Papa São Fabiano “O homem da rua sobre quem a Pomba pousou”

Em artigo estampado na Folha de São Paulo de 3/12/1976, Dr. Plinio procura conceder a si mesmo algo de refrigério diante da crescente agitação que tomava o mundo moderno. Como? Tecendo um hino de amor à santidade do Papado, a propósito da eleição providencial de São Fabiano ao Trono de Pedro.

 

A poluição em todas as suas formas, continua problema atual. Mais especialmente tenho em vista aqui a poluição moral inerente à vertiginosa decadência dos costumes, e a poluição mental provocada pela trepidação da vida hodierna. (…)

Uma excursão ao passado

O meio de fugir disso? Uma excursão, por exemplo, ou a audição de alguns belos discursos, a leitura de um romance, contentam a vários. Há os que se satisfazem com menos, isto é, com a ingestão de qualquer comprimido que favoreça a evasão para as profundidades de sonos insondáveis. Entre tantos recursos despoluentes, há também a excursão às extensas regiões do passado, ou seja, a leitura de narrações históricas. No píncaro destas, existe a legenda, com o encanto de sua leveza, de seu simbolismo, de seu esplendor.

Para a decepção da maioria e o possível contentamento de uns poucos, é uma viagem ao passado que proponho neste fim de semana. Não ao passado histórico, mas ao passado legendário, tão lato, tão belo, que por alguns lados parece tocar na própria eternidade. Acabo de ler um conto tomado mais ou menos a esmo na Légende Dorée, de Jacques de Voragine. Queres viajar comigo nas regiões etéreas deste conto, leitor?

De um simples passeio para a maior das dignidades

Fabiano era um simples romano como outro qualquer. Um “homem da rua”, como hoje se diria. E sequioso de notícias como são em todos os tempos os seus congêneres.

Ora, havia em Roma, ainda recente uma grossa novidade: morrera o Papa. E estava em gestão uma novidade ainda maior: ia ser escolhido pelo povo o novo Pontífice. Nosso “homem da rua”, segundo o costume, saiu de casa e se misturou na multidão, reunida para a augusta escolha(1). Fabiano julgava chegar atrasado, isto é, a tempo somente de conhecer o resultado.

E este veio, bem diverso do que Fabiano podia imaginar. Do alto do Céu baixou uma pomba de esplendorosa alvura, e pousou sobre a sua cabeça. Por esse fato simbólico, o Espírito Santo deixava claro que designava Fabiano. A multidão, piedosamente entusiasmada, escolheu-o Papa. E Fabiano, que saíra à rua para passear, se viu alçado assim à dignidade inigualável de sucessor daquele de quem o Salvador disse: Tu és Pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja. E as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mt 16, 18). E a partir daquele momento a “solicitude de todas as igrejas” (2 Cor 11, 28) passou a ser a única preocupação e a única atividade de sua vida.

Suma veneração pelos mártires

Aqueles remotos tempos se assemelhavam de algum modo aos nossos. A Igreja tinha adversários poderosos e implacáveis. O sangue dos mártires corria às torrentes em toda a vastidão do Império Romano. Também hoje a Igreja tem inimigos poderosos. E, por toda parte, também os católicos são perseguidos. É certo que os adversários de hoje (…) não são brutais como os de outrora.

Perseguem com o sorriso hipócrita nos lábios, e a mão estendida para a colaboração dolosa. (…) Hipocrisia ou brutalidade são acidentes. Em substância, o ódio é o mesmo.

Fabiano, cheio de veneração pelos mártires, começou seu Pontificado enviando por todo o Império sete diáconos e sete subdiáconos, para que recolhessem por toda a parte as atas dos martírios. Homem previdente, queria ele legar assim para toda a posteridade, estas narrações de uma heroicidade sem igual, escritas pelo sangue dos homens por amor ao Sangue de Cristo. De sorte que até a consumação dos séculos servissem de adorno à Igreja.

Vencedor de feras

Mas Fabiano não recebera em vão a visita da Pomba. O “homem da rua”, presumivelmente pacato e mediano, transformou-se em herói, e não apenas em colecionador e compilador de feitos heróicos de outros.

O imperador Filipe levava uma vida cheia de pecados. Sem embargo, quis assistir às vigílias da Páscoa e participar dos Santos Mistérios.

Fabiano, (…) em lugar de aceitar a presença escandalosa do pecador, (…) impediu que Filipe transpusesse os umbrais sagrados enquanto não confessasse seus pecados e não aceitasse de se colocar no lugar reservado então aos pecadores penitentes dentro da Igreja. Filipe cedeu.

E Fabiano, pela graça da Pomba [isto é, do Espírito Santo], venceu assim a fera. Feliz da Igreja quando é governada por varões que, fortalecidos pela Pomba, não teme as feras!

Bem entendido, as feras não gostam deste trato. No 13º ano de seu Pontificado, o Imperador Décio mandou decapitar Fabiano. Este é o fim sinistro do “homem da rua” visitado pela Pomba, e transformado por Ela em um vencedor de feras.

Na glória celeste, aos pés de Maria

Fim sinistro?

Consideremos o desfecho da história, tão e tão elevado, que a legenda áurea apenas o deixa discretamente subentendido. No momento em que a cabeça venerável de Fabiano foi cortada, uma corte rutilante de Anjos, provindo das alturas excelsas onde reinam o Padre, o Filho e o Espírito Santo, baixou para receber a alma santíssima do novo mártir. Fabiano subiu, subiu, levado pelos Príncipes celestes. Mas, por mais que ele subisse, a Santíssima Trindade parecia irremediavelmente inacessível. Depois de um glorioso itinerário através das Hierarquias infindáveis dos Anjos que o aclamavam e o elevavam com o cântico de seu afeto, Fabiano, extasiado de felicidade e de glória, foi deposto pelos Anjos aos pés de Nossa Senhora. E assim como através de um telescópio os astros mais distantes parecem aproximar-se de nós, assim também junto ao Coração de Maria, Fabiano se sentia inteiramente saciado pela presença de Deus. Como é doce e glorioso contemplar Deus face a face, aos pés do trono de Maria!

Rogai por nós e pela Igreja!

Nessas alturas celestes terminou o passeio do “homem da rua”, que fora pacatamente à procura de notícias sobre quem tinha sido eleito Papa. E até o fim do mundo haverá homens que digam: “São Fabiano, rogai por nós”. Eu, por exemplo. E tu também leitor.

“Rogai por nós”. Só isto? Rogai, São Fabiano, pela Santa Igreja Católica Apostólica Romana. (…)

Ó, rogai pela Igreja, São Fabiano!

 

1) Nos primórdios do Cristianismo os papas eram eleitos pela aclamação do clero e do povo congregados nas ruas de Roma para esta finalidade. A partir de 769 ficou estabelecido que o Sumo Pontífice seria escolhido apenas pelo clero romano, mantendo-se a aclamação popular como mera formalidade. Em 1059, o Sínodo de Latrão reservou aos cardeais o direito de eleger o novo sucessor de Pedro (cf. Legenda Áurea, Cia. das Letras, São Paulo).

Plinio Corrêa de Oliveira

Madonna del Miracolo – O triunfo da Mãe de Deus em nossas almas

Num período particularmente significativo de sua gesta apostólica, Dr. Plinio se viu objeto de grandes consolações e favores celestiais, ao venerar a imagem de Maria Santissima del Miracolo, em Roma, na igreja de Sant’Andrea delle Fratte. Ao evocar o célebre milagre que resultou na conversão do judeu Ratisbonne — em 20 de janeiro de 1842 —, recorda-se ele uma vez mais daquela efusão de graças recebidas junto ao tocante quadro da excelsa Mãe de Deus.

Há em Roma uma igreja chamada Sant’Andrea delle Fratte(1), pertencente aos frades menores de São Francisco de Paula. Devido à nossa estada na Cidade Eterna durante a primeira fase do Concílio Vaticano II, de outubro a dezembro de 1962, íamos quase todos os dias nessa igreja. Além de se situar próximo ao local onde nos hospedávamos, esse templo nos atraía por uma de suas imagens, a da Madonna del Miracolo, à qual tributávamos particular devoção.

Miracolo é uma palavra italiana que significa milagre. De fato, naquele lugar se realizou um milagre insigne cujo teor já tivemos ocasião de comentar(2), pelo que o relembro apenas de modo sucinto.

Rothschild e Ratisbonne

No século XIX, a família dos Rothschild iniciou sua ascensão na França, no período em que o regime napoleônico se encontrava no auge de seu poder. Os membros dessa família possuíam imensa riqueza, e a celebridade da estirpe baseava-se preponderantemente no fator financeiro.

Como sói acontecer, as famílias abastadas constituíam seu círculo próprio, onde se frequentavam umas às outras, casavam seus filhos, etc. E sucedeu que uma Rothschild uniu-se em matrimônio a um membro da família Ratisbonne, também de origem hebreia. Como se sabe, não raro os israelitas adotam sobrenomes de cidades, e o desse personagem é a tradução do latim para o francês do nome da pitoresca cidade bávara de Regensburg.

O casal recém-formado, herdando o prestígio granjeado pelo importante patrimônio dos Rothschild, introduziu-se na alta nobreza da Europa, a qual ainda gozava de muita fartura e ocupava a primeira categoria social do Velho Continente. Assim, viviam no luxo, ostentavam roupas de célebres estilistas, equipagens magníficas e tudo quanto havia de melhor.

Conversão espetacular

No grêmio dessa nova linhagem surgiria Afonso Tobias Ratisbonne, francês, bastante inclinado ao ceticismo. Tornou-se influente banqueiro, afeito à vida mundana e apreciador de viagens pela Europa. Quando realizava uma dessas excursões, em 1842, passou por Roma e, por obrigações familiares, teve de visitar o Barão Teodoro de Bussières, secretário e amigo íntimo do embaixador da França em Roma. Esta não era ainda a capital da Itália, uma vez que a Península não se encontrava unificada, mas dividida em diversos reinos. Um deles, os Estados Pontifícios, dos quais o Papa era o soberano e a Cidade Eterna, a sua metrópole.

O barão se interessou pela pessoa de Afonso e pediu que este lhe contasse sobre seus passeios no centro da Cristandade. Durante a conversa, esforçou-se por incutir na alma do Ratisbonne sentimentos que o levassem a se converter e a aceitar a Fé católica. Não obtendo sucesso, insistiu que o visitante ao menos concordasse em portar uma Medalha Milagrosa, oferecida como presente. Um tanto relutante, Afonso condescendeu, e os dois se despediram, quites a se verem de novo nos próximos dias.

Ora, tendo falecido de modo inesperado o embaixador francês, o Barão de Bussières combinou com Ratisbonne um encontro na Igreja de Sant’Andrea delle Fratte, onde providenciaria as exéquias para o defunto.

Na hora aprazada, Afonso compareceu, e enquanto o barão se achava na sacristia para tratar dos detalhes da Missa, começou a percorrer o interior do templo, detendo-se aqui e ali na consideração das imagens, dos ornamentos, dos belos mármores, etc. Terminadas as tratativas, o Barão de Bussières retornou à igreja e, surpreso, avistou o seu amigo judeu ajoelhado diante de um altar próximo à entrada. Ratisbonne, transfigurado, rezava.

Com intensa emoção, Afonso revelou-lhe:
— Você não sabe o que aconteceu! A Mãe de Jesus Cristo me apareceu aqui!

E passou a descrever Nossa Senhora, tal qual o fizera Santa Catarina Labouré, a quem a Rainha do Céu aparecera 12 anos antes na Capela da Rue du Bac, em Paris. Claro, alheio às coisas da religião Católica, Ratisbonne não sabia daquele acontecimento nem conhecia as narrações feitas por Santa Catarina. Circunstância que conferia ainda maior autenticidade à revelação de que fora objeto.

Segundo suas indicações, pintou-se um quadro com a imagem de Nossa Senhora, a qual passou a ser venerada como Maria Santissima del Miracolo.

Após este prodigioso episódio, tocado no fundo da alma pela graça divina, Afonso Tobias Ratisbonne se converteu, tornou-se padre e, ao lado de seu irmão (fundador da Congregação de Nossa Senhora de Sion), também convertido e ordenado sacerdote, dedicou-se ao apostolado junto aos judeus.

Sorriso que cura todas as dores

Embora sem renomado valor artístico, essa pintura é muito bonita e expressiva, e grande é o afluxo de fiéis a venerá-la, posto que o movimento de piedade na igreja é também intenso, com diversas missas celebradas ao longo do dia.

Como já disse, lá estive várias vezes para assistir a Missa, comungar e rezar diante do quadro. Eu ficava verdadeiramente maravilhado diante da pintura. No meu espírito vincava-se a impressão de que o sorriso de Nossa Senhora aliviava todas as dificuldades daquele dia e me concedia alento para o seguinte.

Pedir a entrada triunfal de Maria em nossas almas

Ao considerar esse lindo episódio da conversão do Ratisbonne, alguém poderia pensar não haver nada de extraordinário nessa mudança de vida: pois se a própria Mãe de Deus apareceu ao homem, tornou-se patente para ele a veracidade da Religião Católica. Outra coisa não lhe restava senão se consagrar inteiramente a esse credo.

Ora, as coisas não se verificam assim tão simplesmente com a miséria humana. Elas se passam de um modo bem diverso. O homem poderia ter sido beneficiado pelo milagre e, apesar disso, manifestar um fervor muito fraco e pequeno.

No caso de Ratisbonne, vê-se que Nossa Senhora venceu imensas e difíceis barreiras: tratava-se de uma pessoa mundana, imbuída de toda espécie de preconceitos contra a Religião Católica. Porém, a Santíssima Virgem conseguiu tocar sua alma, e o maior milagre não foi o de ter aparecido a ele, e sim o de tê-lo convertido.

Por assim dizer, Nossa Senhora penetrou na alma dele e a mudou, transformou-a completamente. E Afonso correspondeu a essa graça, fez-se católico ardoroso e padre exemplar.

Percebe-se por esse fato o quanto vale a entrada triunfal de Nossa Senhora nas almas. E, portanto, na festa da Madonna del Miracolo, devemos pedir a Ela que penetre em nossas almas e faça ali o seu reino, vencendo os obstáculos que possamos Lhe opor. De maneira tal que Ela seja verdadeiramente a Senhora nossa, e nós, seus verdadeiros escravos.

 

1) Santo André delle Fratte: Fratte, plural no italiano de fratta, porção de campo geralmente utilizada como pasto para rebanhos de ovelhas.
2) Cf. “Dr. Plinio” número 46, janeiro de 2000.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A medula da vida espiritual

Quando presidente da Ação Católica de São Paulo, nos idos de 1940, Dr. Plinio procurou atender — conforme ele próprio afirmava — à primeira obrigação de um dirigente de associação religiosa, isto é, o cuidado pela santificação de seus membros. Nesse intuito, redigiu um memorando contendo judiciosas orientações de vida espiritual, das quais transcrevemos a seguir alguns excertos.

 

O  homem, criado por Deus no estado de justiça original, foi enriquecido da graça santificante e de outros valiosos dons que davam à sua natureza uma harmonia tal que ele via claramente a vontade divina e a cumpria com toda a facilidade, segundo apenas os seus pendores espontâneos.

O pecado original quebrou a harmonia interior do homem

A lei natural — inscrita por Deus na consciência de cada um, como manifestação da vontade d’Ele — era perfeitamente legível. Por isso nossos primeiros pais tinham as potências da alma em perfeita ordem, de tal forma esclarecida pela revelação, que a sensibilidade estava subordinada inteiramente à vontade, e esta à inteligência; a prática da lei, em vez de penosa era uma fonte de felicidade, pois tudo cooperava no homem para que ele atingisse plenamente o seu fim.

Entretanto, pelo pecado original foi quebrada esta harmonia tão maravilhosa. Como castigo da rebelião, retirou Deus o poder absoluto da inteligência sobre a vontade, e de ambas sobre a sensibilidade. Assim o homem se viu em luta contra a rebelião ora brutal das paixões, ora insidiosa das más inclinações, tornando‑se tantas vezes escravo de umas e de outras. Igualmente perdeu o domínio absoluto sobre a natureza criada, de que fora o rei, e os seres animados e inanimados que a compõem revoltaram‑se contra ele. Quebrou-se, desse modo, aquela harmonia resultante da subordinação do mundo, com suas forças e virtualidades, à inteligência superior do homem. A lei natural perdeu, na consciência humana, a primitiva nitidez; a inteligência ficou alterada em sua lucidez cristalina de outrora; e a vontade desviou‑se daquela retidão admirável que a inclinava sempre para o verdadeiro bem. Sobretudo, perdeu o homem a graça e a amizade de Deus, e o Céu se fechou para ele.

Com o pecado entra a contradição no mundo

O pecado original, pela contradição abominável que opunha à majestade divina, fez entrar a contradição no mundo. O tédio, o cuidado, a dor, a angústia e a morte se desdobraram sobre a Terra; e o inferno se abriu, como suprema contradição, para triturar, sem aniquilar, os prevaricadores, que se tornaram filhos da contradição do pecado.

Por outro lado, o desejo de felicidade, que é tão radical no homem que seria mais fácil destruir o ser humano do que extirpá‑lo, este desejo voltou‑se com todo o seu peso para muitas coisas que não podem dar a felicidade. E os caminhos que conduzem à bem‑aventurança, tão sequiosamente almejada pelo coração humano, tornaram‑se espinhosos e repugnantes, de tal forma que “todo o que procurar salvar a sua vida, perdê‑la‑á; e todo o que a perder, salva‑la‑á” (Lc 17, 33).

A vida espiritual, esforço para nos unir à vontade divina

Nesta situação aflitiva, valeu‑lhe a misericórdia de Deus, que não poupou o seu próprio Filho, imolando‑O na Cruz pela nossa salvação. Entretanto, a graça, que tão abundantemente defluiu do Calvário, não alterou o quadro das conseqüências do pecado original no homem, senão neste ponto: que valorizou e tornou viável o esforço humano em vista da recomposição da harmonia interior e da subordinação da sua vontade à  divina, e, por aí, reconquistarmos o Céu.

Ora, estando comprometidos, em nós, os traços anteriormente firmes, com que estava gravada a lei natural, dignou‑se Deus de manifestar novamente a sua vontade pela revelação dos Mandamentos, que se aplicam a todos os homens, indistintamente. Além disso, pelos conselhos evangélicos, revelou o que cada um deve fazer, em particular, seguindo a inspiração do Espírito Santo, para obedecer os desígnios de Deus a seu respeito. A vida espiritual consiste exatamente nesse esforço penoso para conformar nossas disposições internas e nossas ações com a vontade de Deus, o que, antes do pecado original, era uma fonte de felicidade, como já ficou dito.

O jogo das tendências no homem decaído

Há, no homem, tendências boas ou más da natureza, disposições viciosas ou virtuosas adquiridas, e atos bons ou maus, que seguem as tendências ou as disposições. É de notar que as disposições virtuosas podem ser o aproveitamento meritório de uma boa tendência, como as viciosas podem ser o agravamento culposo de tendências más. É possível, porém, que não seja assim, havendo, neste caso, maior culpa ou mérito.

As tendências más podem pertencer à vontade, como o pendor para o orgulho, por exemplo, ou à sensibilidade, como a tendência para a luxúria. Para que haja ato mau, entretanto, é necessário que a vontade ou ceda à própria inclinação defeituosa, ou pactue com os movimentos inferiores da sensibilidade desordenada, como que os assimilando a si própria. A repetição de atos maus desenvolve as tendências más da vontade, aumenta a desordem da sensibilidade, e, por fim, habitua a vontade a transigir com as sugestões perversas desta última, até surgirem os vícios, em toda a pujança escravizadora.

A perigosa deformação da mentalidade

Este procedimento imoral tem ainda um último e derradeiro fruto de iniquidade. A vontade não pode agir sem a colaboração da inteligência, pois que a ação humana não se produz sem uma razão. De fato, ninguém faz alguma coisa conscientemente sem um motivo apresentado pela razão, qualquer que seja seu valor. Portanto, o mau proceder conspurca a inteligência, pois chega a forçar esta nobre faculdade muitas vezes a apresentar como bom e conveniente o que é mau e perverso.

Ora, esta intervenção violenta, quando muitas vezes renovada, acaba por deformar a inteligência, que de si mesma é generalizadora; e por aí, ela pode obliterar‑se de tal modo que só muito penosamente chegue a compreender certas verdades e a se desvencilhar de certos erros. A pessoa que assim deforma a sua inteligência concebe idéias ou teorias falsas, ou, ainda, adquire uma mentalidade, isto é, uma atitude fundamental de ver e julgar as coisas, que falseia todos os valores. Numa mentalidade há princípios e teorias implícitos, que podem nunca vir a ser explicitados, mas que freqüentemente pesam nos juízos e nas resoluções. Por isso, nada há tão perigoso como uma mentalidade deformada, pois nisso consiste o “desregramento do espírito” de que fala o Evangelho (Mc 7, 22). É o oposto da sabedoria, e, no fundo, é o gosto das coisas do mundo, que se opõe ao gosto das coisas celestiais.

Esta mentalidade defeituosa também pode ser contraída pela complacência íntima e sistemática aos atos maus de outras pessoas, atos estes que lisonjeiam as nossas más tendências e disposições. A causa é análoga à referida quanto aos nossos próprios atos.

As más tendências da natureza, conseqüência do pecado original, são o princípio do mal em nós, e quase sempre o ponto atingido pelas tentações do demônio e do mundo. Podem ser dominadas, com relativa facilidade. A disposição viciosa, pelo contrário, já representa o domínio do mal, e a prática do bem, que se lhe opõe, exige uma grande luta. Porém, a pessoa portadora de mentalidade deformada já não luta, pratica o mal que se refere ao defeito de sua mentalidade, como se fora a mais natural e racional das coisas.

Falta de reflexão, doença do mundo moderno

Diz o Santo Padre Pio XI, em sua Encíclica sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio(1): “O mal gravíssimo de que enferma a nossa época, que é a fonte e origem de todos os males de que se queixam os homens de reto juízo, é a falta de reflexão”. Para curar este mal é necessário forçar “o nosso espírito a observar atentamente os pensamentos, as palavras e as ações e a penetrar intimamente na nossa alma”.

De fato, infelizmente é imenso, hoje em dia, o número das pessoas que moldam a sua atividade exclusivamente ao sabor das circunstâncias exteriores, e não têm o hábito, e quase nem têm a faculdade de se observar, de julgar‑se a si próprias e de corrigir as suas tendências e disposições interiores desregradas.

Importa ao homem ver, julgar e agir dentro de si mesmo

Entretanto, a ninguém é possível obter uma verdadeira conformidade com a vontade divina, que, como dissemos, é o único meio do homem atingir a perfeição e a felicidade, sem o hábito de ver, julgar e agir dentro de si mesmo. Conforme se viu da Encíclica anteriormente citada, disso depende a cura de todos os males modernos. Ora, o mal não é outra coisa senão a desconformidade com os desígnios de Deus, que jamais cessa de querer o verdadeiro bem.

Além disso, as pessoas que se deixam levar exclusivamente, ou quase, pelos atos exteriores, se expõem a contaminar‑se, insidiosamente, pela corrupção do mundo, que é o principado de Satanás (Jo 16, 11), e a cair na chamada “heresia das obras”, mesmo quando querem fazer o bem. Neste sentido, acrescenta a Encíclica citada: “A frivolidade contínua e febril que se prende às coisas exteriores …. enerva e debilita nos corações os mais nobres ideais e de tal modo os envolve nas coisas terrenas e transitórias que mal os deixa pensar nas verdades eternas, nas leis divinas e no próprio Deus, que é o único princípio e fim das criaturas”.

Porém, o hábito salutar de ver, julgar e agir dentro de si mesmo, fornece um auxílio eficaz para as faculdades humanas, de modo que, neste combate insigne de espírito, a mente se acostuma a avaliar e a pesar, no seu justo valor, todas as coisas; a vontade se robustece com firmeza; os desejos insaciáveis comprimem‑se com sensatos conselhos; a ação da vida humana unida à meditação conforma‑se com uma norma reta; enfim, a alma atinge a sua nobreza e excelência, como se lê tão belamente numa comparação do livro Pastoral do pontífice São Gregório: “O espírito humano, à semelhança da água de um tanque, se represada, aumenta de volume e sobe para o céu donde veio; mas, aberta, perde‑se, espalhando‑se inutilmente sobre a terra”.

Assim sendo, nesse hábito está a medula da vida espiritual(2).

 

1) Encíclica Mens Nostra, de 20 de dezembro de 1929.

2) Outros tópicos desse importante memorando redigido por Dr. Plinio foram publicados nos números 38 e 39 desta revista (maio e junho de 2001).

Esperança dos culpados

Erraria quem fizesse o seguinte raciocínio: “Eu tenho determinada culpa, mas também possuo algo de bom, e tomando isto em consideração, Nossa Senhora terá pena de mim”.

O certo seria pensar: “Nossa Senhora é o Refúgio, a Esperança de todos os culpados, por mais miserável e mais culpado que se possa ser”.

A principal razão pela qual Nossa Senhora nos socorre não é haver em nós algo de bom, mas sim pela bondade que existe n’Ela. É por isso que Maria Santíssima tem pena de nós e se digna atender nossos pedidos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/9/1969)
Revista Dr Plinio 154 – Janeiro de 2011

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – VI O partido de Jesus e o do mundo

Na continuação de seus comentários ao opúsculo de São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio nos faz compreender, uma vez mais, como todo aquele que ousa abraçar o sofrimento, a pobreza e as humilhações por amor a Deus, identifica-se com Nosso Senhor Jesus Cristo e dispõe sua alma para que nela habite a sabedoria.

 

Dirigindo-se aos membros da Confraria dos Amigos da Cruz, por ele fundada, São Luís Grignion assim escreve:

Eis, meus caros confrades, dois partidos que se defrontam todos os dias: o de Jesus Cristo e o do mundo.

Duas falanges de servos que lutam por dois senhores

Conforme ficou explicado no início dessas exposições, São Luís redigiu sua carta circular durante um retiro, e essa ideia dos “dois partidos” evoca a meditação das “duas bandeiras”, proposta por Santo Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais. Lembra, também, o que o próprio São Luís afirma no seu Tratado da Verdadeira Devoção:  por natureza, o homem é escravo, e o será de Nosso Senhor Jesus Cristo ou do demônio, príncipe deste mundo.

Então, esses dois partidos são as duas grandes falanges de servos que lutam por dois senhores. Faço notar que há apenas dois partidos, sem possibilidade de uma terceira posição. Donde toda a História se resolver, em última análise, no seu sentido mais profundo, no confronto desses dois interesses, desses dois princípios, desses dois seres antagônicos: Jesus Cristo e o demônio.

Sempre pequeno, o número dos Amigos da Cruz

Conforme tal noção, o santo autor prossegue:

O [partido] de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez mais se tornou devido à corrupção do mundo. Caminha à frente o Bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado e carregando uma pesada cruz. Apenas algumas pessoas, das mais corajosas, O seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no tumulto do mundo; ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.

À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele e, apesar de serem largos como nunca os caminhos que a ele conduzem, atropelam-se em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata.

O santo indica, pois, duas categorias de pessoas bem diversas. As que constituem o partido de Nosso Senhor estão à direita, em aclive. Ou seja, em ascensão, na subida que torna difícil a caminhada por se ter de vencer o peso da gravidade. Essa trajetória se faz cada vez mais estreita, isto é, o esforço pela salvação se apresenta a cada dia mais árduo, devido à corrupção do mundo, às solicitações maiores do pecado, à insistência das más influências e dos maus exemplos.

Porém, à frente vai o Bom Mestre, pés descalços, coroado de espinhos, coberto de sangue e carregando sua Cruz. Trágica visão de uma vítima que sofre em todo o seu corpo, seguida apenas por algumas pessoas, e das mais corajosas. Vê-se o numero sempre pequeno dos autênticos Amigos da Cruz, daqueles que ousam aceitar o sofrimento e compreendem que nesta vida estamos sujeitos a toda sorte de provações. Pelo contrário, incontável é o número dos homens que fogem do sacrifício e procuram não considerá-lo de frente.

Ensurdecedor ruído das paixões desordenadas

Na seqüência de seu pensamento, São Luís Maria fala do tumulto do mundo que abafa a delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quer dizer, há um barulho, um ruído ensurdecedor no mundo que seduz as pessoas e estas, em tais condições, não escutam a suave voz do Divino Mestre.

 Esse barulho, embora possa ser tomado no sentido material da palavra, antes de tudo significa o tumulto das paixões humanas desordenadas que nos levam a agir e a nos movimentarmos de maneira igualmente desordenada. Donde uma espécie de perturbação difusa nas grandes cidades, uma agitação da vida moderna e seus acontecimentos, que embriagam e fascinam imensa parcela dos habitantes dos maiores centros urbanos. Ora, enquanto houver numa alma esse deleite com o tumultuar do século, algo da delicada voz de Nosso Senhor Jesus Cristo não chegará até ela. Nesta sua lamentável surdez irão esbarrar e se deter as inspirações da graça.

Daí, por outro lado, a necessidade de o verdadeiro Amigo da Cruz, desejoso de seguir o Bom Mestre, pedir-Lhe o horror e a aversão ao tumulto do mundo.

Pobreza, dores e humilhações

Ou porque não se tem coragem para segui‑Lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes que necessariamente é preciso carregar a seu serviço todos os dias da vida — acrescenta São Luís Grignion.

Ou seja, quem deseja servir a Nosso Senhor deve estar disposto a abraçar três coisas: pobreza, dores e humilhações.

A pobreza é, de algum modo, a virtude católica por excelência, pois para fazermos inteiramente a vontade de Nosso Senhor, temos de ser desapegados de tudo o que possuímos.  Do contrário, ao nos ser pedido, em nome do serviço de Deus, a renúncia de algo a que nos afeiçoamos, bem mais difícil será a nossa conformidade com o superior desígnio divino. Portanto, para ser fiel à vocação de seguir o Mestre, a alma precisa ser pobre, desapegada.

Além da pobreza, as dores. A vida de todo homem comporta sofrimentos, e estes serão talvez maiores para os poucos que souberem aceitá-los com o autêntico espírito de Amigo da Cruz.

Por fim, as humilhações. Não é fácil discernir qual das três coisas é a mais pesada, pois as dificuldades variam de pessoa a pessoa conforme o temperamento de cada uma. Estas aceitarão melhor as dores e sofrerão mais com as humilhações; aquelas se alegram na pobreza, mas se arrepiam com as humilhações; enquanto outras padecem de boa mente as penúrias materiais e as humilhações, mas sofrem demasiado com as dores físicas e morais.

Claro está, naturalmente falando, sem o concurso da graça homem algum se dispõe a esses três tipos de sofrimento, e menos ainda estão inclinados a tal os que compõem o partido do mundo. Portanto, devemos compreender que Nosso Senhor Jesus Cristo concede graças e dons especiais aos seus seguidores, para que estes aceitem e abracem o duro preço dessa admirável vocação.

O aparente brilho do partido do demônio

Em seguida, São Luís Maria Grignion de Montfort descreve o partido do demônio, “o mais numeroso, magnífico e  fulgurante, pelo menos na aparência”.

É curioso notar como a felicidade confere certo brilho ao indivíduo. Tome-se, por exemplo, alguém que tenha sido sorteado numa loteria, ganhando avultada soma. Nesse dia ele se torna mais luminoso, mais bem disposto, sente-se seguro de si e demonstra um garbo invulgar, proporcionado pelo êxito. E não há coisa que mais tire o garbo de uma pessoa do que o insucesso. Um general perder a batalha, um rei perder a guerra, um advogado perder a causa, e aparecerem garbosos num jantar de gala? Não se pode concebê-lo.

  Pois esse esplendor do êxito e da felicidade possuem os que seguem o partido do mundo ou do demônio. Daí ser este grupo, na aparência, o mais reluzente, magnífico e numeroso. “Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele”, afirma São Luís. De fato, a experiência da vida nos mostra que, por uma razão difícil de definir, o indivíduo naturalmente brilhante, dotado de maiores qualidades apreciadas pela gente do mundo, é mais propenso a se perder do que aquele que não possui esse brilho pessoal.

Além disso, existe a imensa falange dos que se abalam para o partido do demônio por causa de reflexões oportunistas: “Eu, me alistar sob a bandeira da pobreza, da dor e da humilhação, enquanto no outro lado terei brilho e fortuna? Não há dúvida na escolha”.

Inútil dizer até onde essas reflexões podem levar a alma que lhes dá ouvidos.

Largas e cobertas de ouro, as vias da perdição

Esses caminhos do mundo, assevera o santo autor, “são mais largos do que nunca, e neles as pessoas se atropelam, em virtude das multidões que por aí passam como torrentes. São caminhos juncados de flores, emoldurados de prazeres e de divertimento, cobertos de ouro e de prata”.

Percebe-se, pela ideia exposta por São Luís, que a impiedade no tempo dele se mostra maior do que nas épocas anteriores. Então, as vias do mal nunca foram tão largas, e as multidões que passam por elas, perdendo-se, são tais que esses caminhos se dilatam.

Essa situação me faz recordar o caso de uma freira carmelita que, tendo de se deslocar para outro convento, viajou pela primeira vez por uma estrada asfaltada. Indagada sobre as impressões que tivera da “moderna” rodovia, ela respondeu:

— Creio que assim deve ser o caminho que leva ao inferno: agradável, largo, asfaltado, e as pessoas correndo sobre ele…

A meu ver, uma observação muito sagaz e verídica. Não raro, ao considerarmos a trajetória de certos ímpios, vemo-los a correr, desimpedidos, na estrada do mundo, enquanto o homem que procura trilhar as vias da retidão caminha passo a passo, em meio a dificuldades de toda espécie. Por quê? Porque as sendas da perdição são espaçosas e lisas; as de Nosso Senhor são estreitas e penosas, e seu fim é o Calvário.

“É preciso ser conforme a imagem de Jesus Cristo ou condenar-se”

Prossegue São Luís:

À direita, o pequeno rebanho que segue Jesus Cristo só fala em lágrimas, penitências, orações e desprezo do mundo; ouvem‑se continuamente essas palavras, entrecortadas de soluços: “soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo‑nos, humilhemo‑nos, empobreçamo‑nos, mortifiquemo‑nos, pois o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele”.

Trata-se do despojamento próprio àqueles que desejam ser escravos de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Estes sofrem, choram, jejuam, humilham-se, rezam, mortificam-se e abraçam a pobreza. Atributos dos quais o mundo tem verdadeiro pavor. E por que essas almas se sujeitam a tais sofrimentos? Porque desejam adquirir o espírito de Jesus Cristo, receberem as graças d’Ele a fim de com Ele se identificarem.

Os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme a imagem de Jesus ou condenar‑se. “Coragem, exclamam eles, coragem! Se Deus está por nós, em nós e diante de nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós, é mais forte do que o que está no mundo”.

São Luís aponta a solução: se Jesus Cristo habitar em mim, serei capaz de aceitar o preço por segui-Lo; se Ele não estiver em mim, faltar-me-á coragem para tal.

Combater segundo o Evangelho e não conforme a moda

O servo não é maior que seu senhor. Um momento de leve tribulação redunda num peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém ali será coroado se não houver combatido legitimamente segundo o Evangelho, e não conforme a moda. Combatamos, pois, vigorosamente; corramos para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa. Eis uma parte das palavras divinas com que os Amigos da Cruz mutuamente se animam.

Portanto, a oposição entre os dois partidos está bem estabelecida. De um lado, Jesus Cristo, o modelo; de outro lado, a moda, os costumes do mundo, aos quais São Luís alude, dando a entender tudo quanto possuem de viscoso, de fascinação por coisas vãs, em última análise, de ilusões.

Pelo contrário, os mundanos, a fim de se animarem a perseverar na sua malícia sem escrúpulos, gritam todos os dias: “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para nos perder; Deus não nos proíbe de divertir, nem seremos condenados por isso. Nada de escrúpulos!”

Temos aqui a ideia infelizmente muito difundida de que, no fundo, o vício não será punido, pois Deus é bom. Na verdade, trata-se, não do Deus de misericórdia que acolhe o pecador arrependido, mas de um Deus de falsa bondade, indiferente ao pecado. Mais uma vez, é a oposição entre duas mentalidades.

Amor à Cruz, sinal de que a sabedoria habita em nossa alma

Concluo essas considerações de hoje com uma observação a respeito dos mistérios que cercam a alma humana.

São Luís Grignion escreveu essas palavras porque as considerava úteis, e as concebeu sob um evidente sopro da graça. Ou seja, a graça divina teve a intenção de animar essas páginas. Entretanto, de tal maneira nos parece árduo carregar a Cruz junto com Nosso Senhor, que, ao lermos os pensamentos expressos pelo santo, dificilmente não nos virá ao espírito a seguinte ideia: “Isto tudo é um lero-lero surrado, já conhecido por mim e por todos, que não precisa ser relido”.

Quer dizer, esses princípios na verdade tão pouco repetidos, quase nunca ensinados, penetram em nossa alma uma vez e a repetição deles nos dá a sensação de algo fastidioso e monótono. Nós, que seríamos capazes de ouvir inúmeras vezes uma mesma música, assistir duzentas vezes uma mesma peça de teatro ou manter durante horas uma conversa com a mesma pessoa, desde que aproveitem ao nosso interesse e apego, julgamos tratar-se de lengalenga essas altas e inapreciáveis reflexões de um santo.

 Vemos, por aí, como é de fato penoso elevar o espírito humano através do sofrimento; como há uma repulsa quase instintiva ao amor à Cruz. E, portanto, como a devoção a essa mesma Cruz é algo de suma importância e indispensável para a nossa vida espiritual.

Eu diria mais. Se nos empolgarmos ao ouvir falar da Cruz e do sofrimento, se admirarmos a dor cristãmente aceita e sentirmos o vazio de uma vida sem padecimentos, tais disposições serão um sinal de que a sabedoria habita em nossa alma.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/7/1967)

 

Gravidade ao sabor brasileiro

Desde pequeno agradou-me considerar o elegante prédio da Estação da Luz, próximo ao parque onde os meninos de minha família, sob o vigilante olhar de suas governantas, se distraíam aos domingos.

Simpático, atraente, encanta-nos o estilo inglês com que o edifício foi concebido: correto, distinto, garboso, cheio de si (no bom sentido da palavra), ordenado, com uma noção do dever, não sufocante, mas feito com métodos, tempo e pontualidade, de maneira a tudo sair de acordo com o planejado.

Para os padrões da São Paulo do tempo em que foi construída, a estação apresentava proporções monumentais, oferecendo aos passageiros um ótimo restaurante e toda uma ala destinada a hóspedes que ali quisessem residir por um período mais prolongado, até encontrarem outra acomodação na cidade. Tranqüilidade e segurança de outras épocas…

A torre imponente se destaca como símbolo da elevação e da gravidade do prédio, ao mesmo tempo que indica a hora certa dos embarques. Gravidade e elevação, sim, porém ornadas com um misto de bondade e de “laisser-faire” distinto, sabendo ser do feitio do nosso povo, não a coisa ultra-arranjada, mas com um toque de negligência de “grand-seigneur”. Além disso, uma nota de melancolia, uma espécie de sorriso prateado muito afim com o habitat interior comum do brasileiro.

Impossível para mim, ao contemplar a Estação da Luz, não recordar os velhos e bons sabores do meu tempo de criança, e, sobretudo, não me lembrar das graças que a Providência concedeu à minha alma de menino, a propósito do meu encanto com esse prédio que se erguia ao fundo do Jardim da Luz onde brincávamos.

Dessas graças, a mais marcante terá sido o meu “encontro” com a figura do imperador Carlos Magno, desenhada num livro de história para criança que estava à venda num quiosque dentro da estação. Antes de embarcar para uma viagem ao interior de São Paulo com minha família, pedi ao meu pai que me comprasse aquele livro.

Nunca ouvira falar de Carlos Magno, mas aquela gravura que o representava no seu trono de majestade, revestido de coroa e com o cetro imperial à mão, me tocou profundamente. À medida que folheava a publicação, crescia meu entusiasmo pela pessoa do imperador, e algo me dizia na alma: “O futuro está com esse homem!”.

Hoje posso afirmar que naquele momento me foi dado discernir o ideal de grandeza que Carlos Magno simbolizava, bem como se formou em mim a convicção de que esse ideal possui um conteúdo de universalidade pelo qual beneficia a todos os povos, sem exceção, e algum dia ele ainda ressuscitará. Essa convicção permanece intacta no meu espírito.

Portanto, não há nisso apenas uma pertinaz reminiscência de infância que insiste em se manter, mas também uma ação da graça que toca a todos que admiram Carlos Magno, e os leva a compreender que o grande imperador não é um caminho interrompido, nem uma glória do passado fixada e estagnada num monumento de pedra. Ele é uma luz que desceu do Céu para indicar aos homens uma trajetória que deve alcançar sua plena realização.

E um lampejo dessa graça refulgiu aos meus olhos ali, naquela bela Estação da Luz.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 20/2/1993 e 16/2/1994)

Oração para combater as afeições meramente terrenas

Minha Mãe e Senhora minha, quão grande foi o elogio que de Vós fez o Evangelho ao afirmar que — depois das inefáveis emoções da Anunciação, da Natividade, da Visita dos Reis Magos e da Apresentação no Templo — consideráveis todos estes fatos meditando-os em vosso Coração. Assim, nas emoções mais intensas que podíeis ter, Vós meditáveis.

Eram emoções indizivelmente ordenadas, e por isto em nada empanaram, antes favoreceram o exercício incomparavelmente lúcido de vossa meditação. Ordenadas, não apenas porque vossa natureza sem mancha não tinha a menor desordem, mas também porque vossas emoções resultavam da Fé e eram todas embebidas de Esperança e Caridade.

Olhai, suplico-Vos, para este filho tão diferente de Vós. Concebido com as desordens do pecado, agravado por toda espécie de infidelidades, ele nem de longe é tão sobrenatural quanto quisera, e por isso encontra-se tiranizado pelas impressões, sensações e tentações.

Fazei com que uma graça, vinda do mais íntimo de vosso Imaculado Coração, toque a alma deste vosso filho, separando-a dos aspectos terrenos, orientando-a exclusivamente para Vós e extinguindo, assim, os ardores das paixões que tanto a nublam, perturbam e tiranizam. Amém.

(Composta por Dr. Plinio em outubro de 1966)

Como um par de asas puríssimas

Peçamos a Nossa Senhora muito, e sempre. Sobretudo devemos pedir, por intermédio d’Ela, que Deus nos envie novamente em abundância o Espírito Santo, para que as coisas sejam novamente criadas, e purificada por uma renovação a face da Terra.

Diz Dante, na Divina Comédia, que rezar sem o patrocínio de Nossa Senhora é a mesma coisa que querer voar sem asas. Confiemos a Nossa Senhora este anelo em que vai todo o nosso coração. As mãos de Maria serão para nossa prece um par de asas puríssimas por meio das quais chegará certamente ao trono de Deus.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário” de 23/5/1943)

Vínculo inestimável

Nossa Senhora está para seu Divino Filho assim como, no ostensório, o cristal posto diante da Sagrada Hóstia está para o Santíssimo. Vemos Nosso Senhor através desse cristal, sem atentar para o fato de que esse material se interpõe entre nosso olhar e Jesus Eucarístico.

De igual modo, não podemos separar a devoção a Nossa Senhora de Nosso Senhor. Um dos comentários centrais  que nos ocorre a propósito desse vínculo indissociável é que o prêmio excede a toda linguagem. Ao amor de seus devotos, Nossa Senhora retribui com aquilo que tem de melhor: o próprio Cristo Jesus, a Sabedoria Eterna e Encarnada, a nossa recompensa demasiadamente
grande.

Plinio Corrêa de Oliveira

O belo e o prático – I

A Revolução, fundamentalmente materialista, propaga a ideia de que o importante é o lado prático das coisas, pois proporciona conforto para o corpo, enquanto que o belo nem deve ser considerado. Dr. Plinio desmonta esse sofisma.

 

Diante de tantas coisas bonitas dos tempos antigos que foram sendo destroçadas, e tantas coisas hediondas instauradas nos dias de hoje em nome do prático, põe-se a pergunta: o prático não é um precursor da feiura e o belo um inimigo do prático?

Rapidez e comodidade

Para analisar esta questão, consideremos alguns meios de transporte.

Toda coisa é perfeita na medida em que atinge o seu fim. Ora, o fim de uma carruagem, por exemplo, é transportar; e se ela transporta nas condições ideais, realizou a sua perfeição.

Quais são as condições ideais do meio de transporte? Ele deve ser, entre outras coisas, rápido e cômodo. Entretanto, o conceito de cômodo é muito amplo, porque uma é a comodidade que se pode querer ter em um automóvel que transpõe a distância de alguns quarteirões; outra é a comodidade exigida desse veículo fazendo uma longa viagem. São distâncias muito diferentes em que o corpo e o próprio espírito humano pedem graus e modos de conforto diferentes.

Há outras circunstâncias que condicionam a comodidade de um veículo, como, por exemplo: um molejo adequado para transitar em superfícies irregulares; arranque suave e silencioso do motor; estabilidade pela qual o passageiro sinta-se bem e seguro, mesmo em alta velocidade, etc.

Chegamos, assim, à conclusão de que o espírito prático deve ser adaptado a várias circunstâncias.

Beleza ou conforto?

A beleza interna de um veículo é uma condição de conforto? Evidentemente sim. Porque tudo que lisonjeia os sentidos, de algum modo, é condição de conforto. É muito confortável viajar em uma carruagem e ver o sol entrando pelos cristais das janelas e incidindo sobre sedas, damascos, veludos, “brincando” naqueles tecidos de luxo. Portanto, estaria de acordo com o espírito prático — que deve procurar o conforto de um veículo — tornar bonito o interior de uma carruagem.

Mas também deve estar de acordo com o espírito prático que um automóvel tenha um compartimento com um pequeno refrigerador contendo líquidos gelados para que, no auge do calor, sem ter de diminuir a velocidade do carro, o dono possa servir-se de um refresco.

Havendo tudo isso, pode-se dizer que o espírito prático obteve uma vitória. Mas torna-se impossível fabricar uma bela carruagem com essas comodidades. Onde colocar a geladeira e as supermolas compatíveis com a supervelocidade? Onde instalar um mecanismo por onde baste apertar um botão para as janelas subirem e baixarem fazendo um ruído prestigioso? Essas coisas cabem nos produtos modernos, não nos antigos. Então, o que escolher: a beleza da carruagem ou o conforto do automóvel?

Alma do homem e pulcritude

Até pouco tempo atrás, os homens não tinham perdido a noção do belo, mesmo passando da era da bela carruagem para a do automóvel. Tomemos, por exemplo, automóveis do tipo Mercedes. Eram bonitos veículos, com cores lindas, reluzentes. O homem tinha a impressão de entrar em uma pedra preciosa, de tal maneira aquela lataria toda era ornada. Dentro havia couros de primeira ordem, espaço amplo, enfim, todos os agrados dos transportes de luxo se encontravam reunidos ali.

Isso obedecia ao seguinte princípio: há uma razão para, tanto a carruagem quanto o automóvel, serem belos.

Todos os argumentos dados até agora a favor do espírito prático valem para o corpo. Mas o homem tem só corpo? Ele é principalmente corpo? O homem não é principalmente alma? E se a alma é o elemento principal do ser humano, do que vale o belo para a alma? Neste caso, ter beleza não seria o principal componente que um transporte deveria possuir?

Lindos cavalos, belas carruagens

Analisemos o papel do belo.

Primeiramente, a pessoa que está em uma carruagem ou qualquer outro meio de transporte, ainda que seja simplesmente um cavalo, apresenta-se aos olhos do público de modo a chamar a atenção. Porque um indivíduo que atravessa uma rua dentro de um veículo ou montado em um animal, atrai muito mais a atenção do que quem vai a pé, e forma um todo psicológico e artístico aos olhos dos transeuntes.

Ademais, o homem tem interesse em ser conhecido pelo que ele é, para que se lhe dê o valor ao qual tem direito. Se ele é um verdadeiro cavaleiro, descendente, por exemplo, dos cruzados, convém que monte um lindo cavalo de raça.

E montar, não é estar sobre o animal como estaria um saco de batatas. É preciso cavalgar com elegância, altaneria e dignidade. O cavaleiro deve dar a impressão de tal domínio sobre o cavalo, que o oriente simplesmente pelo movimento das pernas. As rédeas servem mais como um elemento ornamental.

Além disso, o animal precisa estar belamente ajaezado com uma bonita sela, belos arreios. Tudo isso forma a moldura com que o homem se apresenta em público.

É de acordo com a dignidade do homem que ele queira cavalgar esplendidamente um lindo cavalo. Isso não é vaidade, mas o reto exercício do instinto de sociabilidade, não com pretensão, mas com a naturalidade com que uma pessoa quer mostrar o rosto limpo para os outros.

Tratando-se de pessoas de uma condição inteiramente excepcional, como um rei e uma rainha, que ocupam no Estado e na sociedade o primeiro lugar, é natural que, por uma necessidade da alma, se façam ver e reverenciar pelo que eles são, utilizando uma carruagem à altura de seu cargo.

Para eles, mais importante do que a grande velocidade e todas as comodidades é ter um coche, no qual se apresentem como dentro de uma linda moldura.

Por isso as altas situações são tratadas pelos artistas — no caso concreto, pelos fabricantes de coches — de maneira a serem realçadas. A arte se empenha em apresentar o rei, a rainha, os príncipes da casa real, os nobres, os titulares de altas dignidades da Igreja, do Poder Judiciário, das Forças Armadas, etc. de modo a serem naturalmente respeitados, proporcionando-lhes outra modalidade de conforto: a comodidade de governar.

Então, é uma vantagem do Estado que haja lindas carruagens. Quanta revolta é evitada, quanta guerra interna é poupada a um país porque o povo se habituou a respeitar quem o governa!

O Bucentauro e a ponte sobre o Tâmisa

A República de Veneza tinha um presidente do Conselho dos Nobres intitulado Doge, palavra derivada do vocábulo latino “dux”, chefe.

Para navegar pelas águas fabulosas da Laguna de Veneza, o Doge dispunha de uma embarcação, toda esculpida, folheada a ouro, lindíssima, que por uma reminiscência mitológica chamava-se “O Bucentauro”.

Na ocasião máxima do Estado Veneziano, o Doge partia no Bucentauro acompanhado de centenas de barcos, gôndolas com aquelas proas lindas, gente tocando instrumentos, cantando, etc., laguna adentro, até o Mar Adriático. E, quando estavam no alto mar, o Bucentauro parava e o Doge jogava nas águas um anel precioso: era o casamento de Veneza com o mar.

Veneza era uma grande república comercial e dominava os mares naquele tempo, sendo, por isso riquíssima. O casamento da República de Veneza com o mar representava uma espécie de união entre o Estado veneziano e seu destino histórico.

Evidentemente era útil para o Estado veneziano ter um barco assim.

Portanto, nem sempre a beleza tem essa incompatibilidade com o prático que apresentávamos no início desta exposição. Para a vida da alma, para o intercâmbio de relações entre as almas, para a formação da política e da cultura de um povo, o belo tem uma importância maior do que o prático. E quando há incompatibilidade, quase sempre o belo prevalece sobre o prático.

Dou um exemplo de nossos dias: o Rio Tâmisa, em Londres, com aquela ponte levadiça. Aquilo é lindo, mas já não necessário, porque com os meios modernos poder-se-ia construir uma ponte alta que substituísse aquela. Por que se mantém a ponte atual? Porque é bela!

Há, portanto, um prático de categoria inferior que encontramos ao olhar automóveis bem equipados. Mas há um prático mais elevado que toma em consideração que o homem é mais espírito do que matéria, e que as coisas do espírito têm muito mais importância do que as da matéria. Por isso, deve-se dar mais valor ao belo do que ao prático. v

 

(Continua no próximo número)

(Extraído de conferência de 4/10/1986)