São Martinho de Porres

Na Lima dos santos, brilhou a figura de São Martinho de Porres, misto de fidalgo e homem do povo, cujas virtudes esplendentes contribuíram para conferir à civilização peruana do seu tempo uma beleza e uma ordenação católicas até hoje insuperáveis. Ordenação e beleza que anseiam por reviver e traçar um futuro ainda mais glorioso que o passado.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 9/5/1994)
Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

Refulgente destruidor das heresias

Santo Alberto Magno refulgiu enquanto intelectual, contemplativo e homem de ação porque colocou acima de tudo a vida interior. Mereceu, assim, este elogio expresso num vitral da igreja dos dominicanos de Colônia: “Este santuário foi construído pelo Bispo Alberto, flor dos filósofos e dos sábios, modelo dos costumes, refulgente destruidor das heresias e flagelo dos maus.”

 

A respeito de Santo Alberto Magno, temos uma biografia muito interessante(1) sobre a qual pretendo tecer alguns comentários.

São Tomás de Aquino: o mais ilustre de seus discípulos

Alberto, o Grande, nasceu por volta de 1206, em Laurigen, na Baviera. Depois de uma educação cuidadosa, recebida em sua infância, foi estudar Direito em Pádua. Lá ele encontrou o Bem-aventurado Giordano, mestre geral dos Irmãos Pregadores, cujos conselhos o engajaram a entrar na família dominicana.

Logo se fez notar por sua terna e filial devoção para com Nossa Senhora, e pela fidelidade de sua observância monástica. Enviado a Colônia para completar os seus estudos, era tão aplicado que parecia ter penetrado todas as ciências humanas, mais do que nenhum de seus contemporâneos.

Julgado digno de ensinar, foi nomeado professor em Hildesheim, Friburgo, Ratisbona, Estrasburgo, enfim na Universidade de Paris, onde ele demonstrou o acordo existente entre a fé e a razão, as ciências pagãs e as ciências sacras. O mais ilustre de seus discípulos foi São Tomás de Aquino, que lhe devia suceder na Sorbonne.

Poderoso intelectual, grande contemplativo e homem de ação

Ele voltou a Colônia para dirigir os Capítulos Gerais de sua Ordem, foi nomeado Provincial na Alemanha, depois Bispo de Ratisbona. Lá ele se dedicou a seu rebanho e conservou seus hábitos de simplicidade religiosa. Mas ele renunciou três anos depois, em 1262. Desde então exerceu o ministério da pregação, agiu como árbitro e pacificador dos príncipes e dos bispos, assistiu ao II Concílio de Lyon e morreu em 1280. Por decreto de 16 de dezembro de 1931, Pio XII o inscreveu no número dos Santos e o nomeou Doutor da Igreja Universal.

Num vitral da igreja dos dominicanos de Colônia podiam-se ler, a partir do ano de 1300, as seguintes palavras: “Este santuário foi construído pelo Bispo Alberto, flor dos filósofos e dos sábios, modelo dos costumes, refulgente destruidor das heresias e flagelo dos maus. Ponde-o, Senhor, no número dos vossos santos.”

Ele tinha por natureza, segundo se diz, o instinto das grandes coisas. Assim como Salomão, ele implorou o dom da sabedoria, que une intimamente o homem a Deus, dilata as almas e leva para cima o espírito dos fiéis. E a sabedoria lhe comunicou o segredo de unir uma vida intelectual intensa, uma vida interior profunda e uma vida apostólica das mais frutíferas, porque ele foi ao mesmo tempo o iniciador de um poderoso movimento intelectual, um grande contemplativo e um homem de ação.

O essencial é a vida interior

A linha geral da vida de Santo Alberto Magno está bem expressa quando se diz que ele refulgiu ao mesmo tempo nesses três dons. Ele se manifesta, nessas condições, como uma daquelas grandes figuras da Idade Média, que são os construtores e consolidadores dessa era histórica, a quem Deus deu graças para se tornarem salientes em todas as coisas, de tal maneira que se ele tivesse feito só uma delas, por exemplo, simplesmente tivesse sido o intelectual que foi, já seria um homem imortal.

Além de intelectual, ele foi um grande religioso e um grande contemplativo. E, como Santo, também só por isso teria a imortalidade. Por outro lado, apenas como modelo de bispo ele teria também uma fama durável em sua pátria.

Por que a Providência estabelece a conjugação desses três dons, e faz alguns homens brilharem nessas três pistas ao mesmo tempo? É para dar a entender a seguinte verdade: O homem deve ser, primeiro, de vida interior, e depois as outras coisas. Mas quando ele escolhe ser, antes de tudo, homem de vida interior, de fato ele põe a mais importante das condições para, nos outros campos, ser o que deveria.

Santo Alberto Magno foi muito maior como intelectual porque tinha vida interior. De maneira tal que se ele simplesmente quisesse ser um grande intelectual, pela mera ambição da cultura, ele tinha vantagem em continuar a vida interior. Se apenas desejasse ser um homem de ação, pela mera vantagem de o ser, ele deveria continuar a vida interior. Porque a vida interior verdadeira, plena, faz o homem executar a vontade de Deus com toda a perfeição e dá à alma recursos que são, em parte, a plenitude de seus recursos naturais e, em parte, carismas e dons que o fazem centuplicar as suas possibilidades. De maneira que ele fica muito maior nas outras atividades porque exatamente naquele elemento essencial ele soube ser grande.

Isso me faz lembrar um dito de Dom Chautard, o famoso autor de A alma de todo apostolado, para um político francês anticlerical, Clemenceau. Este, sabendo que Dom Chautard estava envolto em mil atividades, perguntou-lhe o seguinte:

– Como é que o senhor consegue levar a cabo tantas atividades num dia de 24 horas? Respondeu Dom Chautard:

– O segredo é que além de fazer tudo quanto faço, eu ainda rezo o Rosário. Então, acrescentando essa ocupação, há tempo para todas as outras.

É um paradoxo, porque acrescentando deveria diminuir o tempo. Mas nisso que parece uma brincadeira há uma verdade profunda: se dermos a Deus todo o tempo que devemos dar, dedicando-nos à vida interior, a Divina Providência velará por nós e teremos tempo para tudo. Essa é a grande verdade que se desprende da vida de Santo Alberto Magno.

Um elogio que desapareceu completamente

Eu gostaria de analisar rapidamente esse lindo elogio a ele, escrito no vitral da igreja dos dominicanos de Colônia:

Este santuário foi construído pelo Bispo Alberto, flor dos filósofos e dos sábios, modelo dos costumes…

Coisas positivas, construtivas.

…refulgente destruidor das heresias e flagelo dos maus.

Quando é que hoje se elogia alguém por ser um refulgente destruidor das heresias ou flagelo dos maus? É verdadeiramente incrível como nós caímos, a tal ponto que esse elogio desapareceu completamente…                v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1966)

 

Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

 

Viver em Maria

Conhecer e admirar as excelsas virtudes de Nossa Senhora, tendo-A continuamente em vista como nossa Mãe e misericordiosa advogada, é o meio de penetrarmos nesse “paraíso de Deus” e “jardim fechado” da Trindade — como nos ensina São Luís Grignion de Montfort no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, aqui comentado por Dr. Plinio.

 

Na parte final de sua obra, São Luís Grignion enumera algumas práticas piedosas, interiores e exteriores, que o devoto de Nossa Senhora deveria cultivar para se unir ainda mais a Ela. Segundo o autor, seriam meios pelos quais podemos “viver em Maria” e “fazer todas as ações por, com e em Maria”.

Aquela em quem o Altíssimo colocou sua glória suprema

Leiamos São Luís:

O Espírito Santo, pela boca dos Santos Padres, chama também a Santíssima Virgem: 1º, a porta oriental, por onde o sumo sacerdote Jesus Cristo entra e vem ao mundo (cf. Ez 44, 2‑3); por ela entrou da primeira vez, e por ela virá da segunda; 2º, O santuário da Divindade, o reclinatório da Santíssima Trindade, o trono de Deus, a cidade de Deus, o altar de Deus, o templo de Deus, o mundo de Deus. Todos estes diferentes epítetos e louvores são verdadeiros em relação às diversas maravilhas e graças que o Altíssimo realizou em Maria. Oh! que riqueza! que glória! que prazer! que felicidade poder entrar e habitar em Maria, em quem o Altíssimo colocou o trono de sua glória suprema!

Mas quão difícil é a pecadores, como somos, alcançar a permissão e a capacidade e a luz para entrar em lugar tão alto e tão santo, guardado não por um querubim, como o antigo paraíso terrestre, mas pelo próprio Espírito Santo, que dele se tornou o Senhor absoluto e do qual diz: “Hortus conclusus soror mea sponsa, hortus conclusus, fons signatus” (Cant 4, 12). Maria é fechada; Maria é selada; os miseráveis filhos de Adão e Eva, expulsos do paraíso terrestre, só têm acesso a este outro paraíso por uma graça especial do Espírito Santo, a qual devem merecer (Tratado, nºs 262 e 263).

Ter sempre em vista as grandezas de Maria

Conforme se depreende da interpretação desses tópicos, a alma que considera as maravilhas operadas por Deus em Nossa Senhora, percebe que Ela se assemelha a uma catedral, um santuário fechado, um jardim no qual somente se pode ingressar com a ajuda do dom divino.

Que significa, pois, entrar em Nossa Senhora?

Penso eu que se trata, exatamente, de ter continuamente em vista essas grandezas incomparáveis de Maria, inclusive as grandezas inconcebíveis e imensuráveis de sua misericórdia, em primeiro lugar. Segundo, em agir como alguém que se sabe filho d’Ela e que procura desenvolver sua vida espiritual em função dessas grandezas da Mãe de Deus e nossa.

Mas, diz São Luís Grignion, essas riquezas são tais que um homem, com suas cogitações conspurcadas pelo pecado original e suas faltas atuais, não é capaz de se elevar à altura delas. Então, acrescenta o autor, para isso importa que tenhamos o auxílio de uma graça especial do Espírito Santo, a graça da escravidão de amor à Santíssima Virgem, pela qual a entrada nesse jardim magnífico nos é franqueada.

Maravilha insondável que preenche os espaços entre Ela e o fiel

Outro ponto a se considerar é como devemos desenvolver nossa vida espiritual em função dessas grandezas de Nossa Senhora.

Antes de tudo, como já se disse, nutrir uma entusiasmada admiração pelas perfeições de Maria Santíssima, procurando avivá-las na alma através de leituras de livros que no-las apresentam, e de modo eminente o próprio Tratado escrito por São Luís Grignion de Montfort.

Tendo noção dessas grandezas, nunca se dirigir a Nossa Senhora a não ser com um sumo respeito, uma suma veneração e uma suma confiança. Como a uma criatura super-excelsa, altíssima, a mais alta de todas as criaturas abaixo de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, porque a mais alta, também a mais benigna, a mais condescendente, a mais afável, a que mais desce até nós. Com efeito, sua grandeza é tal que preenche todos os espaços entre Ela e o resto da criação, tornando-A inteiramente acessível, amável, misericordiosa e condescendente para conosco. Ela é a mais disposta a perdoar, a mais disposta a atender, a que não se zanga nem se irrita nunca, a que nos quer sempre, por motivos elevadíssimos e invariáveis.

Estreita intimidade materna

Então, procuremos desenvolver nossa vida espiritual em função dessas verdades. Tenhamos a certeza de que, ao nos voltarmos para Nossa Senhora, estaremos levantando nossos olhos para  muito alto, como quem contempla um horizonte longínquo, mas, ao mesmo tempo, admiramos o que há de mais próximo a nós. Porque nada, em toda a Criação, nos é mais chegado do que Maria, que nos envolve com uma intimidade materna da qual só não se pode dizer que é infinita.

Em virtude desse vínculo estreitíssimo, a alma amará não apenas a grandeza de Nossa Senhora, mas tudo quanto dela é reflexo na criação: os monumentos que têm autêntica magnitude artística e cultural; o fulgor de um brilhante que lembra a pureza imaculada da Virgem; a coragem de um herói porque evoca a Rainha vitoriosa sobre o demônio, enfim, tudo quanto há de belo no mundo, espiritual ou material, tende a reforçar os laços de admiração e amor de uma alma com a Mãe de Deus.

Afetos inimagináveis

Contudo, a consideração dessas grandezas pode produzir na alma do devoto de Nossa Senhora um compreensível sentimento da própria pequenez: “Minha Mãe, sois tão formosa e admirável! E eu, quão pobre e miserável!”

Não nos deixemos abater por esse pensamento, e nos lembremos do vínculo maior estabelecido entre a misericórdia materna d’Ela e cada um de seus filhos: “Apesar de tudo, tenho uma mãe que do alto do Céu olha com bondade e tristeza para minhas lacunas e que deseja me corrigir. Se eu pudesse Lhe falar e vê-La no momento em que considera meus pecados, eu me desfaria de ternura e pesar. Pois eu veria que Ela, embora não sendo complacente com minhas faltas, olha-me com um afeto tão imenso que não posso medir”.

Trata-se de um afeto superior a todos os carinhos humanos aos quais estamos acostumados, porque procede do fato de Ela conhecer o próprio amor de Deus em relação a cada um de nós. Por assim dizer, Ela nos ama como nos ama o Criador, com um afeto que participa do amor que Ela mesma tem a Deus. Ou seja, um amor estável, profundo, completo. Por isso, Maria nos quer com uma benevolência que nenhuma infidelidade pode cansar nem fazer cessar. Nada é capaz de extinguir a vontade d’Ela de nos fazer bem. Pelo contrário, não deseja senão nos favorecer com benefícios maiores, com favores exuberantes.

Tenhamos sempre presente essa noção da misericórdia de Nossa Senhora, durante todo o dia, nos momentos de alegria e de tristeza, de fidelidade ou de miséria, e saberemos como esperar, resistir, lutar. Assim se vive em Maria. Assim se habita nesse palácio maravilhoso, nesse jardim fechado. É ter Maria Santíssima continuamente, desse modo, presente diante de nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 16/6/1972)

Revista Dr Plinio 128 (Novembro de 2018)

O pontificado aliado à santidade

São Leão Magno foi um dos maiores papas que a História registra. Lutou em seu pontificado contra numerosas heresias que então agitavam a Igreja.

Com a autoridade de Papa aliada à qualidade de Santo, cuja santidade foi confirmada por um dos maiores milagres da História da Igreja – a vitória sobre Átila e suas tropas que pretendiam invadir Roma –, fez sermões advertindo o povo contra os hereges, exortando-o a denunciá-los aos sacerdotes e vigários, para sofrerem as penas canônicas e, eventualmente, também as temporais.

Portanto, ele praticou uma virtude que hoje seria muito pouco apreciada, por ser oposta ao ecumenismo mal compreendido. O que diria São Leão Magno diante das heresias soltas em nossos dias?

Peçamos a ele que reacenda na Igreja esse espírito de discernimento, de intransigência e de luta, que seria suficiente para evitar ao mundo os terríveis castigos pelos quais inevitavelmente vai passar, se não se converter. Que ao raiar a aurora do Reino de Maria esse espírito esteja imensamente aceso e dure até o fim dos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/4/1967)

Revista Dr Plinio 248 (Novembro de 2018)

São Leão IX: ascendendo

Comentando uma biografia do Papa São Leão IX, Dr. Plinio analisa o importante papel da graça e da virtude, bem como os benfazejos perfumes da santidade.

Tendo-me sido fornecida uma sintética, porém atraente, biografia de São Leão IX(1), pediram-me para que tecesse a respeito dela alguns comentários, o que farei de bom grado.

Aliança entre a grandeza terrena e o serviço de Deus

São Leão IX nasceu no ano de 1002, nos confins de Alsácia. Seu pai era Conde de Ingersheim e primo-irmão do Imperador Conrado, o Sálico. Sua mãe lhe deu o nome de Bruno. Ao atingir a idade de 5 anos, foi confiado, por seus pais, à educação de Bertoldo, o venerável Bispo de Toul, o qual dirigia então uma escola no próprio palácio episcopal.

Como vemos por esses dados, São Leão viveu em plena Idade Média. Neste trecho já se encontra uma nota interessante e peculiarmente medieval, ou seja, o fato de haver uma escola dirigida pelo bispo e que funcionava no próprio palácio episcopal.

No colégio, Bruno foi confiado particularmente a um primo seu, chamado Aderico, filho do Príncipe de Luxemburgo; os dois se tomaram de uma íntima amizade. Seu primo foi-lhe modelo de todas as virtudes e serviu extraordinariamente para sua formação.

Havia na Idade Média, pessoas pertencentes à mais alta categoria social e que se destacavam, sobretudo, por sua extraordinária virtude. Formava-se assim uma aliança entre a grandeza terrena e o serviço de Deus.

A Igreja Católica como centro de tudo

Tendo recebido do Bispo de Toul as sagradas ordens, foi nomeado clérigo da Capela do palácio do Imperador Conrado, o Sálico.

Todos os Imperadores tinham sua própria capela, na qual um conjunto de capelães mantinha o culto. O fato de ser clérigo na capela imperial era, portanto, uma situação de alta confiança, pois conferia a oportunidade de estar em contato direto com o Imperador.

Por outro lado, é digno de nota o fato de o Imperador ter sua capela própria, donde decorre que o elemento central de sua vida de corte era a recitação do Ofício Divino, a Santa Missa e outras práticas de culto católicas.

Esse piedoso costume, por sua vez, provinha da convicção profunda e verdadeira que estava radicada na sociedade daquele tempo: a Igreja Católica deve estar no centro de todas as coisas. E, portanto, na Corte imperial o elemento central devia ser a capela, onde estava presente o Santíssimo Sacramento, ou seja, Nosso Senhor Jesus Cristo, o Rei dos Reis. Também ali devia estar a imagem de Nossa Senhora Rainha e Mãe. Como isso é diferente dos costumes laicos e divorciados da verdadeira posição católica!

A virtude outrora era um título de ascensão

Bruno foi imediatamente bem visto pelo Imperador, que impressionado com suas virtudes passou a tratá-lo de “meu sobrinho”.

Ser tratado de primo e sobrinho do Rei era considerado pelas cortes daquele tempo uma honra extraordinária. Ele realmente era parente do Imperador, mas não em grau tão próximo; era filho de primos e não de irmãos do Imperador, portanto não era de fato seu sobrinho. Mas, o Imperador o tratava como sobrinho, elevando-o assim à categoria de Príncipe da Casa Imperial. A principal razão dessa honraria era a alta consideração do Imperador pelas virtudes de Bruno.

Como na Idade Média a maior parte das pessoas procurava a todo custo manter a posse do estado de graça, criava-se um ambiente onde a virtude era bem vista, e constituía um título de ascensão e não um título de perseguição como cada vez mais vem se tornando nos dias atuais.

Algum tempo depois, no ano de 1026, o Imperador recebeu a visita de clérigos da Diocese de Toul, que lhe anunciavam a morte do Bispo e o desejo de toda a população que Bruno fosse designado para a diocese vaga. Conrado acedeu, apesar de Bruno não ter ainda a idade canônica.

Aqui vemos um costume medieval que como outros é preciso ser bem entendido. É preciso levar em conta que a nomeação de um Bispo sempre foi privilégio papal. Porém, para isso o Papa pode receber indicações, as quais ele é livre de aceitar ou recusar. Ora, na Idade Média mantinha-se o costume proveniente dos primeiros tempos da Cristandade, pelo qual o povo da diocese podia aclamar ou propor um nome, mas cabia ao Papa ratificar ou não a proposta.

Com a implantação do Sacro Império, os Imperadores também tomaram o hábito de propor candidatos ao episcopado. Então se formava uma corrente de mediações, onde o povo propunha ao Imperador um nome e este, por sua vez, estando de acordo, propunha ao Papa. Mas, a palavra final sempre cabia ao Sumo Pontífice.

Apesar da pouca idade, Bruno imediatamente se destacou entre os Bispos da região por sua capacidade e pela virtude com que dirigia a diocese.

Note-se, portanto, a rapidez dessa ascensão, a qual se deve, acima de tudo, às suas notáveis virtudes.

Quem se humilhar será exaltado!

Durante 22 anos Bruno governou pacificamente e com brilho a Diocese de Toul. Com a morte do Papa Dâmaso II no ano de 1048, os romanos mandaram uma deputação ao Imperador Henrique III para pedir-lhe que designasse um novo Papa. O Imperador Henrique III reuniu, para esse efeito, uma Dieta em Worms, da qual participavam todos os Bispos do Império. Logo, todas as vozes designaram Bruno, Bispo de Toul, como futuro Papa. Tendo sido consultado, Bruno, por humildade, de nenhum modo queria aceitar o cargo; pediu então que lhe dessem alguns dias para refletir.
Pediu tempo para refletir, mas de fato, o que ele queria era escapar do encargo de ser Papa.

Terminado o prazo, apresentou-se diante de toda a Dieta de Worms reunida e disse que ele iria fazer uma confissão pública de todos os seus pecados, para fazer notar quanto ele era pecador e de nenhum modo digno do papado. Ajoelhou-se e fez sua confissão pública.

A confissão constava de matérias tão leves, que o fato que ele considerava mais grave e pavoroso, mal dava matéria de um pecado venial. Tendo terminado, todos se levantaram e o aclamaram. Só um Bispo com tal limpeza de consciência poderia ser o Papa.

Como última tentativa, ele levantou um sério problema: o Imperador não tinha direito de nomeá-lo Papa. O Papa só pode ser eleito pelo clero de Roma, na forma canônica, ouvindo, quando queira, o povo de Roma.

Então ele iria a Roma a fim de lá consultar se o clero e o povo o queriam como Papa.

Retirou-se e, tomando o traje de peregrino, saiu a pé de Worms em direção a Roma.

Que extraordinária firmeza possuía esse homem, para tomar tal decisão, pois viajar a Roma supunha, entre outras dificuldades, a travessia dos Alpes, com suas neves eternas, montanhas escarpadíssimas e caminhos de cabras para transpor, pelo que essa viagem sempre foi considerada perigosa.

Ele poderia ter ido andando até o mar Adriático e lá tomar um barco. Mas ele quis, como um penitente, ir a pé até Roma, onde esperava ser recebido como um mero peregrino. Ao chegar às cercanias de Roma, encontrou a população da cidade à sua espera.

A cidade de Roma naquele tempo deveria somar entre duzentos a trezentos mil habitantes.

Vestido como peregrino, com as vistas baixas e sem olhar nem dar atenção para ninguém, entrou em Roma, dirigindo-se diretamente ao túmulo de São Pedro para rezar.

É possível a abundância do estado de graça numa época

Este é realmente um homem reto, que faz as coisas como devem ser feitas.

O povo de Roma, aclamando-o, quis naquele mesmo dia entronizá-lo. Mas ele disse que esperassem até o dia seguinte, para ainda poderem pensar. Mas, por fim, chegou o dia seguinte e o povo estava de tal maneira decidido de que ele deveria ser o Pontífice, que ele acabou por aceitar, sendo então entronizado na Sé Romana.

Este apreço geral pela virtude daquele homem dá uma ideia do espírito que vigorava naquele tempo, e faz ver como é possível o estado de graça ser tão abundante em determinada época. Pois, sem ele, esses atos e gestos verdadeiramente extraordinários não se realizariam desta forma.

Por inspiração divina, tomou o título de Leão, considerando que devia, à testa da Igreja, lutar como verdadeiro leão. De fato, não tardou em começar a luta contra os verdadeiros inimigos da Igreja.

Um “Leão” em defesa da Igreja

Quais eram os verdadeiros inimigos da Igreja?

Naquele tempo, havia se difundido um abuso péssimo chamado simonia. Que consistia no seguinte: como a indicação dos cargos clericais era frequentemente feita pelo Imperador e pelo povo, acontecia que muitos homens vorazes, querendo ter cargos lucrativos, pagavam ao povo ou ao Imperador para serem indicados para o episcopado, ou então para que um parente ou alguém ligado a ele fosse nomeado Bispo, Abade e até mesmo Cardeal. Chegava-se até o absurdo de subornar os Cardeais e o povo de Roma, para elegerem determinado Papa, comprando assim até a Tiara romana.

Esse processo de escolha não podia deixar de trazer os piores inconvenientes. Através dele, muitas vezes, eram os mais ordinários que assumiam cargos eclesiásticos, dentre os quais estavam pessoas de costumes inteiramente desregrados, que por um lado constituíam um escândalo geral na Cristandade, e por outro um perigoso amolecimento ante as investidas de pagãos. Estes vinham de todos os lados: os normandos vinham através do mar do Norte, penetravam pelo estreito de Gibraltar e atacavam o Sul da Itália; havia ainda restos de bárbaros que vinham dos países eslavos; e também os maometanos que atacavam por todas as partes.

Neste momento em que a Cristandade precisava lutar especialmente para defender-se, ela se apresentava extraordinariamente debilitada, pela decadência espiritual causada pela simonia. Por isso, tendo assumido o papado, Leão IX começou a reunir diversos Sínodos e outros tipos de reuniões eclesiásticas, a fim de imediatamente punir e depor os Bispos que tinham tomado o cargo indignamente, nomeando bons para substituí-los. Isso causava, como é de se esperar, as mais acirradas indignações.

Zelo na defesa dos súditos

Ocupava-se ele com esse árduo trabalho, quando recebeu o aviso de que os normandos estavam por invadir a Apúlia, território do qual o Papa era Rei. Portanto, competia a ele defender seus súditos. Sem hesitação, foi a toda pressa à Alemanha a fim de pedir ao Imperador, seu parente, que mandasse um exército para defendê-lo.

Tendo o Imperador prometido enviar-lhe auxílio, o Papa desceu até a famosa Abadia beneditina de Monte Cassino, uma das mais célebres do mundo, a qual não ficava a muita distância de Roma, e lá permaneceu à espera da chegada do exército imperial. De fato, algum tempo depois chega o exército, porém, para sua surpresa, este era constituído por apenas 500 lorenos. Isto porque o exército imperial, quando chegou próximo aos Alpes, desistiu de descer.

A este punhado de combatentes tinham se incorporado pelo caminho alguns contingentes italianos, aos quais se somaram ainda alguns romanos, que eram senhores feudais da região. Assim constituiu-se o parco exército de resistência. Chegaram, por fim, os normandos, aos quais, apesar da desvantagem numérica, o exército do Papa ofereceu dura resistência que resultou numa tremenda carnificina.

Contudo, os normandos acabaram por vencer a batalha e levaram cativo o Papa, ao qual, devido à dignidade e respeitabilidade de sua pessoa, dispensaram toda forma de honras e cuidados. Mas de todos os fatos da vida de Leão IX, nenhum me parece tão marcante da aprovação divina ao seu modo enérgico de agir, quanto às circunstâncias de sua morte.

A doce mensageira da felicidade eterna

A doença, doce mensageira da felicidade eterna…

Como é linda esta expressão e contrária ao horror à doença que se tem em nossos dias. Claro que se deve combater a doença, mas com essa resignação deve-se aceitá-la.

…a doença veio anunciar-lhe que sua hora tinha chegado. No dia 12 de fevereiro de 1054, ele celebrou por última vez o Santo Sacrifício da Missa onde dirigiu à multidão uma exortação comovedora.

No dia seguinte, sabendo que sua hora estava próxima, ele quis ser transportado da cidade de Benevento para Roma. Foram os próprios normandos que reivindicaram a honra de levá-lo numa liteira.

Que esplêndida glória ser carregado numa liteira pelo próprio “inimigo”!

Desta forma o Papa voltou ao Palácio de Latrão no mês de abril de 1054, época na qual habitualmente ele reunia o Sínodo dos Bispos das províncias eclesiásticas circunvizinhas de Roma. Ele então as convocou para o dia 17 de abril. Reunidos os Bispos, ele lhes disse: “Eu me recomendo à vossa fraternidade porque o tempo de minha dissolução chegou”.

Esta frase proferida pelo Papa é a reminiscência de uma citação de São Paulo, que manifestava o desejo de ser dissolvido, quer dizer, ter separada a alma do corpo, para subir a Jesus Cristo. “Na última noite, em visão, a glória da Pátria celeste me foi manifestada. Eu reconheci entre os grupos de mártires aqueles que morreram na Apúlia, para defesa da Igreja”.

Aqueles valentes lorenos que morreram na Apúlia, em defesa da Igreja, os quais eram mártires, estavam à espera que Leão IX fosse juntar-se a eles no Céu.

“Vem, nos disseram eles, e permanece entre nós, porque foi por teu intermédio que nós conseguimos as eternas felicidades. Mas uma voz, ao mesmo tempo, se fez ouvir, dizendo: ‘Não já, mas daqui a três dias somente.’”

No dia seguinte, ele reuniu de novo os Bispos, e sendo posto numa liteira foi conduzido pelos seus fiéis normandos em procissão até à Basílica de São Pedro, onde ele desejava morrer.

Hoje, carne e sangue; amanhã, poeira e cinza

Que lindo cortejo deve ter sido aquele! O Papa carregado numa liteira, os Bispos a seu lado, certamente cantando e portando círios, seguidos por um tropel de normandos armados, todos caminhando rumo à Basílica de São Pedro. Creio que não houve desfile militar que tenha superado em beleza aquela cena.

Prosternado diante da sepultura do Príncipe dos Apóstolos, Leão IX rezou pela Igreja e pela conversão dos pecadores. Assim que terminou, um delicioso aroma, superior ao perfume mais puro, se exalava da sepultura de São Pedro. Era o primeiro Papa manifestando seu agrado diante desse seu digno sucessor. Permaneceu então durante cerca de uma hora em silenciosa contemplação. Bispos, normandos e o povo em grande número estavam a sua volta.

Em certo momento ele mandou trazer pão e vinho. Os abençoou, comeu três pedaços de pão, bebeu um pouco de vinho e distribuiu o resto entre os assistentes. Ninguém comeu. Todo mundo guardou como relíquia os pedaços de pão que ele distribuiu.

Levantando-se então, dirigiu-se para o túmulo que ele mesmo tinha mandado preparar para si na Basílica. Lá, dirigindo-se aos Bispos, disse: “Vede, meus irmãos, como é miserável, frágil e efêmera a glória humana. Que esse exemplo jamais saia de vossa memória. Do nada eu fui um dia elevado ao que há de mais alto; e agora vou ser reduzido novamente a nada. Eu terei como moradia esse cárcere escuro e estreito. Hoje ainda convosco sou carne e sangue. Amanhã serei poeira e cinza”.

Que linda pregação! Qual terá sido a reação dos Bispos e mesmo dos normandos que estavam ao seu redor, vendo aquela cena grandiosa de um homem anunciando sua morte?

Adormeceu com uma calma indizível e acordou no Céu

Todos os assistentes se puseram aos prantos… O Papa então os despediu dizendo: Venham amanhã assistir a meu último suspiro.

São Leão retirou-se ao palácio próximo onde passou toda a noite em oração. Na manhã seguinte, sustentado por dois assistentes, voltou para a Basílica e veio prosternar-se diante do altar-mor. Estendeu-se sobre uma cama que tinham preparado junto ao altar, fez sinal com a mão para impor silêncio e dirigiu ao povo uma última exortação.

Depois, chamou para junto de si os Bispos e fez a confissão de seus pecados. Mediante uma ordem dele, um deles celebrou a Missa e deu a ele a Comunhão. Depois de ter comungado, o Papa disse: “Fazei silêncio, porque parece que eu vou dormir”. Inclinando a cabeça, adormeceu, com uma calma indescritível, para acordar no Céu.

Assim, diante do altar de São Pedro, no dia 19 de abril do ano da graça de 1054, faleceu o Santo Pontífice Leão IX.

Entre aqueles que o assistiam na hora de sua morte estava Hildebrando, que era a uma vez seu inspirador e secretário, e mais tarde viria a ser seu sucessor com o nome de São Gregório VII. Imagine ter como secretário um santo, o qual, a meu ver, foi “o Papa”, não comparando a santidade, mas sim a missão, e o papel na História da Igreja.

Que sublimidade, maravilha e grandeza devia ter aquela cena na qual um santo contempla outro expirar, onde São Gregório VII, ainda moço, permanece ao lado de São Leão IX, rezando até a hora em que a alma dele se desprende do corpo e sobe ao Céu!

A contemplação de fatos como este, e o deliciar-se com o perfume das virtudes de um tal santo, constitui um descanso da vida de todos os dias. Assim sendo, resta-nos pedir a São Leão IX que, do alto do Céu, reze e interceda por nós.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/10/1974)

Dedicação da Basílica de São João de Latrão

“9 de novembro do ano de 324 foi o dia da dedicação da Basílica de Latrão. Em 315 o Imperador Constantino tinha ordenado a construção da Basílica.”

Constantino foi o imperador que libertou a Igreja e A tirou das catacumbas. Então, coerentemente com o seu gesto, ele ordenou a construção da Basílica, local onde parece se erguia o palácio da sogra dele, da família dos Laterani. Eu não sei se isto é inteiramente indiscutível na historiografia de hoje, mas algum tempo atrás se admitia como sendo assim, e provavelmente é. Esse lugar ficou se chamando a Basílica de Latrão e o Papa Silvestre consagrou a Basílica ao Santíssimo Salvador, cuja imagem, mostrada então aos fiéis depois de séculos de perseguição, lhes pareceu uma aparição divina.

Pode-se imaginar qual foi a emoção, qual foi a alegria dos católicos de Roma quando, depois de séculos de catacumbas, séculos de perseguição, vêem aparecer uma basílica grandiosa em Roma, afirmando o esplendor do culto católico pela primeira vez, na mais importante cidade do mundo. Os senhores podem imaginar a alegria deles quando viram, ao ar livre e à luz do dia, uma imagem grandiosa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Agora, os senhores imaginem em Roma, a própria imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo exposta aos olhos de todos e recebida por todos com veneração, e o culto pagão quebrado, proscrito e fora da lei.

Continua a nota biográfica:

“os Papas fizeram sua residência num palácio próximo da Basílica. Realmente, o palácio anexo a Latrão foi durante muito tempo residência dos Papas, que se tornou assim sua catedral e que por isso foi chamada Cabeça e Mãe de todas as igrejas, de Roma e do mundo. Dois incêndios que sobrevieram no século XIV, e o abandono em que ela foi deixada durante a presença dos Papas em Avignon – os peregrinos que iam a Roma encontravam o gado pastando dentro das igrejas, por causa da erva que crescia lá dentro. Galinhas, pombos, outros bichos, morando dentro de igrejas e ocupando, inclusive, os altares…”

“sua construção quase inteira. A Basílica foi novamente consagrada, desta vez em honra de São João Batista e de São João Evangelista.”

Então a Basílica do Santíssimo Salvador tem esses dois padroeiros secundários. Quem visita Roma nota uma diferença que chama atenção, entre a Basílica de Latrão e a Basílica do Vaticano. A Basílica de São Pedro é nova, é “chibante”, é gloriosa, é magnífica, parece construída ontem, tem todo o esplendor da Renascença.

A Basílica de São João de Latrão é muitíssimo menos sensacional; é muito mais discreta, mas tem um tom de “grande dame”, tem uma nobreza, tem uma grandeza, tem uma paz, tem uma consciência de sua própria dignidade que a Basílica de São Pedro não tem.

 

Plinio Corrêa de Oliveira – extratos de conferência de 9-11-1965

São Martinho de Tours, incansável apóstolo e taumaturgo

Nesse mês de novembro Dr. Plinio nos dá a conhecer alguns belos e tocantes aspectos da vida de São Martinho de Tours, um dos mais célebres heróis da Fé naqueles albores da Cristandade  medieval, venerado por suas grandes virtudes e denodado zelo pela salvação das almas.

Para se compreender bem o elemento de unidade da vida de São Martinho de Tours — cuja festa é celebrada em 11 de novembro — devemos considerar o que temos dito a respeito dos santos suscitados  pela Providência para serem missionários, evangelizadores, reis, príncipes, e daqueles de cujo apostolado decorreu o nascimento de nações inteiras para a Cristandade.

Factótuns de Deus

Há santos chamados a passar sua existência nos primórdios da vida religiosa de um povo, e quando essa trajetória espiritual começa a se consolidar, surgem outros apóstolos com vocação definida para continuar o trabalho daqueles. Fundam ordens religiosas, universidades, são grandes pregadores que incentivam as almas, etc.

Outros têm a curiosa tarefa de “fazer um pouco de tudo”. Sem pressa, sem dispersão, com perfeito domínio de si, enfronham-se em toda espécie de acontecimentos. Eles sustentam a boa causa em toda parte onde ela precise de um auxílio e nas mais diversas condições em que essa ajuda lhes é requerida. São, por assim dizer, os factótuns de Deus, aqueles que realizam tudo quanto desejam Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima.

Se analisarmos sob esse prisma a vida de São Martinho, a compreenderemos. Do contrário, ficaremos apenas com um conjunto de informações biográficas, sem maior sentido unitário.

Exemplo de caridade cristã

Vejamos então alguns dados sobre ele, apresentados por Dom Guéranger:
Martinho nasceu na Panônia, Hungria, no ano 316. Portanto, viveu numa época remota e em terras que, naquele tempo, eram semibárbaras. Algo semelhante à selva Amazônica, senão pior. Engajado muito cedo nos exércitos romanos, ele se torna conhecido somente quando partilha seu manto com um pobre nas portas de Amiens.

O império romano possuía alguns destacamentos militares em Amiens, situada na Gália, atual França. Devido a transferências internas, ele foi enviado da Panônia para aquela cidade gaulesa.

Não se sabe ao certo quando São Martinho se converteu, mas em determinado momento tornou-se catecúmeno, isto é, preparou-se para receber o Batismo. Nessa ocasião deu-se o famoso episódio: estando ele montado a cavalo, num período muito frio, encontrou-se com um mendigo que vagava pelas portas de Amiens, desamparado e sem agasalho. Tocado pela miséria do próximo, com extrema bondade o Santo dividiu seu próprio manto em duas partes, entregando a metade ao indigente.

Esse fato adquire maior significado na Europa, onde o inverno é bem mais rigoroso e agressivo ao corpo humano, do que em nossas regiões tropicais. Um brasileiro pode não ter manto, mas possui pulôveres. Quando esfria, ele permanece acalentado dentro de casa, ou, se precisar sair, usa uma condução qualquer que o permite manter-se protegido da baixa temperatura. O frio incomoda um pouco, e depois não se pensa mais nele.

No continente europeu, porém, o inverno é bastante sério. Nessas condições, andar léguas a cavalo sem manto, ou com metade dele, redunda em grande sacrifício. Por isso, o gesto de São Martinho comoveu toda a Idade Média como sendo uma expressão própria da caridade cristã, oposta à dureza do paganismo romano.

De maneira que esse episódio pode ser considerado o primeiro feito simbólico da vida dele, recordado na era medieval através de vitrais, medalhas, iluminuras, quadros, etc., enquanto crescia a devoção a São Martinho de Tours.

Apostolado e milagres

Uma vez batizado, deixa o exército e vai estudar com o grande doutor das Gálias, Hilário de Poitiers. O desejo de converter seus parentes, que eram pagãos, conduziu-o à Panônia.

Percebe-se como a existência de São Martinho é fecunda, semeada de viagens, de encargos, de missões evangelizadoras, etc. Ele havia sido um legionário romano na sua Panônia natal, de onde passou para a Gália. Em determinado momento, converteu-se, abandonou as fileiras militares e foi — ele, um “botocudo” da Hungria — estudar teologia e filosofia com Santo Hilário de Poitiers.

Em seguida o vemos retornar à Hungria, a fim de converter seus pais. Após esse tempo junto à família, regressou à Gália, onde fundou o mosteiro de Ligugé, o primeiro da França. Passou a levar uma vida contemplativa, praticando muitos milagres que o tornaram célebre, e logo afluíram discípulos a povoarem sua solidão. Assim, depois de ser um santo que procurou as pessoas, dirigiu-se a um exílio no qual foi procurado por elas…

Bispo da diocese de Tours

Continua a biografia:
Por ocasião da morte de Santo Hilário, ele foge dos habitantes de Poitiers que queriam tê-lo como bispo. A população de Tours será mais hábil. Em 371, confiscam-no por uma espécie de armadilha e o convencem a se ordenar sacerdote para ser elevado ao episcopado.

Esse esquivar-se das honras não é fenômeno muito comum em nossa época, como também não o é a corrida de povos atrás de um santo para que este se torne bispo.

Ora, no século IV, período histórico chamado de decadência e miséria, os santos pululam e os homens se apressam ao encalço deles. Como isso é diferente do pseudo-progresso, do pseudo-esplendor da era contemporânea!

São Martinho, então, deixa-se sagrar Bispo, mas sabe que a vocação contemplativa persiste nele. Fundou Marmoutier, um convento a três quilômetros de Tours, sua diocese. Essa casa religiosa floresceu, tornou-se seminário, centro de estudos e escola onde diversos futuros bispos se formaram. Trabalho assaz importante, pois de um bom seminário surgem bons sacerdotes e um bom episcopado.

E de novo constatamos como a vida de São Martinho foi extremamente fértil e rica em realizações pe-la causa da Igreja.

Operando milagres, o “selvagem” da Hungria, o ex-legionário romano, posto à frente da formação das almas, preparou uma geração de sacerdotes e de futuros sucessores dos Apóstolos.

Até o fim, um grande batalhador

Muitas vezes se dirigia à solidão de Marmoutier, onde era favorecido por visões de Nossa Senhora, mas também aguilhoado pelas perseguições do demônio. É a condição própria àqueles que se isolam: por um lado, visitados pelas consolações do Céu; por outro, importunados amiúde pelo inimigo de nossa salvação.

Para Santo Inácio de Loyola, a melhor prova do êxito de um retiro espiritual é o fato de a alma ser objeto, ao mesmo tempo, de graças extraordinárias e de investidas do demônio.

Assim sendo, compreende-se que, no seu isolamento, São Martinho estivesse sujeito a essas vicissitudes. De qualquer forma, ali se acrisolava no amor a Deus e ao próximo, traduzidos num incansável esforço de evangelização:

Seu zelo pelos povos transborda os limites de sua diocese. Ele é visto nas dioceses vizinhas e até em Artois, na Picardia; em Trèves na Bélgica, e mesmo na Espanha. Por toda a parte sua palavra, sustentada por seus milagres e caridade, opera maravilhas.

Sem abandonar suas prerrogativas episcopais, este homem se transforma num infatigável missionário, percorre as mais distantes regiões numa época em que tais deslocamentos não se faziam sem grandes incômodos, e realiza verdadeiras maravilhas com seus sermões e milagres.

Esse amor de Deus o leva a Flandres em novembro de 397, para ali estabelecer uma concórdia entre os monges, problema sempre difícil. E foi ali que ele, ancião de mais de 80 anos, faleceu na paz do Senhor.

Eis o fim sereno, em meio à luta, de um grande apóstolo e taumaturgo. Exemplo eloquente destes homens de Deus que cultivam e colhem os frutos das sementes que outros santos plantaram.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Nossa Senhora, Mãe da Divina Providência

O amor de Nossa Senhora pelas almas faz com que a Divina Providência lhes outorgue, através das mãos d’Ela, abundantes graças nas mais difíceis situações. Maria é Mãe de Deus e usa dessa condição para favorecer a cada um de nós. Dr. Plinio muito prezava essa antiga invocação mariana, sob o patrocínio da qual colocou um importante segmento de sua obra.

No mês de novembro(1) celebra-se a festa de Nossa Senhora Mãe da Divina Providência, uma das belas invocações com que imploramos a infatigável assistência de Maria Santíssima.

Razão de nossa confiança

Na verdade, em meio ao nosso peregrinar por esta terra de exílio, a razão de nossa confiança é a tutela da Providência Divina, exercida por meio de Nossa Senhora. Deus provê a cada um de nós em nossas necessidades espirituais e temporais, a fim de realizarmos aquilo para o que fomos criados, ou seja, cumprirmos nossa vocação.

Podemos nos perguntar por que Nossa Senhora é chamada a Mãe da Divina Providência. Ela o é, não por ter gerado a Providência Divina, e sim porque, segundo os desígnios do Altíssimo, está destinada a aplicar maternalmente os decretos d’Ele. Donde o governo de Deus sobre nós se fazer com uma plenitude de carinho, de comiseração, de afeto, que esgota de modo completo tudo quanto o homem possa imaginar.

O fato de termos uma Mãe que dirige nossa vida espiritual, nosso apostolado, nossas ações diárias é, pois, o motivo superior pelo qual confiamos.

Lembro-me de uma bela e expressiva imagem de Nossa Senhora Mãe da Divina Providência, que foi objeto de minha veneração na igreja dos barnabitas, na Rua do Catete, na cidade do Rio de Janeiro. Esses religiosos — oficialmente conhecidos como Clérigos Regulares de São Paulo — difundiram essa devoção, incentivados por seu fundador, Santo Antônio Maria Zaccaria.

Aliás, outro santo, São Caetano de Tienne, contemporâneo de Santo Antônio Maria Zaccaria, terá sido de certo modo quem levou mais longe a confiança na Providência Divina. Com efeito, proibiu aos religiosos da ordem fundada por ele, que pedissem esmola: quando os teatinos precisavam de alguma coisa, deveriam ficar na rua, em atitude de oração a Nossa Senhora, certos de que Ela os atenderia. Quer dizer, colocavam-se inteiramente nas mãos da Divina Providência.

Sublime misericórdia do amor materno

Gostaria de chamar a atenção para o significado da palavra “mãe” e o alcance concreto que ela possui na questão da confiança.

Aquilo que sempre tornou sublime os laços entre a mãe autêntica e seu filho reside no fato de que ela, por sua natureza retamente desenvolvida, é levada a ter uma forma de dedicação à sua prole que nem o pai possui. Este, mesmo que seja ótimo, conserva em relação ao filho uma espécie de austeridade, pois representa de modo mais vigoroso certos princípios como a justiça, a ordem, a força, etc., mais próprio do elemento punitivo do casal.

Já o característico da mãe é demonstrar uma forma de carinho tal pelo filho que, mesmo nas ocasiões em que se impõe a ela admoestar o seu rebento, ela o faz mais suave e lentamente. Pelo contrário, é mais rápida em perdoar, em condescender, em esquecer, porque representa quase que só a misericórdia.

Na mãe, o traço de justiça se acha um tanto diluído, segundo a ordem natural das coisas, enquanto que o da indulgência é levado o mais longe possível. Daí haver, aliás, o perigo de o amor materno ocasionar alguma moleza, frouxidão, de tal maneira que, se não existisse o contraponto da figura paterna, a educação dada pela mãe, em numerosos casos, seria insuficiente.

O genuíno amor materno ama o filho porque é filho, ainda que este seja ruim; sobrepuja tudo e se vincula por misericórdia ao fruto de suas entranhas. Razão pela qual, todos têm em relação ao amor materno certas condescendências excepcionais, sabendo que ele pode atingir o mais alto grau de sublimidade.

Inimaginável ternura que regenera e santifica

Isto que diz respeito às mães terrenas, com maior propriedade se aplica a Nossa Senhora, exceto o perigo de demonstrar fraqueza e debilidade, que n’Ela não existem. Sua ternura para conosco é levada ao inimaginável, sem nenhuma cumplicidade com nossos defeitos. Compaixão, sim; complacência, não. Sem embargo do quê, segundo São Luís Grignion de Montfort, Maria Santíssima ama a cada um de nós mais do que todas as mães existentes no mundo amariam, juntas, um filho único. Isso diz respeito tanto a nós quanto a qualquer ímpio.

Nossa Senhora é Mãe da graça, e o amor d’Ela a um indivíduo ruim não consiste em fechar os olhos para sua maldade, mas em obter-lhe de Deus favores seletíssimos para que ele possa se arrepender e se emendar. Quer dizer, o amor materno de Maria tem força regeneradora para elevar e santificar uma alma; Ela é a Medianeira das graças necessárias para a justificação daquele a quem Ela ama. Por causa disso, sua misericórdia nunca é susceptível de uma condescendência errada, embora sua contemporização vá mais longe do que a de qualquer mãe terrena.

Confiar em Maria, sem desanimar jamais

A consideração dessas verdades me leva a insistir num ponto que nunca me canso de salientar: confiemos, confiemos e confiemos a todo instante em Nossa Senhora, lembrando-nos sempre de sua extrema meiguice para conosco, de sua compaixão para com as misérias de cada um de nós. Tenhamos presente que, na Salve Rainha, Nossa Senhora é chamada “Mãe de misericórdia”, e que o Lembrai-vos acentua a bondade d’Ela para com o pecador arrependido.

Não receio parecer repetitivo ao renovar essas recomendações, pois uma vida espiritual que não as contemple acaba se extraviando. Sem nos compenetrarmos da misericórdia de Maria Santíssima, nada de bom faremos. Cultivando-a, nossa alma se cumula de confiança, de alegria e de ânimo. Tendo a Mãe da Divina Providência como nossa própria Mãe, nada nos deve abater. Ela tudo resolverá se, confiantes, implorarmos seu maternal socorro.

1) Em muitas paróquias do Brasil essa festa é celebrada no dia 11 de novembro; em outros países, no dia 19 do mesmo mês.

Plinio Corrêa de Oliveira

Moldura para a figura de São Willehade

Os saxões eram pagãos muito agressivos e frequentemente invadiam as terras dos francos, cometendo crimes e pilhagens. Carlos Magno, numa cruzada em defesa da Religião Católica, atacou-os e derrotou-os. Eles se revoltaram, mas novamente o Imperador venceu-os e lhes impôs um tributo em benefício da Santa Igreja.

 

São Willehade, bispo e confessor. Foi o primeiro Bispo de Bremen, diocese criada pelo Imperador Carlos Magno, após suas conquistas. No ano de 788, 21º do seu reinado, Carlos Magno deu àquela igreja um diploma lavrado nos seguintes termos:

“Em nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Carlos, por vontade da Providência Divina, Rei. Sob o auxílio do Deus dos exércitos, conseguimos uma vitória nas guerras. É só n’Ele que nos gloriamos. E é d’Ele que nós esperamos neste mundo a paz e a prosperidade, e no outro a recompensa eterna.

Salvem-se, pois, todos os fiéis de Cristo, e os saxões rebeldes aos nossos ancestrais, pela obstinação da perfídia e por um tão longo tempo rebeldes a Deus e a nós, até que os tivéssemos vencido pela Cruz do Senhor, não pela nossa. Por sua misericórdia, nós recebemos a graça do batismo, e os levamos à antiga liberdade, desobrigando-os de todos os antigos tributos que nos devem. Pelo amor d’Aquele que nos deu a vitória, de tributários os declaramos devotamente súditos.

Como se recusaram a tal presente e o jugo de nosso poder, agora que foram vencidos pelas armas e pela Fé, ficam obrigados a pagar a Nosso Senhor Jesus Cristo e seus sacerdotes o dízimo de todos os seus animais, frutos e culturas.”

Zelo do poder civil para com o poder eclesiástico

A ficha não se presta propriamente a um comentário a respeito de São Willehade, bispo e confessor, porque a propósito dele diz que foi Bispo de Bremen, e a respeito dessa cidade transcreve o decreto de criação da Diocese de Bremen, no ano de 788, por Carlos Magno.

De maneira que, inevitavelmente, o comentário tem que ser sobre o decreto. Parece uma coisa extravagante fazer a respeito de um documento legal uma conferência que deveria versar sobre a vida de um Santo. Quem lesse os decretos promulgados hoje não encontraria tema para tal conferência. Por exemplo, um decreto sobre o trânsito ou, como no presente caso, a respeito de questões fiscais — porque Carlos Magno está lançando um imposto —: que matérias de vida espiritual podem caber?

É interessante analisarmos este decreto para compreendermos a modificação completa do ambiente que vai da civilização cristã para a de nossos dias: o Imperador especifica o modo pelo qual esse tributo precisa ser pago, e torna obrigatório o cumprimento desse dever para com a Igreja.

Vejam que relações íntimas entre poder eclesiástico e o poder civil havia naquele tempo, o cuidado do poder civil pelo poder eclesiástico. E com que abundância estava provida a manutenção do clero e do culto na Catedral de Bremen, para a glória de Deus antes de tudo e, secundariamente, para a cristianização desses povos ainda semipagãos.

Um ato ilícito que produziu bons frutos

Observem uma outra coisa interessante: como o Imperador descreve o seu papel enquanto cobrando esse imposto. Carlos Magno mostra que se trata de um povo que era pagão, o qual ele reduziu pelas armas, quer dizer, tem sobre esse povo o direito de conquista. E um direito de conquista legítimo porque os saxões, muito agressivos, continuamente invadiam as terras dos francos, de quem Carlos Magno era o rei, fazendo provocações, crimes e pilhagens nas fronteiras, e queriam impor a religião pagã.

Então, Carlos Magno, numa cruzada em defesa da Religião Católica, invadiu as terras deles e derrotou-os. Passando um pouco dos limites, ele estabeleceu o princípio: ou crê ou morre; quem não é batizado deve ser morto. E, naturalmente, o número de batismos foi enorme.

Também a quantidade de execuções capitais foi muito grande. Correu água batismal e correu sangue às torrentes nessa ocasião. E ele até foi censurado pelo Papa, porque não se pode colocar ninguém diante da alternativa: ou crê ou morre.

Eu estou de acordo com o Papa e não com Carlos Magno. E não é numa atitude contestatária — longe de mim isto — que vou, entretanto, fazer a seguinte observação: é que muitos batizados forçados deram resultado certo; e depois eles e os seus filhos ficaram na Fé Católica e nela perseveraram até hoje, ou até pouco tempo atrás.

Quer dizer, talvez não tenha sido inteiramente lícito, ou não foi lícito e por isso não foi bom. Afirmar que não tenha sido útil já é uma outra questão.

Produziu lá seus frutos…

Da barbárie para o píncaro da cultura e da civilização

Depois o Imperador mostra como os saxões se revoltaram de novo. E Carlos Magno teve que exercer, outra vez, uma ação de conquista sobre esse povo. E, então, os saxões viviam pela misericórdia do Imperador. Conforme as leis da guerra, ele poderia ter exterminado os saxões, porque junto a eles não era possível viver, ou ter reduzido muitos ao cativeiro.

Carlos Magno não fez nada disso. Ele instituiu, fixou suas fortalezas, intensificou a cristianização, mas cobrou um imposto particularmente grande, porque os saxões eram rebeldes vencidos. E o rebelde vencido é obrigado a um imposto maior.

Vemos, assim, como ele sabia, nas suas apreciações, temperar a justiça com a misericórdia. Ele mostrou ser misericordioso com esse povo em várias circunstâncias, mas chegando a ocasião da justiça ele tinha o direito de exigir o imposto.

Eu falei em extermínio. É claro que Carlos Magno não podia exterminar o povo inteiro, mas sim ordenar a matança de um certo número deles que fossem presos com armas nas mãos, para intimidar e nunca mais haver a possibilidade de atacarem. Vê-se que ele foi benigno, não levou as coisas tão longe; pelo contrário, soube amenizá-las de maneira que, dotando a catedral e o clero tão bem, obrigava o povo a pagar um imposto, do qual a principal vantagem era para Deus.

Deus não precisa de nada, mas, enfim, era para o culto divino. E o povo tinha o maior dos benefícios, porque, bem implantada a Religião numa situação de prestígio, apoiada pelo poder temporal, pelo Imperador, dotada de meios para influenciar, podia deitar fundo as suas raízes no meio daquela gente. E isto para eles era o melhor, pois saíam do estado de barbárie e podiam chegar, como de fato chegaram, ao píncaro da cultura e da civilização. É a Alemanha.

Compreendemos, portanto, como Carlos Magno era sábio e benfazejo no que estava dispondo e estabelecendo. E isto está mais ou menos dito no decreto, embora este não desça tanto a fundo nas coisas.

Carlos Magno, servidor da Santa Igreja

É bonito notarmos como o Imperador atribui todas essas vitórias a Deus. Ele diz: nós vencemos pelo auxílio divino. Como quem afirma: Eu sei que venci essas batalhas, mas não passei de instrumento de Deus; se não fosse a interferência d’Ele eu teria perdido essa guerra.

Todas essas ideias a respeito da missão de Carlos Magno na História, do seu papel junto aos povos pagãos, como distribuidor da justiça e da misericórdia em nome de Deus, como braço direito da Igreja na ordem temporal, tudo isso cabe no título inicial, que é este: “Em nome de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, Carlos, por vontade da Providência Divina, Rei.” Tem uma beleza extraordinária!

Observem a incisão das palavras. Quer dizer, aqui estou eu, mas isso desce do alto. Tem-se a impressão que a indicação desse título é acompanhada de revoadas de Anjos, de sinos de catedrais que tocam, de esplendor e de luz no céu: Carlos, por vontade do Onipotente, Rei, porque a Providência Divina queria que ele fosse rei. O representante de Deus na Terra para as coisas temporais, e o servidor da Santa Igreja Católica em tudo quanto ela possa querer dentro da ordem temporal.

Tudo quanto a palavra tem de sacral, toda a plenitude de seu poder brilha por causa do que vem antes: é a vontade de Deus, o desígnio da Providência dando o fundamento, o sentido e a tônica a esse poder. Então compreendemos a beleza desse decreto.

A verdadeira vida é a santidade

A esses comentários será inteiramente estranho São Willehade?

Eu creio que de nenhum modo. Tudo isso está para São Willehade mais ou menos como o vaso para a flor. Tomem um vaso magnífico feito para conter uma flor. Enquanto nele não entra a flor, ele está numa certa orfandade. O vaso só se explica, mostra a sua beleza inteira quando nele se põe uma flor ainda mais bela do que o vaso; a beleza da natureza, da obra direta de Deus, supera, de algum modo, a pulcritude que o homem fez para conter aquela obra-prima da natureza.

E São Willehade é a flor desse vaso. Quer dizer, do que adiantaria a grande catedral, o sólio episcopal, o grande Imperador, se para um lugar como esse nunca fosse designado um verdadeiro Santo, se perfume e a fermentação da santidade não se espalhassem por lá? Todas essas coisas são belas, são nobres, estão no desígnio da Providência na medida em que servem à influência da santidade e como instrumentos d’Ela. Mas a verdadeira vida de tudo isto é a santidade.

De tal maneira que podemos imaginar, então, Bremen com sua catedral nova, as fileiras de saxões convertidos que vão, em dias determinados, entregar os seus dízimos para que o templo e o culto divino sejam mantidos convenientemente, os cânticos, o povo. Mas nada é tão belo quanto conjecturar o sólio episcopal no qual está o Santo, representando Deus, com uma plenitude e uma densidade de representação muito maior ainda que a de Carlos Magno. O poder espiritual vale mais que o poder temporal, porque é mais densamente sacral. Willehade está representando Deus enquanto bispo e enquanto Santo.

Compreendemos, então, quem ele era na sua catedral e na Cristandade nascente; naquele ambiente todo preparado pelo zelo de Carlos Magno, ele era a flor. Dele é que vinha o perfume, o encanto da vida, da vida sobrenatural, da graça. Assim, nós temos a moldura na qual podemos imaginar a figura de São Willehade.

Imaginar como? Para nós, a figura do tipo ideal do bispo, de um Santo que é tipo ideal do católico. Nós lhe podemos atribuir um físico segundo a nossa fantasia. Mas a alma sabemos em linhas gerais como é, porque os Santos são todos tão diferentes uns dos outros, mas tão parecidos uns com os outros. Ali se encontrava um Santo, está tudo dito. De maneira que o “Santo do Dia” começa assim: Carlos, por vontade de Deus e por desígnio da Providência, Rei.

E termina: São Willehade, Bispo por vontade de Deus e desígnio da Providência, Santo. Inicia com um Rei e termina num Santo.

Aí está a Idade Média no seu esplendor.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/11/1971)

 

Porte régio e virginal

Certa noite, uma belíssima imagem de Nossa Senhora das Graças, de tamanho natural, foi transportada para o auditório onde Dr. Plinio fazia conferências aos membros do Movimento por ele fundado. Diante dessa imagem, ele teceu as considerações que a seguir reproduzimos.

 

Não me lembro de quando vi, pela primeira vez na minha vida, uma representação de Nossa Senhora das Graças. Mas na minha mais tenra infância — oito, nove, dez anos — já esse sorriso expresso na imagem me acompanhava. Não como algo no qual eu pensasse de modo ininterrupto, mas à maneira de uma recordação: alguma coisa que vi e ficou na minha memória, na minha veneração, no meu afeto, sem que constituísse objeto contínuo de minhas cogitações. De vez em quando, vejo essa invocação, encontro uma imagem, uma estampa, uma medalhinha, ou alguma outra coisa que me fala de Nossa Senhora das Graças.

Revelações a Santa Catarina Labouré

Não tenho palavras para lhes exprimir com que cuidado tomei conhecimento das revelações de Nossa Senhora a Santa Catarina Labouré, cujo texto li com uma atenção com que um tabelião não leria uma escritura pública. Quer dizer, palavra por palavra, pormenor por pormenor, procurando entender, observar e compor bem o conjunto de fatos que caracterizaram aquelas revelações. Evidentemente, não houve uma ocasião em que, estando em Paris, eu não fosse mais de uma vez à Rue du Bac(1), onde se deram as aparições.

Tudo isto está presente em meu espírito, mas, como dizia, não é objeto de uma cogitação contínua. Entretanto, nunca aconteceu que, olhando para uma imagem, estampa, figura de Nossa Senhora das Graças, ou simplesmente para o verso da Medalha Milagrosa — onde tem aquele “M” com o Sagrado Coração de Jesus e o Imaculado Coração de Maria —, eu não sentisse, de modo muito distante, muito vago, ou muito próximo, o que a imagem a qual estamos contemplando diz de um modo tão esplêndido.

Como sinto e como se me afigura a imagem de Nossa Senhora das Graças?

Descrição da imagem

Há nela dois aspectos que se completam: Ela está simplicíssima, seu traje não comporta um adorno. A imagem foi concebida de tal maneira que as dobras de seu manto são todas muito bonitas, caem muito bem, mas é o traje de uma dama, de uma mãe de família qualquer, de Belém, de Nazaré, de Jerusalém, naquele tempo, apresentando-se na simplicidade de sua vida cotidiana. Ela possui uma túnica e sobre esta um manto; e outro manto que cobre a cabeça e os ombros. Tudo o mais simples possível.

Entretanto, há qualquer coisa que incute um profundo respeito e nos faz notar que a pessoa representada veio de muito alto. De uma altura que é o Céu, mas do ápice do Céu; acima d’Ela está apenas Nosso Senhor Jesus Cristo.

Além do respeito, a imagem incute uma veneração que não se sabe como exprimir! Será a virginalidade do rosto? A fisionomia é indiscutivelmente virginal, todo o porte é virginal. Será o régio? Não houve rainha que tivesse tanta majestade. Para fazer uma comparação inadequada: a encantadora Maria Antonieta fica reduzia às proporções de uma boneca de pano perto d’Ela.

Mas, de outro lado, tão presente, tão íntima, tão afagante! Tem-se a impressão de que se Ela nos olhasse, algo do Céu apareceria.

Benignidade, benevolência, doçura

Ela está na atitude de quem olha para a pessoa que estivesse aos seus pés, rezando. E estende as mãos, como quem diz: “Persuada-se! Sou Eu mesma, estou aqui para ajudá-la, favorecê-la e cumulá-la de graças”.

Fica-nos também a impressão de que as mãos acabam de entregar presentes magníficos, e a pessoa foi beneficiada com dons não provenientes desta Terra, e que, evidentemente, são graças.

Da imagem se evola uma benignidade, uma benevolência, uma doçura à maneira de um sorriso. Ela propriamente não sorri, mas tem um comprazimento que eu chamaria de “trans-sorriso”. Alguém que fosse sorrir não estaria em condições de exprimir tudo quanto há nesta imagem. É, ao pé da letra, um “trans-sorriso”, algo que vai além de toda expressão.

E o gesto das mãos parece nos dizer: “Vinde, pedi mais, desejai mais, Eu vos darei tanto quanto pedirdes! Aproximai-vos, não tenhais medo, sou Eu mesma que vim aqui para estar convosco!”

Em meio às mil batalhas, preocupações e aflições, pormenores e providências, e ao fragor — não recuo diante da palavra — das angústias de que nosso caminho está cheio, não é possível termos um repouso melhor do que parar, olhar para a imagem de Nossa Senhora das Graças e, compreendendo tudo isso, pensar: “Ah, então nessa guerra onde é preciso realizar o irrealizável, vencer o invencível, ter forças que não sabemos de onde vêm, necessitamos ter uma enorme confiança porque, nas horas oportunas, Nossa Senhora virá, nos sorrirá e nos ajudará!”

Virá, não necessariamente à maneira de uma visão. É uma grande graça ter uma visão, mas notar numa imagem essas coisas, ter conhecimento de uma graça que nos toca nessas horas e sentir esse orvalho dentro da alma, isto já é tudo.

Graças sobrenaturais e auxílios de toda espécie

Creio que, neste sentido, a invocação é muito acertada: “Nossa Senhora das Graças”. Quer dizer, Nossa Senhora que concede graças. Mas o que quer dizer “graças”? O termo tem dois sentidos: um é o sentido da graça sobrenatural, que é o favor dos favores, o dom gratuito ao qual não temos direito, mas que Nosso Senhor Jesus Cristo nos conseguiu do alto da Cruz, e que Ela esparge, por ser a Medianeira de todas as graças. É graça sobrenatural por onde temos Fé, Esperança e Caridade, e as virtudes cardeais.

Mas são também auxílios de toda espécie, por vezes favores pessoais, personalíssimos, terrenos, os quais desejamos muito em ordem a Ela, para fazer sua vontade, para servir a Causa d’Ela, para lutar por Ela, pedidos por nós com insistência, e que Maria Santíssima acaba concedendo de modo, muitas vezes, inesperado. Na curva de um caminho, na dobra de uma angústia, de repente, surge o favor. Às vezes, não vem automaticamente, demora, e parece suceder o contrário. Mas no fim percebemos que, quando vem, vem mesmo, e com tanta plenitude que somos recompensados de modo superabundante.

Essa é a impressão comovedora que esta imagem me causa. De um modo mais intenso, até, do que tive na própria Rue du Bac, onde, entretanto, encontram-se relíquias tão preciosas: ali está sepultada Santa Luísa de Marillac — fundadora da Congregação religiosa à qual pertenceu Santa Catarina Labouré —; estão os restos mortais desta Santa para quem Nossa Senhora apareceu; a capela da aparição na qual está exposta à veneração dos fiéis a cadeira na qual a Santíssima Virgem sentou-Se para falar com Santa Catarina Labouré, que permaneceu tão perto da Mãe de Deus a ponto de apoiar os cotovelos sobre os joelhos d’Ela.

Será algum predicado natural da escultura? Meramente natural não pode ser, porque aquilo que é ocasião de um ato de amor a Nossa Senhora não pode ser meramente natural. Pode haver algo de natural ali que sirva de ocasião, mas o amor a Ela é sobrenatural, vem de uma graça. Sem uma ação sobrenatural da graça, não seríamos capazes sequer de pronunciar piedosamente os nomes de Jesus e de Maria. Tudo quanto diz respeito à Fé e à vida da Fé, vem do sobrenatural.

A alvura da imagem

Há algum desígnio de Maria Santíssima por onde Ela torna mais sensível essa graça, quando se olha para esta imagem de Nossa Senhora das Graças? Não um intuito arbitrário, pois a palavra “arbitrário” aqui toma a má conotação de “caprichoso” — a Rainha da Sabedoria não tem nada de caprichoso —, mas algo que é um desígnio d’Ela, que nós não conhecemos. É possível; e se for realmente, eu agradeço muito.

O fato positivo é que não tenho possibilidade de olhar para esta imagem sem que, de um modo mais intenso ou menos, não me sinta enormemente propenso a lutar ainda mais, mas com uma forma de refrigério, de luz e de tranquilidade que são peculiares. E que me vêm da ideia de que Ela acaba de distribuir muitas graças e oferece ainda mais.

Eu não posso deixar de ligar isso à alvura extraordinária da imagem. Esse branco corresponde à cor da alma de Nossa Senhora. A inocência da “Sancta Virgo Virginum” — que é inocente sem comparação com nada e com ninguém, acima de tudo, exceto de Nosso Senhor Jesus Cristo — se exprime nesse branco de um modo maravilhoso. Mas também a generosidade, a bondade. Ela dá tudo porque tem as intenções mais alvas possíveis, em relação a todo mundo. Ela quer conceder, quer ser generosa. É verdadeiramente magnífico!

Anéis com pedras preciosas

Não poderíamos encerrar este comentário sem uma palavra a respeito dos anéis. Em suas revelações, Santa Catarina Labouré conta que Maria Santíssima tinha em seus dedos muitos anéis, como usavam as senhoras daquele tempo. Ela quis aparecer assim. E os anéis eram dotados de diversas pedras coloridas, das quais partiam raios de luz. Entretanto, algumas pedras, embora luminosas, não ejetavam luz.

Então Santa Catarina Labouré, com a liberdade que possuía com Nossa Senhora, perguntou-Lhe por que algumas daquelas pedras não reluziam. E Ela deu esta resposta que me impressionou muito: “São as graças que não me foram pedidas. Se pedirem essas graças, Eu darei. Então o reluzimento dos anéis aumentará.”

Poderíamos nos perguntar: para nós, quantos anéis estão por reluzir ainda, e quantos já reluziram? O “thau”(2) que anel será? Existem anéis com uma pedra preciosa em torno da qual estão cravejadas outras pedras preciosas. Quantas pedras preciosas cercarão o “thau”? Que anel soberbo será ele? Nós o contemplamos o bastante para que ele reluza com toda a sua plenitude? Ou seja, pedimos muito a Maria Santíssima para que realmente o “thau” nos venha na abundância que desejamos?

Pedir, pedir, pedir, suplicar, implorar! “Pedi e recebereis, batei e a porta vos será aberta…”(3) Isso se aplica à imagem; Nossa Senhora, a bem dizer, está com as portas abertas, como quem diz: “Meus filhos, vós não pedistes do lado de fora, não batestes na porta; então Eu  a abri e aqui estou. Aqui estão meus anéis. Vinde, meus filhos, e aproximai-vos!”

Ao cabo de um dia com dificuldades, um refrigério incomparável

Imaginem, assim, qual foi a minha impressão, entrando neste auditório, ao encontrar de um modo inteiramente inesperado esta imagem. E me perguntei: “Por que eu estava tão longe de pensar nisso?” E vieram-me à mente várias pequenas razões: em primeiro lugar, o peso e o risco do transporte, que é a menor das razões: “Se esta imagem se danifica, se quebra um dedo ou um pouco do manto, que coisa perigosa!”

Mas, depois, também a ideia de que a imagem representa a Rainha, a qual não se move. Ela atrai a Si; dir-se-ia que a Rainha não vai atrás de ninguém.

Sem dúvida, entrou algo de meus hábitos mentais. Eu sou muito estático e imagino as coisas como sempre permanecendo, não se movendo. Sou bastante contínuo, e a ideia de transportar uma imagem assim, parece-me qualquer coisa difícil de conceber.

Tudo isso junto concorreu para que a mim fosse uma verdadeira, enorme e agradabilíssima surpresa encontrar aqui esta imagem. Uma surpresa que veio ao cabo de um dia com dificuldades, problemas e perspectivas de toda ordem, dando-me esse refrigério que é incomparável, e uma emoção que eu não quis esconder. Fiquei realmente gratíssimo!

O Paraíso de Deus

Depois, pensando melhor, será que a Rainha não vai atrás de seus súditos? Ela não é Mãe do Bom Pastor, que deixa noventa e nove ovelhas e sai à procura de uma? Por que não supor que a imagem d’Ela seja deslocada por filhos muito devotos para que um outro filho a veja? E, assim, todos A amarem, A festejarem, A glorificarem e A celebrarem juntos? Isso é tão adequado, tão magnífico!

Eu rezo frequentemente, sobretudo no momento da Comunhão, pedindo a graça de levar minha devoção a Nossa Senhora absolutamente tão longe quanto a Doutrina Católica permita. Não desejo ir um milímetro além disso, mas quero levá-la até o último ponto onde caiba dentro da Doutrina Católica. E isso representa um céu, porque o homem não consegue sondar com o olhar o firmamento da devoção a Ela.

Tomemos em consideração que Ela é chamada por São Luís Grignion de Montfort “o Paraíso de Deus”. Quer dizer, na felicidade eterna e perfeitíssima que Deus tem em Si mesmo, quis ter Maria Santíssima como seu Paraíso. Compreendemos, assim, qual é a elevação e quais são os dons d’Ela, e até onde deve ir a nossa admiração e nosso amor Àquela a Quem, num certo sentido da palavra, o próprio Deus admira, e que Ele criou para ter o gosto de admirar.

Imagens existentes no quarto de Dona Lucilia

No oratório de minha mãe em minha casa, colocada sobre uma peanha, há uma imagem do Sagrado Coração de Jesus. À frente, em um nível mais baixo, há três imagens: uma de marfim, dada a ela por um padrinho de casamento, que por coincidência era também juiz, e a quem mamãe chamava de “meu juiz”. Não conheci este homem e nem sei seu nome. E tampouco ela sabia de que santa era aquela imagem. Mas a conservava por respeito, por saudades.

Há também uma imagem do Menino Jesus, e depois, correspondendo à mão direita da imagem do Sagrado Coração de Jesus, uma imagem de Nossa Senhora das Graças.

Por seu estilo, esta última parece ter sido feita antes de meu nascimento, pois é da mesma escola da imagem do Sagrado Coração de Jesus, que é certamente anterior ao meu nascimento. Portanto, desde a minha primeira infância foi uma das imagens de Nossa Senhora das Graças para a qual olhei.

Eu vi Dona Lucilia rezar muitas vezes para essas imagens, com muita devoção, muita atenção, muita confiança. Sem acontecer nada de milagroso ou de extraordinário, eu notava uma consonância entre ela e a imagem do Sagrado Coração de Jesus, mais ou menos como se Ele estivesse refletindo-Se nela. E havia também uma consonância, quando mamãe rezava para a imagem de Nossa Senhora das Graças. E cada vez que ela a osculava, eu tinha a impressão de que toda essa doçura se refletia também em mamãe. E, no modo de ela rezar, punha aquilo ao nosso alcance.

Alguém poderia me perguntar: “Mas se é assim, por que o senhor não tira aquela imagem daquele oratório e a põe ao alcance dos seus olhos continuamente?”

A resposta é: Não se deve estar a provocar coisas de modo contínuo. Quando minha mãe morreu, a imagem estava lá. Inúmeras vezes, durante minha vida, eu a olhei. Mas acho que não a devo tirá-la de lá. Ela está onde mamãe a deixou quando faleceu, tendo ali passado grande parte de sua vida. Eu nunca vou ao quarto sem olhar para a imagem e rezar um pouco. Mas não seria homem de, por assim dizer, forçar a continuidade da graça, pondo uma imagem de Nossa Senhora das Graças diante dos meus olhos, e dizendo: “Agora eu Vos agarrei”. Não é do meu gênero. Há imponderáveis que levam a uma outra atitude. É o que eu teria a dizer.

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/10/1981)

Revista Dr Plinio 188 (Novembro de 2013)

 

1) Nome da rua onde se encontra o Convento das Filhas da Caridade, em Paris, França.

2) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir em favor da Igreja e da implantação do Reino de Maria.

3) Cf. Mt 7, 7.