chicoteia seus filhos é destoante e pouco afeita à falsa piedade sentimental! Mas Ele chicoteia por meio das provações e das tribulações. Evidentemente temos que nos resignar a essa ideia de que são presentes dos melhores que Ele dá quando nos faz sofrer. Devemos permitir que Deus nos castigue, flagele, exatamente por ser o que convém aos homens.

Havia na linguagem portuguesa antiga uma expressão muito bonita que me lembro de ainda ter ouvido as beatas da Igreja do Coração de Jesus usarem. Então, uma velha conversando com outra diz: “Deus tem me visitado…” Eu era ainda menino e pensava: “Será que ela teve uma visão?” Mas a expressão ficou-me na memória e indica uma coisa muito bonita: cada dor que nos vem é uma visita de Deus. Ou então, Ele nos visitou por meio de alguém que nos fez sofrer. Esta é a visita de Deus; devemos recebê-la de boa vontade, abrir a porta para ela, amá-la, manter a nossa alma em alegria enquanto durar essa visita.

Essa ideia de que Deus visita alguém nós a encontramos no Antigo Testamento, quando das visitas que o Todo-Poderoso faz ao povo de Israel por meio de profetas. Mas há outra coisa que é essa visita de Deus pelo sofrimento. Então, a expressão me parece muito bonita.

Quem não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si

Se não sois do número de seus filhos bem-amados, sois – oh! que desgraça, que golpe fulminante! –, como o diz Santo Agostinho, do número dos réprobos. Aquele que não geme neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro como cidadão do Céu, diz o mesmo Santo Agostinho. Se Deus Pai não vos enviar, de tempos em tempos, algumas boas cruzes, é que já não Se preocupa convosco, está irado contra vós, olha-vos tão somente como a um estrangeiro fora de sua casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo que, não merecendo sua porção na herança de seu pai, não merece da parte d’Ele nem cuidados nem correção.

No Antigo Testamento acreditava-se que quando uma pessoa sofria era por ter cometido algum pecado. Portanto, sobre o sofredor recaía a suspeita de ser uma pessoa má. Pelo contrário, quem era feliz nesta Terra considerava-se como sendo bom, porque Deus estava premiando as boas ações que a pessoa tinha praticado.

Porém, aos poucos foi-se tornando mais explícita no Antigo Testamento a revelação de que havia uma vida eterna. Com isso, essa impostação foi-se modificando.

Já no Novo Testamento encontramos a ideia contrária: o homem sofredor é o amado por Deus, enquanto aquele que não sofre é o ímpio a quem Deus afastou de Si.

Esse pensamento é muito importante, porque a maior parte das pessoas têm admiração por quem não sofre e um certo desprezo por quem padece. Essa é uma visão errada, pois quem é sofredor merece admiração, mas aquele que não sofre nada merece desconfiança, ou em breve Deus irá visitá-lo com o sofrimento.

Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria

[26] Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da Cruz é desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos. É, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender. Procurareis em vão, em todas as academias da Antiguidade, um filósofo que o haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear este mistério.

Isto é bem verdade. Nós encontramos alguma coisa histórica a respeito do sofrimento, mas é uma impostação diversa, uma espécie de faquirismo. Não é tomar a Cruz como Nosso Senhor Jesus Cristo a recebeu e, sobretudo, a graça para desejar a Cruz, pois sem a graça não se compreende isso. É uma coisa toda sobrenatural.

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre, e tereis todas as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente.

Este é um ponto fundamental para se entender essa sabedoria. Quem tem horror ao sofrimento, o espírito desmortificado, não é capaz de ter sabedoria. Pode participar de um curso sobre a sabedoria, fazer o que quiser, não adianta. Sem o amor ao sofrimento não se adquire a verdadeira sabedoria. Vou dizer mais: toda forma de aquisição intelectual ou de vitória moral, sem sofrimento, não tem valor nenhum. A única coisa que dá a isso algum valor é exatamente a Cruz.

Senhoras que transmitiam ao lar um perfume moral

É a Cruz a nossa filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa pedra filosofal que muda pela paciência os metais mais grosseiros em metais preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas em riquezas, as humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que melhor sabe levar a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B, é o mais sábio de todos.

Antigamente se encontrava um estilo de velha senhora sofredora. Às vezes, casada com um marido péssimo, colérico, que perdia a fortuna e o filho fazia coisas más. Muitas delas eram beatas de igreja, mas com estilo diferente das beatas sentimentais. Eram mulheres piedosas, que iam muito à igreja em dias de semana. Olhava-se para algumas delas e via-se que possuíam verdadeiramente uma resignação, uma dignidade de alma de chamar a atenção. Esse tipo de mulheres tinha sua respeitabilidade pelo fato de serem sofredoras. Assim, procurava-se bordar a mulher com a ideia de que ela deve sofrer, que habitualmente o casamento é um martírio, pois com frequência os maridos são ruins. Isso não é uma coisa normal, embora seja habitual. É justo que a mulher sofra com isso e ela deve aceitar esse sofrimento. A condição dela é, dentro de casa, levar todas as cruzes para dar ao lar a dignidade que a má conduta do marido não proporcione. Essa era a impostação de espírito existente em um bom número de senhoras, antigamente.

Então essas senhoras tinham uma dignidade de alma e uma elevação de vistas que excedia imensamente aos maridos. Eram elas que davam ao lar um perfume moral, um recolhimento, um recato, uma atração de que não se tem ideia mais hoje em dia. Mas é porque o espírito de sofrimento desapareceu. O pressuposto da ideia errada é justamente de que a mulher não deve mais sofrer, jogando de lado a Cruz de Jesus Cristo. Entretanto, o tipo feminino anterior a isso era, às vezes, de comover de tanta dignidade.

Alguém me contou o caso de uma senhora de minha geração que tinha um irmão sem-vergonha. Ambos eram solteiros. E ela aguentou o irmão a vida inteira, sendo ele, ao que parece, desse tipo de homens que chega bêbado em casa, derrubando objetos. De tanto beber, ele arruinou a família completamente e acabou morrendo. Pouco antes de falecer, o irmão chamou um criado muito fiel a ele e lhe disse: “Eu vou morrer. Logo após a minha morte, a primeira coisa que você deve fazer é ir à casa de minha irmã, ajoelhar-se diante dela e dizer-lhe que mandei agradecer tudo o que ela fez por mim. E que eu até nem tenho palavras para agradecer tantos benefícios, e por isso mandei você ajoelhar para prestar esse ato de gratidão”.

A atitude desse homem, esta sim, dá uma certa esperança de que ele tenha se arrependido nos seus últimos instantes, e ainda tenha tido um último perdão antes de morrer. Terá sido, então,  a graça do perdão obtida por uma das tais mulheres a quem os maridos sem-vergonha, antes de morrer, pediam perdão, e os filhos, ao vê-la falecer, imploravam perdão também e levavam, chorando, o caixão dela para o cemitério.

O verdadeiro apóstolo é uma alma crucificada

Não há nada num ambiente que valha o tesouro da presença de uma alma resignada a sofrer. Esse gênero de pessoas dá bons conselhos. Pode até ser gente simples, sem experiência e, mesmo sendo a última da família, os outros a ela se dirigem na hora de uma crise moral para pedir um conselho. Almas assim são sempre, no fundo, as mais alegres do lar, e são elas que consolam as outras pessoas da família.

Já vi gente nadando em felicidade e dinheiro chorar junto desse tipo de pessoa, e pedir consolação. Esse é o fascínio, essa é a influência sem nome, a ação prestigiosa da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o tesouro das famílias. E porque acabou até isso, a família praticamente morreu.

Queira ou não queira, quando a alma aceita bem o sofrimento ela toma uma tal autoridade que se diria ser a pessoa crucificada um outro Crucificado. Quer dizer, diante da pessoa que aceita o sofrimento seriamente até o fim, os outros se alteram. Pode durar mais tempo ou menos, mas eleva a alma a uma grandeza que lhe dá uma força divina, e exerce uma influência sobre as almas que arrasta tudo.

Tome-se, por exemplo, um padre que seja verdadeiramente um penitente, um homem que carrega a cruz do sacerdócio de um modo sério. Pode ser o último padrezinho do interior, de batina já rota, esmolambada. Ele entra num ambiente, sente-se ser um sacerdote que aceita contente o papel de vítima. Podem rir dele e até matá-lo, ele dominou a situação. Na alma que tenha aceito a sua própria cruz há qualquer coisa de divino que nos leva a pensar o seguinte: o apostolado verdadeiramente vem do fato de que uma alma resolve e aceita sofrer. Aí se prepara o campo para os melhores discursos, as mais bonitas tiradas, as melhores coisas que sejam feitas. Mas é preciso que se trate de uma alma crucificada.

Isso nós precisamos sempre lembrar. No Reino de Maria, se não houver numerosas almas crucificadas, ele morre. Porque o prestígio da Igreja e a força da Civilização Cristã vêm das almas que sofrem.

O pobre que sofre alegremente e o doutor da Sorbonne

Tornai-vos hábeis, pois, nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande Mestre…

Escutai o grande São Paulo que, ao voltar do terceiro céu onde conheceu mistérios ocultos aos próprios Anjos, exclamava não saber e não querer pregar senão Jesus Cristo crucificado.

Regozijai-vos, pobre ignorante ou pobre mulher sem espírito e sem ciência: se souberdes sofrer alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne, que não soube sofrer tão bem quanto vós.

Podem imaginar o que era, naquela época, um professor da Sorbonne e qual o desafio que uma coisa dessas representava! Era a época em que os formados, já não digo os empossados no cargo, na maior parte das cidades onde havia universidade, eram montados num animal, acompanhados pelos parentes e toda a cidade em desfile. Vestidos de um traje de formatura, de alguém que está por cima, o doutor passeando no meio de todo mundo. E um membro da classe profissional era ainda muito mais. Chegar a dizer que o pobre ignorante é mais do que um doutor da Sorbonne…  Se os doutores da Sorbonne fossem levar a sério o que São Luís dizia, que injúria! É um desafio atirado ao espírito mundano.

[27] Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disso! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfume? A cabeça não tem um travesseiro para repousar, e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminhos? Seria uma monstruosidade inaudita.

Não, não, meus caros companheiros da Cruz, não vos enganeis, estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos, nem verdadeiros membros de Jesus crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ah, meu Deus! Quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são de coração seus inimigos. Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, Cruz – porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma coroa de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Isso deve ser visto como dito àquela gente de um século que levou o “raffinement(4)” o mais longe possível. E como merecido por eles por causa exatamente do sentido de gozo desse “raffinement”. Era um requinte que não vinha acompanhado de espírito de Cruz e, como resultado, causava horror à Cruz verdadeira. E que, por isso mesmo, dava em decadência. Cada vez mais, as modas iam sendo feitas apenas para o gozo da vida e perdendo a pompa e a majestade, passando do majestoso para o “raffiné, do raffiné” ao gracioso, do gracioso ao vulgar. Realmente, a decadência da civilização se deu, no fundo, devido a esse excesso de moleza dentro da arte, da literatura, da moda, da vida social.

Vemos, assim, em São Luís Maria Grignion de Montfort um homem que possivelmente não era um sociólogo, mas que percebia de longe coisas que homens de seu tempo não sabiam ver. Por quê? Não por ser ele muito inteligente, mas porque era um amigo da Cruz. A Cruz dá a possibilidade de ver as coisas que os outros não sabem ver.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/9/1967)

 

1) Do latim: Beberam o cálice do Senhor e se tornaram amigos de Deus (da antífona de entrada na Solenidade de São Pedro e São Paulo).

2) Do latim: Podeis beber o cálice? (Mt 20, 22).

3) Do latim: Não sabeis o que estais pedindo (Mt 20, 22).

4) Do francês: requinte.