São Casimiro e a supremacia do exemplo

Mais do que agir e realizar grandes feitos, a excelência espiritual consiste em ser e em difundir no universo da Igreja o aroma da perfeição: eis o valioso ensinamento que nos transmite Dr. Plinio, ao comentar alguns traços da vida de São Casimiro, príncipe da Polônia.

 

No dia 4 de março a Igreja celebra a festa de São Casimiro, da estirpe real polonesa e patrono desta nação. Sua breve existência foi profundamente marcada pela intensa piedade que o caracterizava, conforme lemos no Pe. Rohrbacher:

Espírito continuamente unido a Deus

São Casimiro, príncipe da Polônia, foi o terceiro dos treze filhos de Casimiro III com Isabel da Áustria, filha do Imperador Alberto II. Veio ao mundo em 5 de outubro de 1458 e demonstrou, desde a infância, muita inclinação para a virtude.

Teve por preceptor João Dlugosz, denominado Longino, cônego de Cracóvia e historiador da Polônia, homem que aliava rara piedade a grande extensão de conhecimentos. Casimiro e os outros príncipes, seus irmãos, lhe eram tão ternamente afeiçoados que não podiam tolerar que os separassem dele um momento. Mas, nosso Santo foi aquele que mais aproveitou as lições de tão hábil mestre.

Viram-no, na flor da idade, entregar-se com ardor aos exercícios de piedade e às práticas da mortificação. Trazia um cilício sob as vestes, que eram sempre muito simples. Diversas vezes deitava-se no chão duro e passava boa parte da noite a orar e meditar. A Paixão de Jesus Cristo era o assunto mais costumeiro de suas meditações. Saía com freqüência à noite para ir rezar à porta das igrejas, onde esperava se abrissem para assistir às matinas.

Espírito e coração continuamente unidos a Deus, a paz interior de sua alma se manifestava a toda a gente pela serenidade da face. Cheio de respeito por tudo o que concernia ao culto divino, as menores cerimônias eclesiásticas lhe tocavam a piedade. Tinha particular devoção a Jesus padecente pelos homens, e jamais pensava no mistério da Redenção sem desfazer-se em lágrimas e sentir-se abrasado de amor.

Quanto ao santo sacrifício da Missa, a ele assistia com tanto fervor e recolhimento que parecia maravilhado em êxtase. Para marcar a confiança que possuía na proteção da Santíssima Virgem, compôs em honra d’Ela o hino que traz seu nome, e do qual desejou que uma cópia fosse depositada em seu túmulo, quando morresse. (Esse cântico iniciava-se com as palavras “Omni die, dic Mariae, mea laudis anima”.)

Amava tão ternamente os pobres que lhes sentia de certo modo as misérias. Não contente de lhes distribuir os bens, empregava ainda, para aliviá-los, tudo o que tinha de crédito junto a seu pai e a seu irmão Vlasdilau, Rei da Boêmia.

Consumando a obra da santificação

Os húngaros, insatisfeitos com Matias, seu monarca, quiseram elevar nosso Santo ao trono, em 1471. Enviaram para esse fim uma deputação ao Rei da Polônia, seu pai. O jovem Casimiro, que não completara ainda 13 anos, desejaria bem recusar a coroa que lhe ofereceram.

Mas, para agradar ao pai, partiu à testa de um exército, a fim de sustentar o direito de sua eleição. Tendo chegado às fronteiras da Hungria, soube que Matias acabava de reunir dezesseis mil homens para ir à frente dos poloneses e que tornara a conquistar o coração dos súditos. Soube também que o Papa Sisto IV se declarara pelo rei destronado e enviara uma embaixada a seu pai, para fazê-lo abandonar a empresa.

Todas essas circunstâncias reunidas deram secreta alegria ao jovem príncipe. Pediu ao pai que voltasse sobre os próprios passos, o que só com muita dificuldade lhe foi concedido. Porém, para não aumentar o desgosto que o pai sentia por ter visto malograr seus desígnios, evitou a princípio aparecer na presença dele. Em lugar de ir direto a Cracóvia, retirou-se ao Castelo de Dobzski, situado a uma légua da cidade, e lá passou três meses na prática de austera penitência.

Tendo reconhecido, em seguida, a injustiça da expedição que o tinham forçado a empreender contra o Rei da Hungria, recusou constantemente render-se a segundo convite que lhe fizeram os húngaros, e isso malgrado as solicitações e reiteradas ordens do pai.

Casimiro empregou os doze últimos anos de vida em consumar a obra de sua santificação. Viveu na maior continência, apesar das razões prementes que se alegavam para levá-lo ao casamento. Morreu de tísica em Vilna, capital da Lituânia, em 4 de março de 1483, com a idade de vinte e quatro anos e cinco meses. Predissera a morte e para esta se preparou através de um redobramento de fervor e pela recepção dos sacramentos da Igreja.

Operou-se grande número de milagres por sua intercessão, sendo canonizado pelo Papa Leão X em 1522. Cento e vinte anos após sua morte, encontraram-lhe o corpo incorrupto, assim como foram achados intactos os ricos tecidos com os quais o tinham envolvido, apesar da excessiva umidade do jazigo onde fora enterrado. Mandaram então construir magnífica capela de mármore para nela serem depositadas suas relíquias.

São Casimiro é patrono da Polônia, e o propõem comumente aos jovens como perfeito modelo de pureza.

Santidade é sobretudo o ser e o não agir

A respeito de São Casimiro, convém notar de modo especial três traços.

Há santos fundadores de povos, outros dão origem a ciclos de civilização, e por sua ação extraordinária eles movem a História.

Existe também a categoria dos santos que se tornam exímios na prática de uma determinada virtude, da qual são modelos em toda a vida da Igreja. E para que a atenção dos fiéis não se desvie deste ponto central, esses heróis da Fé morrem relativamente jovens e a biografia deles permanece marcada por aquela virtude.

São Luís Gonzaga, por exemplo, pouco realizou em sua breve existência. Morreu ainda adolescente, mas havia atingido um apogeu na prática da castidade. Se ele tivesse feito muitas obras, a tendência dos que o admirassem seria de se voltar para o que ele produziu e não para o que foi.

Tais santos nos mostram, assim, que a excelência espiritual consiste sobretudo em ser, em manter uma ação de presença dentro da Igreja, difundir o aroma da perfeição, não só enquanto estão vivos, mas depois de mortos. E que os dias deles, tão precocemente imolados e em geral oferecidos em benefício da Igreja Católica, são elementos preciosíssimos para a salvação das almas.

Elementos, portanto, valiosos na ordem do sacrificar-se e não no terreno do agir.

A supremacia do exemplo, da imolação, da realização interior de uma obra própria que justifica inteiramente a existência, apesar de externamente não se ter feito nada, esse é o ensinamento que almas como São Casimiro, São Domingos Sávio, São Luís Gonzaga e tantos outros, nos trazem à mente. É um aspecto deste sol de santidade que é a Igreja Católica Apostólica Romana.

Pompa e penitência

Há ainda um traço interessante na vida de São Casimiro: trajava roupas régias, embora simples, enquanto portava o cilício sob elas. Vemos nisso o equilíbrio do verdadeiro santo. Ele deseja fazer penitência, mas sabe que sua condição lhe impõe o vestir-se com a pompa inerente à sua categoria. E como não é um igualitário, usa todo o necessário para a manutenção de seu estado, sem descuidar da penitência: coloca sobre si um instrumento de sacrifício, mas o leva às ocultas.

Por fim, uma nota curiosa que pode ser especialmente útil para nós.

São Casimiro teve dificuldades com seu pai, pois este desejava que ele conquistasse a Hungria, e não compreenderia a recusa do filho alegando um motivo — no juízo do monarca — frívola: o Papa dava razão ao outro e o príncipe seria, portanto, um usurpador.

Dando provas de muito tato e sabedoria, o jovem santo evitou comparecer de imediato à presença do pai. Retirou-se para um castelo distante da corte, e ali permaneceu durante três meses, até que os ânimos serenassem. Só então retornou.

Foi um santo apuro e depois um santo ardil, que deve servir de inspiração para todos nós.

Plinio Corrêa de Oliveira

A CENA DO HORTO SE REPETE…

Sempre causou profunda impressão em Dr. Plinio o paralelo entre o odioso tratamento recebido por nosso Redentor, durante a Paixão, e as ofensas e ingratidões de que é alvo a Igreja Católica.  Reproduzimos aqui algumas reflexões a esse respeito, escritas em 1947.

 

A verdadeira piedade deve impregnar toda a alma humana, e, portanto, também deve despertar e estimular a emoção. Mas a piedade não é só emoção, e nem mesmo é principalmente emoção. A  piedade brota da inteligência, seriamente formada por um estudo catequético cuidadoso, por um conhecimento exato de nossa Fé, e, portanto, das verdades que devem reger nossa vida interior. A  piedade reside ainda na vontade.

Devemos querer seriamente o bem que conhecemos. Não nos basta, por exemplo, saber que Deus é perfeito. Precisamos amar a perfeição de Deus, e, portanto, devemos desejar para nós algo dessa perfeição: é o anseio para a santidade. “Desejar” não significa apenas sentir veleidades vagas e estéreis. Só queremos seriamente algo, quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para conseguir  o que queremos. Assim, só queremos seriamente nossa santificação e o amor de Deus, quando estamos dispostos a todos os sacrifícios para alcançar esta meta suprema. Sem esta disposição, todo  o “querer” não é senão ilusão e mentira.

Podemos ter a maior ternura na contemplação das verdades e mistérios da Religião: se daí não tirarmos resoluções sérias, eficazes, de nada valerá nossa piedade. É o que se deve dizer  especialmente nos dias da Paixão de Nosso Senhor. Não nos adianta apenas o acompanhar com ternura os vários episódios da Paixão: isto seria excelente, não porém suficiente. Devemos dar a  Nosso Senhor, nestes dias, provas sinceras de nossa devoção e amor.

Estas provas, nós as damos pelo propósito de emendar nossa vida, e de lutar com todas as forças pela Santa Igreja Católica. A  Igreja é o Corpo Místico de Cristo. Quando Nosso Senhor interpelou São Paulo, no caminho da Damasco, perguntou-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues? ” Saulo perseguia a Igreja. Nosso  Senhor lhe dizia que era a Ele mesmo que Saulo perseguia. Se perseguir a Igreja é perseguir a Jesus Cristo, e se hoje também a Igreja é perseguida, hoje Cristo é perseguido.

A Paixão de Cristo se repete de algum modo também em nossos dias. Como se persegue a Igreja? Atentando contra os seus  direitos ou trabalhando para dela afastar as almas. Todo ato pelo qual  se afasta da Igreja uma alma, é um ato de perseguição a Cristo. Toda alma é, na Igreja, um membro vivo. Arrancar uma alma à Igreja é arrancar um membro ao Corpo Místico de Cristo. Arrancar  uma alma à Igreja é  fazer a Nosso Senhor, em certo sentido, o mesmo que a nós nos fariam se nos arrancassem a menina dos olhos.

Se queremos, pois, condoer-nos com a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, meditemos sobre o que Ele sofreu nas mãos de seus algozes, mas não nos esqueçamos de tudo quanto ainda hoje se faz  ara ferir o Divino Coração. E isto tanto mais quanto Nosso Senhor, durante sua Paixão, previu tudo quanto se passaria depois. Previu, pois, todos os pecados de todos os tempos, e também os  pecados de nossos dias. Ele previu os nossos pecados, e por eles sofreu antecipadamente. Estivemos presentes no Horto como algozes, e como algozes seguimos passo a passo a Paixão até o alto do Gólgota.

Arrependamo-nos, pois, e choremos. A Igreja, sofredora, perseguida, vilipendiada, aí está a nossos olhos indiferentes ou cruéis. Ela está diante de nós como Cristo diante de Verônica. Condoamo-nos com os padecimentos  dela. Com nosso carinho, consolemos a Santa Igreja de tudo quanto ela sofre. Podemos estar certos de que, com isto, estaremos dando ao próprio Cristo uma consolação  idêntica à que Lhe deu Verônica.

Indiferença para com Deus

Comecemos pela Fé. Certas verdades referentes a Deus e a nosso destino eterno, podemos conhecê-las pela simples razão. Outras, conhecemo-las porque Deus no-las ensinou. Em sua infinita  bondade, Deus se revelou aos homens no Antigo e Novo Testamento, ensinando-nos não apenas o que nossa razão não poderia desvendar, mas ainda muitas verdades que poderíamos conhecer  racionalmente, mas que por culpa própria a humanidade já não conhecia de fato.

A virtude pela qual cremos na Revelação é a Fé. Ninguém pode praticar um ato de Fé, sem o auxílio sobrenatural da graça de Deus. Essa graça, Deus a dá a todas as criaturas e, em abundância  torrencial, aos membros da Igreja Católica. Essa graça é a condição da salvação deles. Ninguém chegará à eterna bem-aventurança, se rejeitar a Fé. Pela Fé, o Espírito Santo habita em nossos corações. Rejeitar a Fé é rejeitar o Espírito Santo, é expulsar de sua alma a Jesus Cristo.

Vejamos, agora, em torno de nós, quantos católicos rejeitam a Fé. Foram batizados, mas no curso do tempo perderam a Fé. Perderam-na por culpa própria, porque ninguém perde a Fé sem culpa,  e culpa mortal. Ei-los que, indiferentes ou hostis, pensam, sentem e vivem como pagãos.

São nossos parentes, nossos próximos, quiçá nossos amigos! Sua desgraça é imensa. Indelével, está neles o sinal do Batismo. Estão marcados para o Céu, e caminham para o inferno. Em sua alma  redimida, a aspersão do Sangue de Cristo está marcada. Ninguém a apagará. É de certo modo o próprio Sangue de Cristo que eles profanam quando nesta alma resgatada acolhem princípios,  máximas, normas contrárias à doutrina da Igreja. O católico apóstata tem qualquer coisa de análogo ao sacerdote apóstata.

Arrasta consigo os restos de sua grandeza, profana-os, degrada-os e se degrada com eles. Mas não os perde. E nós? Importamo-nos com isto? Sofremos com isto? Rezamos para que estas almas se  convertam? Fazemos penitências? Fazemos apostolado? Onde nosso conselho? Onde nossa argumentação? Onde nossa caridade? Onde nossa altiva e enérgica defesa das verdades que eles negam  ou injuriam? O Sagrado Coração sangra com isto. Sangra pela apostasia deles, e por nossa indiferença. Indiferença duplamente censurável, porque é indiferença para com nosso próximo e  sobretudo indiferença para com Deus.

Coincidência ou conspiração? Quantas almas, no mundo inteiro, vão perdendo a Fé? Pensemos no incalculável número de jornais ímpios, rádio-emissões ímpias, de que diariamente se enche o  orbe. Pensemos nos inúmeros obreiros de Satanás que, nas cátedras, no recesso da família, nos lugares de reunião ou diversão, propagam idéias ímpias. De todo este esforço, quem há de admitir que nada resulte? Os efeitos de tudo isto estão diante de nós. Diariamente, as instituições, os costumes, a arte se vão descristianizando, indício insofismável de que o próprio mundo se vai perdendo para Deus.

Não haverá em tudo isto uma grande conjuração? Tantos esforços, harmônicos entre si, uniformes em seus mé- todos, em seus objetivos, em seu desenvolvimento, serão mera obra de  coincidências? Onde e quando, intuitos desarticulados produziram articuladamente a mais formidável ofensiva ideológica que a história conhece, a mais completa, a mais ordenada, a mais  extensa, a mais engenhosa, a mais uniforme em sua essência, em seus fins, em seu evoluir?

Não pensamos nisto. Nem percebemos isto. Dormimos na modorra de nossa vida de todos os dias. Por que não somos mais vigilantes? A Igreja sofre todos os tormentos, mas está só. Longe, bem  longe dela, cochilamos. É a cena do Horto que se repete. (…) Incontável falange de almas tíbias E entre nós? Esta Fé que tantos combatem, perseguem, atraiçoam, graças a Deus nós a possuímos. Que uso fazemos dela? Amamo-la? Compreendemos que nossa maior ventura na vida consiste em sermos membros da Santa Igreja, que nossa maior glória é o título de cristão? Em caso  afirmativo — e quão raros são os que poderiam em sã consciência responder afirmativamente — estamos dispostos a todos os sacrifícios para conservar a Fé?

Não digamos num assomo de romantismo, que sim. Sejamos positivos. Vejamos friamente os fatos. Não está junto de nós o algoz que nos vai colocar na alternativa da cruz ou da apostasia. Mas  todos os dias, a conservação da Fé exige de nós sacrifícios. Fazemo-los? Será bem exato que, para conservar a Fé, evitamos tudo que a pode pôr em risco? Evitamos as leituras que a podem  ofender? Evitamos as companhias nas quais ela está exposta a risco? Procuramos os ambientes nos quais a Fé floresce e cria raízes? Ou, em troca de prazeres mundanos e passageiros, vivemos em  ambientes em que a Fé se estiola e ameaça cair  em ruínas?

Todo homem, pelo próprio fato do instinto de sociabilidade, tende a aceitar as opiniões dos outros. Em geral, hoje em dia, as opiniões dominantes são anticristãs. Pensa- se contrariamente à Igreja em matéria de filosofia, de sociologia, de história, de ciências positivas, de arte, de tudo enfim. Os nossos amigos, seguem a corrente. Temos nós a coragem de divergir? Resguardamos nosso  espírito de qualquer infiltração de idéias erradas? Pensamos com a Igreja em tudo e por tudo? Ou contentamo-nos negligentemente em ir vivendo, aceitando tudo quanto o espírito do século nos inculca, e simplesmente porque ele no-lo inculca?

É possível que não tenhamos enxotado Nosso Senhor de nossa alma. Mas como tratamos este Divino Hóspede? É Ele o objeto de todas as atenções, o centro de nossa vida intelectual, moral e  afetiva? É Ele o Rei? Ou, simplesmente, há para Ele um pequeno espaço onde se O tolera, como hóspede secundário, desinteressante, algum tanto importuno? Quando o Divino Mestre gemeu,  chorou, suou sangue durante a Paixão, não O atormentavam apenas as dores físicas, nem sequer os sofrimentos ocasionados pelo ódio dos que no momento O perseguiam. Atormentava-O ainda tudo quanto contra Ele e a Igreja faríamos nos séculos vindouros. Ele chorou pelo ódio de todos os maus, de todos os Arios, Nestórios, Luteros mas chorou também porque via diante de si o cortejo interminável das almas tíbias, das almas indiferentes que, sem O perseguir, não O amavam como deviam.

É a falange incontável dos que passaram a vida sem ódio e sem amor, os quais, segundo Dante, ficavam de fora do inferno porque nem no inferno havia para eles lugar adequado. Estamos nós  neste cortejo? Eis a grande pergunta a que, com a graça de Deus, devemos dar resposta nos dias de recolhimento, de piedade e de expiação em que vamos entrar agora.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do Legionário, nº 764, de 30/3/1947. Título e subtítulos nossos.)

Cântico da fidelidade

Segundo as revelações de Sóror Maria de Ágreda, na noite do sábado da Paixão, Nossa Senhora “fazia heroicos atos de Fé, esperança, amor, veneração e culto à divindade e humanidade de seu Filho e Deus verdadeiro; com genuflexões e prostrações O adorava, e com admiráveis cânticos O bendizia”.

Um quadro extraordinário se nos apresenta à imaginação: Maria Santíssima, sozinha no silêncio daquela noite trágica, talvez no próprio recinto onde se realizou a Última Ceia, interrompendo suas preces para cantar as suas reparações ao Criador.

Ela que entoara o “Magnificat” num momento de gáudio indizível, agora compensava, pelo seu cântico de fidelidade, todas as injúrias e ofensas sofridas por Jesus.

Cena em extremo tocante, contemplada apenas pelos Anjos: na noite da desolação, o canto da alma mais virtuosa em toda a Terra elevando-se até o Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Como um mendigo

Importa à nossa devoção filial formarmos uma ideia inteira da bondade e do perdão ilimitados de Maria Santíssima para conosco; reconhecermos a necessidade do nosso contínuo apelo a esse perdão e a essa bondade maternais.

Cumpre recorrermos a Ela em todos os momentos, de joelhos em terra, como humildes e confiantes mendigos, batendo no peito e estendendo-lhe o chapéu de nossa indigência. Então Nossa Senhora se faz toda doçura, suavidade e paciência em relação a nós; perdoa-nos e nos cura, até mesmo de nossas ingratidões mais descabidas…

Olhar de insondável desvelo

Se, em meio às nossas aflições, acaso nos assalte a dúvida de que Maria Santíssima nos socorrerá, lembremos com que imensidade de ternura Ela olhava para o seu Filho perseguido durante a Paixão, e pensemos: “Com que maternal e insondável desvelo não estará também fitando a mim, nessa hora de provação?”

Não duvidemos. Nossa Senhora nos alcançará graças, e incutirá na alma de cada um a força necessária para transformarmos o momento de angústia em fator de crescimento espiritual, em período de preparação para realizarmos, em nome d’Ele, grandes feitos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/3/1967)

O cântico da fidelidade na noite do crime

Os Anjos puderam contemplar, após o sepultamento de Nosso Senhor, talvez no próprio edifício onde se realizou a Santa Ceia, Nossa Senhora sozinha, no silêncio daquela noite, a Terra inteira pecando, e Ela interrompendo as suas orações para, com melodias que só os espíritos angélicos conheceram e nós conheceremos quando formos para o  Céu, cantar as suas reparações.

Ali estava a Santíssima Virgem, que compôs o Magnificat, tomando ponto por ponto, descendo ao abismo de cada infidelidade e rematando a meditação por um cântico de fidelidade. Que cena tocantíssima deveria ser essa! A Mãe de Deus a passou sozinha, porque ninguém era digno de presenciá-la, somente os Anjos.

É uma magnífica maneira de meditarmos a Paixão nos associarmos a esse canto da Soledade de Nossa Senhora; inteiramente só, na noite do crime. O cântico da maior virtude de toda a Terra, elevando-se até o Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraída de conferência de 13/4/1968)

Prenúncio do Reino de Maria

A estrela da manhã aparece no período incerto entre a noite que ainda existe, e o dia que timidamente vai nascendo. Não é bem essa a época em que vivemos, onde imperam as trevas do mal, porém na qual já se pressente o triunfo do Imaculado Coração de Maria, prometido por Nossa Senhora em Fátima?

Portanto, é a Maria como “Estrela da Manhã”, anunciando-nos como iminente a aurora de seu Reino, que devemos recorrer nas dificuldades de nosso apostolado, e em todas as ocasiões em que a piedade nos sugira essa invocação: “Estrela da Manhã, Vós que fostes, durante a noite inteira da espera, a nossa luz e a promessa do alvorecer, fazei com que desponte quanto antes o dia de vosso
Reino!”

Plinio Corrêa de Oliveira

ABSOLUTA MISERICÓRDIA

Em sua justiça infinita, Deus tem razão de queixa de todos os homens.

Apesar disso, deixou-nos sua Mãe como nossa própria Mãe, e Maria tem para conosco todas as ternuras, bondades, afagos, perdões, as suaves adaptações de que o amor materno é capaz. Sabendo que o afeto de Nossa Senhora por nós é maior que o de todas as mães terrenas juntas em relação a um filho único, podemos estar certos de que Ela nos obterá de Deus o perdão ao qual não temos  direito, a generosidade que não merecemos, a complacência à qual não fazemos jus por causa de nossas misérias.

Por piores e inúmeros que tenham sido nossos defeitos, se confiarmos e esperarmos na Virgem Santíssima, à nossa claudicante fidelidade corresponder á da parte d’Ela uma absoluta misericórdia.

Pelos méritos de seu imaculado sorriso junto a Jesus, Maria nos alcançará a bem-aventurança eterna.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 47 (Fevereiro de 2002)

Catedra de São Pedro

Na gloriosa corrente constituída pela Santíssima Trindade, Nossa Senhora e o Papado, este último vem a ser o elo menos vigoroso: porque mais terreno, mais humano e, em certo sentido, estando envolto por aspectos que o podem menoscabar.
Costuma-se dizer que o valor de uma corrente se mede exatamente pelo seu elo mais frágil. Assim, o modo mais excelente de amarmos essa extraordinária cadeia é oscular o seu elo menos forte: o Papado. É devotar à Cátedra de Pedro, em relação à qual esmorecem tantas fidelidades, a nossa fidelidade inteira!
Plinio Corrêa de Oliveira

As cruzes bem aceitas diminuem as penas do Purgatório

A pessoa que compreende que o natural desta vida é sofrer tem suas paixões mais ordenadas, facilitando assim a prática da virtude. Contudo, se é avessa a todo e qualquer sofrimento ela se torna orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa; enfim, desatam-se nela todos os desregramentos

As considerações externadas a seguir(1) desenvolvem a ideia de que uma das razões pelas quais devemos aceitar a cruz nesta Terra, é por ela nos abreviar as penas do Purgatório.

Expiar nesta vida as próprias faltas é um grande benefício

Mas se o castigo necessário dos pecados que cometemos for no tempo reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue!

Castigo espantoso, inefável, incompreensível: “Quis novit potestatem iræ tuæ?”(2) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericordia”(3), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim. Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes; esse pensamento mau e voluntário, essa palavra que o vento levou; essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, será punida eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônios no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem  misericórdia e sem fim!

Será que pensamos nisto, queridos Irmãos e Irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes de poder trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra, passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência! Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Ah, paguemos neste mundo de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último centavo, mesmo uma palavra ociosa (Mt 12, 36). Se   pudéssemos arrebatar ao demônio o livro da morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande débito verificaríamos e como nos sentiríamos encantados de sofrer, durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Verdade que poucos tomam em consideração

São Luís Grignion desenvolve o pensamento em algumas considerações pormenorizadas, as quais merecem ser comentadas, tanto mais que fazem parte de um tesouro que todo mundo conhece, ou ao menos deveria conhecer, para conseguir a vida eterna.

Ele afirma que muitas pessoas, quando sofrem, não costumam pensar a respeito da vantagem que o sofrimento traz para elas em relação  ao Purgatório. Esta verdade é mais corrente do que se imagina. Entretanto, pouquíssimas são as pessoas que, ao sofrer alguma coisa, fazem o seguinte comentário: “Ainda bem, as minhas penas do Purgatório vão se tomar mais leves!” Embora esta verdade seja conhecida por todo mundo, quase ninguém a toma em consideração.

Porque há verdades tão surradas que nem nos lembramos delas. Entretanto, quando ouvimos serem  mencionadas, voltam ao espírito com enfaramento de nossa parte, tão conhecidas elas são. E quando alguém quer insistir sobre elas, vem a resposta: “Nós já sabíamos disso…”

Este é o último ponto de decadência em que uma verdade pode estar no espírito de alguém.

Infelizmente, esta verdade encontra-se neste estágio, até mesmo em muitos ambientes católicos. Por isso, julgo importante desenvolver este tema para refrescá-lo em nosso espírito.

Os sofrimentos desta Terra e os do Purgatório

O primeiro argumento dado por São Luís é de se tratar de um alto negócio trocar as penas do Purgatório pelos sofrimentos desta Terra. Porque estes são frutíferos, enquanto a pena do Purgatório não tem mais mérito. Nesta Terra, os padecimentos bem recebidos nos obtêm um lugar mais alto no Céu;   os do Purgatório, não. Portanto, tendo em vista a eternidade, é vantagem sofrermos nesta vida.

A maior parte das pessoas, ao receber uma adversidade, fica inconformada, revoltada, aborrecida, e este pensamento pode nos ajudar a carregar não sei quantas provações pelas quais temos de passar: “Estou sofrendo isto, mas, afinal de contas, o justo peca sete vezes ao dia; e na hipótese favorável de que eu seja justo, peco pelo menos sete vezes ao dia. Logo, estou expiando meus pecados aqui, mas conquistando méritos para o Céu, enquanto que no Purgatório eu não vou expiar com mérito”.

Outra consideração feita por São Luís é de que a pena nesta vida é rápida, passageira, enquanto no Purgatório pode ser longuíssima. Por exemplo, dez minutos sofridos aqui com paciência podem expiar um pecado que levaria dez ou cem anos para ser expiado no Purgatório. Lamentavelmente, há por vezes uma espécie de recuo da Fé, por onde esses pensamentos pesam pouco e não temos suficiente energia de Fé para transformá-los em convicção, em elemento dinâmico dentro da alma. Porém,  é um raciocínio de grande valor.

O fogo do Purgatório queima misteriosamente a alma Continua São Luís Grignion: Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros…

Aqui está uma ideia a respeito da severidade das penas do Purgatório muito pouco usual para nossos dias. Na realidade, se tomarmos em consideração qual é o alcance de um pecado, mesmo venial, compreenderemos que podemos sofrer muito tempo no Purgatório por causa de pecados bem confessados.

Consideremos que, segundo certos teólogos, o fogo do Purgatório é o mesmo do Inferno, e queima misteriosamente a alma. E isso pode levar séculos! Que tremendo se tivéssemos que passar dez minutos com o dedo queimando na chama de uma vela, sem anestésico e depois sem os mil cuidados da cirurgia moderna! Seria para nós um delírio, uma tragédia.

Imaginem o que seria passar dez anos com o dedo queimando no fogo de uma vela! É uma coisa inconcebível. Pois bem, no Purgatório está a alma posta inteira dentro do fogo, e às vezes durante um século! De 1867 para cá, quanta coisa aconteceu? Em 1867, Napoleão III ainda era imperador; Dom Pedro II, com sua barba loura, ainda reinava no Brasil… Durante esses cem anos, uma alma expiando um pecado no Purgatório!

Há revelações privadas que nos falam de pessoas que terão de ficar no Purgatório até o fim do mundo. Podemos nós saber o que nos espera?

Então, como devemos receber de boa vontade, com alegria uma penitência nesta Terra!

É preciso preparar-se para o sofrimento nesta Terra

Mais adiante ele diz: E como nos sentiríamos encantados  por sofrermos anos inteiros neste mundo para não sofrer um dia só no outro. Querem ver a repercussão sociológica desse pensamento?

Imaginem que a maior parte das pessoas estivesse compenetrada dessa ideia, da qual resulta a seguinte convicção: esta existência, de si, é uma existência de sofrimento. O homem é feito para sofrer enquanto ele não chegar ao Céu.

Logo, a primeira coisa que se deve ensinar a uma pessoa, para ela tomar atitude perante a vida e, em última análise, para sofrer pouco, é conformá-la à ideia de que ela vai sofrer muito.

Porque todos os homens que existem sofrem muito. Portanto, é preciso preparar-se para isso. E, segunda ideia, se não sofrer aqui, sofrerá no Purgatório. Com isso as pessoas perderiam muito de seu orgulho e de sua sensualidade. Sem dúvida, é uma consideração que humilha o homem, mas a alma fica apta a toda espécie de virtude. E quando lhe acontece algum revés, em vez de tomar a posição de alguém que está diante de um absurdo, já vai compreendendo que é o normal e estava previsto, pois o natural é sofrer.

Quantas centenas de milhões de pessoas estão postas na ideia de que é perfeitamente possível levar a vida sofrendo muito pouco, colhendo os frutos  da diversão e do bem-estar que esperam encontrar na realização de sua vontade!

Para essas pessoas qualquer pequeno tropeço é algo que não se compreende como tenha acontecido, um verdadeiro azar. Logo, é preciso lutar de faca na mão para evitar que essas coisas  aconteçam.

Resultado: a caverna onde habitam todos os pecados se abre. Porque com essa ideia a pessoa fica orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa, enfim, todos os vícios se manifestam. O indivíduo fica entregue ao pecado e desatam-se nele todas as desordens, todos os desregramentos.

Por quê? Porque não se é amigo da cruz e não se quer compreender que o natural desta vida é sofrer.

É normal acontecerem reveses na vida

Noto muito essa mentalidade errada na concepção com que certas pessoas tomam as próprias atividades. Por exemplo, lançam um negócio que tarda um pouco a se resolver. Então começa a aflição: “Não viu o que está acontecendo?! Esse meu negócio está tardando a se concretizar. E agora, o que será?” Passam, então, a lançar previsões insensatas: “Se esse negócio arrebentar agora, vou ter que vender tal coisa… Não. Vendo tal outra, faço isso e aquilo…”  Ora, admitida a ideia de que é normal acontecerem reveses na vida, ficamos com a alma preparada para sofrer, sabendo que a qualquer momento podem vir coisas desagradáveis em cima de nós.

Assim adquirimos outra sensibilidade, outro bom senso, outro estímulo para a virtude e — coisa curiosa — sofremos menos. Porque, por mais que se sofra nesta vida, o medo do sofrimento que vem creio ser o maior de todos os sofrimentos. E esse medo vem dessa falta de profundidade.

Do ponto de vista sociológico, isso é de uma importância fundamental. Não se pode ter o Reino de Maria e uma Civilização Cristã se a grande maioria das pessoas não estiver compenetrada de que é normal sofrer. Mais ainda: de que o verdadeiro sentido da vida do homem nesta Terra é aceitar bem os seus padecimentos e conduzi-los corretamente.

Isso é carregar a Cruz de Jesus Cristo. O homem, com os olhos postos em Deus, deve estar satisfeito consigo e grato, não quando logra evitar os sofrimentos, mas quando consegue carregar bem a cruz. Esta doutrina aplica-se também ao apostolado.

Toda ação apostólica é acompanhada de sofrimento e é próprio a ela enfrentar os mais graves reveses, passar pelas dores mais cruciantes, suportando isso com resignação para de fato impulsionar quem deve ser impulsionado.

Creio não haver apóstolo que possa ser tomado a sério se não for um varão das dores. Ele tem que sofrer, mas não como os outros; ele deve ser um ponto de atração e de concentração das dores. Os sofrimentos precisam confluir no apóstolo, e ele deve recebê-los, abraçá-los como Nosso Senhor abraçou a sua Cruz ou como,  por exemplo, o Profeta Jeremias abraçou todo o imenso  sofrimento que ele suportou para, de fato, realizar os desígnios da Providência sobre ele.

Almas irradiantes para o apostolado

Devemos, pois, ter uma conformidade enorme com o fato de estarmos continuamente provados. E não só em nossas pessoas — por doenças, cruzes interiores —, como também em nosso apostolado, em nossos negócios, etc.

Para correspondermos inteiramente à nossa missão, devemos ser, ao mesmo tempo, escravos de Nossa Senhora, apóstolos dos últimos tempos e amigos da cruz. Não se pode ser uma das três  coisas sem ser também as duas outras; isto é indissolúvel.

É próprio da escravidão a Nossa Senhora, quando é bem vivida, dar  valor à cruz. O amor à cruz consiste em considerar normal sofrer reveses, e conduzir isso com serenidade, equilíbrio, força de alma, sem estar a toda hora procurando evadir-se do sofrimento para o reino da frivolidade,  da dissipação, da bagatela; mas, pelo contrário, recolhendo essas cruzes e cultivando-as no interior da alma.

Um bom exame de consciência seria perguntar-se: Eu estou crucificado por tal ponto; como estou carregando minha cruz? Levo-a com toda a conformidade, com todo o amor?

Estou alegre de poder servir a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e de sofrer por ela? Se isto for assim, então sou um varão das dores. E neste caso, poderei ser um apóstolo dos últimos tempos e um verdadeiro escravo de Maria.

Isto se dá, em nossa vida espiritual, até em relação às nossas faltas. Temos pecados, imperfeições. Ficamos com o nosso amor-próprio espicaçado? Ou temos paciência em suportá-los e fazemos esta consideração: “É verdade, este mundo, além de ser um vale de lágrimas, é um vale de pecados. Eu pequei, infelizmente, mas vou conduzir a minha pobre e miserável condição de pecador com paciência.

Vou aceitar a humilhação que assim recai sobre mim, vou procurar me reerguer mais uma, duas, cinco vezes, tratando-me a mim mesmo com a paciência com que Nossa Senhora me trata. Não perderei a tranquilidade, mesmo na maior miséria e na maior tristeza. Aceitarei a humilhação como quem aceita a  cruz, e continuarei a andar calma e alegremente, com um sorriso até o fim da vida”.

Isso é propriamente o que torna as almas irradiantes para o apostolado.

Um dos traços dominantes de nossa vida

Conta-se que, estando Napoleão prestes a fazer aclamar-se imperador — naquele período que, segundo alguns autores, foi o verdadeiro apogeu dele — um daqueles bajuladores perguntou-lhe por que ele não se proclamava deus. E ele teria respondido: “Não dá certo, porque depois de Jesus Cristo só existe um jeito de ser tomado a sério como um deus: subir no alto do Calvário e se fazer crucificar. E isso eu não quero”.

Ele apanhou muito bem esta verdade: só é tomado a sério para as coisas divinas aquele que sofre. Não é pelos sucessos que se arrastam aqueles a quem se quer conquistar, e sim pela dor, por algo   de inexprimível existente no contágio de uma alma abnegada e que não  se procura a si mesma. E isso só se sente em quem sofre e aceita o sofrimento. Eis o que verdadeiramente atrai e faz apostolado.

A meu ver seria temerário pedir sofrimentos a Nossa Senhora. Mas trata-se de ter uma atitude de alma pela qual digamos a Ela que gostaríamos de estar preparados para sermos assim. E embora não tenhamos coragem de sê-lo,  se Ela quiser nos dar esta coragem, nós aceitaremos. Porque entendemos não ser inteiramente consagrado à Santíssima Virgem quem não compreendeu que deve  estar consagrado à dor.

De maneira a considerarmos como normal, como o pão nosso de cada dia nesta vida, a dor carregada  com resignação, espírito sobrenatural e paciência; a dor prevista e a imprevista; a dor explicada, e a dor inexplicável. Temos que fazer dessa aceitação da dor um dos traços dominantes de nossa vida, pois cada um de nós deve tornar-se um “vir dolorum” — um varão das dores.

Assim adquiriremos aquela flexibilidade de alma, aquela bondade, aquela generosidade, aquele desapego,  aquela submissão, aquela aniquilação que caracteriza o verdadeiro apóstolo dos últimos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1967)

1) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 22 e 23.
2) Do latim: Quem conhece o poder de tua cólera? (Sl 89, 11).
3) Do latim: julgamento sem misericórdia (Tg 2, 13).