Do primeiro ao último Natal…

Como o Natal seria comemorado pela Sagrada Família?

Embora não conheça nenhuma descrição a esse respeito, eu imagino que na noite de Natal Nossa Senhora e São José celebrassem o aniversário do Menino Jesus. Um dia tão grandioso, onde os próprios Anjos cantaram “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens por Ele amados”1, não seria festejado pela Sagrada Família?

Imaginemos o Menino Jesus aos dois anos de idade, deitado em sua caminha, e Nossa Senhora e São José aproximando-se para adorá-Lo, à meia noite do dia 24.  Em certo momento, o Menino acorda e abre os olhos. Que olhar! Abrindo os braços para ambos, Ele os abraça e os beija.

Assim devia ser esta santa noite até o primeiro Natal no qual São José não estava mais presente. Certamente, do Limbo ele comemorava e rezava. Mas, quem sabe se ele não aparecia para preencher o vazio de sua ausência?

Durante os três anos de sua vida pública, Nosso Senhor terá passado o Natal longe de sua Mãe Santíssima? Se assim foi, Ela estaria sozinha — acompanhada apenas pelos Anjos que, extasiados, viam-Na rezar —, entregue às recordações passadas e às previsões futuras. Apesar disso, a alegria natalina penetrava em sua alma, e Maria tinha um Natal feliz.

Após a Ascensão, não estando mais Nosso Senhor presente, a Igreja — que ainda pequenina crescia como uma plantinha — a cada ano tornava o Natal mais belo e mais sagrado, introduzindo uma nova cerimônia, uma novo ritual.

Com a subida de Nossa Senhora ao Céu, começou a longa série dos Natais em que, de modo visível, nenhum dos membros da Sagrada Família estava mais presente.

Assim, vai-se caminhando pelas vias — ora dolorosas, ora esplendorosas — da História, até o último Natal…

Como será o último Natal da História?

Pode-se imaginá-lo pouco antes do fim do mundo: toda a humanidade perdida, o pecado campeando no mundo, e um pequeno grupo de fiéis que ainda celebram o Natal.

Talvez haja até um contra-Natal, feito de blasfêmias, imundícies e opróbrios de toda ordem.

Entretanto, esse contra-Natal não tirará a alegria de um punhadinho de fiéis que estarão assistindo a uma Missa.

Em que catacumba seria celebrada essa Missa? Embaixo da terra ou num quartinho apertado do 200º andar de um prédio? De qualquer forma, seja onde for, o mesmo se passará: um vácuo no curso da dor é aberto, e surge uma alegria: Jesus nasceu, nasceu em Belém!

Após darem-se as últimas catástrofes e todos os homens morrerem, uma voz brada conclamando todos à ressurreição.

As sepulturas se abrem, de toda parte saem mortos que ressuscitam e se apresentam.

Nesta ocasião, mais uma vez Nosso Senhor Jesus Cristo virá visivelmente à Terra, em pompa e majestade, para julgar os vivos e os mortos. A História estará terminada!

O Céu será, então, um perpétuo Natal, uma perpétua felicidade!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)

Um Menino nascido para o combate

No dia de Natal a Cristandade é convidada a contemplar o Menino Jesus tão pacífico, o Príncipe da Paz que, de braços abertos, sorri para quem d’Ele se aproxima. Nesse momento, Ele recebe do que a humanidade tem de mais sublime e magnífico, ou seja, Nossa Senhora, o sorriso cheio de uma pureza e de uma luminosidade indizíveis. Logo depois, junto a Ela, um varão tão excelso que de algum modo teve proporção para ser seu esposo e pai jurídico do Menino Jesus: São José.

Acentua-se com razão tudo quanto há de belo, de poético no boi e no burro que, na gruta de Belém, olham para o Menino Jesus, bem como no contraste enorme entre Deus feito homem e aquelas criaturas irracionais que, com seu bafo, aquecem o ambiente onde está o Divino Infante.

Dir-se-ia que considerações de luta não caberiam nesse quadro. Entretanto, isso é assim apenas para quem não sabe ver na entrada do Menino-Deus no mundo a grande guerra d’Ele que se inicia. Com quanta propriedade o Menino Jesus é apresentado, no presépio, sorrindo e de braços abertos. Esse gesto significa a abertura do amor d’Ele para os homens, em todos os tempos e lugares, mas também a Cruz na qual, por amor aos homens, Ele seria pregado.

O Menino Jesus, vindo à luz do dia, ao entrar na Terra saído do claustro augusto e virginal de Maria, provavelmente abriu os seus braços em cruz e imediatamente ofereceu ao Pai Eterno a grande luta que ia começar.

Batalhador divino, mas pequenino, Deus infinito encarnado numa criança que quis ficar na dependência de tudo e de todos, sendo o Criador onipotente do Céu e da Terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Ele vem à Terra contrariando as forças opostas do demônio, do mundo e da carne e, como um guerreiro que entra na liça para começar a guerra, ali está o Menino-Deus no presepe! 

É interessante notar que de todas as páginas do Evangelho, talvez em nenhuma o papel de Nosso Senhor enquanto gladífero venha tão bem acentuado quanto no momento em que o Profeta Simeão recebe de Nossa Senhora o Menino Jesus nos braços e profetiza: “Eis que este Menino foi posto para a queda e para o soerguimento de muitos em Israel, e como um sinal de contradição, para que se revelem os pensamentos íntimos de muitos corações” (Lc 2, 34-35).

Portanto, aquele mesmo Menino tão encantador, que nos é apresentado no presépio na noite de Natal, é o grande divisor da humanidade. Ao longo de toda a História, Ele escandaliza os escandalosos, os sem-vergonhas, os maus, os hipócritas, denuncia-os, colocando-os mal à vontade, e eles sempre se insurgirão contra Ele. Aquela Criança conduzirá uma grande batalha até a consumação dos séculos.

Como seria interessante haver numa igreja, ao pé do presépio, uma inscrição recordando que aquele Menino tão engraçadinho e inocente, com os braços em forma de cruz, nasceu para o combate.

 

Senhor, venha a nós o vosso Reino

Se, em todas as épocas da história cristã a data do Natal abre uma clareira alegre e tranquila no curso normal e laborioso da vida de todos os dias, em nossa época a trégua natalícia assume um significado especial, porque vale por um grande e universal “sursum corda” clamado a uma humanidade tumultuosa e sofredora, que vai imergindo aceleradamente no caos da mais completa dissolução moral e social.

Nossa época é um vale sombrio entre duas culminâncias: a civilização do passado, da qual decaímos através de sucessivas catástrofes que começaram com a pseudo-Reforma, e culminaram com os totalitarismos da direita e da esquerda; e a civilização do futuro, para a qual caminhamos através de lutas e de dissabores que enchem, a cada momento, de cruzes o nosso caminho.

Por isso mesmo, porque vivemos nos últimos minutos de um mundo que expira, e já vemos os sinais precursores de um outro mundo que nasce, a lição do Natal tem para nós um significado profundo, que devemos meditar no dia de hoje.

Ruína do mundo antigo e a promessa de um Salvador

[Antes de tudo, tratemos brevemente] das aspirações que a humanidade pré-cristã nutria a respeito da vinda de um Salvador. O povo eleito esperava a salvação por meio de um Messias, nascido do tronco de David, conforme a autêntica e insofismável promessa de Deus. Todos os outros povos da terra, não tendo embora recebido as mensagens divinas por meio dos profetas, conservavam uma reminiscência da promessa de um Salvador, feita por Deus a Adão e Eva, quando da saída destes do Paraíso. E, por isto também, eles conservavam, ora mais ora menos deformada, a esperança tradicional de que um Salvador haveria de regenerar a humanidade sofredora e pecadora.

Esta esperança, entretanto, chegou ao seu auge na época em que Nosso Senhor veio ao mundo. Como afirmou um historiador famoso, toda a humanidade, então, se sentia velha e gasta. As fórmulas políticas e sociais utilizadas já não correspondiam aos anseios e ao modo de ver dos homens do tempo. Um imenso desejo de reforma sacudia diversos povos. A luta de classes fervera, não havia muito tempo, na Grécia, na Itália, na Fenícia, em outros países ainda. A organização política se tornava cada vez mais opressiva. Roma dilatara por todo o mundo as fronteiras de seu Império, e a Cidade Eterna era, naquela época, não a rainha, mas a tirana da humanidade inteira, que ela sujeitava às mais injustas extorsões para pagar as orgias dos patrícios romanos.

Em todos os países, o contraste entre a riqueza e a miséria era patente. De um lado, homens riquíssimos viviam no fausto e no luxo desordenado. Do outro lado, uma multidão de sem-trabalho infestava muitos bairros de grandes cidades de então. Finalmente, como negro fundo de quadro, milhões e milhões de escravos, acorrentados nos porões das naus, ou atrelados como animais aos carros de transporte, ou presos indissoluvelmente ao arado, gemiam sob o guante de uma opressão que parecia não ter mais fim.

Uma imensa corrupção de costumes se alastrava por todo o território do Império, e punha em ruína todas as instituições políticas. Os escândalos se multiplicavam nas fileiras da mais alta aristocracia e daí se projetavam sobre todas as camadas da sociedade. Augusto tentava em vão reagir contra a crescente decadência. Não surtiam efeito suas leis reacionárias. Era no seio de sua própria família que as aberrações mais monstruosas se multiplicavam. E todo mundo sentia que uma crise imensa ameaçava a sociedade de uma ruína inevitável.

Numa gruta de Belém, a salvação do mundo

Foi neste ambiente, enquanto os homens de Estado e os moralistas da época discutiam gravemente sobre tantos e tão insolúveis problemas, que, no estábulo de Belém, no meio de uma noite profunda, raiou para o mundo a salvação. É possível que, no momento exato em que o Salvador nasceu, o orgulhoso imperador romano estivesse em seu palácio, entregue às mais amargas reflexões que lhe sugeriam o fracasso de sua política moralizadora. É possível que, a pouca distância da casa imperial, se prolongasse pela noite adentro alguma daquelas descabeladas orgias que eram o tema obrigatório dos patins [mexericos] da época. Nem uns, nem outros, nem o genial imperador, nem os sibaritas que punham a perder a sociedade, tinham ideia do que naquele momento ocorria em Belém.

Entretanto, não era no palácio imperial, nem nas orgias aristocráticas, nem nos conciliábulos dos conspiradores, que o destino do mundo se decidia. A sociedade do futuro, oriunda da solução perfeita e completa dos mais importantes e vitais problemas da época, nascia em Belém, e era das mãos virginais de Maria que o mundo recebia o Messias que haveria de redimi-lo com seu sangue e reorganizá-lo com seu Evangelho.

Nossas esperanças têm de estar na Igreja e no Papado

Qual a lição primordial que daí devemos tirar?

É, em primeiro lugar, que, assim como para a humanidade do tempo de Augusto a solução dos mais intricados problemas sociais e políticos não foi encontrada a não ser em Cristo, assim também, em nosso tempo, é só na Igreja Católica, o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, que devemos concentrar nossas esperanças.

É possível que, imitando inconscientemente a vigília de Augusto na noite de Natal, muito césar hodierno (que diferença de envergadura entre o César autêntico e seus fac-símiles contemporâneos!) tenha passado a noite de Natal, indiferente à piedade das massas que oram nas Igrejas, debruçado sobre uma mesa de trabalho, a excogitar meios para arrancar do atoleiro da crise contemporânea sua pátria sofredora.

É possível que, nessa mesma noite, as orgias desmandadas de muito palácio (não mais os palácios da aristocracia como na Roma antiga, mas os suntuosos “dancings” modernos, palácios que o mundo hodierno erige em honra de sua própria corrupção) façam estrugir o silêncio da noite com o som das músicas profanas do “réveillon”.

É possível que muito conspirador esteja tramando a revolução e a guerra, no silêncio da noite, enquanto o povo comemora o nascimento do Príncipe da Paz.

Sem embargo de tudo isto, não é dos novos césares, nem do conspirador de nossos dias e muito menos da sociedade que se corrompe nos “dancings”, que nos virá a salvação. Se somos católicos, devemos esperar a salvação exclusivamente de quem representa Cristo hoje na terra. É para [o Papa], e só para ele neste mundo, que devemos voltar nossos olhos.

As preces de Maria anteciparam a Redenção

Mas ainda há outra reflexão da maior utilidade. Todos os teólogos são acordes em afirmar que, se a salvação raiou para o mundo na época em que raiou, devemo-lo às preces onipotentes de Maria, que conseguiu antecipar o dia do nascimento do Messias. Ninguém pode dizer quantos anos ou quantos séculos teria ainda demorado a Redenção, sem as preces de Maria.

Não foi, pois, daqueles que, no tempo de Augusto, se agitavam nas praças públicas ou nos conciliábulos políticos para conseguir a reorganização do mundo, que esta reorganização veio. Ela veio da oração humilde e confiante da Virgem Maria, inteiramente ignorada por seus contemporâneos, e vivendo uma vida contemplativa e solitária, no pequeno recanto, onde a Providência a fez nascer.

Sem, com isto, desmerecer por pouco que seja a vida ativa, é preciso notar que foi por meio da oração e da contemplação, que se antecipou o momento da Redenção. E que os benefícios que o gênio de Augusto, o tino de todos os grandes políticos, todos os grandes generais, financistas e  administradores

de seu tempo não puderam dar ao mundo, Deus os dispensou por meio de Maria Santíssima. Quem mais beneficiou ao mundo não foi quem mais estudou, nem quem mais agiu, mas quem mais e melhor soube orar.

Que se realize o Reino de Cristo em nós e fora de nós

Se o mundo contemporâneo quiser sair do caos em que se encontra, ele deve, em primeiro lugar, voltar-se para a Igreja.

É com uma suave e austera lição, que se termina esta breve meditação de Natal. É sobretudo dos lutadores da Ação Católica, e das almas eleitas que Deus chamou ao estado sacerdotal ou ao religioso para viver a vida da ação ou a vida de oração, que, no plano humano, pode depender uma antecipação ou um retardamento da restauração do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Cônscios da grandeza desta missão, o que nós, os leigos que militam pela Igreja devemos fazer, é uma prece junto ao presepe do Senhor Menino.

“Domine, adveniat regnum tuum”.

“Senhor, venha a nós o vosso Reino”, que nós o realizemos em nós, para que depois, com vosso auxílio, o realizemos também em torno de nós.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído com adaptações, de “Legionário” nº 328, 25/12/1938. Títulos e subtítulos nossos)

Maria e seu Divino Infante: Insondável união

Coração de Maria, no qual foi formado o Sangue de Jesus, preço de nossa Redenção rogai por nós.

 

Esta jaculatória, da Ladainha do Imaculado Coração de Maria, além de sua particular unção, encerra um significado sumamente elevado e belo, que vem muito a propósito considerarmos nesta
véspera de Natal.

“Caro Christi, caro Mariae”

Com efeito, pelas leis comuns da reprodução da espécie, o homem traz consigo algo do sangue do pai e algo do sangue da mãe. Entretanto, o preciosíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo,  bem como sua carne sacratíssima, foram exclusivamente formados de Nossa Senhora. E isto porque, em se tratando de milagrosa concepção da parte de uma Virgem, nela não interveio obra de varão. Motivo pelo qual podemos repetir o que, com inteira propriedade, afirmou Santo Agostinho: “caro Christi, caro Mariae”. A carne de Cristo é, de algum modo, a própria carne de Maria.

Em Nosso Senhor Jesus Cristo não havia senão o sangue da Santíssima Virgem, que Ela, com amor e comprazimento indizíveis, forneceu a seu Divino Filho, o Redentor do  gênero humano.

O Homem-Deus se fez escravo de Nossa Senhora

A consideração desse fato tão singular e tão maravilhoso nos ajuda a compreender melhor o que pode ter sido o período em que Nosso Senhor esteve em gestação no corpo de Maria.

Não há maior sujeição nesta terra do que a de uma criança à mãe que a carrega no seio, dando-lhe todos os elementos vitais para a constituição de sua parte física. Ora, durante nove meses consecutivos, Nosso Senhor quis pertencer inteiramente a Nossa Senhora. Jesus, o esperado das nações, o homem tão perfeito que não é simplesmente homem, mas é Homem-Deus porque a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade se uniu hipostaticamente à sua natureza humana Jesus quis se fazer escravo de Maria.

E desde o instante em que o primeiro elemento do corpo d’Ele começou a existir, como era perfeito! Começou a pensar, começou a orar e, conhecendo perfeitamente de que mãe era filho, deve ter  dito a Ela uma palavra de amor. Pode-se calcular qual foi essa primeira palavra de afeto e carinho d’Ele para a Santíssima Virgem,  e qual foi a resposta d’Ela ao sentir uma ternura que Lhe vinha do Filho-Deus?

Que terá Ela respondido a Jesus? Meu Deus? Ou Lhe terá chamado meu Filho? Ou, ainda, com maior desvelo e solicitude, tê-Lo-á agradado dizendo Filhinho? Quanta riqueza de alma é preciso ter para responder adequadamente a esse primeiro carinho do Verbo Encarnado!

Que noção dos matizes e das situações! Que exímia e completa disponibilidade de alma para corresponder a tudo perfeitamente, e oferecer a Ele esta premissa incomparável: o ato de amor inicial  que o gênero humano Lhe tributava!

Crescente e insondável união

Além disso, quantas e quão elevadas disposições de alma Nossa Senhora deve ter sentido, quando notava o Filho mexer-se dentro d’Ela? Nesses momentos, por certo Lhe vinham pensamentos  como este: Deus se move em Mim! Aquele a quem o Céu e a terra não puderam conter, está no meu claustro, porque Deus assim o quis. Ei-Lo que se move em Mim delicadamente, amorosamente,  nobremente, com uma movimentação cheia de símbolos e de mistérios. Ouço, sinto e rezo, porque são mensagens para Eu compreender, são comunicações para Eu entender…

Oh recolhimento! Oh oração! Oh prenúncio do que  deveriam ser ao longo dos séculos as almas eucarísticas que têm a felicidade sem nome de, a cada dia, por alguns instantes ter no seu próprio peito a Nosso Senhor Jesus Cristo! Oh maravilha!

E assim como o Santíssimo Sacramento comunica suas graças e se une às almas que se lhe tornam sacrários vivos, tudo indica que, pelas leis da reciprocidade, à medida que a Santíssima Virgem ia  ando de seu próprio corpo a Nosso Senhor, Ele como que retribuía, conferindo-Lhe seu espírito. Nossa Senhora ia crescendo, pois, em união com Ele de modo insondável. De tal modo que, quando a obra puríssima das entranhas d’Ela chegou a seu termo e se encontrava prestes a nascer na noite de Natal, o vínculo entre ambos havia atingido um ápice inconcebível. Ela estava pronta para ser, em todos os sentidos da palavra, a Mãe do Redentor.

Diálogo inimaginável

O longo período de indizível e misterioso convívio cessa. Os Anjos se rejubilam e cantam nos Céus. Numa gruta dos arredores de Belém, Jesus vem ao mundo. Nosso espírito se sente pequeno, ao  procurarmos imaginar o embevecimento de Nossa Senhora ao ver a face do Menino Jesus, e o arroubo que sentiu, quando recebeu d’Ele o primeiro agrado externo… Quando O viu voltar-se para São José e manifestar afeto também a ele. Quando, percebendo que Jesus sentia fome, compreendeu que Lhe competia, com seu leite indizivelmente precioso, saciar o Filho de Deus. Quando, ao vê-Lo passar frio e incômodo na manjedoura, se desdobrou em mil cuidados, para melhor agasalhá-Lo e para Lhe aumentar o conforto no rude tabuleiro que lhe servia de berço. E quando, ao sentir bafo dos animais que O aqueciam, disse-Lhe com inexcedível amor: Meu Deus, tão pouco para Quem é tanto!

E quando o Menino, sem proferir palavras, respondeu-Lhe no fundo da alma: O que é pouco para Mim, quando tenho a Vós?

Quem pode imaginar semelhante diálogo?!

Somente por meio de Maria chegamos a seu Divino Filho

Pode-se notar, por essas considerações, como a união de almas entre o Menino Jesus e Nossa Senhora é estritamente insondável para a mente humana. Entretanto, essa mesma insondabilidade  nos faz compreender melhor o papel da Santíssima Virgem como intercessora e medianeira; deve, pois, arraigar-se ainda mais em nossas almas a convicção de que, para nos aproximarmos do Divino Infante, é indispensável achegarmos-nos antes a Nossa Senhora. Ficarmos junto d’Ela, amando-A de todo o coração, é a forma mais segura e acertada de estarmos junto de Deus, porque Deus está sumamente próximo de sua Mãe, tanto quanto Ele o possa estar de uma criatura.

Nossa Senhora é a Porta do Céu, a Arca da Aliança. E assim como aquele Menino veio a nós por meio de Maria, assim também somente podemos chegar a Ele por meio d’Ela. 

Plinio Corrêa de Oliveira

Onde o "Lumen Christi" ainda cintila…

Distantes já se encontram os séculos que conheceram os esplendores da cristandade européia. Porém, ainda hoje, em determinados palácios, monumentos, igrejas e praças do Velho Continente  pode-se contemplar uma reverberação do espírito católico que os concebeu e realizou. Pode-se discernir neles um prolongamento de certos atos de virtude ali praticados, que marcaram esses  ambientes com qualquer coisa de imponderável que faz deles, no presente, uma espécie de relíquia. São restos e símbolos sagrados de uma época em que a ordem temporal, com seus aspectos  sociais e econômicos, procurou ser em tudo conforme com a Doutrina Católica. São reflexos da alma de gente batizada, que correspondeu aos desígnios da Providência e engendrou maravilhas  segundo a mentalidade da Igreja.

Sim, algo das graças da antiga Civilização Cristã continua ligado a esses lugares, à maneira de vestígios de um requintado aroma aderentes a velhos muros e velhas paredes. E quando algum  peregrino, admirador das grandezas de outrora, passa junto a essas paredes e esses muros, pode ele sentir o evolar-se do perfume, isto é, ter ideia daquelas graças que ainda pairam sobre tantos ambientes e monumentos da Europa.

É o que sucede quando se visita, por exemplo, a pequena cidade de Genazzano, a poucos quilômetros de Roma. Nela se percebe como conceitos de vida, princípios de organização social e de  existência pública, profundamente impregnados de religião católica, marcaram toda a edificação das casas, a disposição das praças, bem como o traçado de ruas e veredas. Sente-se ainda ali  palpitações de coisas do passado, de sociedade orgânica italiana, pervadida de tradições cristãs e de milagres operados pela imagem da Mãe do Bom Conselho.

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O santuário é uma igreja em estilo renascentista, de tamanho razoável, com mármores muito bonitos e uma ornamentação que, felizmente, não tende para certos exageros disparatados da Renascença. É um templo digno e composto. Na nave à esquerda de quem entra aparece um gradeado, atrás do qual se ergue o altar onde se venera o afresco milagroso de Nossa Senhora de Genazzano. Cercada de toda a veneração que lhe é devida, a imagem exerce indescritível atração sobre o fiel que lhe dirige suas preces. E pode-se dizer que Genazzano é um extraordinário aspirador  e orações: rezando ali, tem-se a impressão de que nossas súplicas vão de fato para o
Céu. É uma verdadeira maravilha.

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Complementando a imagem e o santuário, espraiam-se pela cidade ruas e casinholas prodigiosamente interessantes.

Um pitoresco urbanismo que, concebido para fazer caber Genazzano dentro de suas vetustas muralhas, exprime um estado de alma sadio, com qualquer coisa de inventivo e encantador, que o  situa acima de muitas “belezas” modernas…

O casario, contudo, é construído o mais ao léu que se possa imaginar, com aspectos bastante curiosos. Numa determinada fachada, por exemplo, o visitante pode avistar uma pequena janela com  enquadramento românico. Aquilo é um dedinho de Idade Média, e de Idade Média iniciante, porque o estilo românico ainda não é o gótico, embora já contenha o sabor deste. A janela é cheia de  fantasia, de poesia, de expressão, sem ser teatral.

Nota-se que quem a abriu teve uma preocupação apenas de arejamento, pensou tão-só no lado prático de bisbilhotar o movimento na rua e comentá-lo com o vizinho.

Não raras vezes é essa a origem de semelhantes detalhes. Mas, vai-se ver, eles se mostram pitorescos, poéticos, interessantes, cheios de vida, de uma espontaneidade ao mesmo tempo ousada e harmônica. O fundamento dessa poesia e dessa beleza está em que, sendo tais realizações animadas pela graça divina, acabam exprimindo uma harmonia, pode-se dizer, mais pensada por Deus que pelos homens.

Um teórico da Renascença afirmaria que todas as espontaneidades, caso não sejam controladas pela razão, redutíveis a normas e seguidas como sistema, redundam num horror. Ora, a tese  verdadeira, conforme a doutrina cristã, é outra: quando a alma está penetrada pela graça de Deus, realiza espontaneamente coisas de extraordinária formosura, que têm uma ordenação superior, e que expressam elevados princípios, nem sempre susceptíveis de serem convertidos em termos mais simples.

Assim, compraz considerar em Genazzano essa arquitetura, filha da virtude, libertada dos grilhões da arte sistemática, das regras coercitivas, e entregue à alegria de si mesma. Dir-se-ia um pouco  a felicidade do sol, da natureza amena, a alegria da vida cotidiana, alegria da saúde (que seus habitantes possuem de forma impressionante!), enfim, mil alegrias, mas sobretudo a alegria da Fé.

O que torna agradável o passeio em Genazzano é embeber-se dessa espontaneidade, é ouvir esse cântico de um povo batizado, é deixar-se tomar pelas coisas vivas,  claras, bruscas, pelo imprevisto e pelos aparentes entrechoques das harmonias. Variegados aspectos que a alma do homem contemporâneo tem necessidade de contemplar, de acariciar até, experimentando mais ou menos a sensação que nos colhe quando vemos surdir do chão uma água límpida, despoluída, que brota meio cantante das profundezas da terra. Tal é a vida, quando ela nasce do populino católico.

O mesmo populino que construiu as casinholas encantadoras, algumas aprumadas, outras trôpegas, essa aconchegada a um canto de muralha, aquela elevando-se sobre uma espécie de arcada, de  maneira que dá meio para o plano, meio para um precipício.

O mesmo populino que traçou essas ruas interessantes, alargando-se em pequenas praças, escondendo-se em becos, ou confundindo-se com escadarias de pedras diferentes, alheias a planos de  arquitetura. Pôs-se um degrau, outro e outro, sem a intenção de fazer algo pitoresco. Mas foi o que resultou do espontâneo. Às vezes aparece uma simetria, por acaso, sem ser calculada, porém  simpática, e faz com que o visitante descanse da espontaneidade anterior.

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Se formos analisar o ponto inicial de tantas bênçãos, chegaremos à grande irradiação de um “lúmen” existente na Idade Média, do qual os primeiros reluzimentos já se haviam feito sentir no tempo  das catacumbas. Esse “lúmen” estava para o mundo dos primórdios do cristandade como uma lamparina com uma linda chama, acesa numa catedral tão grande que, apesar de sua maravilhosa labareda, não se notava capaz de iluminar todo o recinto sagrado. No volver dos séculos, foi ele crescendo em intensidade, até atingir sua plenitude na civilização medieval.

E tamanha força adquiriu que, quando entrou em decadência a Idade Média, esta continuou todavia muito carregada desse lúmen: o “Lumen Christi”, a Luz de Cristo, cujas cintilações ainda podem  ser admiradas nas pitorescas ruelas e esquinas de Genazzano.

Nosso Senhor

Houve um pintor alemão que em certa ocasião pintou Nosso Senhor figurando-O como o Bom Pastor, batendo à porta de uma casa. Alguém, então, vendo o quadro, objetou-lhe:
— O senhor cometeu um erro na confecção desse seu quadro, porque essa porta não tem fechadura.

O pintor respondeu:
— É verdade, mas não foi erro. Esta porta simboliza o coração humano, no qual o Redentor bate, e não há fechadura do lado de fora, mas só de dentro.

Realmente certo tipo de abertura de alma a pessoa só faz por si mesma, e ninguém tem poder para interferir.

Pois bem, o jeito de fazer com que as almas se abram para que a graça possa entrar nelas é por meio do sacrifício, da oração, da aceitação da dor com que nos deparamos em nossa vida, carregando a Cruz de Nosso Senhor amorosamente, compreendendo ser normal que o homem sofra. E ele só é grande na medida em que sofre.

Os homens que carregam os grandes sofrimentos por amor de Deus são os únicos grandes homens da História. Os homens decisivos da História são os que souberam sofrer tudo, por fidelidade a Nosso Senhor.

É claro que esse sofrer não é apenas passivo: deixar cair as pancadas em cima da cabeça. Mas é um sofrer ativo, quer dizer, significa muitas vezes tomar a iniciativa da luta, combater, arrostar a opinião dos outros, aceitar de ficar posto em situações difíceis, contrafeitas, contraditórias. Enfim, todo o sofrimento da batalha mais intrépida, ousada e cheia de iniciativas. Tudo isso é sofrer, e até sofrer por excelência. Mas é preciso saber sofrer.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/2/1965)

A inebriante alegria do Natal

Com o intuito de avivar a confiança de que a atmosfera sacral dos Natais de outrora deverá reflorescer sobre a Terra, Dr. Plinio narra alguns fatos de sua infância.

Após um ano de lutas, sofrimentos e dificuldades, aproxima-se o Natal. As festas do Santo Natal, bem como as da Páscoa, a meu ver, têm a característica de interromperem o tempo. E ainda que se esteja na situação mais aflitiva, o Natal ergue uma muralha, deixando de um lado as desgraças e as lágrimas, e, do outro, os sinos que anunciam as alegrias natalinas.

Não se trata de uma alegria vulgar, mas uma alegria muito mais profunda e leve, que parece ser feita de luz. Feita da luz que é o “lumen Christi”, a qual passou a brilhar sobre a Terra na noite de Natal, e que a cada ano de alguma forma volta a brilhar, trazendo com ela a verdadeira alegria e a verdadeira paz de alma até para os mais atormentados.

Alegria por cima das aflições

Imaginemos, por exemplo, o que se dava nas catacumbas. O que deveria ser uma noite nas catacumbas? Lembro-me da Catacumba de São Calixto, em Roma, que me causou profunda impressão. Seus corredores são estreitos e altos — talvez a altura sirva para assegurar certa ventilação, pois se sente que nela circula certo vento. Mas as paredes se afunilam para cima, causando a impressão de que no alto vão se encontrar; isto ao menos para mim dava sensação de asfixia. E por todos os lados terra e sepulturas. Em certo ponto vê-se uma clareira, da qual filtra um pouco de luz, permitindo ver uma sala quadrangular com pinturas, muito antigas, feitas, por alguma técnica, diretamente sobre a terra; estas representam de modo ingênuo cenas do Evangelho. Ali se encontra um altarzinho, pois se trata de uma capela onde se celebrava a Missa, junto aos restos de novos mártires, mortos de modo cruel. O corpo do mártir ficava, muitas vezes, jogado na arena, todo estraçalhado. Terminado o martírio, o povo se retirava. Ao anoitecer, católicos heroicos, eles mesmos candidatos ao martírio, pois caso fossem pegos seriam também martirizados, em meio às trevas se arrastavam até o Circo Máximo ou até o Coliseu para pegar aqueles restos, os quais traziam em panos, embebidos em perfume, até as catacumbas onde entravam por um orifício oculto feito no chão.

Quando os que lá esperavam rezando recebem a notícia de que ali estão os restos de um de seus irmãos na Fé, imediatamente do fundo da terra ouve-se um cântico de triunfo. Pois aquele companheiro que na véspera tinham visto e com quem tinham conversado — até que devido a uma vistoria policial na catacumba fosse capturado e, cheio de aflição, levado para ser martirizado — após tantos sofrimentos ele está no Céu. Por isso todos cantavam de alegria.

Quando alguém recebe graças especiais, até nessa situação ela pode sentir alegria, a tal ponto que havia mártires que apesar de triturados pelas feras morriam alegres.

Inebriados pelo Sangue de Cristo

Agrada-me ouvir cantar o Anima Christi, no qual há uma jaculatória que diz: Sanguis Christi, inebria me! Sangue de Cristo, inebrie-me! O que isso quer dizer? O que é esta embriaguez do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo? Um exemplo é o do mártir que tendo comungado do Corpo e do Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, embriagado da alegria, fruto da graça do Espírito Santo, procede como um ébrio, não tendo medo diante do perigo e da dor. Pelo contrário, de tal modo o inunda a alegria sobrenatural que se lhe dissessem que a fera não vem, ele era capaz de ficar desapontado, pois para ele a boca do tigre era a porta do Céu, e as presas que ele vê enquanto a fera uiva são para ele os instrumentos benfazejos que vão romper os laços que o prendem à Terra, permitindo que sua alma possa voar junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

A graça pode produzir esse efeito, e não é tão raro que o faça.

Em algo sentimos este efeito da graça quando, em meio a aflições, tormentos e lutas, vemos nossas almas encherem-se das santas alegrias do Natal, que vencem até as maiores angústias. Ao menos para os que não rejeitam essa graça.

A noite de Natal de outrora

Para que se sinta um pouco o que é esta graça, creio não ser descabido narrar algumas recordações, na tentativa de fazer reviver aqui aquilo que na pobre São Paulo de hoje, embora tão rica, quase não se nota mais: as alegrias e vivas impressões que outrora se sentiam nas noites de Natal.

Como era um Natal no ano de 1920? Portanto, Natal dos últimos anos de minha infância?

Havia qualquer coisa que alguém poderia dizer tratar-se de imaginação, mas digo que tenho a convicção interna de não se tratar de imaginação, mas da graça, que era dada a mim, como a todas as crianças de meu tempo, ao menos as que eu via e conhecia.

Era uma graça geral. As crianças, já alguns dias antes do Natal, viam-se invadidas por uma expectativa e por uma alegria na esperança das festas que iam se realizar. A perspectiva da festa, no que ela tem de terrena, desempenhava um papel na alegria das crianças. Elas sabiam que São Nicolau, o santo Bispo afável, viria de noite enquanto todos dormiam e colocaria presentes junto a elas: nos lares abastados, grandes caixas; nos lares mais pobres, com menos condições financeiras, caixinhas de presentes pequenas, mas cheias de afeto. Mas em todo lugar onde houvesse uma mãe, digna realmente de assim ser chamada, um pai solícito e merecedor deste título, alguma coisa punham junto à cama do filho. O que para o filho consistia uma maravilha, que ele esperava com alguns dias de antecedência.

Inundadas pelas alegrias de Natal, as crianças ficavam melhores

Esta alegria se fazia sentir dois ou três dias antes do Natal. Ao andar um pouco, correr pelo jardim, brincar, tudo se fazia cheio de um bem-estar próprio à inocência da infância, à espera do Natal. Esta alegria em boa medida era motivada por alguma coisa mais alta e que já era um prenúncio da alegria estrita e definidamente religiosa do Natal que estava por vir. Algo de especial começava a nos encher as almas.

Nesses dias, todas as crianças ficavam melhores: as que mentiam, passavam a mentir menos; as que não mentiam censuravam alguma que mentisse; as que eram pouco observantes dos horários de casa tornavam-se mais pontuais. Sentia-se em todos mais limpeza de alma. E esta alegria de ter a alma limpa não se compara a nenhuma outra ao longo da vida. O que pode se comparar ao bem-estar, por exemplo, de alguém que se confessa e sai do confessionário com a certeza de ter sido perdoado?

Quem não se lembra com saudades de alguma vez ter se aproximado do confessionário com um problema de consciência e de lá ter saído transbordante de alegria pela certeza de haver sido perdoado? Essa alegria faz em algo lembrar aquela que se sentia nos dias que antecipavam o Natal, ainda sem ter se confessado.

Um princípio de pureza, de limpidez, de honestidade, de bondade e de candura parecia se fazer sentir sobre a Terra, atuando nas almas de todos os homens. As pessoas começavam a ser mais benévolas entre si, oferecendo-se favores. As crianças egoístas de bom grado emprestavam seus brinquedos, as birrentas faziam pequenos favores. E os mais velhos, por mais que não sentissem a mesma alegria que as crianças, por lembrarem-se dos Natais em suas infâncias, esforçavam-se por causar a impressão de estarem participando do mesmo contentamento, tornando-se especialmente solícitos e afáveis.

Bem-estar natural e sobrenatural

Os pais, ao menos os meus, levavam as crianças para ver os brinquedos de Natal. Em geral as melhores lojas de brinquedos eram alemãs e inglesas. Lembro-me de várias: Casa Fux, Casa Grümbach, Casa Lebre e outras. Entre elas havia uma onde minha mãe e a Fräulein costumavam levar minha irmã, uma prima que morava em nossa casa e eu. Esta ficava na Rua XV de Novembro; chamava-se Casa Mappin. Como o Natal vinha se aproximando, as crianças ao saírem de casa iam com roupa de gala, todas enfeitadas. Assim íamos também nós ver os presentes, os quais muito nos encantavam. Mamãe ficava prestando atenção para ver qual deles mais nos agradava. Por coincidência e para nossa maravilha e surpresa, São Nicolau trazia justamente aquele…

Uma das partes culminantes da preparação do Natal, para mim, sensível à gastronomia desde muito cedo, era quando íamos tomar um lanche na Casa de Chá do Mappin. O fundo desta Casa dava para um barranco profundo, embaixo do qual começava o Brás; era um descampado por onde entrava muito vento; nós ficávamos sentados lá, pois a Fräulein e eu éramos grandes apreciadores de vento. Este, mais o chá, os sanduíches, as torradas e o chocolate, me regalavam. Eu tinha a impressão de que o bem-estar de meu corpo em contato com aquele vento era análogo à alegria de minha alma em contato com as graças de Natal que se aproximavam, o que me cumulava ainda mais de desejo de que o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo chegasse o quanto antes.

Notava-se esta alegria natalina até nas mães que levavam as crianças pelas ruas do Centro, o qual se enchia especialmente; as crianças, todas alegres e satisfeitas, algumas já levando presentes, dando risadas e conversando. Quando passava uma criança assim mais vistosa, mais engraçada, as mães piscavam para a mãe daquela como que a dizer: “Mas que engraçadinha…” E a mãe ficava toda satisfeita. E assim era uma alegria geral.

De alegria em alegria até o ápice do Natal

Voltando para casa começavam os mistérios… Numa determinada sala não se podia entrar, pois a árvore de Natal estava sendo preparada, como em todo ano, com alguma novidade, uma estrela enorme, um anjo novo ou outros enfeites.

Quando uma criança conseguia ver algo da surpresa, corria para contar às outras, que tomavam a notícia com ar de grande importância. Em meio a essas alegrias passava-se o tempo até a noite de Natal, hora em que se ia à Missa do Galo. Aí o ambiente era completamente diferente.

Nós, morando perto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, para lá íamos a pé. Todas as casas estavam abertas e as luzes acesas. Andando pelas ruas percebia-se, em casas modestas como nas ótimas, que eram quase palácios, uma árvore de Natal acesa e ouvia-se lá de dentro um gramofone, dos mais antigos, tocando músicas de Natal. Percebia-se em cada família a alegria de Natal, todos estavam acabando de se aprontar para sair, deixando apenas um criado a tomar conta da casa. Logo os sinos começavam a tocar, avisando que a Missa ia começar.

Chegando-se à igreja, esta se encontrava feericamente iluminada, o altar se encontrava todo cheio de flores. Numa manjedoura via-se o Menino Jesus deitado. Quando soava meia-noite, o padre entrava e começava a Missa, durante a qual se sentia algo aparentemente contraditório, um misto de recolhimento e de explosão de contentamento.

Quando já se tinha idade, comungava-se. A Comunhão era o ápice! Encantava-me a ideia de que Nosso Senhor Jesus Cristo, que tinha nascido em Belém, numa daquelas noites, estava realmente presente em mim; era a hora dos pedidos, mas, sobretudo, tinha-se uma indescritível sensação de intimidade. Eu tinha uma estampa do Sagrado Coração de Jesus que representava Nosso Senhor segurando um menino, de cabelos cacheados pretos, e Ele com a mão em volta de seus ombros, apertando o menino para junto do peito. Em baixo desta havia uma jaculatória que dizia mais ou menos assim: “Ó Bom Jesus, tende piedade de mim!” Eu a rezava pensando: Nosso Senhor nesta hora está fazendo isso comigo…

Depois da Missa, tinha-se a impressão de que as graças de Natal se difundiam por todas as casas. Quando chegávamos à nossa, parecia que esta já não era a mesma que tínhamos deixado. Havia nela algo de religioso, de sacral, de recolhido, que causava verdadeira maravilha. A par desta atmosfera recolhida, sentia-se habitar na casa uma alegria, como igual não se sentia o ano inteiro. Começavam os cumprimentos e as felicitações, ao que eu era muito sensível, sobretudo aos carinhos e felicitações vindos de mamãe, com os quais eu já vinha contando como um complemento da noite de Natal. É impossível descrever o que é o ósculo de uma mãe católica a um filho que ela deseja que seja católico também! Depois das saudações, começava a festa de Natal, a qual já tive oportunidade de descrever outras vezes.

Delícias que se sentiam até dormindo

Terminada a festa de Natal, chegava a hora das delícias do sono, o qual era melhor na noite de 25 para 26. Porque como se sabia na noite anterior que São Nicolau viria entregar o presente, queríamos surpreendê-lo, mas sendo ele muito hábil, isto nunca acontecia. Porém, mantinha-se esta esperança. Até que, mais ou menos às quatro horas da manhã, sentia-se sobre os pés o peso da enorme caixa de presentes, e logo vinha a curiosidade de saber se São Nicolau tinha acertado, mas eu pensava: “Não posso acender o abajur porque meus pais, notando, me censurarão. De outro lado, como é gostoso sentir o peso desse presente, pelo qual posso avaliar o valor e o prazer que o presente me dará!” Pouco depois o sono infantil tomava domínio da situação e a criança dormia. Acordando de novo pouco depois, na sofreguidão de que o momento de se levantar tivesse chegado, para poder ver o presente, não sendo ainda hora, voltava a dormir.

Até que antes da hora de acordar, a criança já estava de pé, rompendo as fitas, os laços e os barbantes, para ver o presente, o qual era sempre um muito bonito, um dos quais se tinha gostado em alguma casa de presentes.

Por isso, o sono da noite de 25 para 26 era um sono pesado e gostoso, pela sensação da consciência tranquila, pelas influências do Natal Sagrado, sob cujo perfume se dormia, sabendo que no dia seguinte ainda se teria a recordação do Natal. Ainda tinha um feriado, para comer os últimos doces, beber os últimos ponches, brincar mais uma vez com os brinquedos, até se familiarizar com eles. Não se olhava com pesar para o implacável dia 26 que vinha. A noite de Natal era, portanto, um hiato luminoso, cheio de algo que não se consegue descrever, mas que todos sentiram, cada um em sua época.

Dia virá em que os verdadeiros Natais reflorescerão na Terra

Até que ponto os que são mais jovens sentiram isso? Receio que, quando muito, tenham visto apenas ligeiros fins disso.

Televisões ligadas o dia inteiro, rádios vociferando canções de Natal comercializadas, lâmpadas fluorescentes e laicas penduradas em torno de árvores, em jardins de prédios e em apartamentos, igrejas vazias. Eis o Natal moderno!

Põe-se a pergunta: O que resta de tudo o que descrevi? Será que de tudo isto só ficou a recordação? Muito mais do que isto, resta uma esperança! E no intuito de avivar essa esperança é que narrei estes fatos. Mas, de tudo isso só resta uma esperança? Não! Temos uma certeza! graças à promessa divina: “…as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16-18).

Esta certeza nos diz que um dia, após lutas, provações e batalhas, os verdadeiros Natais reflorescerão na Terra. E quando se assistirem a esses Natais, talvez alguém se lembre desta descrição que acabo de fazer, e tenha a convicção viva de que não é algo que está nascendo, mas é uma longa concatenação histórica que sai do fundo das águas da provação e volta à luz. Trata-se da verdadeira alegria do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Natais mais belos do que os de outrora

Apesar de toda a decadência que se nota nas festas de Natal atualmente, se comparadas com as de meu tempo, não hesito em afirmar que o Natal dos que, hoje em dia, lutam para permanecer fiéis ao verdadeiro espírito católico é ainda mais bonito do que os de outrora. E se eu, quando menino, pudesse ver como seriam os Natais que eu deveria passar nestes dias, sem dúvida exclamaria: “É para isso que eu nasci!”

Devemos, pois, lembrar que essas alegrias de Natal, sob o sorriso de Nossa Senhora, descerão sobre nós, ainda que estejamos na mais terrível aflição. Também nos deve animar a confiança de ver realizada a promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” Quando isto se der, que suavidade, harmonia e doçura terão as festas do Santo Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1984)

Cântico da alma inocente

Quem ouve o canto gregoriano pela primeira vez pode ser tomado pela impressão equivocada de que se trata de uma música no seu estágio rudimentar, exprimindo, com um “minimum” de  movimentação, estados de espírito mais comuns à condição social de uma civilização nômade, entregue sobretudo aos labores manuais, que apenas começa a dar conta de si mesma e de suas  vicissitudes de alma. E que, portanto, tem necessidades muito limitadas e circunscritas para serem expressas através de melodias e cânticos.

Daí uma música, enquanto sonoridade, pouco desenvolvida, um canto monótono, próprio desses espíritos primitivos e de uma liturgia igualmente elementar, sóbria, com movimentos escassos,  não obstante os adornos e paramentos eclesiásticos de indiscutível beleza.

Segundo essa concepção, a Igreja terá passado séculos e séculos atraindo almas neurastênicas, debilitadas ou não desenvolvidas, um beatério que correspondia à camada mais rudimentar da  sociedade, a única disposta a se sentir tocada e enlevada na tediosa ambientação criada pelo canto gregoriano.

Sem dúvida, uma ideia errada. No universo das maravilhas engendradas pelo espírito católico, o gregoriano aparece exatamente com predicados contrários aos do que essa falsa impressão lhe  empresta. Ele surge nos albores da Idade Média, numa civilização que ainda não conhecera os poetas clássicos nem a literatura convencional, que não usou ruge nem batom, que não pretendeu ter ciências esclarecidas e modernas, mas possuía um extraordinário ímpeto para o belo e para a pulcritude.

Tinha-se um vigor e uma fecundidade espiritual imensos, com uma profusão de percepções, de concepções primevas, de observações e contemplações que redundava numa produção artística e  social potentíssima, cada alma elevando-se no seu próprio espaço, erguendo-se como palmeiras, sem disputar terreno umas com as outras, formando uma linda e vasta floresta.

Um dos produtos dessa grandeza de alma foi o canto gregoriano. E se este não apresenta os acentos retumbantes das músicas que nasceram nos séculos posteriores, é porque foi concebido com o  cuidado da discrição, da humildade daquilo que precisa do seu isolamento, que evita de se expor à luz do sol do convívio com quem poderá entendê-lo mal, banalizá-lo e que, no total, não foi feito  para a intimidade com ele. Íntimos, são poucos…

Então, ele como que hesita em pôr a pleno som para uma igreja os seus sentimentos. Há nele uma certa “retenue”, assim como há, de outro lado, o receio de, à força de se exteriorizar, apegar-se   vaidosamente ao seu timbre.

Porque, de si, é tão inebriante a faculdade de se exprimir, que a pessoa se põe a falar e facilmente desliza para a conversa solta, pelo simples gosto da loquacidade. Cumpre refrear essa tendência,  com aquela harmonia suave e cadenciada do gregoriano, onde se nota a vontade de não aparecer, de ser modesto, de conservar o frescor da humildade e da sua própria inocência.

Talvez, pelo desconhecimento de algumas regras musicais adequadas, haja algo de realmente incipiente no gregoriano, que não chegou a se exprimir em seu completo desdobramento, mas que  aponta para ele. Seria como a orla de uma floresta. Dentro desta estão todas as gamas do heroísmo e da ternura, da reflexão e dos esplendores da sadia despreocupação.

Ele é sóbrio, e se não transpõe essa orla, carrega entretanto dentro de si a sua própria floresta, formidável que é uma potencialidade quase inexaurível de gerar civilizações e maravilhas em  qualquer parte do mundo. É a força da inocência aliada à graça, que transformou, por exemplo, os pântanos e vales mefíticos da antiga Europa em jardins salpicados de vida e de cor, onde, entre arvoredos e lagos lindíssimos, avantajam-se grandiosas abadias, imponentes castelos e majestosas catedrais. Uma Europa “gregorianizada”.

Agora, qual é o efeito do gregoriano sobre a alma do homem contemporâneo que sabe admirá-lo? Sobre a minha própria alma, portanto? Eu diria que dele emana uma forma de temperatura que  transmite todo o aconchegante do quente e todo o agradável frescor do frígido, de um frio que não corta nem maltrata, onde uma brisa tépida de vez em quando faz sorrir. Ele tem as temperaturas da vida, que estão para além das algidezes e calores do mundo mineral. É uma composição de outra natureza, que nos comunica refrigério, luz e paz; que ajuda a despertar e a dar vigor, em nossas  almas, a mil ordenações da inocência que o choque com o mundo contemporâneo — no qual encontramos uma selva com macacos, tigres, cobras e javalis, que são os assuntos alheios à nossa  salvação eterna — tenderia a fazer esquecer e a adormecer, desviando nosso olhar espiritual.

Outro efeito que o gregoriano produz nas almas é o de tornar-lhes patente o lugar do murmúrio na expressividade do homem. É falso que este, para se exprimir por inteiro, tenha de fazê-lo nos  registros mais altos de sua voz e nas ondulações maiores de seus movimentos. Não. Existem harmonias, composições, santidades por assim dizer supra-sônicas que se veriam maculadas e traídas  caso fossem descritas pelo som na sua máxima intensidade. Só o murmúrio é capaz de expressar o que é supra-sônico.

Por isso o gregoriano é o cântico do murmúrio.

E enquanto tal, aliás, faz ele sentir que esta é a terra de exílio para a qual viemos em conseqüência do pecado original. Há nele algo de penumbra ascética, de sonoridades meio penitenciais, de  almas do purgatório que passam sussurrando, gemendo e entoando canções de esperança. Se lhe prestarmos bem atenção, veremos nele a inocência que se sabe a si mesma em estado de prova,  tomando todos os cuidados consigo mesma. Há um quê de mortificado, de vigilante, dentro do celeste desembaraço do gregoriano, à maneira do  capuz colocado na cabeça de um frade jovem: lembra o aspecto penitencial, adverte contra o vazio das coisas terrenas, contra o mentiroso dos “élans” excessivos do próprio homem.

Assim é o gregoriano. Das alegrias exultantes do “Te Deum”, aos recolhimentos solenes do “Tantum ergo”, é a música que tem essa qualidade incomparável de exprimir a atitude perfeita, o exato grau  de luz da alma reta e verdadeiramente inocente quando  se coloca diante de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira

Parai e vede

Não resisti. Era minha intenção escrever sobre algum tema como o agravamento da pressão comunista no Chile, a repressão trágica do levante polonês, o processo de Burgos ou — oh! amargura das amarguras! negrume dos negrumes! — a crise interna na Igreja.

Entretanto, senti que nem em mim, nem em torno de mim, havia condições para isso. Do fundo de minha alma subiam as reminiscências harmoniosas e distensivas dos meus Natais de outrora. Em torno de mim — no olhar de muitos dos conhecidos e desconhecidos com que cruzo pelas ruas, no reflexo dos amigos ao lado dos quais luto e trabalho e dos íntimos cuja amizade me tem acompanhado ao longo dos anos que se vão — noto uma sede espiritual mal saciada, um desejo mudo e talvez até subconsciente de reencontrar um pouco da verdadeira alegria do verdadeiro Natal.

Por certo, tal é também o estado de espírito de muitos dos meus leitores. Nestas condições, parecia-me censurável recusar-me a mim mesmo e a tantas outras pessoas, uma ocasião para libertar das enxovias do olvido tantas recordações áureas, e para desalterar a sede de maravilhoso, de doce, de sacrossanto, de que reluz o Natal.

Para o lado, pois, visões tétricas de povos opressos, de tiranos sanhudos, de multidões eletrizadas por demagogos, de escribas sinuosos a modelar noticiários tendenciosos para enganar o público. Por alguns instantes, abramo-nos à luz do Natal, a fim de que se reanimem as nossas almas exaustas e desoladas. Depois, retomaremos com maior coragem o fardo quase insuportável…

Bem entendido, não falo da alegria propagandística e inautêntica que domina este Natal de hoje. Perdeu ele em nossos costumes sociais quase todo o seu perfume de outrora. E passou a ser uma função do comércio. Uma propaganda frenética quase não deixa à população liberdade psíquica para não fazer compras. Compras que cabem no orçamento de cada qual. E compras que não cabem. É preciso ‘obrigar’ o povo a comprar, para dar circulação aos estoques acumulados e avolumar o montante dos negócios. O Natal tomou assim, há anos, o aspecto afanoso e trepidante de uma imensa correria do povo a serviço do aparelhamento desenvolvimentista.

“Ipso facto”, a psicologia do presente e das festas mudou. Cada vez mais, o presente vai perdendo seu caráter afetivo, desinteressado e íntimo. Ele é um apêndice do negócio. Sua razão de ser principal é criar, entreter ou ampliar relações que sirvam aos negócios. Ao sopro dessa mentalidade, mesmo o presente desinteressado vai tomando ares comerciais. Cada qual procura prever quanto custará o presente que receberá do amigo, para dar um de igual preço. Pois se o presente dado valer mais do que o recebido, o doador se sentirá bobeado e frustrado. E reciprocamente Em suma, o presente passou a ser uma troca, calculada em função do valor. Quanto à festa — preparada em geral com super dificuldade — quantas vezes é o interesse econômico que, em lugar da amizade, motiva a confecção da lista dos convidados, o vulto das despesas, etc…

‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade’. Como este cântico angélico encontrou ambiente adequado nas vastidões desertas dos campos de Belém, e nos corações retos dos pastores que despertavam do pesado e tranquilo sono! Como, pelo contrário as palavras do coro angélico parecem estranhas, sem ressonância, sem afinidade com as cogitações dos homens, nestas megalópolis modernas, dominadas pela obsessão do ouro, isto é, da matéria.

* * *

Morreu o Natal autêntico? Com um pouco de exagero, poder-se-ia dizer que sim. Morreu na alma metalizada de tantos milhões de homens. Morreu até em certos presépios. Sim, nos presépios progressistas, que nos exibem a Sagrada Família com os traços e a fisionomia desfigurados pela arte moderna, e com conotações que induzem à revolução social. Mas, se há algum exagero em dizer que o Natal morreu, é verdade que alguns lampejos de vida ele ainda conserva.

Vamos à procura deles. Encontrá-los-emos antes de tudo — e borbulhantes — no próprio fato de ser dia de Natal. Cada festa do calendário litúrgico traz consigo uma efusão de graças peculiares. Queiram ou não queiram os homens, a graça lhes bate às portas da alma, mais sublime, mais meiga, mais insistente, nestes dias de Natal. Dir-se-ia que, apesar de tudo, pairam nos ares uma luz, uma paz, um alento, uma força de idealismo e dedicação, que é difícil não perceber.

Ademais, em inúmeras igrejas, em muito lares, o presépio autêntico ainda nos põe diante dos olhos a imagem do Menino-Deus, que veio para romper os grilhões da morte, para calcar aos pés o pecado, para perdoar, para regenerar, para abrir aos homens novos e ilimitados horizontes de fé e de ideal, novas e ilimitadas possibilidades de virtude e de bem.

Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe dEle mas também nossa. Por meio dEla, até os piores pecadores tudo podem pedir e esperar. Ali, também, está São José, o varão sublime que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades. É príncipe da Casa de Davi e é também carpinteiro. É defensor intrépido da Sagrada Família. Mas, ao mesmo tempo, é pai terníssimo e esposo cheio de afeto. Esposo perfeito, é entretanto o esposo castíssimo dAquela que foi sempre Virgem. Pai verdadeiro, entretanto não é pai segundo a carne. Modelo de todos os guerreiros, todos os príncipes, todos os sábios e todos os trabalhadores que, de futuro, a Igreja engendraria nesta terra para o Céu, ele não foi principalmente nada disto. Seus títulos mais altos são dois: pai de Jesus e esposo de Maria. Títulos pequeninos e imensos, que ao mesmo tempo, paradoxalmente, pulverizam e comunicam vida, nobreza e esplendor a todos os títulos da terra.

Os pastores ali se apresentam em amável intimidade com os animais… bem como com Nossa Senhora, São José e o próprio Menino Jesus. É a imagem comovedora de Deus excelso, que leva a irradiação de sua grandeza ao extremo de tocar e elevar até o que há de mais humilde e pequeno entre os homens. Que, não contente com isto, atrai e cobre de bênçãos até as criaturas irracionais.

Ao contemplar isto, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam. A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado. Florescem os dons de alma. O dom do afeto. O dom do perdão. E, como símbolo, a oferta delicada e desinteressada de algum presente.

Para que nada falte, o irmão corpo — como dizia São Francisco — também tem sua parte na alegria. Feita a oração junto ao presépio, sentam-se todos à mesma mesa. Come-se sem comilança. Bebe-se sem embriaguez. É a festa em que brilha a alegria de se ter fé, de se ter virtude, de se ter, em ordem sacral, feitas as ações e postas as coisas.

***

Alegria de Natal? Sim. Mas muito mais do que isto. Alegria dos 365 dias do ano, para o católico verdadeiro. Pois na alma em que, pela graça, habita o Salvador, esta alegria dura sempre e jamais se apaga. Nem a dor, nem a luta, nem a doença e nem a morte a eliminam. É a alegria da fé e do sobrenatural. A alegria da ordem sacral.

— Ó vós que andais pelo caminho, parai e vede se há uma dor semelhante à minha, exclamou Isaías profeta, antevendo a Paixão do Salvador e a compaixão de Maria. Mas ele também poderia ter dito, profetizando as alegrias cristãs perenes e indestrutíveis que o Natal leva a seu auge: Ó vós que passais pelo caminho, parai e vede se há alegria semelhante à minha.

— Ó vós que viveis cupidamente para o ouro, ó vós que viveis tolamente para a vanglória, ó vós que viveis torpemente para a sensualidade, ó vós que viveis diabolicamente para a revolta e para o crime: parai e vede as almas verdadeiramente católicas, iluminadas pela alegria do Natal: o que é a vossa alegria comparada à delas?

Não vejais nestas palavras provocação, nem desdém. Elas são muito mais do que isto.

São um convite para o Natal perene, que é a vida do verdadeiro fiel: “Christianus alter Christus”  o cristão é um outro Jesus Cristo.

Não, não há alegria igual. Até mesmo quando o católico está, como Jesus Nosso Senhor, cravado na cruz…

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na ‘Folha de S. Paulo’, em 27/12/1970.)

Um conto natalino…

Fruto da Civilização Cristã, o Ancien Régime ainda exalava o perfume da perfeita harmonia social, onde os maiores tinham gosto em  proteger os menores; e os menores, por sua vez, alegria em servi-los. Um característico exemplo disso é o pitoresco conto natalino a seguir, narrado por Dr. Plinio…

Há um pitoresco livro de Georges Lenôtre — a meu ver, o mais saboroso historiador da Revolução Francesa —, composto de contos referentes a essa época.(1)

Poder-se-ia perguntar: que valor têm esses contos? Não seria melhor um fato histórico?

Quando se dá um acontecimento muito importante, como a Revolução Francesa, ao lado dos fatos que deixaram recordação nos arquivos, existiram outros que se contavam de boca em boca e se tornaram célebres. Esses últimos um literato pode registrar a fim de conservar para a História. Foi o que fez Lenôtre.

Depoimento coletivo sobre a Revolução Francesa

Um fato fica célebre quando se propaga entre muitos, que veem nele algo de típico. Quer dizer, muitos que viveram a Revolução, participaram dela, ouvindo o fato contaram-no para outros, porque acharam que era característico. É uma espécie de depoimento geral sobre o ambiente da Revolução Francesa.

Alguém poderia dizer: “Mas Dr. Plinio, cuidado! Quem conta um conto aumenta um ponto. Será que esses fatos não contêm inverdades?” Aí está o mais saboroso. Esses fatos passam de boca em boca e vão sendo modelados, porque cada um coloca algo de mais característico. E fica uma contribuição anônima de muitos sobre como eles viram a Revolução Francesa. Quer dizer, tais fatos se tornam uma espécie de depoimento coletivo de como aquelas pessoas sentiram a Revolução Francesa, embora determinado fato tenha, às vezes, apenas um núcleo verdadeiro e sua periferia seja historicamente discutível.

Além disso, através desses fatos se conhece o ambiente dos acontecimentos. Mais ou menos como, por meio dos fatos semi mitológicos da Grécia Antiga, se toma conhecimento do ambiente da Grécia Antiga, embora muitos deles sejam falsos e outros discutíveis.

Preso na Conciergerie…

Eu gostaria de comentar um desses fatos que nos reproduz a mitologia da Revolução Francesa.(2) Como eu me julgo inferior a Lenôtre, vou repetir o que ele narrou.

Imaginemos a Conciergerie — a lúgubre prisão na qual eram detidos os nobres que eram processados —, nas vésperas da noite de Natal do ano de 1792, onde está preso um conde francês. Preso por ser nobre, de uma família que prestou grandes serviços no tempo das Cruzadas, nas lutas contra os adversários da Igreja etc., por representar um elemento que se destacava dos outros por sua cultura, elegância, distinção. E condenado à morte, esperando que na manhã seguinte se repetisse a cena de todos os dias.

A Conciergerie ficava cheia de presos e todas as manhãs ali chegava uma carretinha em que cabiam dez, doze, quinze pessoas — às vezes eram duas ou três carretinhas, naquele tempo puxadas por cavalo ou burro —; um homem descia e todos os prisioneiros se juntavam. Lia-se então a lista dos que naquela manhã deveriam morrer, quinze, vinte, trinta presos, que eram levados para o suplício; os outros ficavam aguardando o dia seguinte…

O indivíduo que não era chamado tinha um pouco de respiração depois da partida da carretinha, mas à medida que ia entardecendo ele sentia que talvez fosse o crepúsculo de sua vida que ia chegando. E à noite, quando conseguia dormir, acordava agoniado, achando que poderia morrer no dia seguinte. Era uma guerra de nervos.

…um conde recorda as festas de Natal

Suponhamos aquele conde sozinho olhando pelas grades de sua masmorra, e se relembrando de fatos passados, do Natal que, na sua mansão de Paris, era de tal modo.

Ele era viúvo e possuía apenas um filho ainda menino. E todas as noites de Natal o conde preparava para seu filho uma ceiazinha, acordando-o quando chegava meia-noite. O menino levantava-se e encontrava na sala uma pequena árvore de Natal brilhantemente enfeitada, coisas para comer e depois via nos sapatos, que estavam colocados próximo à lareira, os presentes que o Papai Noel teria trazido para ele. O pequeno era órfão de mãe e o conde procurava ser para com ele o mais afetuoso possível, a fim de substituir sua progenitora.

Numa noite de Natal, esperando sozinho chegar a hora para acordar o filho, o conde de repente ouve na chaminé uma barulheira e, na lareira ainda não acesa, cai uma criança.

Era propriamente o meninote que ele pagara para fazer a limpeza, desobstruir de fuligem a chaminé, a fim de que as chamas pudessem subir bonitas. Tratava-se de um menino pobre, o qual tinha a incumbência de subir pelo teto e limpar a chaminé; era uma profissão.

O menino todo sujinho se ergue espantado e vê diante de si a sala bonita, na qual se encontra aquele homem sozinho. Podemos imaginar a cena: o conde — com sapatos de verniz com salto vermelho, como usavam os nobres, fivelas de prata, ou de ouro, com brilhantes e outras pedras preciosas, meia de seda até o joelho, vestido todo de seda, cabeleira branca empoada — contando as horas e que se espanta quando cai aquele meninote.

Ele o vê levantar-se e percebe que sua primeira reação foi um olhar cheio de vontade de comer as coisas que estavam na mesa, destinadas para o outro menino. Fica com pena dele, mas não pode desfalcar a festa de seu filho; ajuda-o a remover a sujeira e manda-o lavar-se. Depois o menino vem agradecer ao conde que, ao despedi-lo, lhe dá um presente de Natal.

E era um presente régio: uma moeda de ouro chamada luís, porque tinha a efígie do Rei Luís. Havia luíses do tempo de Luís XV e Luís XVI. Essa moeda seria mais ou menos como a libra esterlina de hoje, e com ela se poderia fazer uma festa de Natal régia. O menino se retira muito agradecido; e nos anos seguintes, quando se aproxima a festa de Natal, volta à casa do conde para limpar a chaminé.

O conde acha graça e resolve dar a cada Natal uma moeda de ouro para o menino. E começa durante o ano a ajudá-lo e também à sua família; formam-se, então, como que, relações semifeudais, de vassalagem, simpatia e proteção, entre o conde e o menino.

Encontro do filho do conde com o limpador de chaminés

Passam-se os anos; o limpador de chaminés e o filho do conde ficam mocinhos. Arrebenta a Revolução Francesa e o conde é perseguido, preso; seu filho foge de casa, a qual fica abandonada.

São vésperas de Natal. Enquanto o conde está na prisão, lembrando-se dessas e de outras cenas familiares, seu filho, pobre, vagueia à noite pelo bairro onde antigamente fora sua mansão e encontra o limpador de chaminés, do qual ficara amigo, que lhe pergunta como está o conde.

— Você não sabe? Meu pai foi preso.
— Mas como? Então o conde foi preso? Como foi isto?
E o filho do conde conta-lhe que os nobres estavam sendo presos. Então o rapaz diz para o limpador de chaminés:
— Este ano, meu caro, não tem luís de ouro, nem para você, nem para mim. Só tenho aqui um maço de moedas para eu subsistir e arranjar um jeito de libertar meu pai. Mas não sei como libertá-lo.
O limpador de chaminés pergunta-lhe:
— Onde está seu pai?
— Na Conciergerie, em tal local.
— Se me der o maço de moedas para eu libertar seu pai, o senhor confia em mim que de fato o conseguirei?
— Tome as moedas.

O conde é libertado

Dia de Natal na Conciergerie. O conde está pensando e em sua cela há uma lareira miserável, raquítica, acesa.

O jovem limpador arranja um jeito de descer pela chaminé, não se queima com as brasas que estão ali vegetando e, trazendo nos braços um pacote, aparece para o conde, que fica muito surpreso e lhe indaga:

— Mas, você aqui? Entrando por esse local?
Diz o limpador de chaminés:
— Olhe, nós não temos um minuto a perder. O senhor execute o plano que vou lhe propor e sairemos bem. Estou trazendo uma roupa toda suja, de limpador de chaminés, para o senhor vesti-la. E o conde faz o que nunca imaginou na vida: mete-se numa roupa de limpador de chaminés. O mocinho apanha fuligem, arranja a cara do conde e lhe diz:
— Agora, nós vamos sair pela portaria, dizendo que somos os limpadores de chaminé e já fizemos o serviço. É a hora da troca de guarda, e o que assume não sabe quem entrou para limpar a chaminé e não controla quem vai sair. Se formos já, existe uma possibilidade de nós dois escaparmos. Se não der certo, ficamos presos aqui, mas eu arrisco minha vida pelo senhor. E não adianta perder tempo em me agradecer. Agora é preciso sair.

O conde entende a situação, e os dois se dirigem à portaria. Lá chegando, o rapaz se apresenta ao porteiro, que estava dormitando, pisca para o conde e lhe recomenda: “Vá andando”.

E disse para o porteiro:
— Nós somos os limpadores das chaminés…
— Ah! Chama aquele lá que vai andando!
— Ele é meu colega; eu queria dizer a você o seguinte: tenho aqui um pacote de moedas que mandam para seu chefe. Agora, não sei bem se ele e eu esperamos seu chefe acordar, ou se nós saímos e deixamos as moedas para você guardar.
Nesse momento, a situação de ambos ficou entre a vida e a morte. O homem pensou um pouco e disse:
— Pode deixar aqui que eu entrego, e vocês vão andando.

Os dois saem devagar, entram pela Paris deserta e vão até próximo à casa do conde, onde o limpador de chaminés tinha marcado encontro com o filho do conde. Ali se encontram, tomam os cavalos e fogem; os três estavam salvos da fúria revolucionária.

Harmonia entre as classes sociais

Esse é um conto que representa um Natal contrarrevolucionário dentro da Paris revolucionária, e dá uma versão real das relações entre as classes sociais antes da Revolução Francesa. É a imagem inteiramente oposta à que esses livrinhos que falsificam a História apresentam por aí.

A figura que normalmente se teria de um conde, em cuja casa cai, através da chaminé, um menino, seria:
— Pst! Fique aí na lareira! Além de estragar a chaminé, você quer sujar a casa? Você vai apanhar!
Manda chamar um homem e lhe ordena:
— Embrulhe esse sujeito com papel ou num pano para não me sujar a casa. Leve-o para fora e, lá na rua, dê-lhe umas chicotadas e um pontapé.
E voltando-se para o menino lhe diz:
— Ainda bem que você não tem nada dessa comida, que está aí na mesa para meu filho. Vagabundo! Plebeu! Essa comida é para nobre, não para plebeu. Vá embora!

Essa é a imagem que esses livrinhos de História insinuariam a respeito desse episódio.

Vimos, entretanto, que a realidade é inteiramente diferente. Havia harmonia, afabilidade, bom relacionamento entre as classes sociais, baseado num princípio profundamente católico, que é o seguinte:

Deve haver uma hierarquia de classes sociais; mas essa hierarquia não pode ser levada tão longe, que aquele que está em cima negue a elevada condição de homem ao que está embaixo, e, sobretudo, a alta condição de pessoa batizada que é membro do Corpo Místico de Cristo. Portanto, o superior deve tratar o inferior com bondade, afabilidade, protegê-lo, ajudá-lo nas suas necessidades, e até além de suas necessidades.

O cumprimento desse dever, por parte dos que estão acima, traz um dever dos que se encontram embaixo: a gratidão. Quando aquele que foi benfeitor está em apuros, os beneficiados retribuem. Aí está o vínculo que reúne as classes sociais diversas numa unidade.

Esse pequeno episódio ilustra uma realidade histórica e dá um exemplo concreto de um princípio profundo da Doutrina Católica. Mostra como a desigualdade das classes sociais pode ser aproveitada como elemento para a união dos homens, e não para sua desunião.

São Tomás de Aquino diz formalmente que há nobres e plebeus, grandes e pequenos, ricos e pobres, inteligentes e menos inteligentes, para o benefício não só dos que são mais, mas também dos que são menos; porque aquele que é menos, recebendo um benefício de quem é mais, vê neste como que uma imagem de Deus e pode amar melhor o Criador.

No fato narrado percebemos como o limpador de chaminés viu, na bondade do conde, uma imagem da bondade de Deus; depois ele se dedicou ao conde, num ato que tem qualquer coisa de dedicação ao próprio Deus. De um modo fácil de guardar, atraente, interessante, está ilustrado um princípio doutrinário profundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/8/1974)

1) Lenôtre, G. Légendes de Noël, contes historiques. Paris: J. M. Dent et Fils, 1916.
2) Idem. pp. 161-176.