Paixão de Cristo, Senhor nosso: dai-me forças!

Sexta-feira Santa de 1991. Aos pés do Crucifixo diante do qual sua mãe costumava recordar, nesse dia, a Paixão e Morte do Redentor, Dr. Plinio, reunido com alguns de seus discípulos, medita na indizível misericórdia do Filho de Deus em se imolar pela salvação dos homens, e na necessária reforma de vida com que devemos retribuir esse resgate de valor infinito.

 

O sacrifício da Vítima Divina no alto do Calvário nos propõe diversos e importantes pontos para nossa reflexão. Tomemos em consideração alguns deles.

Nosso Senhor Jesus Cristo consumou seu holocausto e acabou de morrer por nós. Como narra o Evangelho, após o brado lancinante de “Eli, Eli, lamma sabactani — meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes” — Ele entregou seu espírito nas mãos do Padre Eterno e, em seguida, tendo inclinado a cabeça, expirou. Tudo estava terminado.

Pináculo da tristeza, aurora de uma imensa alegria

Até esse augusto e trágico momento, reinavam no mundo a desolação, o pecado e a miséria. Porém, sobre tudo isso derrama-se agora o preciosíssimo Sangue de Cristo. A Redenção acaba de se operar, o gênero humano é resgatado, e o caminho para o Céu novamente aberto para ele. Assim, o pináculo da tristeza, da tragédia e do horror vizinha a mais radiosa aurora da mais intensa das alegrias.

Aos pés da Cruz encontra-se Nossa Senhora, cujo Coração Imaculado e Sacratíssimo está rachado de dor. Ao mesmo tempo, Ela preliba todas as alegrias da salvação das almas. Maria tudo compreende, vê e mede, não só a regeneração do mundo nesta vida, mas, sobretudo, o esplendor eterno que todas as almas justas receberão para maior glória de Deus.

Diante dessa atitude da Santíssima Virgem, peçamos-Lhe que interceda por nós junto ao seu Divino Filho, e nos obtenha um inflamado zelo por nossa própria santificação. Desse modo, saberemos aproveitar tanto sangue vertido e tantas lágrimas, tanta dor e tanta tragédia, para igualmente sabermos participar da glória da Ressurreição de nosso Salvador.

As almas dos fiéis defuntos à espera da Redenção

Noutra consideração, pensemos como, há milhares de anos, as almas de Adão e Eva, juntamente com as de todos os seus descendentes justos, que cumpriram a Lei nesta vida, esperavam o momento bendito da Redenção. Aguardavam, naquela misteriosa mansão dos mortos à qual a própria alma de Cristo haveria de descer para libertá-las. Aguardam: espera longa, espera indefinida quase até à aflição, durante a qual a alma se torna cada vez mais sedenta de fazer cessar esse estado provisório em que se encontra, e de entrar na sua condição definitiva de bem-aventurada, repleta de glória e de grandeza!

Em seus insondáveis desígnios, quis a Providência que essas almas padecessem esse sofrimento da espera. Contudo, podemos imaginar também, após uma tão longa expectativa, a alegria inenarrável e ilimitada quando viram aparecer diante delas a luminosíssima e santíssima alma de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pensemos nessas almas justas. Antes de tudo, nas de nossos primeiros pais, Adão e Eva, cujas figuras devemos recordar nesse instante, com sumo amor e respeito. Lembremo-nos, no extremo oposto da perspectiva histórica, de São José, esposo castíssimo de Nossa Senhora e pai legal do Verbo Encarnado. Durante muitos anos esteve ele com a Santíssima Virgem e Jesus. Privado, pela morte, desse convívio que tanto o maravilhava e cumulava de contentamento, São José não terá se contido de felicidade, ao perceber ali, junto dele, o Redentor radioso e glorioso, trazendo-lhe a boa nova do término da longa espera e da sua passagem para o Céu.

Lá já estava, recém-chegada, a alma do bom ladrão, justificado pelos próprios lábios do Salvador: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Esperar com paciência nossa salvação

Pensemos, então, nessa libertação depois da prolongada espera. Comparemos a situação daquelas almas justas com a nossa, peregrinos neste mundo incerto, na esperança de alcançarmos o porto da bem-aventurança eterna. E peçamos a Nossa Senhora que nos auxilie e ampare a cada momento dessa nossa caminhada, a fim de que, salvando-nos, nossa libertação seja igualmente gloriosa — não para nós, mas para a honra d’Ela e de Nosso Senhor Jesus Cristo, e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, à maneira da glória dos fâmulos que se associam ao triunfo dos mestres.

Que a Santíssima Virgem nos alcance a graça de esperarmos com paciência, não de uma espera negligente e indolente, mas sofrida e semeada de santas ansiedades. Espera sem nenhuma revolta; espera de almas que compreendem ter o Divino Senhor seu tempo para tudo, e, por isso, amam as horas de Deus.

“Sangue de Cristo, inebriai-me”

Num passo seguinte, consideremos que, tendo Nosso Senhor Jesus Cristo nos redimido e aberto para nós as portas do Céu, é o momento de olharmos para nossas almas pecadoras. Pensemos em todo o sangue vertido por ele para limpar e purificar nossas almas, e para inebriá-las com suas graças. E digamos: “Sanguis Christi, inebria me; acqua lateris Christi, lava me; passio Christi, conforta me”. Sangue de Cristo, inebriai-me; água do lado de Cristo, lavai-me; Paixão de Cristo Senhor nosso, dai‑me forças.

Que Nosso Senhor nos dê, pelos rogos de Maria, a graça de olharmos para nossas almas, com todos os seus defeitos, contorções e misérias, com tudo o que nos desvia do que deveríamos ser, que nos afasta do caminho da santidade para a qual somos todos chamados. Peçamos perdão por nós, por nossos próximos e por nossos irmãos de vocação, a fim de que, encarando cada um seus próprios defeitos, tenhamos coragem e força, alcançadas para nós pelo Sangue de Cristo, para empreender uma séria e honesta reforma de nossas almas.

Senhor Jesus, Maria Santíssima, Mãe dos pecadores, tende pena de nós. Amém.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído da meditação feita em 13/4/90)

Os Impropérios cântico de dor e esperança

Na liturgia da Sexta-feira Santa, enquanto os fiéis se aproximam para adorar a Cruz do Salvador, ecoa pelo recinto sagrado o cântico dos Impropérios: dolorosas e compassivas admoestações postas nos lábios de Nosso Senhor em relação aos homens que Lhe retribuem com ofensas e pecados, o benefício infinito da Redenção.
Como assevera Dr. Plinio, essas estrofes nos devem incitar ao arrependimento e à conversão, bem como alimentar em nossa alma uma firme esperança na misericórdia divina.

 

Um dos mais belos modos de se fazer a meditação sobre a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo consiste em analisar os Impropérios, texto inspirado nos profetas do Antigo Testamento e cantado na liturgia da Sexta-feira Santa.

Em certo sentido, exprime o que há de mais dilacerante na Paixão do Redentor, tornando patente aos nossos olhos a suprema injustiça perpetrada contra o Filho de Deus. Por outro lado, como Nosso Senhor sofreu devido aos pecados dos homens de todos os tempos, os Impropérios se aplicam a cada um de nós.

Colher sentimentos de contrição

Assim, num ato de piedade, devemos imaginar Jesus — e também Nossa Senhora, presente espiritual ou corporalmente nos vários passos da Paixão — na agonia do Horto e, mais tarde, sendo flagelado, oprimido com a cruz às costas, crucificado e morto por nosso amor. Ao rezarmos a Via Sacra, convém considerarmos que Nosso Senhor nos dirige perguntas semelhantes às dos Impropérios, e cada estação nos reserva graças especiais de compunção e arrependimento.

Desse modo, podemos tomar as diversas estrofes desse texto e aplicá-las à nossa alma, colhendo ditos sentimentos de contrição. Aos pés do Bom Jesus, nosso remorso deve ser repleto de confiança, tranqüilo, suave, e ao mesmo tempo amargo como o de São Pedro. Não agitado, perturbado e horrendo como o de Judas. Será útil um exame de consciência para nos lembrarmos de nossos pecados da vida passada, das graças recebidas e o uso que delas fizemos, pois esses dons celestiais custaram pedaços da carne e gotas do sangue de Nosso Senhor, bem como lágrimas da Santíssima Virgem.

Cabe a nós, no momento em que recebemos tantas dádivas do alto, nos perguntarmos: “Ó Deus, não haverá um recanto de minha alma que eu poderia entregar e não o fiz? Não devo pedir a Nosso Senhor que me o faça conhecer? Se conheço, preciso rogar-Lhe — pelas suas chagas, pelo seu pranto dulcíssimo, pelos seus gemidos amargos, pelo “consummatum est” da última agonia — que tenha pena de mim e me conceda coragem para entregar tudo a Ele”.

Portanto, ao meditarmos na Paixão do Salvador, supliquemos graças superabundantes, pois essa é a hora da misericórdia, na qual até o bom ladrão foi perdoado, e de malfeitor que era tornou-se santo. Peçamos e confiemos: em toda Sexta-feira Santa, Nosso Senhor nos reserva dons semelhantes e até maiores aos por Ele concedidos no dia de sua morte.

Interpelação sem resposta

Analisemos, agora, os Impropérios 1.
Povo meu, que te fiz Eu, ou em que te contristei? Responde-me!

Nosso Senhor é perfeito, não contristou nem fez mal algum a ninguém. Conhecendo o silêncio da pessoa a quem se dirige, Ele diz: “responde-me”. Ou seja, “pelo mutismo de teus lábios, note até que ponto deves te arrepender de teu pecado”.

Porque Eu te tirei da terra do Egito, preparaste uma cruz para o teu Salvador?

A migração do povo judaico — que vivia como escravo no Egito — para a Terra Prometida é um símbolo da libertação do estado de pecado original, no qual nascemos, para a ordem da graça obtida pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo. Simboliza, também, nossas conversões ao longo da vida.

Quando alguém comete pecado mortal, perde a vida da graça, sua alma fica como que morta. Se ele falecesse neste estado, seria condenado ao inferno. Entretanto, pelo Sacramento da Penitência, Deus se compadece dele e o tira da “terra do Egito”. Ou seja, da “sepultura” do pecado, onde sua alma como que “jazia” morta, restitui-lhe a vida da graça. Porém, se o mesmo indivíduo recai no pecado, caberia a ele a pergunta feita por Nosso Senhor aos hebreus: “Eu tirei tua alma da lepra do pecado mortal, livremente contraído por ti; por causa disto tu agora me odeias?”

É uma indagação pungente, cujo significado mais profundo é este: “Meu filho, veja o estado de tua alma, converte-te!”

A única solução: mudar de vida

Porque Eu te conduzi quarenta anos pelo deserto, te alimentei com o maná e te introduzi na terra esplêndida: preparaste uma cruz para o teu Salvador?

O maná é um símbolo da Eucaristia, O Redentor pergunta a cada um de nós: “Eu me fiz hóstia no Santíssimo Sacramento para habitar no meio dos homens e ser alimento de suas almas, e tu me persegues? Eu te introduzi numa terra esplêndida (isto é, na Santa Igreja Católica Apostólica e Romana, a instituição perfeita, a pátria de nossas almas), te concedi a maior honra e felicidade que o homem possa ter no mundo, a de ser filho da Igreja: por causa disso tu me persegues?”

Nota-se que, ponto por ponto, ao mesmo tempo a recriminação é doce e repassada de uma lógica irretorquível. A possibilidade de uma justificação de nossa parte desaparece completamente.

A única solução para cada um de nós é mudar de vida, ajoelhar-se diante de Nosso Senhor e dizer: “Pequei, tende piedade de mim! Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, lavai minha alma, extirpai minhas faltas.”

Que mais devia ter feito por ti, e não fiz?

Tudo que é para nosso bem, Jesus realizou. Entre outras coisas inapreciáveis, deu-nos como Mãe a própria Mãe d’Ele. Que mais Ele deveria ter feito? Não há resposta…

Insisto, a única atitude conveniente de nossa parte é o pranto ou a batida do nosso punho no peito. O som dessa batida é o cântico no qual o Redentor pede nossa contrição, num misto de força e doçura que exprime bem a infinita santidade de Jesus.

Não ser como uvas amargas

Eu te plantei como vinha escolhida e preciosa: e tu te tornaste excessivamente amarga para Mim; vinagre me deste a beber na minha sede, e com uma lança atravessaste o lado do teu Salvador.

Quer dizer, o povo eleito foi colocado na Terra Prometida como uma vinha de grande qualidade a qual, ao invés de produzir uvas doces, deu frutos de excessivo amargor. Quando Jesus teve sede, deram-Lhe vinagre no lugar de água e, pela lança do centurião, transpassaram o flanco de Nosso Senhor. Fato pungente: foi ferido o coração, símbolo do amor, e dele jorraram as últimas gotas de sangue. A crueldade não poderia ter ido além.

Como nas estrofes anteriores, essas palavras são figurativas e se aplicam às nossas almas. Cada um de nós é uma vinha plantada pelo Divino Salvador no solo precioso da Igreja Católica, mais valioso que dez mil terras prometidas. A Igreja é a habitação de nossa alma, e cada um de nós poderia dizer a si mesmo: “Eu deveria produzir frutos de doçura para Nosso Senhor, amá-Lo, cumprir os Mandamentos, obedecê-Lo em tudo e não praticar ato algum que me afastasse d’Ele. Porém, não foi essa minha vida; cometi ações contrárias a meu Salvador, pequei e me transformei na uva amarga que depõe contra o agricultor cuidadoso. Pior. Quando Nosso Senhor, no auge de seus tormentos, tinha sede e me pedia Lhe desse ao menos água para beber, ou seja, reparação límpida, eu pequei…”

Ou seja, em todos os momentos, devo procurar consolar Nosso Senhor pregado na cruz. Do contrário, sou tíbio, imperfeito… E se cometi algum pecado mortal, fiz como o centurião romano, ferindo o Coração de Jesus. Preciso, então, bater no peito, pedir perdão. Não é apenas a ofensa grave, mas também o ensabugamento”2″, o ficar estacionado e não progredir na vida espiritual.

Não haverá aqui um impropério de Nosso Senhor para mim, em razão dos sofrimentos que Lhe causei? É-me necessário, pois, suplicar a Ele tenha pena de mim. E, repleto de esperança, lembrar-me do que nos diz a tradição a respeito de Longinos, o soldado de César cujo golpe de lança perfurou o coração do Redentor. Segundo escreveu alguém, parece que Longinos era catacego e foi milagrosamente curado das vistas quando o precioso Sangue de Cristo jorrou da ferida e respingou sobre a sua face. Converteu-se e tornou-se um santo. Quem sabe se, durante as cerimônias da Sexta-feira Santa, ao serem entoados os Impropérios, sou eu também curado de minha cegueira espiritual? Eis uma inestimável graça que devo pedir.

Como correspondemos aos favores divinos?

Por tua causa flagelei o Egito e os seus primogênitos; e tu aos açoites me entregastes.

Para que o povo hebreu finalmente pudesse sair do Egito, Deus feriu com uma praga todos os primogênitos da maior nação do mundo de então. E, durante sua Paixão, Nosso Senhor foi açoitado… Ora, quando cometo algum pecado, eu flagelo Nosso Senhor. Trata-se, aqui, de uma censura pungente, continuando sempre numa lógica inflexível.

Eu abri o mar à tua passagem; tu me abriste o lado com uma lança.

Há benefício mais esplêndido do que abrir o mar para um povo fugitivo passar? Existe forma mais ingrata de retribuir o autor de uma dádiva, que perfurar o seu coração com uma lança?

Caminhei diante de ti em uma coluna luminosa e tu me levaste ao pretório de Pilatos.

Deus, através de uma coluna luzente, orientou o povo de Israel pelo deserto. E Nosso Senhor foi conduzido ao pretório para ser julgado por Pôncio Pilatos…

Esta lamentação de Jesus também se aplica à minha vida. Deus iluminou meus caminhos à maneira de uma coluna de luz, constituindo a alegria de minha existência. E tive a desfaçatez de pecar contra Ele!

Alimentei-te com maná no deserto: e tu me feriste com bofetadas e açoites.

O maná era um alimento delicadíssimo, possuía toda espécie de gostos e caía do céu com abundância, para todos se fartarem. Ora, como acima mencionamos, a Sagrada Eucaristia é como um maná: abundante, contém para as almas todos os sabores, a fim de saciá-las. Quando pecamos, retribuímos esse dom divino com bofetadas! Note-se, mais uma vez, a contradição flagrante. Fiz brotar da pedra a água de salvação para te saciar; e tu me deste a beber fel e vinagre.

Em determinado momento de sua peregrinação pelo deserto, os judeus desfaleciam de sede. Então Moisés bateu com seu cajado numa pedra e desta começou a jorrar água suficiente para dessedentar todo o povo. Quando ofendo Nosso Senhor, pago-Lhe com vinagre e fel os refrigérios que Ele misericordiosamente me concede…

Por tua causa feri os reis de Canaã; e tu com uma cana feriste a minha cabeça.

Antes de tudo, vale observar que essa estrofe contém um interessante jogo de palavras: cana e Canaã. Pois bem, Deus feriu de morte os reis de Canaã — ou seja, da Terra Prometida — para esvaziá-la de povos impuros e entregá-la aos hebreus. Jesus, por sua vez, foi coroado de espinhos e golpeado na cabeça pelos esbirros com a vara da ignomínia, aumentando suas dores.

Da Cruz de Cristo nasce a verdadeira alegria

Senhor, nós adoramos a vossa Cruz, celebramos e glorificamos a vossa santa Ressurreição porque foi pelo madeiro da cruz que veio a alegria para todo o mundo.

Percebe-se aqui o belo contraste apontado na liturgia. Esta fala da tristeza, do sofrimento representados pela cruz, e também da esperança, da alegria que ela trouxe para o mundo. E quão autêntica é a alegria católica! Pensemos no júbilo do verdadeiro Natal, não o do comercializado de hoje, e compreenderemos a felicidade que a fé católica nos proporciona. Ora, foi do sofrimento de Nosso Senhor, das lágrimas de Nossa Senhora, que nasceu a alegria genuína, fruto da virtude e não do vício.

A esse propósito, lembro-me das alegrias da Páscoa no meu tempo de moço. As cidades ainda pouco ruidosas nos permitiam ouvir, próximo ao meio-dia de sábado, o bimbalhar dos sinos anunciando a Ressurreição de Cristo. Alguns meninos saíam pelas ruas espancando bonecos que representavam Judas, e por toda a parte se cantava o Aleluia.

Iniciavam-se, então, as festas: parentes e amigos se cumprimentavam, trocavam ovos de chocolate; algumas famílias faziam piquenique nos parques, para exprimir seu contentamento. As igrejas ficavam repletas, a liturgia se revestia de imensa pompa. Essa alegria, no fundo, originou-se no episódio mais trágico da Paixão, quando Nosso Senhor, ao morrer, disse aquelas palavras lancinantes, as quais podem até parecer de desespero: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Entretanto, são essas as primeiras palavras de um salmo que, ao final, contém manifestações de alegria (cf. Sl 21), porque de fato o abandono não foi real, e de toda aquela tristeza e dor nasceu o grande júbilo da Páscoa.

Uma vez mais, é a afirmação da alegria da cruz.

Manifestação da infinita misericórdia divina

Deus se compadeça de nós e nos abençoe. Faça resplandecer sobre nós a luz de sua face e tenha piedade de nós. Senhor, nós adoramos a vossa cruz.

A beleza dessas frases está em que os Impropérios poderiam nos causar atitude de alma quase de liquidação, de prostração, porém a liturgia nos lembra o contrário. Deus é a fonte de todas as misericórdias. Daí o reiterado pedido: Tenha piedade de nós!

Nosso Senhor se compadece de nós, mas deseja receber a nossa súplica nesse sentido. O Redentor nos salvará se soubermos recorrer a Ele por meio das lágrimas e preces de Nossa Senhora, Medianeira Universal. Portanto, tenhamos coragem, confiança e ânimo.

Termina-se essa meditação compungido, mas repleto de esperança e com alegria de alma. Em determinado momento, receberei uma graça tão insigne que serei limpo de meus pecados e defeitos espirituais. Donde a beleza do pedido: “Deus faça resplandecer sobre nós a sua face”, exprimindo o fato de que Deus, ao se alegrar com os homens, volta sua face para eles e tudo se torna fácil, suave, brilhante. Pelo contrário, nas épocas de castigo, o Altíssimo desvia seu rosto e não olha para os homens, como se o sol desaparecesse…

Nosso Senhor Jesus Cristo volta para nós sua face divina — não mais com aquele aspecto sublime e sob certo ângulo um tanto terrificante do Santo Sudário — com semblante de misericórdia, com bondade e perdão, como fitou São Pedro. E neste momento, em que também o rosto de Nossa Senhora se dirige para nós, a graça nos ilumina, sentimos piedade, devoção, como que ressurgimos e nossa vida espiritual ganha novo impulso.

Com o auxílio da Virgem, abracemos nossa própria cruz

Quando dizemos a Deus que adoramos sua cruz, podemos acrescentar uma súplica.

Peçamos-Lhe amor à nossa própria cruz. Cada um de nós gostaria de ser algo que não é, ter algo que não tem, poder algo que não pode, realizar algo que não realiza. Precisamos, então, fazer uma renúncia e aceitar a realidade concreta. É a cruz que devemos carregar.

Se possuíssemos uma relíquia do Santo Lenho, a adoraríamos, como nos ensina a liturgia. Imaginemos que alguém nos desse um pedaço de madeira o qual simbolizasse aos olhos de Deus nosso próprio sofrimento. Deveríamos amá-lo, depositá-lo sobre nosso leito, portá-lo à maneira de relíquia, rogando a Nosso Senhor que abençoasse nossos dias e nossas noites.

Aquilo que Deus pede de nós, evidentemente nos dói mais, exige maior renúncia. Importa querermos fazê-la, pois Ele merece toda nossa dedicação. Contudo, essa atitude de espírito só se alcança por meio da graça. Assim, peçamos a Nosso Senhor que pela santidade da sua Cruz, O imitemos e abracemos a nossa: com lágrimas, com carinho, embora nos custe. E, à força de rezar, cada um poderá dizer: “É isto que eu quero; tomarei esta cruz e a levarei até o alto do meu calvário!”

Estejamos certos de que Nossa Senhora nos acompanhará, como seguiu Jesus pela Via Crucis, bendizendo nosso holocausto e martírio interior, porque Ela deseja que todos carreguem a própria cruz, a exemplo de seu adorável Filho.

1) Tradução do Missal Romano de 1967.
2) Processo pelo qual o indivíduo se torna “sabugo”, ou seja, estagnado na vida interior (cf. “Dr. Plinio” número 79).

A hora do beijo

Por um desses insondáveis desígnios da Providência, a semana em que se comemoram os 500 anos do descobrimento da Terra de Santa Cruz é também a semana da Cruz por excelência, a de nosso Divino Salvador. Que ela seja a luz a indicar os rumos da nação brasileira, são os nossos mais ardentes votos, ao transcrevermos alguns  comentários de Dr. Plinio sobre a Paixão e Morte de Jesus, redigidos há mais de meio século.

 

O Domingo de Ramos é o pórtico jubiloso que transpomos hoje, para entrar nas tristezas da Semana Santa. E, sempre que em terras cristãs se celebra a Paixão e Morte do Senhor, vem à lembrança dos fiéis a cena empolgante e ignominiosa, em que o filho da perdição mostra aos esbirros, com um beijo, Aquele a quem tinha vendido.

Nesta hora em que a malícia humana parecia ter atingido extremos incríveis, a misericórdia de Deus superabundava. Dizem os autores espirituais que ninguém pode calcular a intensidade da graça que Judas recebeu e rejeitou, quando ouviu da Vítima Divina o último apelo: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem”? Hora de imensa  misericórdia para com o miserável vendilhão, sem dúvida. Mas hora, também, de imensa misericórdia para conosco. Os atos que o Divino Mestre praticou, nessa ocasião, são para nós ensinamentos de um valor sem limites. Paremos, para pensar neles um pouco.

Muito se tem falado sobre os trinta dinheiros, e sobre o beijo… Hoje em dia, a lembrança de tudo isto ainda é mais insistentemente aguçada porque vivemos na época da “quinta-coluna”, época em que todos os ideais espirituais e temporais têm seus “quintacolunistas”, seus “Papen” ou seus “Quislings”(1), e em que, portanto, não é possível não  lembrar o “Quinta-Colunista ” por excelência, aquele que por preço mais barato fez o serviço maior, com “êxito” mais completo. Mas, precisamente porque o tema já tem sido muito tratado, meditando a “hora do beijo” não é do beijo que vamos falar.

Quando foi preso, Nosso Senhor praticou duas ações aparentemente contraditórias, e é sobre esta contradição que queremos meditar.

Lição para nós: o Mesmo que aterroriza, consola

A contradição se resume em poucas palavras. De um lado, falou tão alto, atroou tanto os ouvidos, que os esbirros caíram por terra. De outro lado, abaixou-Se Ele mesmo até  o chão, para tomar uma orelha e a recolocar no lugar. O Mesmo que aterroriza, consola. O Mesmo que fala com voz insuportável para os tímpanos, reintegra uma orelha  cortada.

Não há nisto, para nós, algum ensinamento? Nosso Senhor é sempre infinitamente bom, e foi bom quando disse aos que O procuravam, que era Ele Jesus de Nazaré, a quem  queriam, como foi bom quando consertou a orelha de Malco. Se queremos ser bons, devemos imitar a bondade de Nosso Senhor, e aprender com Ele, que há momentos em que é preciso saber prostrar por terra com santa energia os inimigos da Fé, como há ocasiões em que é preciso saber curar os próprios males daqueles que nos fazem mal.

Por vezes, para curar é preciso gritar…

Por que falou Nosso Senhor tão alto, quando respondeu “Ego Sum”? Só para atordoar fisicamente os que O prendiam? Mas para quê, se Ele Se entregava voluntariamente à  prisão? É que Ele falou ainda mais alto a seus corações, do que a seus ouvidos, e se lhes falou alto aos ouvidos, não foi senão para lhes falar ainda mais alto aos corações. Não sabemos qual foi o proveito que aqueles homens fizeram da graça que receberam. Mas certamente o temor que tiveram, quando tombaram à voz do Mestre, lhes foi salutar como foi salutar a Saulo, quando a mesma Voz lhe gritou “Saulo, Saulo, por que me persegues?”

Nosso Senhor lhes falou alto aos ouvidos. Prostrou-os por terra. Mas sua voz que abatia corpos e ensurdecia ouvidos, erguia almas que estavam prostradas, e lhes abria os  ouvidos dos espíritos, que estavam surdos. Às vezes, pois, para curar é preciso gritar.

“Senhor, que ouçamos!”

Com Malco, Nosso Senhor procedeu de outra maneira. Quando lhe restituiu a orelha cortada pela fogosidade de Pedro, Nosso Senhor certamente lhe queria fazer um bem  temporal. Mas curando-lhe o ouvido, Nosso Senhor lhe quis sobretudo abrir o ouvido da alma. E Ele que a uns curara da surdez espiritual com o estrondejar divino da sua  voz, Ele mesmo curou da mesma surdez espiritual a Malco, dizendo-lhe palavras de bondade, e restituindo-lhe a orelha que perdera.

Vivemos em um século afetado, por certo, pela mais terrível surdez espiritual. Se há época em que os homens ouvem a voz de Deus, é a nossa. Se há época em que contra ela  endurecem os corações, é por certo a nossa.

O Divino Mestre nos mostra que se queremos dissolver em nós e no próximo esta terrível surdez, é Ele só que o pode fazer, e os meios humanos em si mesmos de nada  valem.

Nesta ocasião, façamos nosso um pedido que se encontra nos Santos Evangelhos. Quando um cego viu certa vez a Nosso Senhor, lhe bradou: “Domine, ut videam” — Senhor, que eu veja! Hoje, aproveitemos as comemorações da Semana Santa para Lhe pedir que ouçamos: “Domine, ut audiam”. Não sabemos, na sabedoria de sua misericórdia, de que maneira Nosso Senhor curará nossa surdez espiritual.

Sangramos como Malco, e estamos surdos como os esbirros. Pouco nos importa que Ele queira curar-nos por este ou aquele meio: cumpra-se sua vontade divina. Fale-nos  Ele pela voz terrível das provações e dos castigos, fale-nos Ele pela voz branda das consolações, uma coisa sobretudo Lhe pedimos: Senhor, que ouçamos!

Nosso Senhor vencerá, e com Ele, a Igreja

Que pelo menos nós, católicos, ouçamos plenamente a voz de Nosso Senhor, e que, correspondendo em nossa santificação interior, de modo completo e irrestrito, às graças  que Ele nos dá, realizemos dentro de nós aquele pleno reinado de Nosso Senhor, de que os inimigos da Igreja parecem esperançados de arrancar os últimos vestígios sobre a face da terra.

Nosso Senhor prometeu indestrutibilidade à sua Igreja, e prometeu que se salvaria toda alma verdadeiramente fiel. Confortados nessa esperança, meditemos com serenidade  s tristezas destes dias de universal conturbação, como as agonias desta Semana da Paixão. Nosso Senhor é o grande Vencedor. Ele vencerá, e com Ele vencerá a  Igreja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do “Legionário”, nº 659, 25/3/1945. A nota e os subtítulos são nossos.)

1) Von Papen, embaixador alemão, e Quisling, dirigente norueguês: personagens da II Guerra Mundial, cujos nomes se transformaram em sinônimo de “traidor”, por terem  favorecido, nos seus respectivos cargos, as ações criminosas do nazismo.

Pureza, humildade, obediência

Na Anunciação, a atitude de Maria, a Virgem das virgens, foi perfeitamente virginal. De outro lado vemos como Ela foi humilde em toda a linha. Aquela que Deus destinara para ser sua Mãe, preparando sua alma e seu corpo para estarem inteiramente proporcionados — tanto quanto possível a uma criatura humana — à honra de ser a Mãe do Messias, não tinha de Si uma alta ideia. Pelo contrário, ficou perturbada porque julgou que o elogio do Anjo não podia caber para Ela.

Contudo, bastou São Gabriel dar-Lhe a certeza de que isso vinha de Deus para Maria responder: “Ecce ancilla Domini, fiat mihi secundum verbum tuum — Eis a escrava do Senhor, faça-se em Mim segundo a tua palavra”.

Assim, da humildade e da pureza conjugadas em Nossa Senhora resultou sua aceitação do plano de Deus, a respeito da Encarnação do Verbo.

Há, entretanto, outro “fiat” de Maria que é uma verdadeira beleza. Aos pés da Cruz, Deus quis que Ela consentisse em oferecer o seu Filho como vítima. Nossa Senhora O via estertorando na Cruz, dando aquele brado: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?”, e consentiu que aquilo se passasse para o gênero humano ser resgatado e as almas poderem ir ao Céu. Porque Deus queria que Ela quisesse, Ela quis! São os dois atos supremos de obediência da Santíssima Virgem.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/3/1990)

Vós fostes, Senhor

“Vós fostes, Senhor, um modelo de paciência. Vossa paciência não consistiu, entretanto, em morrer esmagado debaixo da Cruz, quando Vo-la deram.

Conta uma piedosa revelação que, quando recebestes das mãos dos verdugos vossa Cruz, Vós a beijastes amorosamente, e, tomando-a sobre os ombros, com invencível energia a levastes até o alto do Gólgota. Dai-nos, Senhor, essa  capacidade …. de sofrer heroicamente, não apenas suportando o sofrimento, mas indo ao encontro dele, procurando-o e carregando-o, até o dia em que tenhamos a coroa da vitória eterna.”

Plinio Corrêa de Oliveira

A Eucaristia, eixo da piedade católica

Quão sensível era Dr. Plinio à ideia de um universo aberto, no qual a Igreja Triunfante e a Penitente se unem à Militante! Entusiasmava-o considerar a ação da graça divina, dispensada a rogos de Maria em favor de todos, e impetrada pelos méritos infinitos do Santo Sacrifício de Jesus, renovado nos altares do mundo inteiro.

 

Vós falastes sobre a tríplice devoção ao Santíssimo Sacramento, a Nossa Senhora e ao Papa. Monsenhor Segur, prelado francês do século XIX, chamava essas três devoções de “rosas dos bem-aventurados”. Podemos dizer que são as três rosas dos contrarrevolucionários. Vós pedistes que se destacasse, na exposição de hoje, a parte referente à Sagrada Eucaristia. Este é um dos temas a respeito do qual mais gosto de tratar.

Embora todos compreendam uma mesma verdade objetiva, cada um deita a tônica da atenção num determinado ponto

Uma vez que me pediram para tratar da devoção ao Santíssimo Sacramento enquanto vivida por mim, eu gostaria de começar por ressaltar o seguinte:
Todo ato de piedade tem a sua justificação teológica; se não deitar raiz na Doutrina Católica de nada vale. Mas não basta ter fundamento na Doutrina Católica, porque nossas almas não são como páginas em branco de um livro, nas quais se pode escrever livremente. São almas vivas, que recebem as coisas e vivem em relação a estas. Todas as pessoas compreendem uma mesma verdade objetiva, mas cada uma deita a tônica da atenção num determinado ponto, de modo diferente das demais pessoas.

E um dos encantos do convívio humano consiste nisto: comunicar o que, entretanto, não se pode dizer. Vendo o outro que está ao nosso lado, percebemos que ele notou alguma coisa que não chamou tanto a nossa atenção; houve uma repercussão na alma dele, diferente da nossa; não sabemos exprimir, mas algo nós sentimos.

Uma das coisas que tornam a companhia de uma pessoa mais agradável ocorre quando, por exemplo, visitando um museu, apreciando uma cena humana, considerando um panorama, essa pessoa deixa entrever o que cogita, mas não diz.

Embora pouco se fale sobre esse assunto, isto se aplica às verdades da Fé.

A ação de Nossa Senhora se adapta a cada alma

Quando conhecemos uma verdade da Fé, sentimos em nossa alma uma repercussão que, embora não consigamos exprimir, é o melhor do que degustamos.

Por exemplo, analisemos o modo de nossas almas reagirem diante da imagem de Nossa Senhora que se encontra neste auditório(1). É impossível olhá-la sem sorrir; é impossível olhá-la sem que uma forma de otimismo da Fé sopre em nossa alma.

A ação de Nossa Senhora sobre cada alma se adapta de acordo com seu caráter único, de tal modo que é irrepetível. E na história de todas as graças concedidas por Maria Santíssima — no Céu isso se verá —, há incontáveis reações possíveis à vista dessa pequena imagem, indicando as inúmeras modalidades de Nossa Senhora ser graciosa.

Todos aqui estão prestando atenção na reunião, mas, às vezes, pelo movimento natural da cabeça, do corpo, dos olhos, olham para a imagem. E notam que ela reluz em sorrisos, como as pedrazinhas da imagem reluzem também. Conforme o lugar em que a pessoa está sentada, pequenas pedras se acendem em cor verde, vermelha, ou azul. A pessoa, então, se contenta e diz: “Oh! Nossa Senhora!”

É um carinho único que Ela tem para cada um de nós. Porque cada um é o filho único de Maria Santíssima. Ela é tão completa e tão perfeita como Mãe, que, a bem dizer, é como uma pessoa para cada filho. Nossa Senhora é Mãe do Unigênito, do Filho por excelência, e São Luís Grignion de Montfort gosta muito de considerar uma frase da Escritura: “Homo et homo natus est in Ea”(2). Ou seja, uma sucessão indefinida de homens nascerão d’Ela; gerando a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Santíssima Virgem gerou para a vida espiritual todos os homens.

No Céu, isso poderá ser visto, e creio que quase se poderia fazer uma invocação especial de Nossa Senhora, ou até muitas invocações, para cada ser. Penso até que todos os seres no Paraíso cantam as invocações da Santíssima Virgem que lhe são próprias, as quais são as invocações da Igreja, mas com acento próprio de cada ser, e esse conjunto forma a harmonia dos coros celestes.

O assunto está preparado — dessa vez a preparação foi longa — para tratarmos da Sagrada Eucaristia.

O ato de piedade máximo — a recepção da Comunhão — deve repercutir, especialmente, em nossa alma

Se isto é assim com todos os atos da piedade católica, claro está que o será com o ato de piedade máximo: a participação da Santa Missa e a recepção da Comunhão.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, em que Nosso Senhor Jesus Cristo Se ofereceu como vítima expiatória por todos os homens; Ele, o Homem-Deus, Inocente, na sua natureza humana passou pelo castigo que Adão nos mereceu, e resgatou todos os homens.

No momento em que o sacerdote pronuncia as palavras da Consagração, a hóstia é consagrada, transubstanciando-se no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Da renovação deste sacrifício do Divino Redentor resulta esse dom inapreciável: a visita d’Ele às nossas almas.

O inefável da Sagrada Eucaristia sentido pela alma católica

Se Ele estivesse sensivelmente presente — realmente presente está —, e eu pudesse ver, por exemplo, um pequeno movimento de sua mão divina, e observar seu pulso, considerando que ali pulsa o Sagrado Coração de Jesus, uma vez que a pulsação do Coração se reflete nessas veias! Dessas pulsações divinas vive tudo quanto tem vida na ordem espiritual das coisas. Que respeito!

Se eu conseguisse, além disso, apalpar a orla de seu manto como aquela mulher que ficou curada ao tocá-la(3)! E se pudesse com esse ato atingir, num só momento, o grau de santidade que quereria obter, não era natural que eu rejubilasse inteiramente?

Recordo-me das palavras de um salmo e que acho uma beleza: “…se regozijarão os meus ossos humilhados”(4). Um indivíduo está reduzido a ossos, a uma caveira; pode ele estar numa situação mais baixa? Mas é dita uma palavra por Nosso Senhor e a caveira se refaz, ressuscita de júbilo!

As palavras d’Ele são de vida eterna. Ouvir uma palavra de Jesus! Ele está na Hóstia; eu não O vejo, mas creio.

Chega a hora de eu comungar, e Nosso Senhor vai estar realmente em mim.

Será que Ele não vai me dizer nada?

Sim, no interior de nossas almas, Ele dirá:
— Meu filho, quando dois estão juntos, um sente o outro. Será que quando Eu estou em ti não sentes nada? Ouve a linguagem silenciosa de minha presença, que não te fala aos ouvidos.

Às vezes, o silêncio diz de uma pessoa o que a expressão da fisionomia, as maneiras ou modo de ser, ou a palavra, não chegam a exprimir.

“Meu filho, tu sabes disso? Presta atenção em Mim! Eu estou em ti, a graça te fala. Tu não sentes nada?”

Assim é o inefável da Sagrada Eucaristia que a alma católica sente.

Posso dizer o que sinto.

É algo que comunica luz, amor, força. E permanece em nossa alma, embora para muitos pareça ser passageiro.

Então, pela Sagrada Comunhão, para os assuntos da Fé a inteligência fica mais perspicaz; quanto ao amor, torna-se mais aberto para tudo quanto é virtude; em relação à força fica-se mais pronto para tudo quanto é sacrifício, e a vontade de lutar se multiplica por si mesma.

Como uma Missa celebrada na Terra repercutirá no Céu?

Essa é uma hora de grande solenidade, para a qual devemos impostar a alma numa posição de veneração, gravidade e seriedade.

Eu não posso deixar de pensar, quando vai se aproximando a hora da Consagração, no que estará se passando de soleníssimo, festivo, vitorioso e grandioso no Céu neste momento. Que alegria e glória para Deus! Ainda que o Céu e a Terra tivessem sido criados para que houvesse uma só Missa, estava tudo justificado.

Ao se iniciar uma Missa, não estarão os Anjos — empregando uma linguagem antropomórfica — solenemente se preparando? Eu imagino que, nesse momento, o Céu deva estar como uma corte quando vai se realizar um ato mais grave e mais augusto do que a coroação de um rei.

Pouco depois do tilintar das campainhas, termina a Consagração, o Céu reluzirá de glórias.

A Santa Missa causa terror nos demônios!

Falei da comunicação das almas entre si na Terra. E também a respeito da comunicação mais perfeita das almas no Céu, bem como da visão beatífica. Entretanto, essas considerações ficariam incompletas se eu não acrescentasse o seguinte: embora, de certo modo, toda a Criação tenha sido considerada sumariamente, falta algo: o inferno.

Quando a Consagração se aproxima, eu imagino que o inferno fique aterrorizado, ele deve rugir de ódio e gostaria de fazer explodir o mundo para evitar que se celebrasse uma Missa. Ele sabe a derrota renovada que sofrerá.

A celebração eucarística relembra para Satanás o momento de sua derrota

A derrota dele se deu no momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo morreu e o gênero humano foi resgatado. Houve um sabá horrível lá embaixo, em que todos se agatanharam e se atormentaram em termos indizíveis.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício. E todas essas vergonhas para o demônio se acumulam.

A Alma santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo, não abandonando jamais a união hipostática, foi ao limbo — com alegria prodigiosa de todos os justos, a começar por Adão e a coroar-se por São José — e levou todos para o Céu.

Podemos imaginar Jesus que, chegando ao limbo, falou para todos sobre a Redenção. Adão e Eva, que estavam esperando a milhares de anos… Santo Adão, Santa Eva aguardavam o momento em que aclamariam o Filho deles. Eles, pecadores, aclamando o Filho Redentor.

A Missa é a renovação incruenta do Santo Sacrifício. E todas essas vergonhas para o demônio se acumulam.

Quando a pessoa comunga, o demônio recua

Quando estivermos no Céu, talvez tenhamos algum conhecimento — que não nos molestará em nada — dos rugidos do inferno, e veremos o negrume hediondo, horrível, do mal; e então cantaremos com redobrado vigor porque estaremos esmagando os demônios.

O maligno faz tantas infiltrações nas almas, e as remexe sadicamente, porcamente, criminosamente. Quando a pessoa comunga, cresce nela essa luz do senso católico, essa força, esse amor; o demônio recua e fica torturado.

Ao se aproximar o momento de receber a Sagrada Eucaristia, podemos dizer contra o demônio: “Recuarás agora, bandido! Eu vou comungar!” De recuo em recuo, depois das expulsões provisórias chegará à expulsão total.

Aí estão as considerações que povoam a minha alma por ocasião da Comunhão.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de Conferência de 13/11/1982)

1) As conferências de Dr. Plinio davam-se, normalmente, com a presença de uma imagem de Nossa Senhora de Fátima.
2) Sl 86,5.
3) Cfr. Mc 5,25-31.
4) Sl 50,10.

Oração da alma reta

Minha Mãe, se é verdade que, infelizmente, permaneço com este defeito, consegui, pelo menos, vê-lo e detestá-lo por inteiro! Eu me inclino diante de Vós e Vos peço perdão porque pequei e andei mal. Dai-me vossa misericórdia e vossa ajuda!

Estou certo de que virá o dia no qual Vós tereis pena de mim e me atendereis! Então, depois de tanto me humilhar, bater no peito e detestar minha maldade, acabará nascendo em mim uma luz, uma força, uma capacidade de me modificar, por onde me sentirei outro; e, de repente, estarei felizmente resgatado, livre do defeito que eu tinha.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Prêmio demasiadamente grande

Segundo uma bela e tão razoável tradição, no momento em que a Santíssima Virgem, meditando na figura do Messias profetizado nas Sagradas Escrituras, completou a imagem que Ela deveria  formar a respeito d’Ele, o Arcanjo São Gabriel Lhe apareceu.

Assim, a primeira tarefa de Nossa Senhora foi conceber em seu espírito como seria o Redentor. Que santidade deveria ter a Virgem Maria para, com êxito, imaginar a fisionomia, o olhar, o timbre de voz, os gestos, o caminhar, o repouso do Filho de Deus!

E que alma era preciso ter para, depois disso, receber de Deus esta sentença: “Dedicaste a tua mente a desvendar este mistério, fizeste-o com tanto amor e tanto acerto que Eu Te digo: “Aquele que excogitaste, Tu gerarás!”

Prêmio maravilhoso, como nunca houve nem haverá igual na História! Ele disse de Si mesmo àqueles que fossem fiéis: “Serei, Eu mesmo, a vossa recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn 15,  1). Nosso Senhor Jesus Cristo é tão perfeito que até para Nossa Senhora Ele foi o prêmio demasiadamente grande.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Aspecto democrático em Nosso Senhor Jesus Cristo

Nosso Senhor é Rei de infinita grandeza, seu modo de ser é aristocrático. E, estando presente nos sacrários das igrejinhas espalhadas por toda a Terra, onde atende e conversa com qualquer pessoa do povo, Ele manifesta seu aspecto democrático.

O Magistério da Igreja ensina que das três formas de governo — monarquia, aristocracia e democracia — nenhuma é contrária à justiça e, portanto, à Lei de Deus. Assim, um povo pode optar por qualquer uma delas, conforme entenda, porque todas são lícitas.

A Revolução Francesa quis impor a república em toda a Europa

Foi o que se praticou na Idade Média, em que havia tanto monarquias como cidades aristocráticas sem chefe monárquico — por  exemplo, a República Sereníssima de Veneza, cujo chefe, o Doge, era temporário, eleito pela aristocracia inscrita no livro de ouro de Veneza. Ele mesmo devia ser aristocrata, e substituído ao cabo de dez anos de mandato.

Havia também várias repúblicas democráticas na Idade Média, principalmente as cidades livres na Alemanha, Suíça e Itália, nas quais os plebeus burgueses, trabalhadores manuais elegiam o  governo.

Nunca se sustentou, na Idade Média, a ideia de que uma destas três formas de governo fosse injusta e incompatível com as outras. Por isso, não passava pela mente de ninguém, naquela época, fazer uma cruzada de um país contra outro para impor determinada forma de governo. Pelo contrário, conviviam na maior boa vontade, na maior bonomia, e cada um se organizava como queria, segundo as peculiaridades, as circunstâncias, o transcurso dos acontecimentos históricos e mil outros fatores.

Esta é a soberania pela qual cada um escolhe para si próprio o governo que entende.

Com a Revolução Francesa começaram a aparecer as guerras para impor o regime republicano à Europa inteira. A partir desse momento, estabeleceu-se uma luta das aristocracias e monarquias contra as repúblicas e vice-versa. Mas é porque o movimento republicano passou a ser animado pela Revolução, coisa que não acontecia na Idade Média.

Ora, a Revolução tem uma tese: a monarquia e a aristocracia são formas de governo opostas à dignidade humana e, como tais, contrárias ao Evangelho, à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, é necessário eliminar, por meio de lutas libertadoras, esses regimes dos povos oprimidos. Alguns inábeis defensores das monarquias e das aristocracias, vendo o caráter intrinsecamente mau do movimento republicano do século XIX, deduziram daí que a república era intrinsecamente má, sem se lembrarem dos precedentes anteriores, nos quais havia tantas cidades livres
republicanas em que a investidura do chefe da república no cargo era feita na igreja, em cerimônia religiosa, assim como a investidura do monarca e do príncipe.

Leão XIII condenou a tese de que a democracia é uma forma de governo injusta e desenvolveu o que estou dizendo aqui, naturalmente com o brilho e com a autoridade dele.

O movimento modernista — heresia secreta que lavrou no tempo de São Pio X, o qual a esmagou com a Encíclica “Pascendi Dominici gregis”, mas renasceu no tempo de Bento XV sob outras formas — sustentava o contrário, isto é, que só a democracia é a forma de governo legítima.

São Pio X condenou severamente essa tese, de maneira que devemos pensar a respeito desse assunto o que o Magistério da Igreja nos indica.

Devemos admirar e tender para o mais perfeito

Entretanto, submetendo a ulterior juízo da Igreja, acrescento a este pensamento o seguinte: São Tomás de Aquino diz que a mais perfeita das formas de governo é a monarquia, sobretudo quando ordenada, composta com a aristocracia e a democracia.

Quer dizer, devem coexistir certos elementos de monarquia, de aristocracia e de democracia dentro das formas de governo. De que modo? “L’Histoire par l’image” (CC 3.0)

O Portugal do Ancien Régime(1), até o século XVIII, por exemplo, possuía isso muito bem distribuído, porque para a direção do reino havia o rei; para a direção da parte rural do país, a nobreza, ainda com os seus castelos, remanescentes vestígios dos antigos feudos; e havia, nas cidades habitualmente habitadas pela burguesia, um regime de foros, que eram liberdades da cidade em relação ao rei e ao senhor feudal, pelas quais se conferia à urbe o direito de governar a si mesma, os seus assuntos internos, desde que não contundisse com as leis do rei, nem com as prescrições do senhor feudal.

Essas liberdades forais eram muito apreciadas, e os estudiosos as têm analisado e considerado muito sábias, variando de cidade para cidade, conforme as circunstâncias de cada uma, a evolução histórica, etc.

Não era, portanto, uma espécie de “saco de gatos” de três formas de governo opostas; tampouco  o sistema inglês: Câmara dos Lordes aqui, Câmara dos Comuns ali, vamos ver para que lado a balança pende… Não era isso. Cada um tinha a sua esfera.

Aliás, um francês definiu a província, a região, assim: esfera de influência de uma grande família. Acho a definição magnífica. No regime misto a que me refiro, o governo do reino é do rei; a  direção da província, da região pertence ao nobre; e a do município, ao povo que nele habita. É tão natural, tão claro, e constitui uma das modalidades possíveis de combinação dessas formas de governo.

Não obstante, parece-me que, sendo a monarquia a forma de governo mais perfeita, embora o povo que não viva em regime monárquico tenha esse direito — e até, se a monarquia não se ajustar bem às circunstâncias dele, ele não deve adotá-la —, é natural que ele tenha uma simpatia e uma admiração prevalente por aqueles povos onde a forma de governo mais perfeita possa se executar e desenvolver as suas excelências.

A humanidade deve, criteriosa e sabiamente, tender quanto possível para o mais perfeito e não pode considerar um título de orgulho estar no regime menos perfeito, como seria o meramente aristocrático ou democrático.

Essas considerações, acrescentadas com a devida veneração aos ensinamentos de Leão XIII e São Pio X, não me parecem contundir em nada com o pensamento deles.

As imagens de Nosso Senhor, elaboradas ao longo dos séculos, e o Santo Sudário

Então nasceria uma pergunta até muito bonita. Houve quem me indagasse a respeito dos aspectos aristocráticos e monárquicos do Sagrado Coração de Jesus. Mas como seria também a  democracia no Sagrado Coração de Jesus? Não vamos ter medo da pergunta.

Haveria dois ângulos pelos quais poderíamos abordar o tema: um seria tomar Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele é, e considerar o que de monárquico, de aristocrático e de democrático se irradia n’Ele. Outro ângulo seria o seguinte: tomado, em tese, o ensinamento d’Ele, encontrarmos o fundamento para dizer que em tal passagem ou circunstância Ele manifestou-Se mais favorável a esta ou àquela forma de governo.

De momento, parece-me mais conveniente a primeira fórmula. Nas figuras de Nosso Senhor que eu tenho visto, em fotografias ou diretamente, nas catacumbas de Roma, há pinturas  representando-O, por exemplo, como o Bom Pastor ou em outros de seus atributos, mas não me lembro de pinturas que representem sua Sagrada Face. Não se sabe de alguém que, tendo  conhecido pessoalmente Nosso Senhor, O tenha retratado em imagens. Sou propenso a admitir que se conheciam  suas feições por tradição oral.

Tendo caído o Império Romano do Ocidente, começaram as construções da alta Idade Média, e surgiram as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo cujas feições seriam comprovadas, séculos mais tarde, com a descoberta do Santo Sudário.

Dir-se-ia ser muito explicável que cada povo modelasse o Divino Mestre segundo a imaginação, produto da própria cultura. Entretanto, as figuras elaboradas ao longo de séculos indicam, com  maior ou menor precisão, mas indiscutivelmente, que a Pessoa do Santo Sudário é a mesma representada pelas imagens comuns.

Como se deu este salto por cima dos séculos e se “adivinhou” a figura Sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo? Nunca tive tempo de estudar a fundo isso, mas li o suficiente para fazer uma  conjectura séria, que é a seguinte: Aos poucos, com o auxílio da graça, a piedade dos fiéis foi compondo essa figura.

Pode ter acontecido também que algum Santo ou Santa tenha visto, em uma  revelação privada, e tenha até pintado a figura de Nosso Senhor. Essa imagem agradou enormemente ao senso geral dos fiéis e, por causa disso, foi se espalhando de país em país e sendo aceita por todo o mundo como indiscutível, e assim se propagou por toda a Igreja.

Ora, isso é fruto da graça, uma espécie de revelação privada da verdade, que Nosso Senhor teria dado muito belamente à Igreja, à medida que ela ia se distanciando da vida terrena d’Ele, levada pelo curso da História. Com o passar do tempo, fomos nos afastando dos dias em que Ele esteve aqui presente, de um modo visível, sensível. Para consolar a nossa orfandade, Ele nos deixou, antes de tudo, a Sagrada Eucaristia, mas também o Sagrado Rosto d’Ele, por essas formas de produção, evolução e fixação do senso dos fiéis.

Vemos, por aí, como há mistérios lindíssimos que Nosso Senhor e Nossa Senhora guardam, e que só as posteridades depois vão conhecer.

Maria Santíssima provavelmente conhecia a utilização que a Providência faria do Santo Sudário, mas não creio que os Apóstolos a conhecessem, nem mesmo Santa Maria Madalena; muito menos
Nicodemos ou José de Arimateia.

Entretanto, o Sudário com o qual Jesus foi sepultado seria, dali a dois mil anos, a prova de que Ele tinha estado naquele pano. Assim, na sepultura, morto, Ele estava envolto no documento que comprovaria a sua vinda e o seu futuro.

“Vox populi, vox Dei”

Este aspecto — a meu ver, lindíssimo — dá-nos muito a ideia do caráter de participação popular na vida da Igreja. Não houve um grande homem, não houve ninguém que aparecesse e dissesse: “Ele foi assim”, pintou-O e as multidões caíram de joelhos. Alguém terá pintado, mas o que de fato assegurou a expansão foi o consenso geral, uma espécie de sufrágio universal.

Há uma expressão que diz “vox populi”, vox Dei: a voz do povo de Deus é a voz de Deus. É muito bonito, muito ordenado, muito direito. Dou outro exemplo.

No século XIX a “vox populi” se pôs a cantar o Stille Nacht, e o mundo inteiro a adotou como a música de Natal por excelência, por um consenso universal. Por que se canta o Stille Nacht aqui, na Nigéria, na Libéria e em quantos lugares há na Terra? A história dessa canção está ao alcance de todo mundo; sabe-se qual foi a aldeia alemã em que ela nasceu, o nome do compositor; há até um museuzinho organizado na casa dele. Entretanto, o que fez a celebridade dessa música foi o consenso, expresso por ela, a respeito do que todos sentiam por ocasião do Natal.

Não houve uma bula do Papa mandando cantar o Stille Nacht, nem qualquer outro decreto. Nem se trata de um canto litúrgico. Entretanto, não se compreende uma festa de Natal onde, antes ou depois da celebração litúrgica, não se cante o Stille Nacht.

Vê-se que a mão da Providência não é alheia a isso; muito pelo contrário, graças a Ela chegou-se a esse ponto maravilhoso de consenso popular geral. Mas esta é uma questão tão fina, tão sutil, que seria impossível explicá-la à maior parte das pessoas que, ouvindo o Stille Nacht, puseram- se a cantar também.

O senso é uma coisa diferente do raciocínio quadrado, e um povo pode ter um grande senso até não tendo grande instrução. Essa é, por exemplo, uma forma magnífica de colaboração do fator popular na Igreja.

Na própria infalibilidade da Santa Igreja há certa participação daquilo que eu chamaria de fator democrático. É admitido pela Teologia que Deus não pode deixar cair em erro todos os católicos em todos os lugares. E quando a Igreja inteira, com sua Hierarquia e os fiéis, aceita durante muito tempo determinada doutrina, aquilo é verdade infalível, ainda que não tenha sido explicitamente definida pelo Magistério eclesiástico.

Para que a colaboração popular seja proveitosa e possa dar o seu melhor fruto é preciso saber interrogar o povo e deixá-lo exprimir-se, permitindo que os costumes — que são a boa voz do povo — vão se constituindo.

Uma pessoa que, vendo um vale qualquer, pensasse: “Esse vale e a altura desses montes são semelhantes aos do Roncal. Que tal fazer aqui uns quinze municípios independentes?” Seria uma bobagem. Essas coisas nascem e não têm cópia no mundo inteiro. É a originalidade da coisa popular que não é feita para ser copiada, nascida do profundo dos costumes, do dia a dia, sendo em cada lugar de um jeito.

A meu ver, a voz do povo não se faz ouvir simplesmente por meio de propaganda pelo rádio e pela televisão, convocando depois a população para dar opinião sobre problemas com os quais certas parcelas do povo não têm nada a ver.

Por exemplo, o Governo do Império ou da República no Brasil precisa dispor medidas sobre a navegação fluvial no Amazonas. Ora, o que o eleitor gaúcho, na outra ponta do País, vai entender desse assunto? Entretanto, quando chegar a hora de votar uma lei sobre a navegação no Amazonas, a bancada do Rio Grande do Sul, como todas as outras, vai ter que opinar.

O que o representante dos santistas ou dos cariocas, nascidos no litoral, pode decidir a respeito de problemas do Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, onde não existe mar? Hoje as coisas entre nós estão organizadas assim, todos os problemas nacionais devem ser objeto de decisão da parte do País inteiro.

Entretanto, ninguém tem tempo de tomar nota de tudo isso. O regionalismo sadio, deixando às várias partes do povo a liberdade de opinar de um jeito ou de outro, tem muitos elementos para a solução dos problemas nacionais. Nesse sentido, eu seria inimigo de quem, no Brasil, fosse separatista. Creio que o Brasil poderia ser mais largo como federação.

Os Estados Unidos têm federação muito mais ampla do que o Brasil e, mesmo assim, parece-me que poderiam ser mais descentralizados ainda, porque aí se ouve a “vox populi”.

Tirar o colete de cem mil leis

Alguém dirá: “Mas o que o senhor pensa do sistema representativo moderno, com votos, câmaras, etc.?” Penso que ele, habitualmente, é menos mau do que as ditaduras. Porém, a meu ver, nem ele nem as ditaduras valem nada. E se me perguntassem qual é a opção entre uma coisa e outra, eu diria: Nada! Eu não tenho nada a escolher nessa bandeja.

A minha sugestão é muito simples: tirar o mundo inteiro de dentro desse colete de cem mil leis em que as pessoas se embaraçam, e deixar a liberdade respirar e organizar a si mesma, sob certo controle, certa vigilância, principalmente num ponto, isto é, que a Lei de Deus seja observada.

Porque se a Lei divina for conhecida, amada e praticada, tudo se arranja; se não for, não há o que conserte nada. Podem assar, cozinhar e fritar como quiserem, sai uma porcaria, seja monarquia, aristocracia ou democracia.

Tocamos, então, no ponto final: Nosso Senhor Jesus Cristo, visto sob seu aspecto democrático. O que quer dizer isto? Considerado enquanto Rei de infinita grandeza, de majestade insondável e de uma bondade tal que Ele mora realmente presente no pequeno sacrário de cada igrejinha no vale do Roncal e de todos os outros “Roncais” que possa haver espalhados pelo mundo, bem como em qualquer pequena aldeia existente nos Andes ou no centro montanhoso do Brasil — enfim, onde for—, ali, pela sua presença eucarística, Nosso Senhor Jesus Cristo fala ao fiel que se ajoelha. É um dom que não tem qualificativo, acima de toda dádiva, uma beleza, uma maravilha!

Pela sua Igreja, Ele ensina a doutrina, alimenta e salva as almas, tornando- as assim bastante ordenadas para que elas constituam, naturalmente, um concerto de grandes e pequenos, como os instrumentos diversos de uma orquestra quando tocam o Stille Nacht. Assim também, todos juntos vão contribuindo com a sua própria opinião para formar o consenso geral. Donde saem as instituições originais, os modos de ser, as peculiaridades de cada lugar, sem que um país se sinta obrigado a copiar nenhum outro.

Deixem vir de baixo para cima o consenso geral, então se estabelecerão as leis e os costumes que duram séculos. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte de tudo isso, é a sanidade do povo garantida pela santidade da ação divina d’Ele sobre cada homem”.

1) Ancien Régime

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/12/1985)

Devoção ao Sagrado Coração de Jesus

Atendendo ao pedido de um discípulo, Dr. Plinio tece comentários transbordantes de ardoroso amor acerca da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Estando na contingência de tratar sobre um tema tão caro, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, meu modo de ser me levaria a procurar estudar, pensar e meditar a respeito dele, até ter conhecido a respeito do assunto tudo quanto seja possível. A meu ver, assim também deve ser o amor, feito do máximo sentimento possível, mas a par do sentimento deve estar também o raciocínio pelo qual nós buscamos entender ao máximo aquilo que se sente. Da soma destes dois fatores resulta o verdadeiro amor.

Contudo os deveres de meu apostolado não me permitem agir de acordo com este princípio, ao menos não tanto quanto gostaria. Mas, ainda que eu não tenha podido fazer estudos profundos a respeito deste tema, algo sempre se conhece, proponho assim que entremos no assunto valendo-nos, sobretudo, daquilo que sentimos a respeito desta devoção.

Duas concepções de coração

Primeiramente, eu gostaria de analisar duas concepções distintas, mas não contrárias, a respeito do que representa o coração.

Uma é a concepção moderna, segundo a qual o coração é símbolo do sentimento puro, divorciado da razão. Debaixo desta visualização, o coração de alguém deve vibrar à vista de algo que lhe causa boa impressão, enternecimento, e produz um sentimento de bondade e condescendência.

Algo disso, por exemplo, se dá comigo sempre que vejo uma imagem do Sagrado Coração de Jesus que está numa Igreja da cidade de São Paulo, a Ele dedicada. Ao ver aquela imagem, lembro-me de uma série de emoções de ordem religiosa que tive diante dela. Estas emoções, evidentemente, de nenhum modo eu as considero ruins. Mas pergunto: Será que o coração representa só isso? Devemos considerar que os antigos entendiam o coração num sentido mais profundo; para eles o coração representava o conjunto de tudo aquilo que o homem conhece e ama. Porém, com um amor segundo a concepção que apontei acima, ou seja, sentindo, raciocinando, julgando, e conforme o caso, aderindo e amando. Tudo quanto desta forma o homem ama, constitui um conjunto que é a mentalidade do homem, a qual é representada pelo coração.

Diante desta concepção, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus adquire uma profundidade insondável.

Diversos aspectos de uma mesma cena

Imaginemos como alguém, que conhecesse Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua vida terrena, deveria amá-Lo, a ponto de saber reconhecer o majestoso e suave timbre de sua voz. Consideremos que essa pessoa tivesse visto um olhar repleto de bondade e misericórdia d’Ele para alguém. Por outro lado pudesse contemplá-lo açoitando os vendilhões do Templo, ou respondendo aos guardas do Templo: “Ego sum”, e todos caírem no chão.

Creio que se eu fosse pintor, seria capaz de fazer ao menos uns cinquenta quadros representando diferentes aspectos que n’Ele deveriam transparecer naquele momento. O mesmo se poderia fazer a respeito da cena onde, do alto da Cruz, entre gemidos Ele disse: “Mãe eis o teu filho! Filho eis aí tua mãe!”(Jo 19, 26-27). Com que fisionomia Jesus terá dito isso? Ou então, quando Ele afirmou ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Nesta mesma cena é preciso considerar não só as palavras d’Ele ao bom ladrão, mas também, o silêncio gélido d’Ele em relação ao mau ladrão.

Quanta expressividade tem o silêncio de uma pessoa como Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pois bem, se a mim fosse dada a graça de presenciar tudo isso, creio que, apesar do meu empenho em conhecer as mentalidades, eu esqueceria tudo para só prestar atenção n’Ele. Evidentemente, também em Nossa Senhora e um pouco nos Apóstolos, fora deles, mais nada. Mas, sobretudo eu teria procurado conhecer Nosso Senhor o quanto me fosse possível. Não por controle ou desconfiança, mas, pelo contrário, para poder amá-Lo e entregar-me cada vez mais a Ele.

Como será a mentalidade de Nosso Senhor?

Tomada esta concepção de coração, podemos nos perguntar como deve ser a mentalidade de Cristo.

A resposta é muito difícil, pois o tema é tão alto que estando em baixo tem-se medo de subir. Por outro lado, quando se chega em cima não se tem vontade de descer. Se considerarmos, sobretudo, a natureza humana de Nosso Senhor, podemos tentar explicitar algo, pois no tocante à divindade o assunto atinge tal altura que se torna impossível ao homem alcançá-lo.

A Fé nos ensina que Jesus Cristo é o Verbo de Deus encarnado que passou a habitar entre os homens (Cf. Jo 1,14). Na Pessoa dele a natureza humana e a divina se unem hipostaticamente (Cf. Cat. 467). Esta união é insuperável e inatingível por qualquer criatura humana, nem sequer Nossa Senhora, à Qual acredito ter sido dado o dom da permanência eucarística, pode ter uma união com Deus comparável à que teve a natureza humana de Jesus.

A relação entre a humanidade e a divindade na Pessoa de Jesus é algo tão extraordinário que São Luís, Rei de França, tinha o belo costume, depois adotado por toda a Igreja, de inclinar-se quando durante o Credo se afirmava: “Et Verbum caro factum est et habitavit in nobis”.

A maior alegria e o mais terrível sofrimento

Que alegria tal união deveria produzir na natureza humana de Jesus? Sem considerar a divindade pela qual Cristo é a própria Fonte de toda alegria. Apesar disso, por algum mistério, durante sua oração no Horto esta alegria parece ter cedido lugar a uma terrível sensação de abandono que o levou a pedir: “Pai, se for possível afasta de mim este cálice!”(Lc 22, 42).

Ainda mais eloquente é o brado lançado do alto da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?”(Mc 15, 34). O que terá se passado naquele momento com esta união da natureza humana e a divina, que possa ter causado um tão grande sentimento que O levou a, pouco depois, dizer: “Consummatum est!” (Jo 19,30) e render seu espírito?

Por aí se vê que, apesar da união da natureza humana de Nosso Senhor com a divina, Ele podia sofrer. E por certo equilíbrio que nesta vida costuma haver entre a felicidade e a dor, considerando as alegrias de Jesus, podemos medir quão profundos devem ter sido seus padecimentos.

Creio que um dos mais pungentes sofrimentos pelos quais Cristo passou deve ter sido o do inexplicável. Pois nenhuma dor humana é tão grande quanto à de sofrer sem saber a razão. Apesar de Nosso Senhor enquanto Deus conhecer tudo, e saber que Ele não é passível de culpa, de alguma forma misteriosa Ele deve ter passado por esta forma de dor, do contrário seu sofrimento não seria completo.

Tenho a impressão de que assim como Deus, após criar cada ser que existe no Universo, considerou o conjunto e viu ser este melhor, de modo análogo, Nosso Senhor, após haver passado por todos os tormentos da Paixão, deve ter olhado a beleza do conjunto de seus padecimentos, e deve ter pensado: “Está tudo oferecido; tudo quanto podia sofrer, sofri, para a redenção do gênero humano”, então exclamou: “Consummatum est!”

Mentalidade composta de contrários harmônicos

Ora, é preciso termos presentes estes aspectos de grandeza e fortaleza de alma que vemos transparecer nos últimos atos da Paixão do divino Redentor ao analisarmos cada momento de sua vida terrena. Pois, Ele que sofreu uma morte como essa, é o mesmo que acariciou as criancinhas quando se aproximaram d’Ele, e a respeito das quais disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu” (Mc 10, 14). Não há homem, de qualquer idade, que ouvindo estas palavras não se sinta nelas concernido, pois diante d’Ele quem não se sente pequenino? E pensa: “Então também para mim há um lugar junto a Jesus”.

Devemos considerar que estas palavras transbordantes de doçura saíram dos lábios d’Aquele que durante a Paixão mostrou possuir inigualável força e decisão.

Mas, como pode a alma humana reunir num só quadro todos estes aspectos, de maneira que, à vista de Nosso Senhor, O considere como Aquele que expulsou os vendilhões do Templo, ao mesmo tempo veja n’Ele aquele que com indizível bondade acariciava as criancinhas, curava os doentes, espargia em torno de Si alegria, consolação, tranquilidade, saúde e encanto? Mais ainda, como conjugar numa só visão o Varão tão forte, único e incomparável que se vê no Santo Sudário, com o Menino Jesus recém-nascido, abrindo os braços e sorrindo para Nossa Senhora?

Se bem que já ao abrir os braços os punha em forma de cruz, prenunciando que nascia para ser crucificado, como pode alguém imaginar que naquela Criança cândida, inocente e frágil, já estava o Herói que iria suportar os mais terríveis padecimentos que já se viu e se verá até o fim do mundo?

Males de uma visão unilateral

Como então condensar todas estas perfeições do Homem-Deus numa só visão?

Estas perfeições são tantas que seríamos propensos a nos contentar com a consideração de um só aspecto. De fato, cada um O adora da forma que se sente chamado a fazê-lo, mas em meu caso particular, pelo meu modo de ser, eu nunca me satisfaria em adorá-Lo sob um só destes aspectos, sem procurar reuni-lo aos outros, de modo a formar, ainda que sumariamente, uma noção de conjunto.

Por isso, se eu pudesse conhecê-Lo nesta vida, o que mais me aprazeria admirar n’Ele seriam as transições de estados de espírito, para que nessas variações eu pudesse ver a harmonia que elas formavam.

No teto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus há uma pintura no estilo do século XIX, a qual tem a característica, proveniente de uma tendência dos homens desse século, de representar as coisas exatamente como elas são na realidade prática. Daí surgiu a escola de arte chamada Realismo. Isso para mim não é verdadeira arte. Pois o valor de uma obra de arte está em representar algo de imponderável que só os olhos de verdadeiros observadores captam.

Se representar as coisas tal como a vemos tem valor artístico, a mais perfeita das artes deveria ser a fotografia. Ora, a maior lacuna tanto do Realismo quanto da fotografia está em não retratar estas transições de alma de que acima me referia. Por isso, nos quadros de Jesus que seguem esta escola, nota-se que o artista escolheu um só aspecto de Jesus e procurou representa-lo. E geralmente o que se procura representar de Nosso Senhor é sua misericórdia infinita, o que apesar de ser muito justo é, porém, incompleto.

Na ladainha do Coração de Jesus há a seguinte invocação: “Coração de Jesus, abismo de todas as virtudes”. Isto quer dizer que a profundidade das virtudes d’Ele é tal que constitui um abismo para os homens. Poderíamos até chama-lo Céu de todas as virtudes, considerando o Céu como sendo um abismo para cima.

Pintando belezas esquecidas

Quão bom seria se alguém pintasse quadros representando outras cenas da vida de Cristo. Por exemplo, Ele meditando no deserto quando lá passou quarenta dias em jejum e oração. Poder-se-ia até imaginá-Lo junto a uma pedra, em meio a um deserto árido, onde houvesse somente uma vegetação ordinária e parca, em contraste com a grandeza daquela cena, ao longe vastidões cobertas de uma bonita areia que se encontra com o horizonte, no qual se nota um por de sol cor de brasa, recortado pelo perfil de Jesus.

Ou ainda, poderia ser feito um quadro de Cristo agradando a Nossa Senhora. Pois, se Ele já se tinha deleitado na contemplação do Universo, quanto não Lhe agradaria olhar para Aquela que era superior a todo o Universo! Então representá-Lo olhando nos olhos de Nossa Senhora, Ela cheia de enlevo para com Ele que por sua vez pensava: “Minha obra prima!” e, enquanto filho: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que não daríamos em troca de contemplar uma cena como essa, ainda que pelo buraco de uma fechadura? Depois de vê-la, para que continuar vivendo? Pois, se alguém nos dissesse: “Olha o mar, que bonito!” Eu que gosto tanto do mar, pensaria: “O que é ver o mar depois de ter visto Maria?”

Enfim, como gostaria que se procurasse representar todos os estados de espírito d’Ele, pois não me contento em adorar e aderir somente à sua misericórdia.

Consideração de tudo quanto fez pulsar e vibrar o Sagrado Coração de Jesus

Além disso, outra coisa que muito me agradaria fazer seria uma coleção dos timbres de voz de Nosso Senhor. Por exemplo, d’Ele enquanto ensinava, Ele que é o Divino Mestre, quanta clareza, sabedoria, profundidade, vastidão de horizontes e simplicidade deveriam transparecer em seu timbre de voz!

Talvez, ainda mais do que os timbres de voz, o que não se daria para ter a representação de alguns olhares de Jesus? Para falar só de dois. Como teria sido o olhar que Ele deu a São Pedro, a ponto de convertê-lo e fazê-lo chorar amargamente de arrependimento durante toda a vida? Ou então o último olhar que Ele dirigiu à sua Mãe junto à Cruz. Quanto carinho, apreço e amor deveriam se manifestar neste olhar? Por outro lado, como terá sido o olhar severo dele, expulsando os vendilhões do Templo; ou o olhar desgostoso d’Ele para Pilatos; ou então o olhar de repreensão para Anás e Caifás?

Todo esse conjunto está contido no Sagrado Coração de Jesus, e repercutiu n’Ele de tal forma que, em cada um destes vários momentos, Ele deve ter pulsado de modo diferente, ora mais intensamente, ora menos.

Sendo o Coração de Jesus composto por todos estes aspectos, para termos verdadeira devoção a Ele não basta conhecer e amar somente um destes aspectos, mas é necessário ter uma visão de todo o conjunto que Ele representa. Isto evidentemente ninguém é capaz de atingir inteiramente sem um especial auxílio da graça, mas para os que almejam e empenham-se em conhecer e amar o quanto seja possível este magnífico, indizível e inestimável conjunto, que compõe o Sagrado Coração de Jesus, essa graça em certo momento virá.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1984)