Cristo Rei, Sacerdote e Profeta da História

Sendo a História o conjunto dos eventos humanos que se desenvolvem no tempo, passando por “idades” e etapas, parece-me de grande interesse considerar que cada um dos fatos históricos tem relação, de maneira proporcional, com gestos, pensamentos e episódios da vida terrena de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Entre outros benefícios, tal consideração nos ajudaria a compreender o seu holocausto supremo, uma vez que, como Redentor universal, Jesus oferece fundamentalmente toda a História compendiada na existência d’Ele.

Graças para todas as idades dos homens

Nesse sentido veremos, por exemplo, que a infância d’Ele foi paradigmática, fonte incomensurável de graças especiais para todas as infâncias da Terra. Os mais diversos e abundantes favores espirituais que os homens adultos recebem ao volver o olhar para a sua meninice, todas as oportunidades de reflexão, de raciocínio que a consideração dessa época lhes proporciona, desprendem-se da infância de Jesus.

E o mesmo se poderia dizer das várias etapas da vida d’Ele, cada uma tomada como manancial de graças particulares para os períodos etários análogos vividos pelos homens de todas as épocas. Assim como, em contrapartida, enquanto nosso Salvador expiava também a cada passo da existência d’Ele, os pecados cometidos por todos os homens nas suas diversas idades.

Portanto, no suceder dos seus dias neste mundo, Jesus Cristo de algum modo previveu a vida de todos os homens, de todos os povos, de todas as instituições e nações. Compreende-se, assim, que a História inteira se encontra recapitulada n’Ele, e que Nosso Senhor a tenha vivido de modo paradigmático, merecendo as graças para todos os amanheceres, todas as adolescências, as juventudes, as mocidades, as maturidades, bem como para todos os envelhecimentos dos homens.

Por outro lado, tem-se a impressão de que a bela sentença do Evangelho segundo a qual o Menino Jesus crescia em graça, formosura e santidade perante Deus e os homens, sugere que Ele tinha a inteligência, a vontade e a sensibilidade na sua humanidade santíssima condicionadas às várias idades pelas quais passava. E que ia aos poucos meditando e cogitando, tendo em vista a situação do mundo e a história da Salvação que Ele viera realizar. Creio que a oração no Horto foi o ápice de sua cogitação.

É deveras difícil não se sentir deslumbrado com esse crescimento da natureza humana de Nosso Senhor, recebendo revelações da sua própria divindade, num regi-me interno de relações insondáveis. Não recuo mesmo em achar que a vida oculta e doméstica d’Ele afirma a preponderância do mundo dos pensamentos sobre o da ação, e que as cogitações d’Ele durante aquele tempo continham de algum modo a história das cogitações dos homens. E o papel do raciocinar, do prever, do dar o sentido, do querer, do meditar — muito mais importante do que o fazer — está ali asseverado com uma grandeza indizível.

Temos, então, que todo o processo histórico, todas as etapas do existir humano, coletivo e individual, adquire em tudo uma força, uma nitidez e um esplendor extraordinários com a presença do Homem-Deus na Terra. Porque Ele se encarnou e viveu entre nós, as diversas idades da História e as de cada um de nós se revestem de pujança e de clareza, tornam-se mais compreensíveis, inteligíveis, reluzindo com encanto e majestade especiais.

Mais ainda. Dessa visão da história dos homens à luz da vida de Nosso Senhor Jesus Cristo se destaca um importante corolário que cumpre assinalar. Se todas as nossas ações se espelham naquelas do Divino Mestre, serão elas julgadas, no fundo e principalmente, em função desse nexo com Ele. O que nos faculta a misericordiosa possibilidade de retificarmos a nossa existência pessoal, caso o o nosso proceder não se compagine com a santidade das etapas da vida d’Ele. É-nos dada, pois, a oportunidade inapreciável de pedir a Ele, por meio de Maria Santíssima, que conserte, repare e oriente ao bom termo — pelos méritos da santidade e perfeição do processo d’Ele — o que houve de defectivo em nós.

Tríplice vocação de Jesus: Rei, Sacerdote e Profeta

Poder-se-ia evocar aqui os mais diversos significados das etapas da vida de Nosso Senhor, todas elas repassadas de suma beleza, sob esse prisma das correlações com o desenrolar dos fatos históricos e com nossas existências particulares. Desde a Encarnação e a gestação imaculada no claustro materno de Maria — uma como que ouverture musical da vida terrena de Jesus — até essa forma misteriosa e sublime de Ele permanecer presente no mundo, como Hóstia Sagrada. O Santíssimo Sacramento é Nosso Senhor que por assim dizer deixa o Céu e volta à Terra, continuando a viver ao lado dos homens. Quanta coisa haveria a dizer e a excogitar! Porém, gostaria de ressaltar um aspecto da vida de Nosso Senhor que talvez reúna todos os demais e lance especiais cintilações sobre as tramas da História.

Com efeito, desde o primeiro instante do seu ser, Jesus se sabia Homem-Deus, investido pelo Padre Eterno dos atributos da tríplice vocação de ser Rei, Profeta e Pontífice.

Rei por direito, conquista e nascença, conforme nos ensina a Teologia. Rei, porque traça um plano sobre o qual tem a direção efetiva, posto deter a prerrogativa de mandar em todas as coisas. E ainda quando concede ao homem a liberdade de escolher se cumpre ou não a vontade d’Ele, os seus superiores desígnios acabam se concretizando no que têm de essencial. De um jeito ou de outro, a sua vontade prevalece e Ele obtém a glória que deseja. Rei, portanto, porque governa os acontecimentos, por mais desgovernados que estes pareçam ser.

Sacerdote Ele o é, porque oferece ao Padre Eterno tudo o que realiza em ordem à sua missão, e na medida em que o plano d’Ele se vai executando, vai sendo também oferecido. Em seu pontificado, um imenso sacrifício, uma grande expiação é apresentada aos pés do Altíssimo: primeiro por Ele, o Salvador; depois, por Maria Santíssima, a Co-Redentora, e em seguida por todos os homens, pois para todos Nosso Senhor comprou a capacidade de sofrer, em união com Ele, o que padecemos em nossa existência. E Ele é o Pontífice que deposita essas imolações no altar divino.

Então, a partir desta Terra há um contínuo evolar de dor, de tormento, como também de felicidade e de esperança, que, ao transpor os limites entre o tempo e a eternidade, transforma-se num brado de vitória e de glória.

Como Pontífice, ainda, Jesus possui o privilégio da distribuição de todos esses méritos que nos alcançou com seu holocausto, e Ele a faz por meio da misericordiosa assistência de Maria Santíssima. Com essa efusão dos méritos — pontos vitais na trama da História —, Ele reafirma sua condição de Soberano que governa e provê ao benefício de seus súditos. Sacerdote, conquistou aqueles tesouros espirituais; ao distribuí-los, reina.

É também Profeta, porque prevê, conhece e anuncia o que acontecerá; porque tem a cognição profética da própria vontade, e de como os fatos se ajustarão de maneira a realizar os superiores desígnios de Deus, traçados desde toda a eternidade.

A glorificação do Rei, Sacerdote e Profeta

Quer dizer, Nosso Senhor Jesus Cristo previveu, nas várias etapas de sua existência, todos os acontecimentos que vieram depois. E como, na condição de Pontífice-Rei, é o distribuidor da vida sobrenatural para todos os homens em todos os tempos, Ele regula tudo desde o início. De maneira que, ao longo de cada período de suas diversas idades, Ele conheceu tudo quanto se passaria no mundo até o fim dos tempos, dispôs e quis que fôssemos como nos é dado ser. Assim, de um modo muito excelente, Ele é o Rei, o Pontífice e o Profeta da História.

E quando soar o magno e tremendo dia do Juízo Final, Nosso Senhor estará oferecendo e recebendo a glória do Pontífice cujo sofrimento foi aceito; a glória do Rei cujo governo foi bem-sucedido, e a glória do Profeta que previu o que tinha de ser feito e o realizou. Destarte, tudo o que será narrado no último dia é a glorificação omnímoda do Pontífice, do Rei e do Profeta. Aquele será o grande domingo da História, em que todos nós seremos julgados, premiados ou castigados em função da proclamação da excelsitude dessa tríplice vocação de Jesus Cristo.

Reflexos dessa trilogia no processo histórico

Concluo, levantando um ponto interessante.

Estabelecido o vínculo entre a vida de Nosso Senhor e os acontecimentos históricos, parece plausível que todos os atos humanos estejam de algum modo relacionados com a tríplice missão d’Ele. Por exemplo, nota-se isso nas funções da hierarquia eclesiástica, à qual cabe o múnus de ensinar, governar e santificar o povo de Deus. Não haveria nessa analogia uma corroboração de que essa trilogia abarca todo o agir humano? E se em todo exercício de poder, por parte de alguém na história dos homens, fosse dado discernir um reflexo dessa trilogia, então todos os fatos históricos dariam glória a Nosso Senhor Jesus Cristo, como Rei, Profeta e Sacerdote, na medida em que cada um desses aspectos fosse mais saliente nos acontecimentos.

Então, no desenrolar da trama da História — considerada como a existência do conjunto da humanidade e não apenas a de um povo ou de uma nação —, três luzes brilhariam, uma mais, outras menos, sem que nenhuma deixasse jamais de cintilar. E assim os fatos seriam vistos como preponderantemente régios, sacerdotais ou proféticos, enquanto as almas chamadas a contemplar o Homem-Deus como Profeta, ou como Sacerdote ou como Rei, dariam, cada uma a seu título, especial e fervorosa glória a Jesus Cristo e à sua Mãe Santíssima.

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Luminosas “migalhas”

Embaladas por águas tranquilas e misteriosas, as gôndolas parecem dormitar à espera de passageiros. Formas características, pontas elegantes, detalhes pitorescos. Gôndolas vazias, amarradas a estacas de formas incertas, numerosas, como se fossem uma floresta de linhas e de silhuetas refletidas, plantadas no mar raso.

Neblinas indefinidas, brumas matutinas, vespertinas, que a tudo envolvem: barcos, torres, homens. Lindos revérberos sob cuja luz se revelam lances de muros, arcarias góticas, jogo de cúpulas.

Nuvens de um avermelhado que se mistura com o plúmbeo profundo do céu, desenhando no firmamento uma espécie de mapa da cidade que se estende na terra. Nas pontas das torres, das cúpulas, cruzes e ornatos tão leves e tão poéticos que, ao soprar o vento, dir-se-ia começarão a se agitar e a tocar música nos ares de Veneza!

Prédios que se empilham uns sobre os outros, dando a ideia de construções feéricas e, mais uma vez, roçados pela névoa ligeira. Comprazem-se nas auroras lindas, mas são igualmente sensíveis aos encantos do ocaso e da noite.

As águas venezianas refletem como que ao infinito as velas, as quilhas e os adornos das embarcações que sobre elas repousam. E então parecem, já não água, mas vidro, cristal, espelho imobilizado. Águas sempre portadoras de novidades, da famosa laguna de Veneza.

Casas velhas e escalavradas. Pequenos (e outrora) palácios, onde se nota habitar uma gente empobrecida, sim, mas que sabe conservar o atrativo do seu passado.

Na verdade, tudo isso possui uma beleza e uma poesia que me levariam a contemplá-lo por um longo tempo, dizendo: “Mais formosura do que isso existe, e muita, na própria Veneza. Porém, dá-se aqui como quando saboreamos um pão delicioso e algumas migalhas dele caem sobre a toalha da mesa, e temos um gosto peculiar em comer a migalha, como quem degusta, num só pedacinho, o pão inteiro. Pois bem: essas são migalhas do incomparável esplendor de Veneza…”  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 31/3/1974; 31/8/1976 e 17/4/1985)

A Cruz, glorioso símbolo da vitória

As  festas litúrgicas, sabiamente instituídas pela Santa Igreja, nunca carecem de profundo significado e inestimável riqueza. Dessa forma, a doutrina católica explica que mais valem as cerimônias do que até mesmo os documentos pontifícios, alegando serem elas mais marcantes e benéficas às almas que nelas tomam parte.

Entre tais cerimônias, distingue-se a da Exaltação da Santa Cruz. A cruz, na qual morriam os condenados por graves delitos, era por esse motivo símbolo de ignomínia e repulsa por parte dos antigos, como bem expressou São Paulo em sua carta aos Coríntios: “escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (Cf. Cor. 1,23). Foi esse o instrumento pelo qual o Redentor abriu ao gênero humano as portas do Céu, transformando-a em sinal de nossa Fé.

Vejamos o significado e a riqueza dessa festa, como explica Dr. Plinio a seguir:

“Hoje, 14 de setembro, comemora-se uma das mais bonitas festas como título e significado: a Exaltação da Santíssima Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

“Exaltar quer dizer tornar alto. E neste dia a Igreja proclama e lembra ao mundo que Ela levanta acima de todas as coisas, pondo na maior de todas as alturas possíveis, a Cruz de Nosso Senhor.

“A Cruz é o símbolo da Paixão de Cristo, de todo sofrimento que o católico carrega nesta vida, com o qual ele abre para si, em união com o Redentor, as portas dos Céus.

“Colocar a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo no ponto mais alto foi uma constante preocupação da Civilização Cristã. Antigamente, os edifícios mais elevados de uma cidade eram as igrejas, em cujas torres colocava-se a cruz; o mesmo se fazia no alto das coroas dos reis. Quando se queria elaborar um documento muito importante, em seu início se inscrevia a cruz. Enfim, em tudo aquilo que o homem concebia de mais elevado, estava a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, a qual trazia consigo a ideia de que a missão d’Ele, não se esgotando na Cruz, tinha, entretanto, nela o seu ponto central; e entre todas as coisas que o Divino Salvador tinha feito, o mais admirável e adorável era ter sofrido e morrido na Cruz.

“A aceitação do sofrimento é uma imolação e representa um ato de fidelidade do homem à sua própria vocação, em função da qual ele enfrenta as lutas, os tormentos e as dificuldades.

“Nosso Senhor Jesus Cristo, para redimir o gênero humano, aceitou a morte. Manteve a luta no Horto das Oliveiras, depois caminhou até o alto do Calvário e foi crucificado, para realizar a sua missão. E a Cruz é a afirmação de que nós, católicos, aceitamos ser humilhados, odiados, combatidos, isolados, escarnecidos, perseguidos de todos os modos, não como um armazém de pancadas, mas caminhando de encontro ao sofrimento como um cruzado.

“A verdadeira alegria da vida não consiste em ter prazeres, mas sim na sensação de limpeza da alma que temos quando olhamos nossa cruz de frente, e dizemos “sim” para ela. Fazemos, assim, como Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual não apenas permitiu que o tormento caísse sobre Ele, mas caminhou em direção ao tormento. O Redentor previu, entregou-se porque quis e, com passo valoroso, levou sua Cruz até o alto do Calvário e ali se deixou crucificar.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/9/1964)

Transfiguração de Cristo

Poder-se-ia dizer que Nosso Senhor se valeu da capacidade do homem de recordar para estimulá-lo à fidelidade.

Pensemos, por exemplo, no maravilhoso episódio da Transfiguração: no alto do Monte Tabor, d’Ele se esparge uma irradiação das suas infinitas perfeições, e os apóstolos que presenciam tal cena não desejam outra coisa senão permanecer ali, contemplando aquela manifestação da divindade do Mestre.

Ora, quem sabe, no momento de cada um deles partir deste mundo, não lhes terá servido de coragem e firmeza as lembranças das fulgurações do Tabor?

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 19/7/1984)

Coração Sapiencial e Imaculado de Maria

A principal alegria de Nosso Senhor durante a vida terrena estava numa lâmpada acesa na casa de Nazaré: o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria, cujo amor excedia o de todos os homens que houve, há e haverá até o fim do mundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Santo Eliseu, os meninos e os ursos

Um episódio da vida de Santo Eliseu nos traz importantes ensinamentos a respeito do perfil moral de um verdadeiro católico.

 

Em 14 de junho se comemora a festa de Santo Eliseu, profeta e pai da Ordem do Carmo, sucessor de Santo Elias.

Luta contra a “heresia branca”

Não posso ouvir falar desse Santo sem me lembrar do livrinho onde aprendi História Sagrada, no qual havia uma ilustração a respeito do episódio e da atitude de Santo Eliseu em face de uns tantos meninos. O Santo Profeta já havia recebido o manto de Elias e, certa vez, estava andando e uns meninos começaram a caçoar dele porque era calvo. Tendo o Santo pronunciado uma maldição contra os meninos, vieram uns ursos e os devoraram (cf. 2Rs 2, 23-24). Lembro-me de que, à primeira leitura, fiquei chocado com a ferocidade de Santo Eliseu. Porém, essa impressão passou e esqueci a questão.

Mais tarde, entrei para o colégio e conheci meus colegas. Quando comecei a ver aquela meninada, refleti que Santo Eliseu tinha razão de fazer o que fez… Mas depois pensava: “Seriam aqueles meninos tão canalhas quanto estes? Enfim, pelo menos pode-se conceber que eram. Para estes aqui, ursos!”

Contudo, depois eu cogitava que se alguém mandasse vir os ursos para comerem os meninos, encontraria a oposição daquilo que, mais tarde, chamaria de “heresia branca”(1). Então o Profeta Eliseu começou a ser um advogado no meu debate interno. Em minha primeira grande briga da vida, que foi contra a “heresia branca”, Santo Eliseu era meu defensor. Pelo menos ele amava as coisas direitas como eu amo. E é assim mesmo: atacou uma coisa boa, urso em cima! Se não for isso, não compreendo a Religião Católica. Ora, eu a entendo, graças a Deus. Logo, na concepção da “heresia branca” há qualquer coisa de errado.

De acordo com a “heresia branca”, o “Santo” deve ser uma pessoa sem segundas intenções, sem astúcia. As recomendações de Nosso Senhor de que se deve unir a simplicidade da pomba à astúcia da serpente, para a “heresia branca” não valem nada. Ela pensa apenas na pomba, realizando com isso aquilo de que fala o Profeta Oseias: “…como pomba imbecil e sem inteligência” (cf. Os 7, 11). Ora, os adeptos da “heresia branca” são precisamente pombas imbecis e sem inteligência.

É, portanto, muito formativo sabermos que um grande Santo, como São Vicente de Paula – merecidamente tido como o Santo da caridade –, fundou uma sociedade que atuava na corte de Luís XIV, e que reunia várias figuras importantes do clero e da nobreza, as quais, sem o conhecimento do restante da corte, combinavam atividades para desenvolver na própria corte e na sociedade francesa a influência da verdadeira Religião.

Vigilância em relação aos efeitos do pecado original

Essa minha reminiscência infantil a respeito do Profeta Eliseu nos recorda também o ensinamento, o qual sempre convém lembrar, de que criança também pode ser ruim. Há um mito da criança boazinha, inocente por definição, e uma condescendência humanitária estúpida com relação às crianças.

É preciso abrir os olhos e ver bem: o pecado original vem a partir de pequeno e infecta a criança desde muito cedo, e ela é capaz de ações muito censuráveis. No caso da calvície de Santo Eliseu, é evidente que aqueles meninos tomaram esse pretexto para caçoar de outra coisa, a fim de agredir e debicar dele enquanto homem de Deus. Por causa disso é que foram punidos dessa maneira.

A punição dos inimigos da Igreja é inevitável

Daí tiro uma dedução inesperada, mas verdadeira: se era legítimo que os ursos viessem comer as crianças porque estavam caçoando de um homem de Deus, pergunto se não é legítimo que venham os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima e em muitas outras revelações privadas. Tais castigos não são, exatamente, a vinda dos ursos? Os ursos não estão vindo das estepes para acabar justamente com aqueles que tomam em relação à Religião uma posição errada, transformando-se em inimigos internos ou externos da Igreja?

Então, à força de pensar, chega-se à conclusão de que a punição é inteiramente inevitável. Vem do fundo do Antigo Testamento um episódio a mais para nos convencer disso.

Importância da fidelidade a um espírito transmitido

Há em Santo Eliseu também outro aspecto muito alto que é sua sucessão com relação ao Santo Profeta Elias. Todos se lembram de que Elias, no momento de abandonar a Terra, passou a Eliseu um manto e, com este, também seu espírito. Assumido então pelo espírito de Elias, Eliseu ficou em condições de dirigir a nascente Ordem do Carmo.

Essa transmissão do espírito mostra bem qual é a importância da graça que se chama um “espírito”. Ao falarmos em espírito jesuítico, espírito carmelitano, espírito beneditino, tomadas essas palavras em seu bom e verdadeiro sentido, elas não indicam apenas noções doutrinárias, mas são graças que se comunicam depois, de pessoa a pessoa, para formar as grandes famílias de almas existentes na Igreja Católica. Portanto, graças susceptíveis de uma transmissão de uma pessoa para outra, e é essa transmissão que constitui propriamente a família de almas.

Então, devemos pedir a Nossa Senhora que nos ponha debaixo do mesmo manto e faça com que, sob esse manto, todos nós recebamos o mesmo espírito, e o nosso Movimento seja sempre uno, com a fidelidade ao espírito que tem. A respeito dessa fidelidade e dessa unidade é preciso que não tenhamos a menor dúvida. 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/6/1964)

 

1) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

 

Despretensão: ensinamento e exemplo divinos

Formando os Apóstolos, Nosso Senhor deu-lhes o divino exemplo de despretensão: “Eu estou no meio de vós como aquele que serve.” Vindo ao mundo para remir o gênero humano, Jesus indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor e mais apagado, deve sacrificar-se e imolar-se, a fim de que seu apostolado seja fecundo.

 

Comentarei um trecho do Evangelho de São Lucas, muito propício para as comemorações da Paixão de Nosso Senhor.

Ora, houve uma discussão entre eles sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus, porém, lhes disse: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo. Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve. Vós sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações. Por isso, assim como o meu Pai me confiou o Reino, eu também vos confio o Reino. Havereis de comer e beber à minha mesa no meu Reino, e vos sentareis em tronos para julgar as doze tribos de Israel(1).

Desigualdade das classes sociais

Trata-se de uma discussão entre os Apóstolos durante a Ceia. É curioso que, depois de Jesus lhes ter lavado os pés, instituído a Eucaristia, eles discutam entre si a respeito de quem seria o maior.

Isso poderia ser chamado de pretensão, e tenho a impressão de que estaria perfeitamente bem designado. Na hora mais augusta, mais sagrada, quando eles deveriam se preparar para os maiores sacrifícios, sua preocupação era de quem seria o maior. É uma coisa completamente extrapolada, colocada fora da linha em que deveria estar.

E Nosso Senhor lhes dá uma lição, dizendo-lhes incidentalmente uma série de coisas, que valeria a pena comentar. Afirma o Redentor: Afinal, quem é o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve.

Vemos aqui uma afirmação muito interessante da legitimidade da desigualdade das classes sociais, feita por Nosso Senhor. Ele pergunta: o que é mais, ser servido ou servir? E responde: ser servido é mais do que servir; o servidor é menos do que aquele a quem ele serve.

A autoridade existe para o bem dos subordinados

Quer dizer, há uma desigualdade que vem da natureza das coisas. E essa desigualdade, que é um fato legítimo, o Divino Mestre toma como ponto de partida para exprimir a posição d’Ele: Jesus está no meio dos discípulos como aquele que veio servir.

E aqui está a enorme lição de despretensão, como quem diz: “Se Eu Me coloco como servidor, como cada um de vós quer ser considerado o primeiro em relação aos outros?” Aqui está a coisa acachapante. É contrária ao espírito de Nosso Senhor, a toda a lição de sua vida, à doutrina que Ele veio ensinar, a preocupação de se fazer valer, de se colocar acima dos outros. Em sentido oposto, diz o Redentor, os que mandam devem ser como os que servem.

Qual o significado disso? No caso d’Ele, o sentido é evidente: Jesus veio para remir, salvar os homens. Ele estava ali como pastor que salva suas ovelhas, portanto, para o bem deles. É a autoridade constituída para o benefício daqueles sobre os quais deve mandar. Daí vem a ideia de que a autoridade tem um fim dentro de uma ordem posta por Deus; ela precisa ser servidora desse fim, e por isso deve cercar-se de esplendor, de grandeza, de pompa. Nosso Senhor louvou a mulher que derramou unguento precioso sobre a cabeça d’Ele.

Quem manda existe para o bem de seus subordinados. E aqueles que obedecem devem compreender e amar a autoridade e o princípio de autoridade, o qual é altamente benéfico.

Megalice de certos soberanos da antiguidade

Continua o Divino Salvador:
Os reis das nações dominam sobre elas, e os que exercem o poder se fazem chamar benfeitores. Entre vós, não deve ser assim. Pelo contrário, o maior entre vós seja como o mais novo, e o que manda, como quem está servindo.

A megalice(2) dos reis nas épocas anteriores a Nosso Senhor era uma coisa incrível. Os monarcas assírios, por exemplo, mandavam esculpir nas pedras dos rochedos os relatos dos seus feitos. E, para que não se apagassem, era colocada uma espécie de porcelana coberta com vidro, de maneira que eles tinham a esperança de que durante séculos ainda se lessem aquelas inscrições. E em muitos lugares ainda hoje podem ser lidas. Eles contavam coisas que eram evidentemente falsas. Uma dessas inscrições, que eu li, narrava que, numa caçada, o rei tinha domado um leão, pegando-o pelas orelhas. Ou se tratava de um leão velho, que havia sido embebedado previamente pelos cortesãos, ou era simplesmente uma megalice sem nome!

Aqueles imperadores romanos… quanta megalice! A veneração que faziam lhes prestar, o modo pelo qual dominavam e oprimiam os outros, dirigiam tudo pela força, e tantas outras coisas. Já tive ocasião de comentar neste auditório o respeito que se tributava aos faraós. Li aqui certa vez uma carta ao faraó, escrita por seu agente consular na Assíria, na qual dizia: “Eu, que sou indigno de beijar os vossos pés, indigno de beijar as patas de vossos cavalos; beijo o pó onde as patas de vossos cavalos se puseram”. Esse era o clima de megalice que os soberanos daquele tempo criavam.

Nosso Senhor mostra que quem é católico deve servir. Embora sua autoridade seja muito grande e transpareça bastante, ele, como indivíduo, deve eclipsar-se por detrás de sua própria autoridade.

O princípio, o cargo, a missão, o poder valem muito, o indivíduo vale pouco.

Jorge V e Rainha Mary

Certa vez li numa revista de História um fato a respeito de Jorge V, esposo da Rainha Mary. Todas as noites em que não recebiam visitas no palácio, eles ficavam ouvindo vitrola, enquanto um secretário ia trocando os discos. Quando chegavam às dez horas em ponto, os monarcas se levantavam e o secretário colocava o disco com a música “God save the King” — Deus salve o Rei —; Jorge V tomava atitude de continência, e a Rainha ficava em posição de oração. Terminada a audição, iam dormir.

E Rudyard Kipling(3) comentou que isso era a verdadeira humildade. Jorge V, detentor da autoridade, compreendia que o cargo, a dignidade, era grande, mas a pessoa dele, nada. E por isso tomava uma atitude de respeito diante de seu próprio cargo. Nesse ato, o Rei prestava continência à realeza; e a Rainha rezava, como uma fiel qualquer, por aquela que era a Rainha da Inglaterra. Vemos aqui o eclipsar-se da pessoa e o engrandecimento do cargo.

Reis de França e Imperador Francisco José

Nos tempos de monarquia cristã havia fatos nesse sentido. Quando os Reis de França saíam da Catedral de Reims, após serem coroados, o povo acreditava — e parece que algum fundamento havia nisso — que eles tinham o poder de curar a escrófula(4). Então, filas de escrofulosos repugnantes ficavam à espera do novo Rei na saída da catedral, o qual tocava cada doente com a mão e dizia: “Le Roi te touche, Dieu te guérisse — O Rei te toca, Deus te cure”. Diziam os cronistas do tempo que muita gente ficava curada. Quer dizer, depois daquele esplendor máximo da realeza — a coroação de um Rei de França era uma cerimônia fabulosa, em que aparecia o cargo e não o homem —, o monarca condescendia em tocar com suas mãos régias os enfermos mais repelentes do seu reino, para curá-los, usando de um carisma que reconhecia não proceder dele. A frase “O Rei te toca, Deus te cure” queria dizer: “O Rei sabe que não cura nada, quem cura é Deus. O Rei é um mero instrumento para que a ação de Deus se exerça”.

O exemplo de Nosso Senhor foi imitado nos tempos em que a Igreja era unida ao Estado, em todas as monarquias europeias. Pouco antes da guerra de 1914-18, em que quase toda a Europa era monárquica, na Quinta-feira Santa os reis iam lavar os pés dos pobres. Francisco José, por exemplo, Imperador da Áustria-Hungria, lavava os pés dos pobres na Catedral de Viena. E um dos significados desse ato era este: uma é a dignidade do Imperador, e outra, a situação dele enquanto indivíduo, que devia estar sujeito a todas as humilhações, por mais que o cargo por ele ocupado fosse excelente.

O Papa, “servidor dos servidores de Deus

Os próprios Papas realizavam o lava-pés. De um lado o Papa imita Nosso Senhor Jesus Cristo — a dignidade pontifical, como a dignidade régia, deve tocar os pobres —; mas, de outro lado, esse ato significa a humilhação do homem, indicando o desaparecimento da pessoa, mesmo no esplendor do cargo e da função.

Vemos assim, na tradição cristã, a aplicação do ensinamento do Divino Mestre. O Papa, chamando-se a si próprio “servidor dos servidores de Deus”, evoca uma reminiscência do que Nosso Senhor disse.

Então, para praticarmos adequadamente a despretensão, devemos compreender que toda grandeza terrena deve existir — porque Deus quis que houvesse grandes na ordem espiritual, como na ordem temporal —, e precisa cercar-se do esplendor que lhe é próprio; mas o homem que está colocado nesse lugar de grandeza deve saber apagar-se. E aqueles que estão longe da grandeza, não possuem o cargo, não o devem invejar. Para o vaidoso, o que adianta ter um cargo se não pode se gabar dele? Nenhum cargo, nenhuma situação pessoal, na qual o indivíduo não possa consentir no envaidecimento, não lhe adianta de nada.

São Vicente Ferrer: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”

Lembro-me que li, numa biografia de São Vicente Ferrer, um fato muito curioso. Ao chegar a Barcelona — ele era grande missionário —, foi-lhe preparada uma recepção apoteótica. Todo o povo estava reunido, das janelas pendiam tapetes preciosos, ele caminhava debaixo do pálio, carregado pelos nobres da cidade. Durante o cortejo, alguém desconfiado perguntou-lhe: “Irmão Vicente, não estás vaidoso?” Ele respondeu: “A vaidade esvoaça em torno de mim, mas não entra”.

O que adianta para um homem receber todas essas homenagens, se ele é obrigado a resistir à tentação de se envaidecer? Não adianta nada. Porque, se é para ficar vaidoso, há um prazer terreno. Mas, se não pode se envaidecer, andar devagar no meio daquele povo aplaudindo, e ele resistindo contra a tentação, é muito cansativo. Quando termina, ele desabafa: “Uf! Acabou a tentação; ao menos estou trancado na minha cela, sozinho”. Esse é o verdadeiro dinamismo das coisas.

Quem deseja aparecer não imita Nosso Senhor Jesus Cristo

Precisamos ser muito cautelosos. Sempre que estamos apetecendo uma situação de mando, de destaque, de influência, devemos tomar cuidado, pois facilmente nos apegamos a isso para nos mostrarmos. E, se consentirmos ao desejo de aparecer, não estaremos imitando o exemplo de Nosso Senhor, o qual indicou que entre os católicos aquele que manda deve ser como quem serve; precisa ser o menor, apagado, sacrificado, e imolar-se.

Alguém poderia fazer uma pergunta-objeção: “Mas, Dr. Plinio, o senhor nos diz isso com uma ênfase, como se estivéssemos na iminência de sermos eleitos presidentes da república! Ora, acontece que nós, sendo membros do Movimento, não estamos em via de ser eleitos para nada e nem temos, ao menos de momento, um eleitorado muito grande. Então, por que o senhor nos fala essas coisas?”

Digo isto porque não se trata apenas de cargos, mas de situações nas quais se exerce alguma influência numa roda de pessoas: querer ser o primeiro numa conversa, numa mesa de refeições; aquele que conta a piada mais engraçada; conhece a última novidade ou comentário sobre nossa vida interna e o transmite para o pobre basbaque que ainda não sabe; está a par das coisas mais importantes; diz a coisa mais audaciosa em matéria de doutrina. Tudo isso são coisas que significam preeminência e dão apego. E disso tudo devemos mostrar-nos desapegados, lembrando o ensinamento e o exemplo de Nosso Senhor.

A pretensão torna estéril o apostolado

Quanto maior é a pretensão de uma pessoa, mais estéril é seu apostolado, porque só faz apostolado fecundo quem está unido ao Divino Mestre. Quem não está unido ao Redentor é como a vinha que está destacada do sarmento.

Como podemos estar unidos a Ele, se temos pretensão? Não estou afirmando que sejamos todos uns poços de pretensão. Mas quero dizer que todo homem, na melhor das hipóteses, é como São Vicente Ferrer: está sempre com a pretensão esvoaçando em torno dele. Isso é evidente. Então, cuidado! Ainda que recebamos manifestações tão mais modestas do que as prestadas a São Vicente Ferrer, devemos lutar contra a pretensão, de todos os modos e com todo o empenho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/4/1969)

1) Lc 22, 24-30.
2) Megalice: termo criado por Dr. Plinio a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera.
3) Joseph Rudyard Kipling (1865-1936), escritor inglês.
4) Infecção tuberculosa em gânglios linfáticos do pescoço.

A Fé em Cristo Redentor

Não posso me esquecer de uma noite em que eu estava no Rio de Janeiro, na qual eu tinha os olhos fixados na estátua de Cristo Redentor no Corcovado, cercada pela neblina levantada do mar.

Durante algum tempo era apenas um foco de luz, no qual eu não discernia nada; em determinado momento, batia o vento, fazia-se um pouco de claridade e eu percebia um dos braços e uma das mãos do Cristo Redentor, iluminados com aquela luminosidade especial, pois a pedra sabão, de que é revestido o monumento, reflete a luz projetada sobre ele.

Continuando o vento a soprar, aparecia a face do Cristo Redentor, depois o seu peito onde pulsa seu Sagrado Coração, em seguida os seus pés divinos que todos nós gostaríamos de oscular. E eu prestava atenção: em nenhum instante, por mais densas que fossem as névoas, a luz deixava de encontrar certo ponto de apoio no monumento; sendo apenas uma luz fixa sobre uma silhueta ou uma das mãos, que protege e abençoa, um coração palpitante de amor, ou uma face cheia de solicitude, em nenhum momento a neblina conseguiu apagar a figura do Redentor.

Com esta fé caminhamos para o futuro, quaisquer que sejam as circunstâncias. Pode ser que provações muito difíceis toldem nos nossos olhos as perspectivas da vitória, ou circunstâncias imprevistas coloquem para nós problemas que hoje ainda não são os nossos. Mas, para além das névoas, para além de tudo quanto pode tapar a verdade, no horizonte visual do brasileiro há algo que nada tira: é a imagem do Cristo Redentor, a Fé em Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta Fé há de nos salvar!

Meus caros, o Brasil há de vencer, e é rumo a esta vitória que todos caminhamos com o passo resoluto e a alma cheia de fé.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência 17/10/1978)

Os fulgores da Ressurreição

Contemplando os esplendores e mistérios que envolvem a Páscoa da Ressurreição, Dr. Plinio tece interessantes hipóteses e comentários sobre o significado dos acontecimentos narrados no Evangelho.

 

Nas cerimônias litúrgicas do tríduo pascal, a Igreja sempre soube impregnar de tristeza a atmosfera quando se tratava de ficar triste; e depois marcar de alegria os momentos em que se deveria estar alegre.

Pudemos ver, por exemplo, essa nota de tristeza, sobretudo, ontem: a cerimônia da Sexta-Feira Santa estava pungente!

Agora, o júbilo. O “Gloria in Excelsis Deo” dá-nos a impressão de ser o reflexo da alegria de quando Nosso Senhor ressuscitou!

A primeira visita ao Santo Sepulcro

O Evangelho lido hoje narra que Santa Maria Madalena e a outra Maria encontraram o sepulcro aberto e um anjo sobre a lápide que antes vedava o túmulo. O anjo rolou a pedra e sentou-se nela.

Por ser o seu rosto como o raio e a sua vestimenta como a neve, ele incutiu grande terror àqueles guardas que tomavam conta do sepulcro, e que então fugiram. Duas simples mulheres não tiveram medo, e ele falou com elas familiarmente.

Tem-se a impressão de que elas estavam muito intimidadas, porém não medrosas, o que é uma coisa diferente.

Outra manifestação da intimidação delas é o fato de ter sido necessário o anjo dizer-lhes que entrassem no sepulcro. Seria normal elas penetrarem ali, vamos dizer, com as reverências devidas a um lugar sacrossanto, fazendo assim a primeira visita ao Santo Sepulcro! Uma honra, aliás, enorme! Todas as gerações dos séculos posteriores visitaram o Santo Sepulcro. Elas foram as duas primeiras. É formidável! Como honra, é algo extraordinário!

Elas entraram e viram que Nosso Senhor não se encontrava lá. Estava tudo explicado.

Um acontecimento pleno de simbolismos

Agora, eu teria muita vontade de saber qual era o sentido simbólico do rosto como fulgor e das roupas como neve.

Evidentemente o fulgor indica o poder de Deus. Mas indicará de que maneira? Será um fulgor de vitória, de festa triunfal em que não se está mais pensando no inimigo, ou desse tipo de celebração de triunfo na qual se tem a sensação de estar calcando aos pés o inimigo? É uma pergunta. Qual seria o feitio desse fulgor?

Se soubéssemos como os exegetas consideram esse fulgor, talvez pudéssemos ter aí um elemento para formar um juízo sobre isso.

As roupas como a neve. Percebe-se que era neve refulgindo ao clarão desse fulgor. A neve é a pureza do espírito. Um puro espírito porque não tem carne e, além disso, é um espírito puro, ou seja, é santo! Compreende‑se bem que a túnica — seria provavelmente uma túnica — era como a neve. Mas quais são os outros significados dessa neve?

Por que ele não pairava no ar ou não estava de pé sobre a pedra, mas sentado?

Cada uma dessas coisas tem um significado. É claro que nós teríamos vontade de conhecê-los. Aumentaria nossa alegria pela Páscoa da Ressurreição.

Por que um anjo anunciou a Ressurreição?

Se o objetivo da manifestação angélica era dar uma prova apologética da Ressurreição, debaixo de certo ponto de vista, essa prova poderia não ser muito concludente. Sobretudo para os homens do século XX, cuja mentalidade os levaria a dizer:

“As duas foram caminhando para a sepultura cada vez mais compenetradas. Quando chegaram lá, estavam no auge da excitação. Então julgaram ver um anjo. E os guardas estavam fora porque tinham saído para — em linguagem nossa — tomar um cafezinho. A sepultura estaria aberta? Quem pode garantir? Qual é a prova que se tem disso? Não seria mais interessante haver um magote de dez homens importantes como, por exemplo, Lázaro, José de Arimateia, Nicodemos que dissessem terem visto? Por que um anjo?”

Eu julgaria uma objeção completamente inválida, mas é uma pergunta que se poderia fazer.

A essa pergunta devemos dar a seguinte resposta:

Deus, nas suas manifestações, não visa principalmente àqueles que não creem, mas aos que creem. Um episódio como esse — que foi a primeira manifestação da Ressurreição, depois vieram muitas outras — seria calculado conforme a conveniência da piedade e do aumento no fervor do punhado de fiéis reunidos em torno de Nossa Senhora. Era a esses que se tratava de afervorar, de alimentar, de preparar para Pentecostes, que seria o próximo grande lance.

Sendo assim, compreende-se que fosse um anjo e não um homem. Porque não existe proporção entre dez homens e um anjo. Ademais, poderia haver entre eles pequenos desacordos a propósito de um ponto ou outro, e até mesmo algum que, ao contar o fato, ficasse vaidoso…

Poder-se-ia, inclusive, levantar outra objeção: Nós não acreditamos muito nesses homens que estão servindo de testemunhas, porque nenhum homem estaria à altura de testemunhar tal acontecimento; só um puro espírito. Parece-me, portanto, inteiramente concludente e apropriado o aparecimento de um anjo para anunciar a Ressurreição.

A honra de remover a lápide do Sepulcro

Em uma de nossas comissões de estudo estamos lendo textos de São Dionísio Areopagita que tratam sobre a hierarquia dos Anjos. Segundo ele, dos nove coros angélicos existentes, o menos elevado é o dos simples Anjos.

A palavra “anjo” significa “emissário”. E esses são os emissários. Um anjo de uma categoria mais elevada é um Arcanjo. Os outros têm categorias mais altas: Principados, Virtudes, Potestades, Dominações, Tronos, Querubins e Serafins.

E São Dionísio Areopagita dizia que embora a categoria dos Anjos seja a menos elevada, ela completa a hierarquia angélica. De tal maneira que esta ficaria cambaia como um vaso do qual se serrasse a base, caso não houvesse o coro dos Anjos.

Quer dizer, a categoria menos alta é tão preciosa que constitui um elemento sem o qual toda aquela ordenação que está acima ficaria desajustada. É, pois, um importantíssimo papel. Por que Deus teria enviado um simples anjo e não um serafim para realizar uma missão como essa?

Provavelmente porque remover uma pedra não é tarefa para um príncipe. E podemos imaginar esses anjos menos elevados fazendo uma humilde e razoável súplica diante de Deus para ser dada a eles, e não a uma categoria mais elevada, a honra de mover a pedra do Santo Sepulcro:

“Senhor, Vós que nos mandais exercer missões que tocam mais diretamente na matéria, desta vez que se trata de operar a mais nobre remoção da matéria, Vós nos tirais essa ocasião única?! Ela não está na natureza de nosso ofício?”

A qualquer pessoa pareceria um argumento difícil de responder…

Duas maneiras de imaginar a Ressurreição

Mas considerando a Ressurreição em si, poderíamos imaginá-la de duas formas:

Em certo momento, Nosso Senhor começaria a dar sinais de vida. Seu Corpo sagrado se tornaria de uma luminosidade extraordinária, e no instante em que sua Alma o reassumisse, sua primeira atitude seria uma glorificação do Padre Eterno e um ato de amor ao Espírito Santo. E levantando-Se com uma majestade indizível, caminharia dentro do sepulcro transformado, de repente, numa catedral feita de luzes, cânticos e glória.

Chegando junto à porta do túmulo, o anjo rolaria a pedra. É-nos legítimo imaginar que no interstício entre a Ressurreição e o encontro com Santa Maria Madalena, em virtude do deslocamento rapidíssimo dos corpos gloriosos, Ele tenha estado no Cenáculo e se manifestado a Nossa Senhora. De maneira a ter sido Ela a primeira pessoa a contemplar seu divino Filho ressuscitado. Logo depois, Jesus teria Se apresentado a Santa Maria Madalena, conforme nos descreve o Evangelho.

Essa seria uma modalidade de conceber a Ressurreição.

Poder-se-ia figurá-la de outro modo, conforme a piedade e o feitio de cada pessoa. Por exemplo, em meio às trevas densas, de repente reluz algo à maneira de um corisco sublime! A montanha, como que, racha e Nosso Senhor se levanta como um raio. E num instante já está junto à porta, um anjo rola a lápide e Ele aparece diante dos olhos estupefatos. Acabou!

A Páscoa: uma festa triunfal

Em todo caso, a Páscoa não é uma celebração qualquer, é uma festa de triunfo. Portanto, não pode ser considerada, como muitos supõem, apenas como uma festa caseira para despertar a bonomia familiar, distribuindo ovos e todos se abraçando. Tudo isso é muito legítimo, acho um encanto, mas a Ressurreição tem qualquer coisa de um estouro, de uma explosão magnífica!

Sem dúvida, pode-se imaginar a Ressurreição acompanhada pelo maior e mais majestoso dos raios desferidos numa aurora.

Vários quadros representam o divino Ressuscitado assim, saindo com o braço direito levantado e tendo os dedos em posição de quem ensina ou abençoa, mas com um ar de desafio vitorioso: “Já atravessei!” Isso deveria causar no Inferno o terror diante da inutilidade de tudo quanto fizeram contra Ele.

Aí está um pequeno comentário para participarmos juntos das alegrias pascais.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 18/4/1981 e 21/4/1984)

Preciosos ensinamentos da Ressurreição

Da gloriosa Ressurreição de Cristo, pondera Dr. Plinio, não só refulgem consoladoras alegrias, como também dela se depreendem importantes lições para o homem fiel, à luz das quais deve este pautar sua trajetória rumo à eterna bem-aventurança.

 

Durante os três dias em que Nosso Senhor esteve morto, aos olhos dos que O conheceram, com exceção de Maria Santíssima, tudo parecia irremediavelmente perdido. “Morreu!”, pensavam eles. “Correram a pedra sobre a entrada do sepulcro, e a escuridão envolveu o corpo d’Ele. Acabou, não resta mais nada!”

Indizível alegria das almas dos justos

Ora, restava tudo. A história da salvação dos homens apenas começara. Assim que a alma santíssima de Nosso Senhor se separou do corpo sagrado, apareceu às almas dos justos que aguardavam — algumas há milênios — a Redenção e a abertura das portas do Céu.

Imaginemos, se pudermos, a emoção da alma de São José em contato com a de seu Filho, ou a felicidade indizível da alma de Adão e a de Eva, constatando que, afinal, o pecado por eles cometido, o pecado que provocara a decadência do gênero humano, estava perdoado e sua culpa redimida! E do mesmo modo, o júbilo ímpar da alma de tantos outros justos, patriarcas e profetas do Antigo Testamento ali reunidos, que aclamaram o aparecimento de Quem os libertava daquela longa espera. Esse encontro foi, sem dúvida, um espetáculo extraordinário.

Na pior das horas, refúgio junto a Maria

Contudo, para os apóstolos e discípulos que haviam fugido durante a Paixão, essa realidade espiritual e gloriosa era inteiramente desconhecida. Pelo contrário, achavam-se abatidos, prostrados, horrorizados, sem vislumbrar saída alguma para a dramática situação em que estavam. Cada qual se escondeu como pôde, esperando que a efervescência dos acontecimentos se extinguisse e a normalidade da vida de todos os dias fizesse com que deles se esquecessem.

Outros eram, porém, os desígnios da Providência. Podemos conjeturar que houve um trabalho misterioso da graça no sentido de sugerir ao espírito de cada um deles o desejo de procurar Nossa Senhora e de se abrigar sob seu manto materno. Junto a Ela — sempre nos é dado supor — encontraram-se, chorosos e contritos, ainda incertos quanto ao futuro. Apenas a Mãe de Deus confiava e rezava, segura do triunfo de seu Divino Filho sobre a morte.

De alguma maneira, também própria ao sobrenatural, a fidelidade de Maria Santíssima começou a contagiar a tibieza dos apóstolos, e a despertar na alma de cada um deles sensações, esperanças, percepções da maravilhosa graça que lhes estava reservada. No interior daqueles homens, em meio à tormenta da provação, foram se alicerçando uma convicção nova e um novo ânimo.

Quer dizer, na pior das horas, porque se refugiaram aos pés de Nossa Senhora, receberam graças inestimáveis que os prepararam para tudo o que logo lhes aconteceria. Unidos em torno da Virgem Fiel, estavam em condições de acreditar na Ressurreição e de se predisporem à grandiosa missão para a qual haviam sido chamados.

Confirmaram-se as mais audaciosas esperanças

Na manhã do terceiro dia, ressurge glorioso o Redentor Divino e — como sugere a crença de piedosos autores, embora os Evangelhos não o narrem — aparece em primeiro lugar a Nossa Senhora, inundando-A de consolação e felicidade. Todo Ele era um só esplendor, espargindo luminosidade celeste a seu redor como o brilho de mil sóis!

Aparece depois a Maria Madalena e a outros discípulos. A Ressurreição era já um fato incontestável. Os apóstolos creem e exultam. Tudo quanto era caminho sem saída, tornou-se viável e todas as esperanças, as mais audaciosas, confirmaram-se no triunfo de Cristo Ressurrecto. Vitória que representava, ao mesmo tempo, a afirmação de toda a vida d’Ele e um imenso perdão para seus discípulos. A partir daí estes passaram por uma autêntica conversão. Mais alguns dias, e receberiam a infusão do Espírito Santo, tornando-se cada qual uma coluna de amor e fidelidade sobre a qual se ergueria o edifício da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

O homem fiel não se deixa abater pelos reveses

Da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos aspectos a ela vinculados — sejam os precedentes, sejam os que se lhe seguiram — depreendem-se para nós alguns ensinamentos.

O homem modelado segundo o espírito do Divino Mestre, o homem que corresponde às graças obtidas pelos rogos de Maria, o homem fiel que obedece inteiramente a vontade de Deus e tem sua alma talhada pela doutrina da Igreja, esse homem possui uma têmpera tal que não há desastre, ruína ou tristeza, não há perseguição nem miséria que o abatam e o desviem de sua trajetória apostólica.

Pelo contrário, quanto maiores os reveses, maior sua coragem; quanto mais inesperadas e inopinadas as derrotas, maior a sua vontade de reagir; quanto mais terríveis os golpes que ele recebe, maior a sua determinação de continuar a lutar. E se acontecer de ele cair prostrado durante a lide, Deus, que vela por ele e por sua descendência espiritual, fará com que de seus exemplos e de sua lição nasçam discípulos que continuem sua obra.

E assim por diante, de glória em glória, de passo em passo, mas de dor em dor, de sofrimento em sofrimento, é possível levantar obras de uma grandeza e de uma beleza inimagináveis. Mas, essas obras nascidas da dor, da fidelidade, da constância e da entrega completa de si mesmo para que Deus execute sua vontade sobre os homens, nascem também da devoção e da união a Nossa Senhora, a qual nos alcança graças indizivelmente fortes, profundas e tonificantes.

Júbilo que nos prepara para novas provações

Outra lição que nos é dada pelo triunfo de Nosso Senhor sobre a morte vem das jubilosas celebrações que no-lo recordam.

As pompas da esplêndida e brilhante liturgia da Vigília Pascal e do Domingo da Ressurreição nos falam de todas as alegrias legítimas e até gloriosas que o homem fiel pode desfrutar em sua vida. Entretanto, a missão e os trabalhos dos apóstolos convertidos nos ensinam não haver alegria que desvie o homem fiel do caminho da dor; não há felicidade que o amoleça, que o subtraia da austeridade com a qual trilha o caminho do Céu. Pelo contrário, como essa alegria é fruto do Espírito Santo, o homem sai desse dia de festa e de glória mais disposto a suportar todas as humilhações, todas as dores e todos os sacrifícios necessários para a grande batalha da salvação que ele terá diante de si.

Por essas razões, ao celebrarmos a Páscoa da Ressurreição, devemos pedir a Jesus Ressurrecto, por intermédio de Nossa Senhora, a força de espírito pela qual não haja nenhuma provação que nos leve ao desespero, nem glória que nos leve à moleza. Assim, através desse caminho de sofrimentos sem desânimos, e de triunfos sem relaxamentos chegaremos afinal à imperecível glória do Céu, pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Redentor, e pelos rogos de Maria Santíssima, nossa Mãe, a cujas preces tanto devemos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 8 e 14/4/1990)