Não resisti. Era minha intenção escrever sobre algum tema como o agravamento da pressão comunista no Chile, a repressão trágica do levante polonês, o processo de Burgos ou oh! amargura das amarguras! negrume dos negrumes! a crise interna na Igreja.
Entretanto, senti que nem em mim, nem em torno de mim, havia condições para isso. Do fundo de minha alma subiam as reminiscências harmoniosas e distensivas dos meus Natais de outrora. Em torno de mim no olhar de muitos dos conhecidos e desconhecidos com que cruzo pelas ruas, no reflexo dos amigos ao lado dos quais luto e trabalho e dos íntimos cuja amizade me tem acompanhado ao longo dos anos que se vão noto uma sede espiritual mal saciada, um desejo mudo e talvez até subconsciente de reencontrar um pouco da verdadeira alegria do verdadeiro Natal.
Por certo, tal é também o estado de espírito de muitos dos meus leitores. Nestas condições, parecia-me censurável recusar-me a mim mesmo e a tantas outras pessoas, uma ocasião para libertar das enxovias do olvido tantas recordações áureas, e para desalterar a sede de maravilhoso, de doce, de sacrossanto, de que reluz o Natal.
Para o lado, pois, visões tétricas de povos opressos, de tiranos sanhudos, de multidões eletrizadas por demagogos, de escribas sinuosos a modelar noticiários tendenciosos para enganar o público. Por alguns instantes, abramo-nos à luz do Natal, a fim de que se reanimem as nossas almas exaustas e desoladas. Depois, retomaremos com maior coragem o fardo quase insuportável…
Bem entendido, não falo da alegria propagandística e inautêntica que domina este Natal de hoje. Perdeu ele em nossos costumes sociais quase todo o seu perfume de outrora. E passou a ser uma função do comércio. Uma propaganda frenética quase não deixa à população liberdade psíquica para não fazer compras. Compras que cabem no orçamento de cada qual. E compras que não cabem. É preciso ‘obrigar’ o povo a comprar, para dar circulação aos estoques acumulados e avolumar o montante dos negócios. O Natal tomou assim, há anos, o aspecto afanoso e trepidante de uma imensa correria do povo a serviço do aparelhamento desenvolvimentista.
“Ipso facto”, a psicologia do presente e das festas mudou. Cada vez mais, o presente vai perdendo seu caráter afetivo, desinteressado e íntimo. Ele é um apêndice do negócio. Sua razão de ser principal é criar, entreter ou ampliar relações que sirvam aos negócios. Ao sopro dessa mentalidade, mesmo o presente desinteressado vai tomando ares comerciais. Cada qual procura prever quanto custará o presente que receberá do amigo, para dar um de igual preço. Pois se o presente dado valer mais do que o recebido, o doador se sentirá bobeado e frustrado. E reciprocamente Em suma, o presente passou a ser uma troca, calculada em função do valor. Quanto à festa — preparada em geral com super dificuldade — quantas vezes é o interesse econômico que, em lugar da amizade, motiva a confecção da lista dos convidados, o vulto das despesas, etc…
‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade’. Como este cântico angélico encontrou ambiente adequado nas vastidões desertas dos campos de Belém, e nos corações retos dos pastores que despertavam do pesado e tranquilo sono! Como, pelo contrário as palavras do coro angélico parecem estranhas, sem ressonância, sem afinidade com as cogitações dos homens, nestas megalópolis modernas, dominadas pela obsessão do ouro, isto é, da matéria.
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Morreu o Natal autêntico? Com um pouco de exagero, poder-se-ia dizer que sim. Morreu na alma metalizada de tantos milhões de homens. Morreu até em certos presépios. Sim, nos presépios progressistas, que nos exibem a Sagrada Família com os traços e a fisionomia desfigurados pela arte moderna, e com conotações que induzem à revolução social. Mas, se há algum exagero em dizer que o Natal morreu, é verdade que alguns lampejos de vida ele ainda conserva.
Vamos à procura deles. Encontrá-los-emos antes de tudo — e borbulhantes — no próprio fato de ser dia de Natal. Cada festa do calendário litúrgico traz consigo uma efusão de graças peculiares. Queiram ou não queiram os homens, a graça lhes bate às portas da alma, mais sublime, mais meiga, mais insistente, nestes dias de Natal. Dir-se-ia que, apesar de tudo, pairam nos ares uma luz, uma paz, um alento, uma força de idealismo e dedicação, que é difícil não perceber.
Ademais, em inúmeras igrejas, em muito lares, o presépio autêntico ainda nos põe diante dos olhos a imagem do Menino-Deus, que veio para romper os grilhões da morte, para calcar aos pés o pecado, para perdoar, para regenerar, para abrir aos homens novos e ilimitados horizontes de fé e de ideal, novas e ilimitadas possibilidades de virtude e de bem.
Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe dEle mas também nossa. Por meio dEla, até os piores pecadores tudo podem pedir e esperar. Ali, também, está São José, o varão sublime que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades. É príncipe da Casa de Davi e é também carpinteiro. É defensor intrépido da Sagrada Família. Mas, ao mesmo tempo, é pai terníssimo e esposo cheio de afeto. Esposo perfeito, é entretanto o esposo castíssimo dAquela que foi sempre Virgem. Pai verdadeiro, entretanto não é pai segundo a carne. Modelo de todos os guerreiros, todos os príncipes, todos os sábios e todos os trabalhadores que, de futuro, a Igreja engendraria nesta terra para o Céu, ele não foi principalmente nada disto. Seus títulos mais altos são dois: pai de Jesus e esposo de Maria. Títulos pequeninos e imensos, que ao mesmo tempo, paradoxalmente, pulverizam e comunicam vida, nobreza e esplendor a todos os títulos da terra.
Os pastores ali se apresentam em amável intimidade com os animais… bem como com Nossa Senhora, São José e o próprio Menino Jesus. É a imagem comovedora de Deus excelso, que leva a irradiação de sua grandeza ao extremo de tocar e elevar até o que há de mais humilde e pequeno entre os homens. Que, não contente com isto, atrai e cobre de bênçãos até as criaturas irracionais.
Ao contemplar isto, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam. A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado. Florescem os dons de alma. O dom do afeto. O dom do perdão. E, como símbolo, a oferta delicada e desinteressada de algum presente.
Para que nada falte, o irmão corpo — como dizia São Francisco — também tem sua parte na alegria. Feita a oração junto ao presépio, sentam-se todos à mesma mesa. Come-se sem comilança. Bebe-se sem embriaguez. É a festa em que brilha a alegria de se ter fé, de se ter virtude, de se ter, em ordem sacral, feitas as ações e postas as coisas.
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Alegria de Natal? Sim. Mas muito mais do que isto. Alegria dos 365 dias do ano, para o católico verdadeiro. Pois na alma em que, pela graça, habita o Salvador, esta alegria dura sempre e jamais se apaga. Nem a dor, nem a luta, nem a doença e nem a morte a eliminam. É a alegria da fé e do sobrenatural. A alegria da ordem sacral.
— Ó vós que andais pelo caminho, parai e vede se há uma dor semelhante à minha, exclamou Isaías profeta, antevendo a Paixão do Salvador e a compaixão de Maria. Mas ele também poderia ter dito, profetizando as alegrias cristãs perenes e indestrutíveis que o Natal leva a seu auge: Ó vós que passais pelo caminho, parai e vede se há alegria semelhante à minha.
— Ó vós que viveis cupidamente para o ouro, ó vós que viveis tolamente para a vanglória, ó vós que viveis torpemente para a sensualidade, ó vós que viveis diabolicamente para a revolta e para o crime: parai e vede as almas verdadeiramente católicas, iluminadas pela alegria do Natal: o que é a vossa alegria comparada à delas?
Não vejais nestas palavras provocação, nem desdém. Elas são muito mais do que isto.
São um convite para o Natal perene, que é a vida do verdadeiro fiel: “Christianus alter Christus” o cristão é um outro Jesus Cristo.
Não, não há alegria igual. Até mesmo quando o católico está, como Jesus Nosso Senhor, cravado na cruz…
Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na ‘Folha de S. Paulo’, em 27/12/1970.)