Cintilações da alma franciscana

Em diversas regiões da velha Europa cristã, há lugares que ainda conservam uma certa unção, ligada à própria natureza deles, não só porque Deus assim o dispôs, mas também porque foram “sobrenaturalizados” pela santidade de homens que ali viveram. É exemplo paradigmático disto a cidade de Assis, marcada para todo o sempre pela extraordinária virtude do santo Fundador dos franciscanos.

Ao peregrinarmos por aquelas paragens que conheceram a prodigiosa alma do “Poverello”, logo o imaginamos passeando pelos lindos e pitorescos arredores de Assis, analisando tudo e fazendo altas considerações que o uniam ainda mais ao Criador. Então se encantava com uma pequena flor, com as ervinhas a crescerem nos sopés das colinas, ou com o “irmão sol” num lindo crepúsculo, etc., elevando-se na contemplação, no conhecimento e no amor de Deus com uma plenitude incomparável.

Essa comunicação especial que São Francisco tinha com Nosso Senhor produzia, por sua vez, uma forma de circulação de sobre- natural por aqueles lugares, envolvendo e conferindo a tu- do algo da própria perfeição espiritual do santo.

Em Assis, ainda se pode degustar algo que só a autêntica piedade católica é capaz de engendrar, isto é, a harmonia de sentimentos opostos. Ali se experimenta um pouco da bondade e da doçura franciscanas, ao lado da austeridade e da combatividade de um varão que era entusiasta das Cruzadas. Sente-se a felicidade extraordinária de um dos santos mais alegres da história cristã e, ao mesmo tempo, o signo de uma tristeza digna, composta, senhora de si, que é o reflexo da dor de São Francisco pela morte do Filho de Deus. Tem-se a imponência das construções da monumental basílica, ao lado do espírito de humildade e desapego das coisas terrenas levadas ao último ponto no “Êremo delle Carceri”. Assim como a pureza estava para São Luís Gonzaga, estava a pobreza para São Francisco. A “dama pobreza”, como dizia, a qual ele misticamente desposara.

Eis uma das grandes maravilhas a serem admiradas em Assis: extremos opostos que nascem dos troncos benditos da Igreja, que não entram em conflito, mas se equilibram de forma prodigiosa, manifestando, pelos fulgores da alma de um santo, algumas das infinitas perfeições do Criador.

Plinio Corrêa de Oliveira

São Bruno – O fundador dos cartuxos

Com profundo senso histórico, ao analisar a vida de São Bruno, Dr. Plinio extrai valiosos ensinamentos acerca do espírito medieval, contrastando a Fé e os costumes daqueles tempos com os dos dias atuais.

No dia 6 de outubro, a Igreja celebra a memória de São Bruno, fundador da Grande Chartreuse. Nasceu ele na cidade de Colônia, junto ao Reno, na Alemanha(1).

Assim narra uma ficha com sua história:

“Manassés, Arcebispo de Reims, o nomeou seu chanceler. Mas Manassés se deixava arrastar pela simonia. Bruno o acusou, o que lhe atraiu as perseguições do Arcebispo, que o privou de seus benefícios.”

Chama-se simonia a venda de bens ou cargos eclesiásticos, a qual é punida pela Igreja com as maiores penalidades. São Bruno, sendo já clérigo e chanceler do Arcebispo, verificando que este praticava tal pecado, imediatamente o denunciou. Por causa disso, foi perseguido e privado de todos os benefícios.

Idade Média, a era dos milagres

“Entre os doutores da Universidade de Paris, Bruno tinha um grande amigo, muito estimado e tido como virtuoso e sábio. O amigo morreu e todos os membros da Universidade assistiram seus funerais. Durante o serviço fúnebre, enquanto um dos pequenos coroinhas começava a lição de Jó: “Responde mihi, quantas iniquitates habes?’…”

Fazia parte da liturgia esta pergunta: “Responde-me, quantas iniquidades tu tens?”

“…o corpo do defunto, que estava deitado no esquife, no meio da igreja, levantou a cabeça e disse com um tom de voz assustador:
— Sou acusado por um justo julgamento de Deus.
“E se deitou novamente no esquife”.

É cena tipicamente medieval, pois a Idade Média foi a era dos milagres. Estes vão atrás dos que creem e não dos incréus, embora pareça um paradoxo, pois se diria que milagre é para quem não tem Fé. Nas épocas de muita Fé, o milagre é abundante; nas de ceticismo, ele se torna raro. O único desmentido a isso ocorreu nos séculos XIX e XX, com os milagres quase contínuos de Lourdes.

Precisamos tomar em consideração que o medieval era homem como nós; realidade sobre a qual, às vezes, não se tem inteira noção, dada a distância que as pessoas de hoje sentem em relação aos tempos antigos. Então, para compreendermos o realce desse fato na vida de São Bruno, devemos imaginar aqui perto, na Igreja do Coração de Maria(2), um homem deitado no esquife e nós assistindo a cena. Em certo momento, o coro canta:
— Responde mihi quantas iniquitates habes?
O homem senta-se e diz:
— Eu estou punido por um justo castigo de Deus.

E de olhos fechados, com cara de cadáver, deita-se novamente.

Já imaginaram o efeito disso numa igreja? E sobre cada um de nós concretamente? Creio que a respeito disso haveria comentários durante, pelo menos, quinze dias, ocasionando ruptura de silêncio, falta de distância psíquica(3), etc. Pois bem, São Bruno teve a felicidade de assistir a esse episódio.

“O terror causado por um acontecimento tão pouco comum fez com que se adiasse o enterro para o dia seguinte, para ver o que sucederia.”

Hoje se enterraria na hora, para encerrar a história. Naquele tempo, havia Fé e as pessoas queriam verificar se aconteceria mais alguma coisa. Durante toda a noite, a igreja ficou cheia de povo, desejoso de ver o cadáver que falou, e esperando o momento no qual fosse lido aquele mesmo texto litúrgico.

Em nossos dias, a cena seria perturbada pela presença de rádio, televisão, repórteres, etc. Ou talvez se fizesse N-A-N-E(4) e algum jornal noticiaria o fato com o título: “Estranhos episódios de auto-sugestão na Igreja do Coração de Maria”.

“Durante o ofício, no dia seguinte, quando foi cantada a mesma lição, o cadáver exclamou com uma voz ainda mais horrível:
— Eu estou julgado por um justo julgamento de Deus.”

Aparente virtude desmascarada por Deus

Isso significava uma bênção para aquele povo, pois equivale a um verdadeiro retiro espiritual. Deus vai obrigar o cadáver de um condenado a declarar que ele estava julgado por um justo juízo de Deus! Mais terrível, é que era um homem tido como bom. E mais ainda, tinha entre seus amigos São Bruno.

“O povo ficou mais assustado ainda e decidiu enterrá-lo no outro dia. No terceiro dia, o cadáver levantou-se mais uma vez, exclamando com uma voz de estrondo terrível:
— Eu estou condenado por um justo juízo de Deus.”

Por que Deus quis, por essa forma, desmascarar a falta de virtude de um homem tido por todos como bom? Porque na Idade Média a virtude era incomparavelmente mais frequente do que em nossos dias. E os maus, muitas vezes, não ousavam apresentar-se na sua maldade, para terem livre trânsito entre os bons. Então, era preciso desmascarar a maldade e mostrar quantos homens falsos poderia haver sob aspecto virtuoso. Hoje é quase o contrário: é preciso desmascarar os bons, que se escondem tanto quanto possível, e os maus se mostram. Na Idade Média era necessário fazer com que os bons fossem vigilantes e não seguissem os maus que se fingiam de bons. É uma admirável lição de vigilância.

“O corpo do morto foi…”
Muitos estarão pensando “enterrado”. Porém, o texto assim continua:
“…jogado no lixo.”

Conforme São Tomás de Aquino, quando vier o fim do mundo, toda matéria sórdida, lixo e outros detritos que não tenham sido queimados serão jogados dentro do inferno, porque é a lata de lixo do Universo, para onde vão todas as almas e matérias que não prestam.

Fundação da Chartreuse

A ficha apresenta outros fatos isolados da vida de nosso santo.

“São Bruno se associou a seis companheiros.”

Trata-se da fundação da Chartreuse.

“Eles venderam todos os seus bens, depois foram à cidade de Grenoble. Lá havia um santo Bispo chamado Hugo. A visita de Deus precedeu de um modo admirável os sete companheiros, junto do santo Bispo. Este teve um sonho, no qual viu um imenso deserto onde Deus Padre construía para Si próprio uma casa para morar. Sete estrelas brilhantes, em forma de uma coroa elevada sobre a Terra — diferentes das estrelas do céu em situação, movimento e claridade — andavam diante dele como para lhe mostrar o caminho.”

Através desse sonho poético e bonito, vemos como a Idade Média era cheia de contrastes. Acabamos de recordar uma cena terrível: um condenado ao inferno obrigado a manifestar a justiça de Deus. Agora é o contrário.

Imaginemos o paço episcopal, onde um Bispo respeitável, venerável, santo, dorme tranquilamente o sono do justo, do homem sagrado e ungido por Deus. Consideremos a beleza do quadro: um deserto e o Pai Eterno. É digno ambiente para se manifestar o Pai Eterno um deserto onde ninguém vai e somente a majestade de Deus paira, como antes de criar todas as outras coisas Seu Espírito pairava sobre as águas (cf. Gn 1, 2). É uma solidão digna de Deus.

Depois o Bispo, no seu sonho, se vê caminhando rumo ao deserto com um bordão de peregrino, orientado por sete estrelas do céu, que formam uma coroa. Faz lembrar os reis magos seguindo a direção indicada pela estrela e indo para o Presépio de Belém. É uma coisa linda! Podemos imaginar a elevada expressão de fisionomia do santo, enquanto dorme, vendo essas estrelas que lhe aparecem.

Tudo isso nos introduz no ambiente da Idade Média, tão cheio de contrastes e coloridos. Antes o terror e agora o admirável. Nessa época histórica encontramos pouco o banal, do qual estamos repletos atualmente.

Continua a ficha:
“Santo Hugo não sabia o que significava essa visão quando, no dia seguinte, sete peregrinos vieram se prosternar a seus pés, comunicando sua resolução e pedindo-lhe que os ajudasse. Santo Hugo julgou que os sete peregrinos seriam, na sua diocese, estrelas resplandecentes por suas virtudes e sua doutrina.”

Não há nada mais belo que o encontro de almas santas

Voltemos a imaginar, no palácio episcopal, o santo sentado numa espécie de trono de madeira lavrada — numa sala com um reposteiro, uns vitrais, chão de pedra, um tapete, constituindo um ambiente de recolhimento — e os sete jovens que chegam. São pessoas resplandecentes de saúde, de Fé, de vontade de servir a Deus. Ainda cobertos pela poeira do caminho, eles se ajoelham diante de Santo Hugo.

Não há coisa mais bonita do que o encontro de almas santas: uma luz refletindo-se em outra e ambas se multiplicando. Daí nasce uma harmonia entre diversos seres, mais bonita do que um só ser. Uma nota do mais perfeito órgão tem menos pulcritude do que duas notas, ou três, formando um acorde. Assim esses santos formavam um acorde, uma harmonia de almas.

O santo Bispo, embevecido, vendo aqueles jovens, os quais, levados por alguma comunicação celeste, sabiam que lhes mostraria para onde deveriam ir. Então, de joelhos, pediram que lhes indicasse o caminho.

Essa cena daria para um vitral, uma iluminura, uma tapeçaria. Poderíamos julgar que essas formas artísticas medievais marcam fatos excepcionais da vida. Na verdade, elas reproduzem aspectos correntes da existência na Idade Média. Porém, tais aspectos tinham uma alta dignidade e mereceriam, portanto, ser retratados em matérias tão excelentes como a tapeçaria, o vitral, a iluminura.

“O Bispo os recebeu com alegria, pois esses homens poderiam dar glória a Jesus Cristo. Ele os estimulou e confirmou nas suas santas resoluções. E deu-lhes como lugar para se fixarem uns montes horrendos, perto de Grenoble, montes esses chamados La Grande Chartreuse.”

Lutavam contra a hostilidade da natureza cantando e glorificando a Deus

Esses montes horríveis, posteriormente, pela presença de São Bruno e seus filhos, tornaram-se famosos. Realmente, depois de serem cultivadas e adaptadas pelos cartuxos, aquelas montanhas formaram um panorama lindo.

Pode parecer estranho que o Bispo encaminhasse para um deserto horroroso almas tão eleitas. Mas fazia parte da vida monástica na Idade Média fixar os monges em pântanos, florestas, etc., porque ali eles lutavam contra os aspectos hostis da natureza pelo seu trabalho, enquanto cantavam e davam glória a Deus pela sua virtude. E as populações iam residir junto a eles, que constituíam a fina ponta do progresso.

Época feliz, em que os povos devastavam os matos e entravam pelos desertos, não em busca do ouro mas da virtude. Como tudo mudou! Era uma espécie de bandeirismo de oração. Não se iam procurar esmeraldas e sim virtudes. Que beleza! Não censuro a busca de esmeraldas, mas admiro a das virtudes.

“Eles construíram, no flanco da montanha, em honra da Santíssima Virgem, um oratório existente ainda hoje e que tem o nome de Santa Maria de Casalibus. É lá que São Bruno e seus companheiros iniciaram a vida de São João Batista.”

“Vida de São João Batista”, quer dizer aqui, recolhidos completamente.

Respeito à tradição

Outra coisa linda da Europa é o respeito à tradição. Quer os mais antigos e imponentes monumentos, que iniciaram as grandes obras, quer os pequeninos, sem importância, são guardados com cuidado.

Trata-se aqui de uma capelinha em honra de Nossa Senhora, que foi o ponto de partida dessa instituição de fama mundial hoje em dia, uma ordem religiosa com uma longa tradição na Igreja: os cartuxos. Segundo o espírito moderno, essa capelinha poderia ser destruída porque está envelhecida e foram ali construídas igrejas muito mais bonitas. Não! Ela foi o início daquelas edificações, e toda origem é respeitada e venerada. Por causa disso a capelinha é cuidadosamente preservada, como manifestação do espírito de tradição.

Na Rússia dos czares, havia uma coisa muito bonita. Em geral, as czarinas tinham seus filhos no Kremlin que, como se sabe, é um conjunto de palácios e fortalezas, num recinto fortificado. Em seu núcleo existia uma igrejinha com um sininho.

Segundo a tradição, quando nascia o primogênito do czar, tocava-se primeiro esse sininho, depois os sinos do Kremlin, e por fim, os de todos os campanários da Rússia. De “proche en proche”, iam assim espalhando a notícia do nascimento do herdeiro do czar. Quando soava aquele sininho velhinho, rachadinho, mas carregado de história, era o sinal para os outros sinos tocarem.

Este respeito à coisa veneranda, originária, primeira, empobrecida, encarquilhada pelo tempo — a qual, por isso mesmo, adquiria uma forma de beleza toda especial — caracterizava o espírito tradicional da Idade Média. Assim são as grandes instituições, como a dos cartuxos, cujo exemplo nos proporciona tais ensinamentos.

Em São Paulo há também nesse sentido algo interessante, no Parque do Ipiranga onde se proclamou a Independência nacional. No quadro de Pedro Américo — pintura “princeps”, que representa essa cena — figura uma casinha de caipira, a qual existe até hoje no meio do Parque, porque parece que naquele local se deu o ato famoso. É feita de taipa, sem nenhum valor arquitetônico, velhíssima; está disfarçada na vegetação porque ela não tem beleza, e pode ser visitada. Isso indica o respeito à coisa primeira, inicial. E assim, há outras coisas que se poderiam mostrar no Brasil e no mundo inteiro.

“Santo Hugo não tinha consolação mais sensível do que ir muitas vezes à Chartreuse, para se edificar com a vida santa que levavam esses valentes solitários.

“Urbano II foi discípulo de São Bruno.”

É outra glória de São Bruno: ter sido o mestre do Papa bem-aventurado que deu o primeiro toque de sino das Cruzadas.

Aparente contradição

“Na ‘solitude’ da Calábria, São Bruno escrevia a seu amigo Raul, para encorajá-lo a renunciar ao mundo: ‘Não me é possível vos pintar a agradável perspectiva que formam as colinas que se elevam sensivelmente, e o profundo dos vales e das fontes, dos riachos e dos rios que regam essa região, e apresentam aos olhos os espetáculos mais encantadores.”

Refere-se aqui a uma outra Cartuxa, fundada na Calábria, no Sul da Itália, a qual, por exceção, tinha um panorama atraente. Pode-se perguntar por que São Bruno dava esse argumento a fim de chamar alguém para ser cartuxo. Não parece uma coisa inteiramente extravagante dizer: “Venha observar silêncio perpétuo, castidade, pobreza, obediência, porque aqui há uns riozinhos bonitos e umas fontes agradáveis para você ver”?

O argumento parece completamente desproporcionado com o sacrifício e refere-se ao mais estranho e disparatado dos turismos. Como explicar que São Bruno fizesse essa sugestão?

Evidentemente, deve-se entendê-la no contexto, como quem diz a uma alma piedosa, que quer isolar-se: “Vem, porque aqui há muitas criaturas belas que nos servem para dar glória a Deus. O lugar é propício para a oração.”
Ou seja, devemos nos elevar a Deus procurando nas coisas analogias com Ele, para glorificá-Lo.

Vivendo numa cidade de asfalto e cimento armado, não se tem essas coisas senão raramente. De qualquer forma, há sempre algo para se dar glória a Deus, por exemplo, um bonito slide ou filme, um belo panorama.

 

(Extraído de conferência de 17/8/1973)

1) São Bruno nasceu em Colônia, no ano de 1030, e faleceu na Calábria, em 1101.
2) Situada em São Paulo, na Rua Jaguaribe, bairro de Santa Cecília.
3) Cf. “Dr. Plinio”, n. 106, janeiro de 2007, p. 25.
4) “Nada aprenderam, nada esqueceram” – Frase de Talleyrand, empregada por Dr. Plinio para designar a mentalidade daqueles que julgam os fatos de hoje, exatamente com os critérios errôneos em voga há décadas atrás. Por exemplo, os N-A-N-E consideram todas as coisas sob o ângulo dos velhos princípios laicos, e não compreendem que o campo decisivo dos acontecimentos mundiais é a vida interna da Igreja (cf. “Folha de São Paulo”, 5/4/70 e 12/4/70).

São Francisco, cavaleiro de Cristo

Nas veredas de um mundo que caminhava incontroladamente atrás das riquezas, São Francisco de Assis foi o trovador que entoou o hino do desapego e da pobreza, da doação levada ao mais alto esplendor do amor de Deus e do desejo de se Lhe entregar.

Foi ele o santo da caridade e da bondade; o santo que, indo de encontro à Cruz, mereceu a glória de receber os estigmas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi, igualmente, o santo entusiasta dos ideais da cavalaria católica, toda voltada para o serviço da Igreja.

Numa palavra, o doce “poverello” de Assis foi talvez, a meu ver, a personalidade mais contagiante que tenha havido na Cristandade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

São Francisco de Assis: Personalidade Rica e Marcante

Santo de uma personalidade tão rica e marcante, São Francisco de Assis parece vivo ainda hoje, resplendendo sua presença diante dos homens. Deixou-nos um dos maiores exemplos da verdadeira contemplação das perfeições divinas e do profundo amor a Deus. Ao considerar os peixes num simples regato, sabia colher desta cena uma aplicação concreta para a vida espiritual.

Dirigia-se ao “irmão sol” e à “irmã lua”, tecendo orações que elevam a alma à mais subida meditação das excelências de Deus, como quem afirma: “Ó Senhor, este universo criado, do qual faço parte, é grande e belo demais; porém, há algo infinitamente superior, que sois Vós!”

Daí a fabulosa densidade da religiosidade franciscana, que devemos imitar. Diria mais: sem esse espírito contemplativo, nenhuma religiosidade atinge sua plenitude.

Plinio Corrêa de Oliveira

Lugar onde a Providência quis reunir suas maravilhas – II

Em Veneza há beleza, elevação e grandeza, o contrário do que ostenta o mundo de hoje. Em nossas almas existe o desejo de uma desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas. Esse desejo faz de nós os iniciadores do Reino de Maria.

 

Numa fotografia de um aspecto de Veneza, na  qual o fotógrafo foi especialmente feliz, considerem a pomba, o mar, os campanários, as igrejas e os palácios.

Bolha de beleza pairando pelo ar

A impressão é de que todas essas belezas como que saturam o ar e nos remetem para uma certa irrealidade, a qual está na maravilha dos crepúsculos venezianos; e que a pomba tem algo à maneira  e uma noção disso, e voa deliciada no meio de todas essas coisas. Não é apenas do ar que a pomba gosta, mas dir-se-ia que ela forma um todo só com essa beleza. Nós sabemos tratar-se  de um ser irracional, orientado apenas por seus instintos. Mas não é verdade que se tem a impressão de que ela goza de um bem-estar aumentado por essa formosura? Uma pomba como essa, no Largo do Arouche, em São Paulo, não teria esse bem-estar.

Qual a razão disso? É pelo fato de ela concorrer, como uma obra-prima de desenho, para essas maravilhas. Ela mesma, como está aqui, é linda. Notem como as asas ficam bonitas, como o voo torna-se elegante. Ela é um sonho!

Dir-se-ia que a pomba é uma bolha de beleza que se desprende e fica pairando pelo ar. Estas considerações nos levam a nos perguntar como será aquela perfeição alta e magnífica, para a qual a  humanidade foi feita e tende a possuir antes que a História do mundo acabe, e onde Nossa Senhora será a Rainha. Quando, então, não forem apenas as pombas a voarem pelo ar, mas algo de marial habitando tudo – tomando em consideração que Maria Santíssima é a obra-prima de Deus no Céu e na Terra –, como serão essas coisas? É verdadeiramente indizível.

Uma das maravilhas do universo: o Palácio dos Doges

Aqui encontramos, no primeiro plano, a dois passos do mar – e o encanto está nisso, pois quanto mais próximo do mar mais arrebatador –, sem vedar o trânsito, o Palácio dos Doges.

A meu ver, esse palácio é de uma cor difícil de definir e que varia um pouco de acordo com a luz do dia. Mas nesta fotografia se me apresenta de um róseo muito delicado, mas não homogêneo; percebe-se a presença variada do róseo e do branco nas ogivas góticas, formando uma espécie de contraste.

De si, o bonito seria, de acordo com a lei da gravidade, vermos o elemento mais pesado carregar o mais leve. Então, seria explicável que esse palácio fosse construído de tal maneira que essa espécie de caixotão – é um ultraje chamá-lo assim – deliciosamente róseo, ornado por três ogivas agradavelmente simétricas, pensativas, calmas, tranquilas e nobres, que parecem estar, elas  mesmas, olhando o mar, contemplando-o com a familiaridade  com a qual as grandes pessoas contemplam o lindo; pareceria normal, enfim, que esse caixotão estivesse na terra, e a parte mais  leve, ou seja, as colunas desse andar imediatamente inferior, bem como a colunata que toca no chão, estivessem em cima.

Dir-se-ia que esse edifício, construído assim como está, daria uma sensação de peso medonho, e que esse caixotão vai esmagar e quebrar, a qualquer momento, a colunata. Mas está calculada com tanta inteligência a distribuição dos corpos e dos volumes, que não se tem essa impressão. Pelo contrário, sente-se que essa colunata  carrega sem esforço o caixotão, o qual, recusando-se de ficar na terra, é suportado por essas colunas magníficas, de maneira a permitir a circulação do ar por debaixo dele. A arte orna isso com essa primeira linha ogival muito bonita, e embaixo com aqueles outros arcos, ficando o palácio, por assim dizer, suspenso no ar.

Chamo a atenção para o que há de bem pensado em cada detalhe dessa fachada. Ela ficaria monótona se não houvesse, bem no meio, aquela porta dando para um terraço. Mas se existisse ali mais uma ogiva o palácio se tornaria insuportável. Para aquela porta, aquele terraço tem exatamente o tamanho que deve ter para completar bem e levemente uma das maravilhas do universo, o Palácio dos Doges.

Viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno

Imaginem-se sentados em gôndolas e seguindo na direção dessa praça que se abre mais para o fundo e tem uma torre. Percebe-se, pelas cúpulas, que para essa praça dá também uma igreja, e existe depois outro palácio. Mas há uma parte da praça que dá diretamente para o mar. É o desembarcadouro para as pessoas que descem, um cais. Há cais ao longo de toda essa colunata, a fim de facilitar ao máximo o deslocamento da população.

Notem como existem ali duas colunas. Em uma delas há uma estátua de São Teodoro esmagando o dragão; na outra, o leão alado, emblema de Veneza. No intervalo entre as duas colunas havia um outro “cais” de um gênero muito diverso. Nele alguns homens empreendiam uma viagem perto da qual as nossas viagens contemporâneas são zero, e até mesmo os homens que foram à Lua não são nada em comparação com os que fazem essa viagem, porque é a viagem que conduz ao Céu ou ao Inferno… Ali eram executados, em troncos especialmente levados para a cerimônia, os condenados à morte.

Lugar lindo, encantador, mas é um dos traços de Veneza. Ela é festiva, mas tem qualquer coisa no fundo de muito grave e até de um tanto melancólico, sem o qual Veneza seria uma banalidade.

Uma renda de pedra

Ali vemos se levantar o campanário, os sinos que servem à catedral. Uma construção originalíssima que destoa do branco de tudo quanto está edificado ao redor. Entretanto, possui também a parte alta toda branca,  com um cone muito bonito em cima, do qual cada triângulo é emoldurado por uma lista branca. Esta torre é do século XX. A original, por questões geológicas, de repente ruiu. Era então Papa São Pio X, que fora Patriarca de Veneza, e impulsionou a construção de uma torre absolutamente idêntica àquela que havia. De maneira que se toma essa como a torre antiga.

Examinem a cor desse mar. Quem a define? É verde, azul? Entra aí outro colorido além do verde e do azul? Também não se sabe. Essa multidão de gôndolas dá um ar festivo, de alegria e de vida, que completa o panorama.

Numa outra fotografia vê-se de perto um pouco daquela verdadeira renda de pedra. No terraço de pedra branca, cada coluna dá a impressão de uma chave, dentro da qual há uma espécie de trevo, cujas folhas têm o desenho esquemático e imaginário de um trevo de quatro, dentro de círculos. Isso seria a orelha da chave; e, embaixo, um pedaço de balcão seria a lingueta da chave. Mas tudo é feito de tal maneira que, encostada uma chave na outra, se têm ogivas. E o ogival aparece aí numa das suas mais belas manifestações.

Um teto que parece levantar voo

Notem a simplicidade de linhas com que a fachada da Catedral de São Marcos é construída. São cinco arcos: dois de cada lado e, no meio, um arco um tanto maior, que interrompe um pouco o curso do balaústre, do corrimão de um terraço que está em cima. De maneira que aquilo serve de teto para o átrio da igreja e também de terraço para se passear em cima. Mais para cima encontram-se ogivas muito abertas, que conservam seu parentesco com a ogiva gótica comum, pelo fato de terminarem naquela ponta reunindo harmonicamente dois extremos, num movimento que tem um resto de ogival. E cada ogiva, feita de uma pedra branca linda, serve de proteção, de teto para uma bela cena em mosaico, com fundo dourado, representando fatos da vida de Nosso Senhor.

Faço notar essas pontas entre arcada e arcada. Dão um caráter de leveza enorme ao teto. Tem-se a impressão de que o teto está para levantar voo. Vemos aí, mais uma vez, traduzir-se aquele anseio do homem para voar. Considerem como cada ponta dessas é bem trabalhada, e como a moldura que circunda cada arco da arcada superior é, também ela, toda eriçada de pequenas pontas.

Parecem, assim, as asas de inúmeras pombas que estão se abrindo para voarem levando consigo, pelos ares, a catedral mil vezes famosa. É uma verdadeira maravilha!

O charme é o aliado natural da grandeza

Chamo a atenção também para um detalhe que, analisado depois de ser percebido, chega a desconcertar um pouco. Mas, enfim, isso é assim e me agrada enormemente. Em cada arco desses há uma portinha, mas nenhuma delas está bem no centro em relação ao arco inferior. Com a mania do igualitário e do decimal que se espalhou pelo mundo no século XIX, os arquitetos, em sua maioria, se fossem construir um monumento como esse, não teriam talento para isso nem de longe. Poriam essa portinha bem no centro de cada arco.

Imaginem que um dedo malfazejo empurrasse essas portinhas bem para o centro. Que monotonia! Foi empregada uma forma de talento por onde a dessimetria dessas portinhas talvez passe despercebidas a muitos. Isso se chama propriamente gênio. Tem algo em comum com o charme, do qual diz o francês: “le charme, plus beau que la beauté” – o charme, mais belo que a própria beleza.

A Catedral de São Marcos está cheia de charmes assim.

O charme está também nessas portinhas… Mas o que não é charme aqui? Só não é charme o que é grandeza. Entretanto, o charme é o aliado natural da grandeza; porque a grandeza sem charme fica pesadona, e o charme sem grandeza torna-se frívolo.

Referi-me à grandeza. Procurem ver na cúpula, atrás, a grandeza, a magnificência. É espantosa! Ela seria muito pesada se não fosse tudo isso descrito anteriormente. Daria a impressão de um panelão colocado ali. Mas olhem a forma da cúpula, a cruz no alto, o jogo de várias pequenas cúpulas, e terão propriamente o charme. É a incomparável Catedral de São Marcos.

Desforra da feiura, da hediondez e da trivialidade contemporâneas

Os venezianos do tempo das palafitas(1) não percebiam o que ia sair do que eles faziam. Mas pode-se supor que já tivessem uma certa propensão para isso, à qual o Batismo deu a realidade, o “élan”, de maneira que saísse o que nós estamos contemplando aqui.

A julgar pela afirmação de São Luís Maria Grignion de Montfort de que os Santos do Reino de Maria vão ser tais que, comparados aos do passado, serão como cedros do Líbano em relação a arbustos(2), a medida de beleza, de verdade e de bem que toda civilização alcança é dada pela medida dos Santos que nela florescem.

Esse princípio, por exemplo, o encontramos subjacente em todas as reflexões que fiz sobre a gruta de Subiaco e São Bento(3).

Mas creio que em nossas almas há um desejo de uma desforra da feiura, da hediondez, da trivialidade contemporâneas. E esse desejo faz de nós os “palafíticos” do Reino de Maria. Contudo, enquanto não se der o Grand Retour(4), não vierem os castigos previstos em Fátima, e tudo isso não for varrido e limpo, quase não conseguimos entrever as belezas vindouras. Entretanto, no fundo de nossas almas existe esse anseio que nos faz discernir a potencialidade para o maravilhoso de cem coisas que conhecemos, mas que ainda não são maravilhosas.

Para isso, cuidemos de ser santos e de ir vivendo. Pelo curso natural do tempo e da idade, muitos assistirão ainda a todas essas maravilhas sobre a face da Terra. Outros as verão antecipadamente – coisa muito melhor –, pois serão chamados por Deus a contemplá-Lo face a face, no Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/12/1988)

1) Cf. Revista Dr. Plinio n. 246, p. 33.
2) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Cap.
I, art. 2, n. 47.
3) Cf. Revista Dr. Plinio n. 244, p. 27.
4) No início da década de 1940, houve na França extraordinário
incremento do espírito religioso, quando das peregrinações
de quatro imagens de Nossa Senhora de Boulogne. Tal movimento
espiritual foi denominado de “grand retour”, para indicar
o imenso retorno daquele país a seu antigo e autêntico
fervor, então esmaecido. Ao tomar conhecimento desses fatos,
Dr. Plinio começou a empregar a expressão não apenas
no sentido de “grande retorno”, mas de uma torrente avassaladora
de graças que, através da Virgem Santíssima, Deus
concederá ao mundo para a implantação do Reino de Maria.

Uma devoção de luta!

Nossa Senhora do Rosário: a invocação é lindíssima!

O Rosário faz de Maria Santíssima a grande fonte de inspiração de nossa meditação e o alvo imediato de nossa oração durante a meditação.

Por causa dessa focalização muito especial de Nossa Senhora, o Rosário é a devoção marial por excelência.

Foi revelada pela Santíssima Virgem a São Domingos de Gusmão, que estava lutando contra uma “lepra” que infectava o Sul da França, com penetrações no litoral mediterrâneo da Espanha: a heresia albigense.

Para vencer esta heresia, Nossa Senhora revelou o Rosário que ficou, assim, o símbolo da alma ortodoxa e devota d’Ela.

Aquilo que matou o prenúncio da Revolução, adiando durante alguns séculos a eclosão da Revolução protestante, é indicado pela Mãe de Deus para o adiamento do fim do mundo e para obtermos a nossa própria fidelidade.

O Santo Rosário é, pois, uma devoção de luta!

Estamos numa época de luta. Peçamos a Nossa Senhora que faça de nós lutadores inteiramente d’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/10/1966 e 12/4/1985)

Guerreiros na grande luta que se aproxima

Meu Santo Anjo da Guarda, sei que dentro dos planos divinos deveis, pelos desígnios de Nossa Senhora, exercer especial papel na realização de minha vocação. Vós, com todos os espíritos celestes, possuís uma missão altíssima na luta contra a Revolução. Dirijo-me a todos vós tendo presente a vinculação que estas circunstâncias estabelecem honrosamente de mim para convosco.

Em nome desse vínculo eu vos peço: Obtende da Rainha do Céu que vossa ação se intensifique e tome toda a magnitude proporcionada com minhas debilidades, infidelidades, fraquezas, com meu desejo de servir inteiramente a Causa da Igreja Católica e da Civilização Cristã.

Eu vos peço, portanto, que intervenhais quanto antes sobre as pessoas e os acontecimentos de maneira que, libertos da ação do demônio, a qual hoje atingiu um auge, possamos pertencer-vos inteiramente e ser vossos guerreiros na grande luta que se aproxima.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 4/12/1980)

O convívio dos Anjos

A iconografia de Anjos da Renascença e do barroco, bem como certas imagens muito difundidas no século passado não representam autenticamente os espíritos angélicos; os da Idade Média e os de Fra Angélico exprimem a realidade. Os Anjos estão dispostos numa hierarquia, em que os superiores transmitem aos inferiores “jornais falados” a respeito do que viram em Deus.

 

Ao tratar sobre os Anjos, devemos antes estabelecer alguns princípios que nos ajudarão a nos aprofundarmos no assunto.

Mosteiro de Saint-Michel

O primeiro princípio que convém lembrar é o seguinte: a Providência está permitindo ao demônio ter um arrojo e uma extensão de ação como jamais se viu ao longo da História. Nós podemos ter as mais variadas impressões a respeito do passado, a História narra as ações mais estranhas, mais censuráveis, mais condenáveis. Entretanto, quando comparamos essas ações a algumas que se dão no mundo contemporâneo, vemos que o passado era simplesmente diáfano e encantador, mesmo em seus aspectos mais censuráveis, em comparação com os lados reprováveis do presente.

Há dois mil anos a Igreja cultua os santos Anjos e, de quando em quando, eles aparecem e dão de si alguma manifestação. Recordemos o Mosteiro de Saint-Michel, na França, o qual, visto no seu total, é como que a fotografia, em pedra, de um espírito angélico.

Aquela ponta que se ergue e depois a abadia com suas várias construções, junto àquele mar variado, ora mais mar do que terra, ora mais terra do que mar, às vezes restos de poça de mar no meio de braços de terra que vão secando e emergindo no meio daquilo tudo; e depois se percebe um vento uivando e silvando na parte do mar que é sempre mar. No meio de tudo isto o Mosteiro de Saint-Michel de pé, solene, tranquilo e firme, agarrado e dominando a rocha, mostrando aos mares a inanidade de seus movimentos e com a flecha apontada para o céu.

Como o espírito humano conhece bem por meio do contraste, vamos tomar certas noções comuns, correntes, pouco precisas e infelizmente um tanto infantis a respeito dos Anjos presentes na mentalidade de todo mundo — oriundas de uma apresentação muito sumária do tema — e transpô-las para o que imaginamos de um Anjo.

Com isso trataremos de ter alguma ideia daqueles Anjos cuja vinda e intervenção nós esperamos. Fica assim indicada a nossa meta, e nossas almas, ao menos por uns instantes, apontarão para essa hora da vinda deles como a torre do sino do Monte Saint-Michel.

Anjo gorducho e despreocupado…

Quais são as ideias que há a respeito dos Anjos? A criança forma a noção de que as figuras de Anjo que ela recebe correspondem às ideias que os pais — e também o vigário — têm do Anjo. Tanto mais que a criança sabe de um modo instintivo e confuso que, em última análise, o pai e a mãe conferem com o vigário as ideias da Religião. De maneira que toda estampa, todo medalhão, toda figura que representa um Anjo, a criança julga mais ou menos subconscientemente que significa o ensinamento da Igreja Católica sobre o Anjo.

Então devemos nos reportar à estatuária, às estampas, às coisas habituais a respeito dos Anjos — e que não são muitas. Podemos cogitar um pouquinho também nos magníficos Anjos da Idade Média, passando muito rapidamente pelos Anjos do barroco. Consideremos, em primeiro lugar, como os Anjos eram apresentados na nossa infância.

Havia duas casas em São Paulo, ainda do centro velho, que vendiam relógios, algumas joias e objetos religiosos de luxo: a Joalheria Michel e a Casa Bento Loeb. Aquela imagem do Coração de Jesus que há em minha residência, por exemplo, foi comprada numa dessas lojas. Eu me lembro de que o fornecimento de artigos religiosos para crianças do meu tempo era encaminhado por essas duas casas. E eram, em geral, fábricas francesas que enviavam esses objetos para São Paulo.

Então, eu me recordo de um medalhão que representava um Anjo e me chamou muito a atenção. Era circular, bom para presentear a uma senhora que acabava de ter um filho, a fim de amarrar o medalhão na cúpula do berço; para conceder a uma criancinha de três, quatro, cinco anos que faz aniversário; próprio também para dar a uma criança um pouco mais velha que recebe a Primeira Comunhão. Nem me lembro mais se esse medalhão era meu ou de minha irmã ou de algum de meus primos. Sei que esse medalhão conviveu comigo. E no promíscuo da infância entre parentes, em que a propriedade individual existe confusamente e os objetos são trocados, passam da gaveta de um para a mão do outro, nesse turbilhão tenho a impressão de que isso acabou sendo meu, mas não estou certo.

Era um Anjo tipo, ainda, “Belle Époque”(1): gorducho, com a face cheia, cabelos ligeiramente ondeados, braços bem roliços, trançados, e uma cara de inteira tranquilidade, debruçado sobre algo que era como que a base do medalhão, tendendo um pouco para o tédio, incapaz e não desejoso de qualquer esforço. Como quem olha de um terraço para um ponto vago, mas que não está muito interessado na cena que se passa embaixo e diz: “A minha batalha eu já travei e agora estou aqui gozando; você se arranje como puder!”

Lembro-me de que eu olhava para o Anjo e me vinha uma ligeira perturbação ao espírito, no seguinte sentido: “Se um Anjo é assim e conhecesse bem o interior de sua alma, ele discordaria de você; porque você tem a respeito do Anjo umas ideias que esta imagem não simboliza. Logo, ou essas ideias são contra a realidade do que é um Anjo e você está errado, ou elas são a favor dessa realidade; mas então o Anjo está errado e, portanto, alguma coisa não acerta bem nisto.” A saída era, naturalmente: “Eu vou procurar”. E olhava, olhava, olhava para ver se encontrava no Anjo alguma coisa que tivesse relação com isso.

…ou sentado sobre uma nuvem e tocando harpa

Então, uma primeira ideia a respeito dos Anjos: vida realizada, sem futuro, numa eternidade sem grandes atrativos, um certo fundo de tédio. Esforço, não! Mas outros quadros, outras coisas de uma arte religiosa que já caminhava a passos largos para sua decadência, afirmavam isso.

Por exemplo, quadro clássico, tantas vezes comentado entre nós: Anjos sentados em cima de nuvens, sobre um céu azul, tocando harpa. Quando acaba de tocar a harpa? Como é que essa nuvem não afunda?

E, no total, tem-se a impressão de que eles eram pintados com uma cara animada, mas à maneira de pessoas muito bem educadas que estavam atravessando uma fase de tédio, com ar distraído, mas que no fundo eles estavam se aborrecendo…

Por outro lado, há a ideia reta, insinuada, de que eles são de uma natureza inteiramente superior à nossa, apresentados em carne e osso apenas porque a arte não pode pintar o puro espírito, mas gozam da presença de Deus e da familiaridade nos inefáveis do Altíssimo e são muito bem intencionados, muito bem dispostos em relação aos homens. Prontos a ajudar, a socorrer.

Tornei-me adulto e as imagens de Anjos foram se repetindo no mesmo gênero. Eu me lembro de uma estampa impressa, bastante popular colocada no parlatório de um convento que frequentei muito, representando uma criancinha atravessando uma ponte, e o Anjo da Guarda, por detrás, tomando atitudes para ela não cair da ponte, com uma solicitude, um desvelo extraordinário.

Eu olhava e pensava: “Essa imagem insinua, sem afirmar explicitamente, que o Anjo se preocupa muito com que a criança não quebre a perna, mas para que ela não peque e ame de fato a Deus, não estou vendo preocupação. É um pouco securitário. Onde está o zelo do Anjo pela causa de Deus?” Não formulava isto à maneira de censura, mas de perplexidade. Era algo que eu não encontrava. Então, suspendia o meu juízo e dizia: “Não, depois veremos”.

Os Anjos de Fra Angélico

Foi algo em minha vida meu encontro com os Anjos da Idade Média e, sobretudo, com os de Fra Angélico. E refleti: “Aqui há algo com outro pensamento, outra altura, outra classe, diferente daqueles Anjos que eu vira, de uma iconografia decadente. Ora, como Fra Angélico é beato, ele fez tudo direito”.

Mas aí vinha outra perplexidade: os Anjos de Fra Angélico, os de que eu me lembro, estão sempre na bem-aventurança eterna, expressa, é verdade, de um modo perfeitamente delicado, nobre, sobrenatural, de tocar a alma. E foi esse o aspecto dos Anjos que ele procurou e nos apresentou. Eu pus em uma de nossas salas mais nobres quatro cópias de Anjos pintados por ele, e me regozijo em estarem lá. Aquilo corresponde à imagem que eu teria a respeito de um Anjo.

Mas só naquela postura? Não há outras? Não reluzem nos Anjos também outras perfeições que a minha alma procura há tanto tempo? Como são essas perfeições?

Apenas uma ideia me ficou no espírito: Por que Fra Angélico os pinta assim? Ele mesmo viveu num período em que a Idade Média já ia caminhando para seu declínio, e o heroísmo dos guerreiros medievais tinha qualquer resto ainda da ferocidade selvagem. A Europa ia afundar, dentro em breve, no que se chama anarquia feudal, quer dizer, a explosão da revolta dos senhores contra seus reis, dos senhores menores contra os senhores maiores e um mata-mata fenomenal de uns contra os outros, em parte fermento de ferocidade revolucionária que começava a crepitar, e de outro lado uma disposição de alma para a luta que tinha sido levada além do meridiano comum.

Naturalmente se compreende que Fra Angélico não poderia, a uma humanidade assim, apontar Anjos em plena ação de batalha, pois acabaria por incitar aquilo que não era para estimular. Naquele tempo, os Anjos deveriam inspirar mansidão, ser distensivos, convidando à doçura. Assim como o violino de São Francisco Solano tocado para os índios do Peru os tranquilizava, e se compreende que o Santo não lhes ensinasse marchas guerreiras, pois eles já tinham aquele borbulhar em excesso. Entende-se, assim, que Fra Angélico tenha pintado os admirabilíssimos Anjos dele.

Anjos da Renascença

Às vezes olhamos pinturas, esculturas de Anjos da Renascença — e do Barroco, continuador em alguns sentidos da Renascença — e não sabemos se representam cupidos pagãos… Lembro-me do caso de um grande pintor da Renascença, a quem um romano famoso encomendou um São João Batista increpando os fariseus. O artista disse que possuía um quase concluído e poderia entregá-lo em breve, digamos em dez dias. De fato, passado esse prazo, o quadro estava terminado.

Como se explica que um quadro, que leva muito tempo para pintar ­— não devido às pinceladas, mas para ir excogitando cada traço, pois é uma verdadeira composição —, estava pronto em dez dias?

Ele tinha pintado um Baco, o deus indigno do vinho e da bebedeira. Como não encontrou comprador, ele pintou por cima uma pele de camelo para cobrir um pouquinho o Baco e, com a mesma expressão de fisionomia do deus da bebedeira, ele o apresentou como sendo São João Batista.

Compreende-se que Anjos concebidos nessa escola de arte muito facilmente não tenham nada de católico. E são uma deformação do conceito de Anjo.

Então, devemos pôr de lado essas noções, conservar na retina os Anjos de Fra Angélico e perguntar: Se um desses Anjos se zangasse, que expressão de fisionomia tomaria? Colocado em presença do mal, da Revolução, que aspecto teria?

Isso nos poderia dar alguma ideia de como seria um Anjo, caso nós o víssemos. Assim preparamos nosso espírito para a cogitação sobre como deve ser um Anjo.

O corpo impõe limitações ao homem

O que nos diz a Doutrina Católica sobre os Anjos?

O homem tem misérias de toda ordem e, quando vigia muito sobre si, ele as mantém acorrentadas e presas; mas só se livrará delas na ressurreição dos mortos quando, tendo ido para o Céu, estiver com a sua integridade perfeitamente em ordem e os efeitos do pecado original sobre ele tiverem desaparecido completamente, e o homem só se inclinar para o bem. Então não estará mais dividido. Realmente o homem é dividido e, por causa disso, hesita, duvida. Ora é propenso a querer uma coisa, ora a desejar outra; ele precisa, quase, de coisas contrárias para encontrar seu equilíbrio.

Eu estou numa cadeira com dois braços e um encosto. O que isto representa de limitação humana! Preciso ora me apoiar sobre a direita, ora sobre a esquerda, ora nas costas; necessito apoio variado o tempo inteiro. É uma necessidade do corpo que simboliza as hesitações, as limitações e as misérias da alma humana.

Pior. Se o homem apenas hesitasse… Às vezes ele hesita e erra, duvida e peca. E às vezes nem duvida, mas delibera e peca! Até lá chegam as coisas!

Diante dessa situação podemos fazer a comparação com o Anjo. Este, por não estar ligado à matéria, não tem as limitações que a matéria nos impõe. Quanto a carne limita e condiciona o homem: bons e maus humores, nervos, etc.!

Evidentemente, a carne não é má; ela é boa, sendo uma criatura de Deus. “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Está tudo dito! Qualquer crítica que se faça da carne expira na entrada, ao pé do monte desta afirmação. Portanto, estou longe de falar contra a carne, eu a respeito.

“Não desprezes a tua própria carne”

Vem-me à memória o seguinte fato. Havia antigamente na região central de São Paulo muitos salões de engraxate, e fui a um localizado na Rua da Quitanda. Enquanto o rapaz engraxava meus sapatos, eu estava distraído, pensando em outras coisas. Não sei se eu não punha o pé no lugar adequado, mas em certo momento notei as duas mãozonas do engraxate que pegavam o meu pé e o colocavam sobre sua perna, para ele engraxar o sapato ali, sob seu controle. Quando percebi que meu pé pousava sobre a perna do engraxate, tive um sobressalto e pensei: “Não se faz isso com a carne humana! Trata-se de um simples engraxate, mas é um homem! E o respeito à natureza humana deve levar-me a tirar o pé de cima da perna dele”.

Olhei para o engraxate e percebi que seria um duelo, porque ele queria terminar o serviço e não estava pensando em sua perna, mas nos sapatos que precisava engraxar. Era uma luta que eu não venceria, pois ele agarrava meu pé. Então refleti: “Bem, é por conta dele; se o engraxate me obriga, ele está me desrespeitando e não sou eu que estou pisando nele. Ele quer ser pisado”.

Mas fiquei com esta pergunta no espírito: Qual é o princípio em virtude do qual essa minha reação foi reta? Algum tempo depois me chegou às mãos, por circunstâncias fortuitas, uma citação da Escritura: “Não desprezes a tua própria carne” (Is 58,7). Eu disse: “Olha lá! Está aí justificada minha reação no caso do engraxate!”

Eu não poderia desprezar a carne humana; não era minha, mas carne da qual também eu sou feito. Não posso desprezar a minha própria carne. Por isso não tenho o direito de pisar noutro homem, de tal maneira nós devemos respeito à carne.

A graça prepara a alma para ser o reflexo de Deus

Além da carne, há um outro fator que condiciona o espírito humano: é a graça. Quer dizer, é uma participação criada na vida divina que dá a cada um de nós lampejos, pensamentos, reflexões, volições que Deus sopra em nossa alma e por onde Ele, com muita delicadeza, prepara a alma humana para ser o reflexo d’Ele mesmo.

Assim, a graça respeita a nossa fragilidade, as nossas limitações, ama essa natureza humana composta de alma e corpo que seria a natureza humana de Nosso Senhor e a de Nossa Senhora, Rainha do Céu e da Terra. Deus, por meio da graça, de um lado, e do corpo, de outro lado, faz com que a alma, se ela se deixa conduzir, se eleve a considerações altas, pense coisas nobres, sua vontade tome força; o homem pode tornar-se um santo, ainda que muito pouco inteligente.

Houve um santo famoso por sua carência de inteligência, São José de Cupertino, que viveu na Itália. Ele era muito pouco inteligente, mas dava conselhos tão acertados que havia peregrinação para o local onde ele morava. E milagres ele praticava a jorro contínuo. É a graça superando ou compensando o que a carne não dava e fazendo dele esta maravilha de Deus: um homem de grandes horizontes, mas burro!

Era preciso que isto existisse na ordem do criado, e assim compreendêssemos bem o que é a limitação, a fragilidade e o esplendor do homem.

Alguém dirá: “Limitação, fragilidade, Dr. Plinio, eu vejo; esplendor não estou vendo…”

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação, e por isso Ele tomou a condição daquele tipo de seres que reúne as duas pontas da Criação. O homem, enquanto ser espiritual, toca no Anjo, e enquanto ser material tange no animal, na planta e na pedra. Ele é um resumo de tudo quanto Deus fez.

Quem é capaz de ver o mar sem se enlevar especialmente com aquela fímbria onde ele parece tocar no céu? Ora, este é o homem! É um horizonte composto.

Não deixa de ser verdade que todas as coisas brilham por causa do Sol, e se o homem é o conjunto, o que há neste de mais nobre, de mais luminoso, de mais belo é a alma humana, elemento espiritual que nos assemelha aos Anjos. Entretanto, estes são de tal maneira que cada Anjo é, por natureza, distinto de outro. Puros espíritos e tão desiguais entre si que são como espécies ou gêneros diferentes.

Jornal falado dos Anjos superiores aos inferiores

Os Anjos estão dispostos perpendicularmente em hierarquia. Cada superior vê mais, quer com mais força, ama com mais ardor, combate com mais eficácia, seu louvor tem mais ressonância, sua presença mais calor, sua missão mais glória do que o inferior.

O gráfico verdadeiro dos Anjos não seria uma pirâmide que encosta sua base noutra pirâmide e assim por diante. A perspectiva seria um fio de linha luminoso de puros espíritos que chegariam até o lugar aonde ninguém chega, nem eles mesmos: o trono de Deus.

E no ápice — mas tão mais no ápice que nem sei o que dizer! — está Nossa Senhora. Nosso Senhor Jesus Cristo é a segunda Pessoa da Santíssima Trindade encarnada. Sua natureza humana está ligada à divina pela união hipostática. Nossa Senhora é mera criatura. Ela está num píncaro em relação aos Anjos, os quais cantam enlevados sem poder entender inteiramente.

Mas eles, ao longo deste fio esplendoroso, têm secções. Uma é a dos Serafins, outra dos Querubins, depois dos Tronos, das Dominações, das Potestades, das Virtudes, dos Principados, dos Arcanjos e dos Anjos. Estes são denominadores comuns entre os quais há hierarquia. Cada Anjo vê Deus face a face, entretanto os mais elevados contam aos inferiores o jornal falado sobre o Onipotente que não foi possível eles verem. Então o mais alto diz ao inferior, com amor e solicitude: “Príncipe, meu irmão, vi tal coisa e tal outra”. E o que recebe a notícia conta ao colocado abaixo: “A ti, Príncipe, meu irmão…”, e lá vai a mensagem, a informação celeste. Cada um que fala com o mais baixo conta o que os Anjos mais elevados lhe disseram e o que ele próprio viu de Deus.

De maneira que quando chega à base — quanto acima de nós! —, esta recebe uma caudal de comunicações, de incitamentos, de estímulos, de nobilitações, e canta a glória das hierarquias superiores como modo de cantar a Deus. E todo afeto, todo respeito que desce, sobe à maneira de ação de graças e louvor.

É o eterno convívio entre os Anjos em que, apesar de ver Deus face a face, cada Anjo é razão de uma alegria enorme para outro, e a corte angélica nada nas suas alegrias eternas.

Viver é sentir saudades dos píncaros

Devemos lembrar de passagem que existem vagas nessa corte, e serão almas de criaturas humanas que preencherão esses lugares. E há, por exemplo, a tese indizivelmente simpática de que São José faz parte do coro dos Serafins. Ele está no mais alto, mais alto, mais alto que possa existir, pois é o esposo da Santíssima Virgem!

Assim, esses vagos são preenchidos por gente da plebe da Criação enobrecida pelos planos de Deus, pela Igreja Católica e pela graça. E na Terra, ao longo do tempo, aqueles para isso designados, talvez todos os homens, não se sabe bem como é essa distribuição, estão sendo promovidos para obterem o trono que os espera no Céu, segundo os planos de Deus.

Nunca percebi em concreto nada que me desse a impressão mais especial de um Anjo me ajudando, mas sei que eles auxiliam e lhes agradeço com todas as profundidades que em minha alma haver possa. Tenho a certeza de que os nossos Anjos da Guarda têm por especial preocupação elevar nossas almas para o desejo das coisas celestes. Não é o mero anseio de levar boa vida no Céu, mas um desejo de conhecer as coisas celestes até mesmo independentes da felicidade que o Paraíso concede. De maneira que Santa Teresa — bem espanhola na sua santidade — dizia a Deus: “Ainda que não houvesse o Céu eu Te amaria, e ainda que não houvesse o Inferno eu Te temeria!” É assim que devemos conceber o Paraíso.

Para considerarmos bem as coisas do Céu, precisamos observar as coisas da Terra, criadas por Deus à maneira do Céu. Antes de tudo a Igreja Católica e depois os vários seres materiais.

É mister termos um feitio de alma pelo qual, por um seletivo bem realizado, conhecemos o que devemos conhecer olhando sempre para o que de mais alto aquilo conduz. Este é o movimento de nossa alma para o Céu.

Tenho certeza de que o Anjo da Guarda de cada um nos ajuda especialmente nisso.

Uma alma “angeliforme”, consoante com seu Anjo da Guarda, é aquela que em cada circunstância procura o que há de mais elevado, e vive à procura do mais elevado.

Assim, devemos entender que nossos Anjos da Guarda querem isso de nós, e que só formamos um com eles se toda nossa vida for orientada ao mais alto. Para a alma ser assim é evidentemente necessária a ajuda dos Anjos. E eu agradeço do fundo da alma ao meu Anjo da Guarda, a Nossa Senhora e a Deus Nosso Senhor, de Quem parte todo o bem que a Santíssima Virgem distribui. Viver não é comer, beber e dormir, passear, vegetar. Viver é sentir essas saudades dos píncaros.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/12/1980)

 

1) Do francês: Bela Época. Período entre 1871 e 1914, durante o qual a Europa experimentou profundas transformações culturais, dentro de um clima de alegria e brilho social. Ver Dr. Plinio n. 172, p. 29-31.

 

Santa Teresinha: Vítima Expiatória

Dr. Plinio fechou seus olhos para esta terra em 3 de outubro. Pelo antigo calendário litúrgico, nessa data caía também a festa de Santa Teresinha (atualmente comemorada no dia 1º do mesmo mês). Desde a sua mocidade Dr. Plinio foi grande devoto dessa insigne carmelita francesa. O presente artigo para o “Legionário”, em 1947, deu-lhe ocasião de expressar sua profunda veneração por ela.

 

Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer,  de nossos dias: daqui a pouco celebraremos o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós, são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos 24 anos. Felizmente, a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar luminoso e vasto,  porte firme, semblante resoluto, sua fisionomia deixa transparecer qualidades que parecem opostas entre si — ao menos segundo a mentalidade liberal —, como a bondade e a firmeza, a distinção e a simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si, e a mais atraente naturalidade.

Fisionomia e biografia deformadas

Se não possuíssemos fotografias da santa rosa do carmelo, que ideia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens: doce de uma doçura sentimental e quase romântica, boa de uma bondade puramente humana e sem o menor sopro de sobrenatural, enfim, uma jovem de boas inclinações, se bem que exageradamente sensível… nunca uma santa, uma autêntica e genuína santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja de Deus Verdadeiro. Se não toda a iconografia, pelo menos certa iconografia, sem alterar os traços da Santa, lhe alterou contudo a fisionomia.

O mesmo se dá com sua biografia. Certa literatura sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente certos episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma mesma direção: ocultar  o sentido profundo, admirável, heroico e imortal da vida da imortal Santinha.

Os tesouros da Redenção

No 50º aniversário de sua morte, alguém que muito e muito lhe deve procura saldar com respeitoso amor esta dívida, fazendo como que um comentário doutrinário à sua vida.

O pecado original cometido por Adão, e os pecados posteriormente praticados pela humanidade, constituem ofensas a Deus. Para resgatar essas ofensas, e aplacar a ira divina, era preciso que a  humanidade expiasse.

Esta expiação era como que o pagamento que compensasse a falta cometida. Há nisto de certo modo uma restituição. Pelo pecado, o homem como que se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar estes pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.

Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas materiais. É um tesouro moral e espiritual, como exige a natureza moral das faltas que se trata de resgatar. Este tesouro se compõe antes de tudo, e essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus, e produziram a Redenção da  humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma simples gota do precioso sangue bastaria para redimir a humanidade inteira. Contudo, por desígnios insondáveis da Providência Divina, de fato a Redenção não se operou no  momento em que se verteu para nós o primeiro sangue do Redentor, mas só quando Ele expirou por nós na Cruz, depois de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa de Deus, Ele não se contenta com o sacrifício super-abundantemente suficiente do Redentor.

A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da Redenção está concluída. Mas, para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para que as almas transviadas aproveitem o  Sacrifício do Homem-Deus, é necessário que também nós alcancemos méritos.

O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas. Uma infinitamente preciosa e super-abundantemente eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo. Outra pequeníssima, desvaliosíssima, insignificante: é a dos méritos dos homens, adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas — mistério de Deus — em si mesma perfeitamente dispensável, esta parte é indispensável, porque Deus o quis: “Quem te criou sem ti, não te salvará sem ti”, diz Santo Agostinho. Deus nos criou sem nossa cooperação, mas, para nos salvar, Ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também cooperação na prece e no sacrifício.

Sem os méritos dos homens, o tesouro da Igreja não estará completo, e a humanidade não aproveitará inteiramente os frutos da salvação.

A necessidade do auxílio da graça divina Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o  papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz do menor ato de virtude cristã sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e pela graça de Deus ajudado.

Em outros termos, a primeira ideia, o primeiro impulso, toda a realização do ato de virtude sobrenatural se faz com o auxílio da graça. E isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã — nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria — sem o auxílio sobrenatural da graça. Tudo isto é de Fé, e quem o negasse seria herege. Nossa  vontade coopera com a graça, e sem o concurso de nossa vontade não há virtude possível. Mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de praticar a virtude sobrenatural.

Ora, como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação. Todos os homens recebem graças suficientes para se salvar. Também isto é de Fé. Mas, de fato, pela maldade humana, que é imensa, muito poucos se salvariam só com a graça suficiente. É preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do livre arbítrio humano.

A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja. Mas, como vimos, esse tesouro se compõe de duas parcelas, uma das quais perfeita e imutável — a de Deus — e outra mutável e imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for deficiente, tanto menos abundantes serão as graças.

Quanto menos abundantes forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que esteja sempre cheio, de méritos produzidos pelos homens, o tesouro da Igreja. Os grandes pecadores são os filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo momento, no tesouro da Igreja, riquezas novas que substituam as que se empregam pelos pecadores.

As admiráveis vítimas expiatórias

Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos são supridos por novos lances de generosidade de Deus e
das almas santas, ou as graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.

Daí se deduz que nada mais necessário, para a dilatação da Igreja, do que enriquecer sempre e sempre seu tesouro sobrenatural com novos méritos. Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há, no jardim da Igreja, almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus, e a expiar pelos pecados dos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas.

Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que trabalham, muitos que rezam: mas quem tem a coragem de expiar?

Heroica missão de Santa Teresinha

Este é o sentido mais profundo da vocação dos Trapistas, das Franciscanas, Dominicanas e Carmelitas entre as quais floriu a suave e heroica Teresinha. Seu método foi especial. Praticando a conformidade plena com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que dela afastassem qualquer dor. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras qualquer mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida espiritual, plena submissão equivale a plena santificação.

Seu método se caracteriza ainda por outra nota importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se limitou apenas simplesmente às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos sacrifícios. Jamais a vontade própria. Jamais o cômodo, o deleitável. Sempre o contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei: cada pequeno ato consistia no amor de Deus com  que era feito.

E que amor meritoso! Santa Teresinha não tinha visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam por vezes tão amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz, sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito…

Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir? Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa Teresinha foi de nos mostrar uma via que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela nos auxilie a percorrer esta estrada real, que levará aos altares não apenas uma ou outra alma, mas legiões inteiras.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do“Legionário”, nº 790, de 28/9/47. Os subtítulos são nossos.)

Santa Teresinha do Menino Jesus

Eis que minha amargura transformou-se em paz. (Is 38,17)

“Ecce in pace amaritudo mea amarissima” (Is 38,17). Quem sabe vislumbrar através dos traços de uma fisionomia um estado de alma, não pode deixar de pensar que essas palavras mereceriam estar escritas ao pé desta fotografia, que nos mostra uma figura sorridente mas indizivelmente dolorosa.

O sorriso não procura esconder a dor, mas afirmar-se por um prodígio de virtude, de fidelidade à graça, apesar da dor. Os lábios sorriem só porque a vontade quer que eles sorriam, e a vontade o quer porque essa alma tem fé, e sabe que depois das provações e das trevas desta vida terá como prêmio Aquele que disse de Si: “Serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande” (Gen. 15,1).

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo”, n° 111, março de 1960)