A Inter-relação entre os Três Arcanjos

São Gabriel, São Rafael e São Miguel, tendo sido líderes contra a Revolução chefiada por Lúcifer, no Céu, ajudam possantemente os contrarrevolucionários na Terra. Dr. Plinio discorre sobre a inter-relação das missões desses três Arcanjos com vistas ao Reino de Maria.

 

Poderíamos nos perguntar que relação existe entre as tarefas dos três Arcanjos: São Miguel, São Gabriel e São Rafael.

Primazia por natureza

Parece que eles constituem uma espécie de circuito fechado, uma totalidade, como que uma trindade.

Como essa “trindade” se prende ao conjunto do mundo angélico? Por exemplo, são eles Serafins? Tanto mais que para calcular as missões e as importâncias deles, entram duas ordens de valores distintas: uma é o que eles são por natureza; outra é a conduta deles durante a prova, porque é certo que os três se conduziram de um modo perfeito naquela ocasião.

Mas a perfeição tem graus e, por exemplo, São Miguel vê-se que foi super exímio na prova. Alguém comentou comigo que São Luís Maria Grignion de Montfort diz ter sido São Miguel aquele que teve mais amor a Nossa Senhora durante a prova, e por isso foi mais combativo. Trata-se de uma primazia por causa da atitude durante a prova, o que é diferente do primado por natureza.

Então haveria dois títulos de primazia diversos para considerar. Vamos tratar aqui apenas das relações de natureza a natureza, e não vamos considerar a primazia efetiva como ela existe no Céu, posta a reação durante a prova.

Na primazia por natureza nós poderíamos ver o que e como eles fazem, e assim entender como se completam na tríade.

São Gabriel: conhecimento amoroso

São Gabriel é aquele que comunica o conhecimento de Deus. Daí o papel dele na Encarnação. São Rafael é quem ajuda os homens nas dificuldades da vida, e São Miguel o que os auxilia na luta.

O conhecimento de São Gabriel é evidentemente todo amoroso, não é um puro conhecimento abstrativo, teórico, doutrinário.

Que relação existe, então, entre as formas de ser desses Anjos?

Deve-se notar que o conhecimento do homem a respeito de determinado ponto se completa inteiramente quando ele é capaz de dizer, de formular em palavras, escrever ou exprimir de alguma forma aquilo que ele tem na mente. Enquanto não houver a representação, o conhecimento não está acabado. E com o conhecimento não concluído, o ato de amor também não está completo.

Ademais, é só depois de o indivíduo ter completado o conhecimento essencial de algo que ele delibera agir enfrentando as maiores dificuldades, e consagrando a sua vida àquilo. Quer dizer, a consagração do trabalho e da vida é uma espécie de deliberação que provém de um conhecimento já atuante, executivo, que é o termo final do conhecimento.

E, por fim, ninguém conhece inteiramente algo se não compreende por contraste. O contraste ajuda enormemente a conhecer. Sobretudo quando o contraste existe; não notá-lo revela uma grande falta de conhecimento.

Há, portanto, um conhecimento puramente especulativo e amoroso que convida à ação, e um conhecimento que convoca à luta. Esse conhecimento especulativo e amoroso não convida à mera especulação propriamente, mas convida também a falar o que a pessoa sente. É uma contemplação da qual é próprio emanar o verbo, a conscientização que na explicitação adquire sua luz. Portanto, a palavra, a exclamação é própria do conhecimento inteiramente feito, do amor completamente adquirido que dá no cântico de louvor inteiramente desinteressado.

Por exemplo, o canto que um Santo entoaria sozinho no deserto, apenas para louvar o Criador. Existe nele a capacidade de cantar criada por Deus, pela qual ele sabe que, cantando, o Altíssimo gosta de seu canto, e que ele, portanto, deve cantar para Deus. O Criador quer isso, é de acordo com a natureza de Deus.

Então poderíamos dizer que esses três Anjos formam na ordem especulativa três maneiras de ação, sendo que esta é muito pequena naquele que é maior na ordem especulativa. E a especulação é menor naqueles que estão na ordem ativa. Há uma espécie de reverso como Maria e Marta.

São Miguel: luta, oblação e holocausto

De onde se poderia afirmar que estou preparando o terreno para a figura de um triângulo equilátero, no qual eu diria que o ângulo de cima é São Gabriel, depois embaixo, em igual posição, São Rafael e São Miguel.

Mas não é verdade porque, conforme o ângulo em que se olhe a coisa, é um triângulo equilátero no qual se pode colocar qualquer um dos três Arcanjos na ponta sem derrubar o triângulo, o que é sobretudo claro com São Miguel. Por quê?

Porque o empenho da luta é algo meio destrutivo daquele que combate; mesmo quando o indivíduo não morre na luta, ou quando esta não é de morte, quer dizer, cujo desenvolvimento normal não é a morte, o combater é fazer um esforço completamente superior ao desgaste normal do organismo; de si é desgastante, tem qualquer coisa que é uma oblação.

Por exemplo, um homem que seja obrigado a trazer para um jardim zoológico uma onça na qual puseram focinheira. Ele não vai ser comido pela onça porque ela está com focinheira, mas tem que fazer uma tal força para levar aquele bicho, que esse homem é considerado um lutador. Esse lutador tem uma glória especial por causa de um quê de imolação existente naquilo.

É ele que se aproxima para ser golpeado e golpear. Digamos que a arma dele seja uma seringa com a qual dará anestésico na onça; portanto o homem não vai morrer; mas o que ele deverá sofrer tem um quê de evidente imolação.

Ora, Nosso Senhor disse que a imolação é a maior prova de amor, e que ninguém pode amar mais a outrem do que lhe dando a sua vida. Aliás, é de toda evidência, e o Redentor afirmou de Si mesmo para explicar como devíamos estar certos do amor que Ele tem por nós.

De outro lado, é verdade também que se trata da oblação na qual há maior desinteresse. Abraão com Isaac, por exemplo, mostrou um desinteresse fabuloso, foi puro amor. E pode-se lutar por puro amor, indo, por exemplo, à Cruzada, como Isaac caminhou para ser morto pelo pai; é uma coisa que é perfeitamente possível.

A oblação, nesse sentido, é a extinção da vida de uma pessoa em holocausto a outrem, a Deus, portanto.

Por aí nós vemos que, por mais bela que seja a palavra de São Gabriel, quando consideramos a magnificência da ação de São Miguel, percebemos ser um outro título, e nos resta perguntar qual dos dois títulos, absolutamente, é maior.

São Rafael: ação pensante

Acontece que cai dentro disso a ação. Esta parece muito menor do que a contemplação, e do que a luta, a oblação. Pode-se dizer que a ação é uma luta ela mesma; e nesse sentido um homem, quando vai trabalhar, afirma: “Vou para a luta”.

Ele é, por exemplo, datilógrafo da Prefeitura, e quando ele sai de casa a mulher lhe pergunta: “Para onde você vai?”, e ele responde: “Vou para a luta”.

Tudo isso se explica em vista de uma concepção muito material da ação. Com o próprio São Rafael, fica-nos na mente, ao menos a mim, o desenhozinho — aliás, encantador e bobinho — que ilustrava minha História Sagrada: São Rafael andando a pé com um bastão do qual pendia uma espécie de moringuinha, e conversando com Tobias animadamente. Então, São Rafael, o Anjo que anda, que transpõe distâncias, etc.

Não é verdade. São Rafael foi um Anjo de uma sabedoria ativa superior, que ajudou Tobias a ver o que de fato ele deveria querer na viagem, deu-lhe a força e o ânimo — esse é o sentido da companhia — bem como os meios para executá-la. O andar a pé, o aspecto material da viagem, fazer com que aquele boneco que São Rafael fabricou — e Tobias tomava como um homem — falasse, isso para o Anjo não era nada. E nem havia cansaço em fazer um boneco andar. Ora, sabe-se que ele estava animando um boneco.

Então se compreende que para se falar em São Rafael como Arcanjo da ação, deve-se escolher os mais altos graus e padrões da ação. Quer dizer, muito mais do que a ação operacional completamente ativa, a ação pensante. Para recorrer a um exemplo correntemente usado entre nós, aquela frase do Marechal Foch(1): “Ma droite est pressée, ma gauche est menacée, ma arrière est coupée… Que fais-je? J’attaque”(2). Isso é magnífico! Ou seja, “eu estou num apuro total, vou atacar”. É uma ação, se se pode dizer “rafaélica” nesse sentido da palavra, que mostra o pensamento sobre a ação, uma alta categoria.

A arte de governar, de dirigir profeticamente, a missão propriamente profética no conjunto da ação da vida, estaria com São Rafael, enquanto que com São Miguel, o profetismo da luta e do holocausto, e não da vida comum. O reinar seria com São Rafael.

E aí se compreende a beleza da distinção entre as várias coisas.

São Luís Grignion e os três Arcanjos

E São Gabriel seria mais o profeta que inspira o rei, digamos ele traça a metafísica. Quem dá a “meta-política” é São Rafael, com toda a execução da política. Quem proporciona a “meta-luta” é São Miguel.

Notem como se compreende bem o tema até o fundo, tomando em consideração o seguinte: a tarefa especial de repelir os demônios e da luta contra eles é de São Miguel.

Mais ainda: enquanto contrarrevolucionários, qual o papel dos três Arcanjos?

Eu diria que São Gabriel insufla o espírito verdadeiramente contrarrevolucionário, com todo o ideal carolíngio e, para lá de carolíngio, o Reino de Maria, com todo o desejo e a concepção das coisas altíssimas, de tal maneira que nos dá uma ideia dos lineamentos fundamentais de como uma ordem humana deveria ser.

A “metapolítica”, quer dizer, a partir dessa ordem suprema, quais são os modos executivos de organizá-la? E quais são as maneiras de levá-la a efetivar-se? Quem os indica é São Rafael. E lutar contra os adversários que se opõem é a missão de São Miguel.

Transpondo para o campo humano, vemos que em São Luís Maria Grignion de Montfort deveria haver necessariamente horas “gabriélicas”, horas “rafaélicas” e horas “micaélicas”, conforme a preponderância. Lendo o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem sente-se isso, porque há trechos em que se tem a impressão de que é São Gabriel que anuncia alguma coisa. E ele, enquanto um apóstolo que monta a argumentação para convencer um terceiro, e que acende um fogo de alma para chamá-lo, é São Rafael.

E São Luís Grignion tem movimentos de indignação, em que há de ponta a ponta do livro dele uma intransigência sublime, adamantina: essa é a hora de São Miguel. Quer dizer, existem tônicas. O que não elide o problema mais profundo que é o de saber qual dessas coisas absolutamente falando, em Deus, é a tônica.

Que aspecto angélico brilhou mais na vida de Nosso Senhor?

De outro lado, há o seguinte: poderíamos perguntar se na vida santíssima e augustíssima de Nosso Senhor, qual desses aspectos brilhou mais, e quais seriam os aspectos em que Ele se conduziu como o Deus de Gabriel, o Deus de Rafael e o Deus de Miguel.

Seria uma pergunta que daria motivo para um estudo do Evangelho muito belo. Aliás, é propriamente assim que eu gostaria que o Evangelho fosse consultado, porque o bonito é fazer perguntas dessa natureza.

Então eu diria que, por exemplo, Nosso Senhor no Tabor, a mim me parece eminentemente São Gabriel.

Na Paixão d’Ele, evidentemente São Miguel; é o holocausto e a luta, quando Ele venceu o mundo. Agonia, em grego quer dizer “a luta do atleta”; os atletas eram chamados “agonistas”.

E São Rafael é enquanto Mestre fazendo apostolado, na vida pública d’Ele.

A vida íntima d’Ele com Nossa Senhora, não era Gabriel?

Enfim, 30 anos, 3 anos, 3 dias. Aliás, o papel do número 3 aí é bastante bonito.

É muito ilustrativo para o espírito passear dentro desses problemas e remexê-los. Eles emitem luz ainda quando não os resolvamos. E se depois de pensarmos assim consultarmos um livro sobre Angelologia, em dez minutos está resolvido.

A meu ver, estaria dentro dos nossos métodos mentais, e eu acho que Nossa Senhora abençoa este modo de agir — não quero dizer que seja o único —, primeiro com as luzes que Ela nos deu, tratarmos de fazer as hipóteses, e depois ir estudar para ver o que a Igreja diz, num espírito de submissão, de querer aprender. Aí se entende bem o ensinamento da Igreja. Parece-me um modo de operar muito digno, muito correto.

É o que eu quis fazer um pouco nesta conferência, e também porque reputo este tema um tanto exorcístico. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/12/1976)

 

1) Militar francês que comandou as forças dos Aliados em 1914, de forma decisiva, levando-os à vitória (*1851 – †1929).

2) Minha direita é pressionada, minha esquerda é ameaçada, minha retaguarda é golpeada. O que faço?
Ataco!

Oração a São Miguel, pedindo a graça de ser um perfeito cavaleiro

Ó São Miguel Arcanjo, que desembainhastes vosso gládio no Céu para vingar contra os anjos rebeldes a glória do Salvador e de sua Mãe Santíssima, dai-me a graça de ser, neste auge do poder das trevas, um perfeito cavaleiro da Cavalaria Angélica suscitada em nossos dias para combater o demônio e seus agentes terrenos e implantar o Reino de Maria.

Para isto, obtende-me a graça de ter um espírito profundo, sério, abnegado, inebriado de fervor para com a Contra-Revolução, bem como transbordante de ódio e desprezo para com a Revolução satânica, igualitária e gnóstica.

Rei e centro de todas as coisas

Quem se dedica ao apostolado, ou qualquer outra atividade em prol da Igreja e da civilização cristã, deve compenetrar-se de que Nosso Senhor é o centro de todas as coisas e jamais poderá ser derrotado. Se tivermos sempre em vista essa verdade, compreenderemos como são pequenos os fatos que às vezes nos angustiam e nos fecham o horizonte.

 

Segundo fotografias que vi de desenhos e pinturas nas catacumbas, não há nada que indique terem os católicos daquela época uma ideia clara de como foi a face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seria natural que, considerada a grande importância d’Ele, houvesse alguém de seu tempo — ou cem, duzentos anos depois de sua Morte — que tivesse feito uma representação de Nosso Senhor, pintada ou de qualquer outra forma.

Arquetipização da figura de Nosso Senhor

Entretanto, apesar da carência desses documentos, de repente — não sei bem em que século da História da Igreja —, começam a aparecer imagens com a fisionomia que está no Santo Sudário.

Como foi preenchido esse hiato?

Alguém dirá: “Pela tradição.”

Sem dúvida, mas como é que a tradição se exprimiu? Como se transmite pela tradição a figura de um rosto que não se pintou, não se esculpiu, e nem sequer documentadamente se descreveu?

O Evangelho é uma espécie de autorretrato de Nosso Senhor, não feito por Ele, mas com fatos de sua vida que dão a ideia de como Ele era, entretanto não são suficientes para compor o rosto de Jesus. Depois de composta a face, lendo o Evangelho dizemos: “Não há dúvida, esse é o rosto d’Ele mesmo!” O Evangelho autentica a face, mas não dá os elementos para sua composição.

Vê-se que a graça continuou a fazer nas almas uma arquetipização(1) válida da figura do Redentor, à vista da iconografia muito insuficiente que havia, e essa arquetipização floresceu, de repente, no rosto d’Ele o qual conhecemos e que o Santo Sudário vem documentar.

Isso me parece uma prova criteriológica muito bonita do valor dessas sublimações movidas pela graça.

O Rei da glória é o vencedor

Tomando Nosso Senhor como Ele foi, com toda aquela elevação, bondade, calma, distância, intimidade e tudo o mais, deduz-se que, ou o gênero humano é uma pagodeira sinistra, uma espécie de sarabanda do Inferno prenunciativa da que lá existe, ou tem que haver no centro e no ápice uma figura em torno da qual todos os homens se ordenem.

Quer dizer, há uma espécie de senso profundo do ser que, diante da Revelação, exulta e nos leva a exclamar: “Sem dúvida, esse centro tinha que existir, não pode desaparecer; é Nosso Senhor. Ele tem que vencer, é o Rei da glória e as suas derrotas são aparentes, pois, no fundo delas, Ele é o vencedor, e sempre reaparecerá!”

O senso de que a História deve ter um futuro diferente, o porvir da ordem contrária à Revolução, vem deste senso de que Ele é o centro e não pode ser deslocado deste centro. E, como não pode ser deslocado, a vez d’Ele chegará. Por isso, quando virmos uma pessoa inteiramente fiel a Ele — ainda que seja o último ser humano que se conheça — podemos afirmar com segurança: “Vai vencer!”

A mulher que não tinha nariz

Conheci uma mulher sem nariz, uma beata da Igreja de Santa Ifigênia(2), que todos os dias, em qualquer tempo que fosse, ia lá com o guarda-chuva na mão; não sei por que ela não segurava no cabo, mas em cima, onde se reúnem as varetas. Feia, baixa, e com um lenço sempre limpo e de qualidade ordinária, cobrindo a cavidade do nariz, amarrado de tal modo que não atrapalhava a respiração ­dela. Ela andava, falava, vestia-se normalmente e tinha algum trabalho. Vivia no meio das beatas, porque era assídua em Comunhões na Igreja de Santa Ifigênia.

Humanamente falando, era uma derrotada, mas ela ia para a frente com uma firmeza, um ar de segurança da vitória que destoava de toda a melúria piedosa que a cercava e da qual ela não tinha bem noção. Ela possuía um triunfo, e andava naquelas ruas já neopagãs da São Paulinho, com ar de vencedora, pois participava dessa noção de vitória de que falei há pouco. E, por exemplo, a mim, essa mulher muitas vezes fez bem porque, olhando para ela, eu pensava: “Quem suscita almas assim, está vivo, não pode morrer e isto vai para a frente!”

Aquela pobre senhora era bem mais velha do que eu, e certamente terá morrido. Eu gostaria que no Céu, onde ela se encontra, essas palavras de saudades, de homenagem chegassem.

Ela me olhava muito, não sei por quê; eu também dirigia meus olhos a ela, mas os formalismos justos daquele tempo levavam a que, sendo ela uma pessoa de uma classe muito inferior à minha e de outro sexo, não nos abordássemos. É muito legítimo. Eu teria muita alegria de saber que fiz algum bem à alma dela.

Fonte perene que nunca deixa de jorrar a água viva

Uma vez que tivemos a graça e a alegria de poder expor esse pensamento sobre o Sagrado Coração de Jesus, creio que se não fizermos remontar todas as nossas doutrinas a isso, não compreendemos em toda a sua profundidade, exatidão, força cogente, aquilo que dizemos. Quer dizer, olhando para Ele, seriamente, compreendemos que Nosso Senhor é o centro e tem que vencer.

É, por exemplo, o pensamento que animava a Nossa Senhora na hora do “consummatum est”(3), em que Ela O teve sobre o colo, enquanto punham aromas no Corpo divino, e tudo o mais. E também A confortava durante o tempo em que Ele esteve sepultado.

Porque os Apóstolos, Santa Maria Madalena e os discípulos de Emaús tinham isso de um modo incompleto, não O reconheceram quando Jesus ressurrecto apareceu, a não ser em certo momento. Não possuíam a noção de que Ele não podia ser derrotado. E nisto estava o ponto fraco deles.

Ora, quando se conhece uma obra que resiste à Revolução e conserva, contra toda a ordem de coisas, um certo viço, percebe-se que ali a Fonte perene nunca deixa de jorrar a água viva, e que isso ninguém vence.

Se tivéssemos isto em vista, possuiríamos, por exemplo, um outro ânimo em tocar o apostolado, porque compreenderíamos como são pequenas diante dessa verdade as coisas que às vezes nos angustiam e nos fecham o horizonte.

Às vezes, vem falar comigo alguém com muito mais empenho em resolver o casinho de seu apostolado do que em tratar deste tema. É porque a pessoa perdeu de vista que a água viva é outra, o centro é outro, e todas essas coisinhas devem ser tratadas, pois têm o seu papel na vida, mas de nenhum modo podem lotar a nossa atenção.

O chinês que chega à Terra Santa à procura de um Ser perfeito

A respeito de Nosso Senhor, pode-se imaginar uma pessoa do tempo d’Ele que O conheceu em sua vida terrena e, por assim dizer, tivesse explodido de adoração a Jesus, tocada pela sua presença.

Mas seria possível dar-se um outro fato de pessoas que, levadas pela inocência, pela retidão, pelo senso do ser, fizessem um prognóstico mudo, não explicitado, de que algo como Ele deveria haver. E que se pusessem a procurá-Lo, sem saber que era a Nosso Senhor que estavam procurando. Então, por exemplo, poder-se-ia imaginar o seguinte caso irreal, mas daria um lindo conto.

Um chinês que tivesse saído da China, em linha reta, rumo ao Mediterrâneo, sem ter noção desse mar, e atravessando os mais variados povos, levado pela ideia confusa de que, à força de ver gente, ele encontraria algo que não sabia o que era, mas lhe preencheria a alma.

Chegando à Terra Santa, teria ouvido narrar os acontecimentos passados com Nosso Senhor, enquanto seu Corpo sagrado estivesse sepultado. E o chinês, numa explosão de Fé, houvesse dito: “Esse Homem não pode ficar na sepultura, Ele tem que aparecer!” E tivesse cantado o “Hosanna”, no próprio momento em que Nossa Senhora estava na soledade.

Essa alma teria feito esse outro caminho para encontrar a Nosso Senhor: levada por um misterioso sentimento de que Ele era o Rei e o centro de todas as coisas, sem saber explicitar, procuraria a Ele. E, encontrando-O morto, veria que o caso não poderia se liquidar assim.

Não é verdade que essa alma mereceria ter assistido à Ressurreição?

Movimento metafísico fortíssimo

Em pequeno, tive a felicidade indizível de ser batizado, conhecer Nosso Senhor, de ser tocado pela graça da devoção a Ele, especialmente na atitude de mostrar o seu Coração. Foi como um encontro pessoal que me fez conhecer coisas as quais eu não conheceria se não tivesse encontrado a Ele. Isso é verdade.

Mas também é verdade que Nossa Senhora obteve que fosse posto em minha alma, pela inocência, um movimento metafísico fortíssimo para buscar o centro de todas as coisas, e que quando encontrou a Ele, de algum modo já estava aberto para ver isso n’Ele.

Não sei como agradecer à Santíssima Virgem de ter pedido e obtido isso para mim! Mas vejo bem que se esta devoção a Ele vingou em mim, de um modo tão profundo e tão pouco vulgar para um menino daquela idade, foi porque já havia em minha alma um movimento para um maravilhoso, um absoluto, para uma coisa que a inocência me dava. E houve um encontro.

Seria, portanto, um pouco o homem que encontrou Nosso Senhor, e um pouco o chinês levado por aquele movimento metafísico. E, se não me engano a esse respeito, uma pessoa que queira me conhecer, deve notar esses dois movimentos na minha alma.

E daí ela mesma pode, através do conhecer-me, ser estimulada para uma e outra coisa. Não direta e exclusivamente para ver isso n’Ele, mas perceber a Contra-Revolução. No ver a Contra-Revolução, contemplar a Ele; e no ver a Ele, contemplar a vitória da Contra-Revolução e concluir: “Isso não pode ser derrotado!”

Contaram-me que no maremoto o mar recua, recua, e depois a fúria com que ele volta e a força de invasão é proporcionada ao poder de retração.

Podemos comparar isso à ausência de Deus no panorama moderno. Também Nossa Senhora faz assim com seus seguidores perseguidos, chamados à bem-aventurança de sofrer perseguição por amor à justiça: Ela recua, recua… Tomem cuidado, porque Ela deixa aqueles a seco, como um navio parado que ficou fazendo o papel ridículo de fantasma no meio de uma terra árida; mas quando o mar voltar, deve chegar onde nunca atingiria numa época comum!

Consideremos que Nosso Senhor disse o “Eli, Eli, lamá sabactâni”(4) depois de ter previsto a glorificação d’Ele ao Bom Ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” 5 Portanto, no meio daquela dor, Ele sabia que iria para a glória do Paraíso, e levaria São Dimas.

Ele foi, como Rei do Céu, abrindo as portas, absolvendo, perdoando o Bom Ladrão. Assim, a primeira canonização que houve na Igreja foi do alto da Cruz, feita por Nosso Senhor diretamente. Depois veio a Ressurreição, e todo o resto. 

(Extraído de conferência de 14/12/1985)

 

 

1) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a procura da perfeição em todas as coisas.

2) Localizada no bairro de mesmo nome, na região central de São Paulo.

3) Do latim: “Está consumado” (Jo 19, 30).

4) Mt 27, 46.

5) Lc 23, 43.

Imaculado Coração de Maria: lições de santidade

Refletindo a respeito de uma piedosa invocação da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, Dr. Plinio não se prende aos esquemas devotos tradicionais, mas tira conclusões inesperadas a  respeito do materialismo que pode nos escravizar…

Como em geral acontece com as ladainhas compostas ao longo dos tempos pela piedade católica, as jaculatórias da Ladainha do Imaculado Coração de Maria sugerem, cada uma, desdobramentos  e considerações que muito enriquecem nossa vida espiritual e nossa devoção à Santíssima Virgem.

Procuremos analisar, por exemplo, a invocação “Cor Mariae, in quo Jesus sibi bene complacuit”, que em português poderíamos traduzir assim: Coração de Maria, no qual o Coração de Jesus bem se compraz.

Plenitude de satisfação

Devemos começar por observar que este “bem” salienta a ideia do inteiro e perfeito comprazimento de que nos fala a jaculatória. Ou seja, o Coração de Maria possui uma tal excelência que, tanto quanto é possível à natureza criada, nada lhe falta, e por isso nele Nosso Senhor encontra uma satisfação completa, que não conhece névoa, que não tem limites nem máculas. Excetuando o fato de que o contentamento infinito de Jesus é e só pode ser com o próprio Deus, em tudo o mais Ele acha total alegria no coração e na pessoa de sua Mãe Santíssima.

Quer dizer, Nosso Senhor fita a Santíssima Virgem, olha-A, e ao vê-La, ao contemplá-La, ao analisá-La, experimenta o maior dos prazeres, um deleite indizível, que sobrepuja todas as outras delícias que Lhe proporciona a consideração de suas demais criaturas. Não poderia ser diferente, em se tratando d’Aquela que foi escolhida, desde toda a eternidade, para engendrar em suas  entranhas virginais o Filho de Deus; d’Aquela, portanto, em que tudo haveria de ser absolutamente puro e perfeitamente magnífico.

Em todos os momentos de sua vida terrena, Ela não deixou de crescer em santidade, de um modo inimaginável. Cada graça que Deus lhe concedeu para se adiantar na virtude era correspondida com tal excelência que todo o progresso feito  por Ela é insondável para a mente humana.

Assim, em todos os instantes da existência de Nossa Senhora neste mundo, Jesus teve com Ela um contentamento completo.

Mesmo nas ocasiões mais difíceis como, por exemplo, quando Ela se viu chamada a consentir na morte de seu Divino Filho, e através de uma anuência inteira, heroica, da qual não sobrasse nenhum resíduo, mesmo em situações como essa o procedimento de Maria foi perfeito, no sentido mais exato da palavra. Porque Ela era, enquanto mera criatura, absolutamente exímia. E, como  reza a Ladainha, Nosso Senhor encontrou n’Ela a sua complacência.

Uma lição da sabedoria divina

Do fato desse comprazimento podemos tirar uma bela lição que Deus dá aos homens. Com efeito, criou Ele magnificências materiais extraordinárias. Quantos mistérios haverá por todas as  galáxias do universo? E quando nos detemos na análise dos micro organismos, dos seres pequenos, quantas novidades imensas se descobrem ao nosso maravilhamento! Todo esse fabuloso  conjunto, incluindo os homens e os Anjos, constitui para Deus o objeto de uma eterna contemplação.

Ora, tendo Ele tanto a apreciar, todavia coloca acima de tudo, como fonte do supremo gáudio que pode tirar de suas criaturas, a consideração de Nossa Senhora. Ela que, enquanto ser criado, não  é o mais alto — pois na ordem da natureza o homem vem abaixo do espírito angélico —, porém, do ponto de vista graça, virtude e santidade, não só está acima de todos os Anjos, como é deles Rainha. 

É essa incomparável santidade, portanto, que Deus se compraz em considerar, e em auferir dela uma especial e completa felicidade. Qual a lição que daí devemos colher?

É um ensinamento que combate o nosso fundamental materialismo. Infelizmente, a grande maioria dos homens está imbuída da ideia de que o verdadeiro prazer nesta vida consiste na posse de  bens materiais, de qualquer natureza que seja: dinheiro, saúde e uma série de outras coisas que estão fora das vias da verdadeira felicidade do homem nesta terra. Com efeito, sem engano  podemos dizer que, nesta vida, encontra a felicidade autêntica quem é capaz de seguir o exemplo de Deus e fazer a sua alegria da consideração das outras almas e da virtude que nelas exista.

O   homem que passa pelo mundo procurando a virtude e a santidade para admirá-las, amá-las e servi-las, onde ele as encontra, aí se detém e põe seu prazer e seu júbilo. De maneira tal que ele tenha mais satisfação em estar numa choupana ou num leprosário conversando com um verdadeiro santo, do que no local mais magnífico em meio a pecadores.

Por quê? Porque o santo representa um particular reflexo, uma transparente manifestação de Deus. A alma de um santo possui uma perfeição que nenhuma beleza criada tem, e, por causa disso,  aquele que sabe procurar os verdadeiros valores da vida, vai atrás da santidade, da perfeição moral dos seus semelhantes.

E quando a encontra, ele dá graças a Deus, eleva sua alma a Nossa Senhora e agradece também a Ela, porque é pelo seu maternal auxílio e intercessão que aquela santidade existe numa alma, e foi por meio d’Ela que ele, homem humilde e admirativo, teve a alegria e a honra de encontrar essa alma virtuosa. Ele teve a glória de experimentar um antegozo do céu, que é o conhecer, nesta vida, um verdadeiro santo.

Sigamos o exemplo de Nosso Senhor

Tratemos, então, de imitar a Deus, que se compraz na alma perfeitíssima de Maria. Devemos procurar, em nossa existência terrena, as almas honestas, conhecê-las, amá- las e saber discernir nelas o esplendor do bem. Devemos nos alegrar com essa bondade, até mesmo comparando-a e contrastando-a com o que há de mal em torno dela. Devemos ter genuíno comprazimento ao ver que  Nosso Senhor recompensa a virtude dessas almas que Lhe são tão diletas, assim como importa que compreendamos e aceitemos a reprovação que Ele, em sua infinita justiça, reserva à maldade  impenitente. É o Deus três vezes santo, absolutamente puro e superior, que condena o que é errado, porque não é conforme a Ele.

Quantos ensinamentos a se tirar de apenas uma das mencionadas invocações! Essa é a beleza inexcedível de tudo o que é de Deus, é a insondável formosura de Nossa Senhora, é o maravilhoso  tesouro dos princípios da doutrina católica!

Embora muito houvesse ainda por se aprender com as preciosas verdades contidas nessa jaculatória, creio não poder deixar de ressaltar o seguinte e importante aspecto: o enlevo de Jesus em  relação à sua Mãe Santíssima, infinitamente inferior a Ele e por Ele amada com amor inexprimível, mostra-nos bem como devemos procurar ver a santidade até naqueles que são inferiores a nós.

Amar essa perfeição, enlevar-se com ela, é, mais uma vez, imitar o exemplo de Deus olhando para Nossa Senhora. E no fim dessas breves considerações, só nos resta elevarmos uma prece filial e  confiante ao objeto da inteira complacência de Jesus: “Ó Coração Imaculado de Maria, fazei o meu coração sem mancha, cheio de fé, de força, de heroísmo e santidade, como o vosso!”

Plinio Corrêa de Oliveira

O Doce nome de Maria sempre em seus lábios

A Igreja venera na sua liturgia do dia 12 de setembro o Doce Nome de Maria. Dr. Plinio costumava lembrar com saudade e emoção as estrofes do hino que entoava com os Congregados Marianos, ao final dos Salmos do Nome de Maria:

“Si quaeris caelum, anima Mariae nomen invoca Mariam invocantibus Caelestis patet ianua”.

Se procuras o Céu, ó alma, invoca o nome de Maria; para os que invocam Maria, abre-se a porta do Céu.

Na verdade, o doce nome da Rainha jamais abandonou seus lábios. “Jesus” e “Maria” foram as duas primeiras palavras que aprendeu de Da. Lucília, antes mesmo de saber falar “Papai” e “Mamãe”. Maria…. Ele pronunciava esse nome incontáveis vezes por dia: nos mistérios do Rosário, nos já mencionados salmos que começam com as letras desse celestial Nome, no Lembrai-vos, nas jaculatórias… Quantas e quantas vezes o utilizava para ensinar a seus filhos espirituais a via de ouro que conduz ao Coração de Jesus, que é a devoção a Maria!

Na conclusão de sua momentosa Encíclica sobre o Rosário, João Paulo II cita o belo trecho do Bem aventurado Bartolo Longo: “E a última palavra dos nossos lábios há-de ser o vosso nome suave, ó  Rainha do Rosário de Pompéia, ó nossa Mãe querida, ó Refúgio dos pecadores, ó Soberana consoladora dos tristes. Sede bendita em todo o lado, hoje e sempre, na terra e no céu” (“Rosarium  Virginis Mariae”, n. 43).

Quatro dias antes de enaltecer o Nome de Maria, a Igreja celebra a Natividade da Santíssima Virgem. Que misericórdia para o mundo, seu nascimento! A esse respeito comentava Dr. Plinio: Nossa Senhora trazia consigo todas as riquezas naturais que dentro de uma mulher possam caber. Nosso Senhor deu a Ela, segundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima. E a esse título, a presença d’Ela entre os homens representava um tesouro verdadeiramente incalculável!

A denúncia profética, publicada neste número, reproduz uma conferência de Dr. Plinio por ocasião de uma celebração da festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro). A Cruz, que marcou  profundamente a vida de Nosso Senhor é o símbolo que distingue o cristão, é sua condecoração, seu prêmio e sua glória, e não algo do qual ele se envergonha ou do qual deva fugir…

No dia seguinte à festa da Exaltação da Santa Cruz, o calendário celebra Nossa Senhora das Dores. Os comentários de Dr. Plinio sobre essa data concluem o itinerário litúrgico de setembro que nos  propusemos nesta edição. A liturgia é o alimento dos fiéis, e nosso intuito é de fomentar, como de costume com textos plinianos, a atitude tão louvada pelos Papas, de viver as datas da Igreja como parte integrante de nossa vida.

Continuamos neste número a série de narrações auto-biográficas de Dr. Plinio relativas a sua infância e primeira juventude. No número de agosto, nos despedíramos dele numa praia de Santos, olhando o mar e pensando…

Sentado no extremo da amurada de pedras que penetrava mar adentro, em meio ao murmúrio incessante das ondas que a investiam e eram rechaçadas, o menino Plinio contemplava e meditava sobre as belezas da Criação e de seu autor, contrapondo-as aos erros e horrores de sua época. Encantava-se com a Igreja… e esse amor à esposa de Cristo lhe infundia luzes e critério para julgar todas as coisas com sabedoria. Ela era a sua bússola no mar tempestuoso do século XX.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 66 (Setembro de 2003)

Maria Santíssima, nossa âncora nas nuvens

Favorecido pela Providência com o dom de se expressar  de modo muito claro e com beleza literária, Dr. Plinio utilizou largamente esse predicado  para fazer o bem ao próximo. Nesse apostolado, um dos recursos mais atraentes de que se valia era o uso das  metáforas, por meio das quais ilustrava seus ensinamentos e os tornava de fácil compreensão. A seguir, inaugurando esta nova seção,  recordamos a imagem concebida por Dr. Plinio para salientar o indispensável auxílio da Mãe de Deus em nossa vida espiritual.

 

Ao longo dos nossos anos de apostolado, analisando a ação da graça nessa e naquela alma, dir-se-ia que, para um católico dos dias de hoje — e, de maneira especial, para um membro do nosso movimento — a fidelidade à vocação consiste em desejar um retorno dos melhores frutos da Civilização Cristã que foram sendo destruídos pela incorrespondência dos homens.

A confiança de um navegante em situação desesperadora

Tal anelo, parece-me, seria compreensível e justificável noutra época. Porém, após tanto tempo de dita incorrespondência e, por conseguinte, de pecados e ofensas cometidos contra a bondade divina, a fidelidade se nos apresenta de modo diverso: exige-se de nós que sonhemos, no sentido mais nobre da palavra, com uma ordem de coisas na linha do que teria sido aquela anterior se não tivesse sido destruída e, mais ainda, que a supere totalmente.

Como sonhar? Como confiar nessa superação?

Creio que a única solução para quem se encontra em situação semelhante a essa em que estamos, e na qual provavelmente estaremos cada vez mais imersos, é lançar uma âncora. Contudo, fazê-lo à maneira de um navegante que se acha numa circunstância tão desesperadora que, ao invés de deitar a âncora no fundo do mar, arroja-a em direção às nuvens, esperando que o Céu a segure por ele. Ou seja, é preciso chegar até essa ousadia de confiança.

Quanto mais generosa a alma, mais ela acredita no socorro de Maria

 E, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, seria uma atitude racional. Com efeito, sendo a voragem da água tal que o próprio fundo do mar se descobre aos olhos do navegante, ele não tem outro recurso senão lançar a sua âncora para o Céu. E é tanto mais provável que o Céu atenda seu apelo, quanto mais terá sido sua confiança na hora de jogar a âncora.

Noutras palavras, quanto mais a alma for própria a dar‑se, quanto mais for generosa em dedicar-se ao serviço de Deus e de Maria Santíssima, tanto mais ela acreditará, no momento da provação e da angústia, que Nossa Senhora fará por ela o inconcebível em matéria de socorro, de amparo, de solicitude.

Nossa Senhora segura a âncora no Céu

Alguém poderia me perguntar, muito a propósito: como se joga uma âncora para o Céu?

Responderia eu que há determinadas circunstâncias nas quais percebemos claramente que uma ação nossa corresponde ao plano da Providência para conosco, mas, ao mesmo tempo, de acordo com as disposições humanas, tal realização é por inteiro improvável. Ora, nós nos engajamos nessa obra porque percebemos tratar-se do desígnio da Providência, e só por isso, pois do contrário seria uma temeridade e uma loucura. A âncora foi jogada para o Céu.

Importa notar o seguinte aspecto: não é tanto algo que resolvemos fazer, mas uma situação que aceitamos com confiança, por discernirmos que Nossa Senhora colocou por nós a  âncora nas nuvens.

Por exemplo, aqueles que me acompanham há mais tempo em nosso apostolado nunca me viram traçar um plano com este estado de espírito: “Tal lance é uma loucura, mas vamos fazê-lo porque a Providência quer”. Porém, ouviram incontáveis vezes eu dizer: “Tal situação está perdida, mas vou me manter em paz porque a Providência nos ajudará”.

Essa, repito, é a âncora nas nuvens. Nossa Senhora a colocou ali por nós. Percebemos que o navio desapareceu, o mar corre por debaixo dos nossos pés, estamos pendurados numa corda, presa não sabemos onde. Olhamos para cima: está numa nuvem e com uma âncora na ponta. E o mais extraordinário: está ventando de tal maneira que o vento pode levar a nuvem a qualquer hora… Entretanto, Nossa Senhora quer que permaneçamos tranquilos, pendurados na âncora como se estivéssemos com o chão sob nossos pés.

Sei que não é uma atitude fácil de ser adotada. Mas, pela minha própria experiência, posso afirmar que ela é, ao mesmo tempo, terrível e altamente deleitável.

Confiança na gloriosa mediação da Virgem

Cumpre, pois, que nos formemos nessa generosidade de alma e, quando for preciso, lancemos a âncora para o Céu com toda a segurança. Preparemo-nos para jogá-la às nuvens, pedindo a Nossa Senhora que nos alcance uma virtude da confiança semelhante à d’Ela.

A abundância da misericórdia de Maria sobrepuja tudo quanto qualquer um de nós possa excogitar. Deixemos nossas apreensões inteiramente nas mãos de Nossa Senhora e Ela tudo resolverá. Essa certeza não é gratuita: baseia-se na mediação onipotente da Mãe de Deus em nosso favor. Mediação, aliás, belamente assinalada na oração final da Ladainha Lauretana, que me apraz muito recitar: “Pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria”.

Ou seja, de tal modo uma súplica de Nossa Senhora é atendida por seu divino Filho que seus pedidos podem ser qualificados de gloriosos. Isso deve nos entusiasmar e cumular de confiança n’Aquela que incansavelmente está disposta a nos socorrer.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 1 e 2/3/1980)

Protetores e advogados do homem

Poucas pessoas têm noção de que os Anjos da Guarda nos foram dados sobretudo para aquilo que existe de mais importante: velar por nossa alma, lutar e agir conosco para vencermos nossas dificuldades espirituais. E, contudo, quanto conforto nos daria nas horas das tribulações, tentações, em que nos sentimos sozinhos, termos a certeza de que um Anjo da Guarda está junto de nós!

Embora não o sintamos nem o percebamos, ele não nos abandona um minuto sequer, e se acha à espera de nossas orações para agir por nós. Muitas vezes ele atua sem que o peçamos, mas fá-lo-á ainda mais se implorarmos sua assistência.

Enquanto tecemos essas considerações, o recinto em que nos encontramos está repleto de Anjos da Guarda que velam por nós. Compreendemos, assim, quanta alegria desfrutaríamos se  tivéssemos essa ideia sempre presente em nosso espírito!

Ao fazermos apostolado, ao passarmos por problemas interiores, por aborrecimentos e contrariedades de toda ordem, nos sentimos sós. Tal solidão é uma ilusão: junto a cada um está o seu Anjo da Guarda. Não obstante imaginarmos que entre nós e ele há uma distância como entre o céu e a terra, ele de fato está perto, rezando, vigiando, protegendo o homem cuja guarda lhe foi confiada por Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Força e doçura

Objeto de nosso enlevo e admiração, a extraordinária figura do Imperador Carlos Magno se destaca na história da Cristandade, por ser ele o grande protetor da Igreja no seu tempo, e um dos fundadores da Europa católica. Já tive ocasião de externar o quanto seu exemplo se fez valioso em minha formação, desde aqueles remotos dias em que o “encontrei” pela primeira vez, numa revista comprada na estação ferroviária de São Paulo(1).

Entre outras inestimáveis marcas deixadas por ele na cultura e na arte da Civilização Cristã, temos o legado de sua presença em Aix-la-Chapelle (a atual cidade alemã de Aachen), aonde fazia tratamento com águas minerais e ali residia num palácio do qual restam lindos vestígios. Foi igualmente de sua iniciativa a construção da esplendorosa catedral da cidade.

Como se sabe, a escultura foi uma das manifestações artísticas mais desenvolvidas pela Idade Média, de modo especial cultivando e desenvolvendo o estilo gótico. Na Catedral de Aachen, assim como em outros importantes templos medievais, percebemos isto de curioso: nas imagens que adornam os pórticos e as fachadas há sempre uma junção de paz e serenidade profundas. Sobretudo em se tratando de personagens masculinos, temos homens grandes, fortes, vigorosos, dando-nos a impressão de serem netos ou bisnetos de um bárbaro. Ou serão protagonistas de cenas bíblicas, patriarcas veneráveis, de barba possante e a coragem de guerreiros.

Entretanto, neles transparece a doçura e a tranqüilidade. É a nota componente da Idade Média, um tanto esquecida no mundo contemporâneo: a ligação harmoniosa entre a fortaleza e a doçura. Homens fortíssimos — herança da natureza pujante dos povos bárbaros — e, ao mesmo tempo, dulcíssimos. E dão origem a esse ambiente de suavidade, nascido de um passado repleto de lutas e sofrimentos, mas também pleno de oração, de piedade, de obras de caridade e misericórdia. Foi na Idade Média que se construíram os primeiros hospitais no mundo.

Tudo isso se eternizou nas pedras e nas recordações históricas, como as da Catedral de Aachen. No seu interior, ela nos mostra altas arcadas, com dois andares de colunas, atrás das quais reluzem bonitos vitrais, e o majestoso lustre, acrescentado no século XII pelo Imperador Frederico I, como símbolo da Jerusalém celeste, pendendo do teto adornado de mosaicos com cenas sacras.

Na catedral se conservam dois objetos de imenso valor. Um, a mais bonita peça de ourivesaria por mim conhecida, é o relicário contendo os restos mortais de Carlos Magno.

O desenho é de uma basílica, toda lavorada com aplicações de prata dourada, verniz, filigranas com pedras preciosas e esmalte. Circundam-na as imagens de oito reis do Sacro-Império, sucessores do grande Carlos, desde Luís o Piedoso até Frederico II. Na parte da frente, sobre a figura de Nosso Senhor Jesus Cristo triunfante, vê-se o Imperador no seu trono. Na face posterior aparecem a Santíssima Virgem com o Menino. Além disso, os relevos do teto representam cenas da vida de Carlos Magno. O conjunto desta peça impressiona pela proporção e a harmonia perfeitas dos seus vários elementos.

O outro objeto de que falamos é uma gloriosa reminiscência do Sacro-Império: o famoso trono de Carlos Magno, sobre o qual, a partir de meados do décimo século, os reis medievais recebiam a dignidade de soberanos.

Do ponto de vista estritamente artístico, é mais rústico e, portanto, menos bonito que o relicário. Porém, a preocupação de se produzir algo belo e nobre está presente na quantidade de mármores de que é feito. Como esse gênero de pedra não era achado na região de Aachen, era preciso importá-lo de outros territórios, transportando-o a dorso de mulas por estradas difíceis, escoltadas por grupos armados, enfrentando-se o perigo de saques e de acidentes provocados pelas intempéries e precipícios.

Depois dos longos trajetos, o mármore afinal chegava e vinha enriquecer o trono do magno Imperador. Uma vez terminado, Carlos o mandou instalar no andar superior da catedral, num ponto de onde ele, assentado, podia ver o altar e assistir à Missa. Então, posto nessa conveniente eminência, o monarca acompanhava o Santo Sacrifício que se celebrava.

E nós nos comprazemos em imaginar o que seria essa linda catedral repleta daqueles homens dulcíssimos e fortíssimos, todos entoando cânticos religiosos, ou aguardando num silêncio meditativo a hora da Consagração. E o grande Carlos sentado em seu trono, resplandecendo de piedade e de glória…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

¹ ) Cf. “Dr. Plinio” número 8.

Sério, altaneiro e intrépido

Pregador da Boa Nova, São Mateus é o modelo de varão sério, altaneiro, intrépido, corajoso, que fala em nome de uma verdade eterna e, por isso, não se sente acanhado nem diminuído diante de ninguém.

Eis a graça que devemos pedir a São Mateus para difundirmos a verdadeira Boa Nova da Religião Católica, Apostólica, Romana, nesta época de tanta decadência religiosa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/9/1965)

São Mateus, Apóstolo Evangelizador da Etiópia

Varão sobrenatural, nobre, forte e acolhedor. Assim aparece o Apóstolo São Mateus nas páginas da “Legenda Áurea” que relatam a evangelização e o martírio do discípulo de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras da Etiópia. Comentários de Dr. Plinio.

 

Em 21 de setembro celebra-se a festa do Apóstolo São Mateus, a respeito do qual lemos na “Legende Dorée”(1) ter sido o evangelizador da Etiópia, onde conseguiu desmascarar e apontar como agentes do demônio os magos que iludiam o rei e o povo.

O lendário reino do Preste João

Cumpre assinalar que, excetuando o Oriente Próximo, na gentilidade asiática e africana a Etiópia possuía uma peculiaridade extraordinária: de todos aqueles mundos, era o único país cristão. As outras nações onde os Apóstolos estiveram, e até deixaram recordações — como a Índia, por exemplo — não se converteram. Durante algum tempo a Etiópia permaneceu católica, mas, infelizmente, acabou cedendo à heresia dos monofisitas(2). Contudo, hoje é ainda uma nação cristã, e cabe-lhe a glória de ter sido evangelizada pelo Apóstolo São Mateus.

É interessante considerar, também, como os medievais tinham certa noção de um reino cristão situado além do Egito, onde, segundo as notícias trazidas pelos navegantes portugueses, vivia o famoso Preste João — Padre João, em português arcaico. Tratar-se-ia, pois, da Etiópia.

Nobre, poderoso, suave

De acordo com a “Legende Dorée”, este país e seu rei estavam desviados do culto do verdadeiro Deus por obra dos mencionados magos. A estes enfrentou e desmascarou São Mateus, provando que eram incapazes de fazer qualquer coisa sem auxílio do maligno.

Somos levados a imaginar esse confronto, com o Apóstolo tendo penetrando na Etiópia através do mar, do deserto ou pelas nascentes do Nilo, e só pela sua presença já causando grande mal-estar nos sequazes do demônio. Os magos logo perceberam naquele homem um poder, uma força de Deus que os contrariava de modo irretorquível.

Provavelmente, esses magos praticavam muitos prodígios e induziam o povo a acreditar que participavam de um poder divino.

São Mateus, operando autênticos milagres, confundiu aqueles impostores diante do mesmo povo, demonstrando a farsa com que a todos iludiam. Quiçá a população, sabendo-se objeto de tamanho ludíbrio, tenha querido punir os feiticeiros, sendo então impedida pelo Apóstolo, que a fez compreender que aquilo seria um crime. Tal houve de ser a influência desse varão sobrenatural, nobre, poderoso, suave, acolhedor, sobre aquela gente admirativa.

Conversão de todo o povo

Pouco depois, conforme a narração do biógrafo, São Mateus ressuscita o filho do rei Egipo, e este, querendo-o adorar como deus, oferta-lhe grande tesouro. Claro, o Apóstolo não permitiu tal veneração e, com o ouro e a prata que haviam levado, construiu uma grande igreja, na qual viveu 33 anos para converter a nação. O rei Egipo, sua mulher e todo o povo se fizeram batizar. Ifigênia, a filha do rei, foi consagrada a Deus e colocada à frente de duzentas virgens num convento.

Não nos é difícil compreender o imenso alcance desse fato. Uma nação imersa durante séculos no paganismo e em toda espécie de vícios, com a simples pregação de um Apóstolo, converte-se, se faz batizar, e duzentas virgens de ébano, ao lado da própria filha do rei, recolhem-se a um convento para se tornarem esposas do Rei por excelência, Nosso Senhor Jesus Cristo.

Outro detalhe: quão bela deve ter sido a primeira igreja da Etiópia, construída diretamente sob a inspiração de São Mateus, e como essa edificação deve ter alegrado no Céu aos anjos, a Deus e a Nossa Senhora!

Martírio do Apóstolo

Entretanto, o rei Egipo morreu e seu sucessor, Hírtaco, desejou esposar Ifigênia, por considerá-la a única jovem digna dele e de sua posição. O novo monarca pediu a São Mateus que convencesse a princesa em aceitá-lo como marido, e prometeu ao Apóstolo, em caso de sucesso, metade do reino.

Vê-se a vã e frustra tentativa de suborno. Para quem converte um povo inteiro, do que adianta riquezas e poder temporal sobre ele? Incomparavelmente mais do que isso, São Mateus possuía a alma desse povo e a entregara a Deus.

O Apóstolo pediu então ao rei Hírtaco que fosse à igreja no domingo seguinte, quando daria uma solução ao caso. O soberano anuiu e compareceu ao templo, encontrando-o repleto de fiéis que começaram a ouvir dos lábios de São Mateus um maravilhoso sermão sobre os benefícios de um casamento.

Figuremos um Hírtaco de beiços grossos e vermelhos, dentes alvos, sorrindo de contentamento enquanto São Mateus elogiava o matrimônio. Certamente, pensava lá consigo: “Agora não preciso lhe dar metade do meu reino, como prometi, porque me fez o serviço adiantado. A princesa será minha, e depois ele se entenderá comigo”.

O rei estava seguro do assentimento da jovem. Porém, continuando seu sermão, em determinado momento disse o Apóstolo: “Sendo o casamento tão sagrado e inviolável, alguém que quisesse possuir a mulher de seu rei, mereceria um castigo. Assim, Hírtaco, sabendo que Ifigênia é esposa do Rei eterno, como ousas tomar a mulher do infinitamente mais poderoso do que tu?”

Ao ouvir essas palavras, Hírtaco se retirou da igreja, tomado pelo ódio. Terminada a Missa, o rei enviou um carrasco que com a espada atingiu São Mateus, o qual se encontrava orando de pé diante do altar e com os braços estendidos para o céu. O povo, indignado, correu ao palácio real para vingar o crime, mas os outros sacerdotes o detiveram, aconselhando que em lugar disso se unisse numa grande celebração em homenagem ao santo mártir.

Com a fé católica, a semente de todo o bem

Enquanto isso, Hírtaco ordenava que ateassem fogo ao redor do convento de Ifigênia, para fazê-la perecer juntamente com as outras virgens. Mas, São Mateus apareceu e desviou o fogo para o palácio do rei, que foi inteiramente consumido. Somente o soberano e seu filho único escaparam ao incêndio. O príncipe correu imediatamente ao túmulo do Apóstolo para pedir perdão, e o rei, atingido por horrível lepra, suicidou-se. Depois desses episódios, o povo escolheu como soberano o irmão de Ifigênia, o qual reinou durante 60 anos, difundindo o culto de Cristo e construindo igrejas por toda a Etiópia.

Assim termina a narração da vida de São Mateus. Creio que meus ouvintes sentem, como eu, a beleza contida nesse epílogo: o novo rei governou durante seis décadas, edificando igrejas pelo país inteiro. Tem-se a impressão de um reinado sereno, tranqüilo, elevado. Claro, não se pode dizer que basta construir igrejas e tudo estará resolvido. Mas, erguendo-as, e sendo frequentadas por um povo fiel, praticante da religião verdadeira, tudo aquilo que é necessário para a sua prosperidade, virá.

Ou seja, instaurando autenticamente a Fé católica, está colocada a semente de todo o bem. Tal foi a obra do Apóstolo São Mateus na terra por ele evangelizada.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/10/1976)

 

1) “Legenda Áurea”, coletânea de vidas de Santos escrita pelo bem-aventurado Jacopo de Varazze, dominicano e Arcebispo de Gênova (1229-1298).

2) Heresia difundida por Eutiques (378-454), que afirmava haver em Cristo uma só (mono) natureza, a divina.