Parai e vede

Não resisti. Era minha intenção escrever sobre algum tema como o agravamento da pressão comunista no Chile, a repressão trágica do levante polonês, o processo de Burgos ou — oh! amargura das amarguras! negrume dos negrumes! — a crise interna na Igreja.

Entretanto, senti que nem em mim, nem em torno de mim, havia condições para isso. Do fundo de minha alma subiam as reminiscências harmoniosas e distensivas dos meus Natais de outrora. Em torno de mim — no olhar de muitos dos conhecidos e desconhecidos com que cruzo pelas ruas, no reflexo dos amigos ao lado dos quais luto e trabalho e dos íntimos cuja amizade me tem acompanhado ao longo dos anos que se vão — noto uma sede espiritual mal saciada, um desejo mudo e talvez até subconsciente de reencontrar um pouco da verdadeira alegria do verdadeiro Natal.

Por certo, tal é também o estado de espírito de muitos dos meus leitores. Nestas condições, parecia-me censurável recusar-me a mim mesmo e a tantas outras pessoas, uma ocasião para libertar das enxovias do olvido tantas recordações áureas, e para desalterar a sede de maravilhoso, de doce, de sacrossanto, de que reluz o Natal.

Para o lado, pois, visões tétricas de povos opressos, de tiranos sanhudos, de multidões eletrizadas por demagogos, de escribas sinuosos a modelar noticiários tendenciosos para enganar o público. Por alguns instantes, abramo-nos à luz do Natal, a fim de que se reanimem as nossas almas exaustas e desoladas. Depois, retomaremos com maior coragem o fardo quase insuportável…

Bem entendido, não falo da alegria propagandística e inautêntica que domina este Natal de hoje. Perdeu ele em nossos costumes sociais quase todo o seu perfume de outrora. E passou a ser uma função do comércio. Uma propaganda frenética quase não deixa à população liberdade psíquica para não fazer compras. Compras que cabem no orçamento de cada qual. E compras que não cabem. É preciso ‘obrigar’ o povo a comprar, para dar circulação aos estoques acumulados e avolumar o montante dos negócios. O Natal tomou assim, há anos, o aspecto afanoso e trepidante de uma imensa correria do povo a serviço do aparelhamento desenvolvimentista.

“Ipso facto”, a psicologia do presente e das festas mudou. Cada vez mais, o presente vai perdendo seu caráter afetivo, desinteressado e íntimo. Ele é um apêndice do negócio. Sua razão de ser principal é criar, entreter ou ampliar relações que sirvam aos negócios. Ao sopro dessa mentalidade, mesmo o presente desinteressado vai tomando ares comerciais. Cada qual procura prever quanto custará o presente que receberá do amigo, para dar um de igual preço. Pois se o presente dado valer mais do que o recebido, o doador se sentirá bobeado e frustrado. E reciprocamente Em suma, o presente passou a ser uma troca, calculada em função do valor. Quanto à festa — preparada em geral com super dificuldade — quantas vezes é o interesse econômico que, em lugar da amizade, motiva a confecção da lista dos convidados, o vulto das despesas, etc…

‘Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade’. Como este cântico angélico encontrou ambiente adequado nas vastidões desertas dos campos de Belém, e nos corações retos dos pastores que despertavam do pesado e tranquilo sono! Como, pelo contrário as palavras do coro angélico parecem estranhas, sem ressonância, sem afinidade com as cogitações dos homens, nestas megalópolis modernas, dominadas pela obsessão do ouro, isto é, da matéria.

* * *

Morreu o Natal autêntico? Com um pouco de exagero, poder-se-ia dizer que sim. Morreu na alma metalizada de tantos milhões de homens. Morreu até em certos presépios. Sim, nos presépios progressistas, que nos exibem a Sagrada Família com os traços e a fisionomia desfigurados pela arte moderna, e com conotações que induzem à revolução social. Mas, se há algum exagero em dizer que o Natal morreu, é verdade que alguns lampejos de vida ele ainda conserva.

Vamos à procura deles. Encontrá-los-emos antes de tudo — e borbulhantes — no próprio fato de ser dia de Natal. Cada festa do calendário litúrgico traz consigo uma efusão de graças peculiares. Queiram ou não queiram os homens, a graça lhes bate às portas da alma, mais sublime, mais meiga, mais insistente, nestes dias de Natal. Dir-se-ia que, apesar de tudo, pairam nos ares uma luz, uma paz, um alento, uma força de idealismo e dedicação, que é difícil não perceber.

Ademais, em inúmeras igrejas, em muito lares, o presépio autêntico ainda nos põe diante dos olhos a imagem do Menino-Deus, que veio para romper os grilhões da morte, para calcar aos pés o pecado, para perdoar, para regenerar, para abrir aos homens novos e ilimitados horizontes de fé e de ideal, novas e ilimitadas possibilidades de virtude e de bem.

Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita. Mãe dEle mas também nossa. Por meio dEla, até os piores pecadores tudo podem pedir e esperar. Ali, também, está São José, o varão sublime que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades. É príncipe da Casa de Davi e é também carpinteiro. É defensor intrépido da Sagrada Família. Mas, ao mesmo tempo, é pai terníssimo e esposo cheio de afeto. Esposo perfeito, é entretanto o esposo castíssimo dAquela que foi sempre Virgem. Pai verdadeiro, entretanto não é pai segundo a carne. Modelo de todos os guerreiros, todos os príncipes, todos os sábios e todos os trabalhadores que, de futuro, a Igreja engendraria nesta terra para o Céu, ele não foi principalmente nada disto. Seus títulos mais altos são dois: pai de Jesus e esposo de Maria. Títulos pequeninos e imensos, que ao mesmo tempo, paradoxalmente, pulverizam e comunicam vida, nobreza e esplendor a todos os títulos da terra.

Os pastores ali se apresentam em amável intimidade com os animais… bem como com Nossa Senhora, São José e o próprio Menino Jesus. É a imagem comovedora de Deus excelso, que leva a irradiação de sua grandeza ao extremo de tocar e elevar até o que há de mais humilde e pequeno entre os homens. Que, não contente com isto, atrai e cobre de bênçãos até as criaturas irracionais.

Ao contemplar isto, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam. A paz penetra em nós e em torno de nós. Sentimos que em nosso vizinho algo também está enobrecido e dulcificado. Florescem os dons de alma. O dom do afeto. O dom do perdão. E, como símbolo, a oferta delicada e desinteressada de algum presente.

Para que nada falte, o irmão corpo — como dizia São Francisco — também tem sua parte na alegria. Feita a oração junto ao presépio, sentam-se todos à mesma mesa. Come-se sem comilança. Bebe-se sem embriaguez. É a festa em que brilha a alegria de se ter fé, de se ter virtude, de se ter, em ordem sacral, feitas as ações e postas as coisas.

***

Alegria de Natal? Sim. Mas muito mais do que isto. Alegria dos 365 dias do ano, para o católico verdadeiro. Pois na alma em que, pela graça, habita o Salvador, esta alegria dura sempre e jamais se apaga. Nem a dor, nem a luta, nem a doença e nem a morte a eliminam. É a alegria da fé e do sobrenatural. A alegria da ordem sacral.

— Ó vós que andais pelo caminho, parai e vede se há uma dor semelhante à minha, exclamou Isaías profeta, antevendo a Paixão do Salvador e a compaixão de Maria. Mas ele também poderia ter dito, profetizando as alegrias cristãs perenes e indestrutíveis que o Natal leva a seu auge: Ó vós que passais pelo caminho, parai e vede se há alegria semelhante à minha.

— Ó vós que viveis cupidamente para o ouro, ó vós que viveis tolamente para a vanglória, ó vós que viveis torpemente para a sensualidade, ó vós que viveis diabolicamente para a revolta e para o crime: parai e vede as almas verdadeiramente católicas, iluminadas pela alegria do Natal: o que é a vossa alegria comparada à delas?

Não vejais nestas palavras provocação, nem desdém. Elas são muito mais do que isto.

São um convite para o Natal perene, que é a vida do verdadeiro fiel: “Christianus alter Christus”  o cristão é um outro Jesus Cristo.

Não, não há alegria igual. Até mesmo quando o católico está, como Jesus Nosso Senhor, cravado na cruz…

Plinio Corrêa de Oliveira (Publicado na ‘Folha de S. Paulo’, em 27/12/1970.)

Um conto natalino…

Fruto da Civilização Cristã, o Ancien Régime ainda exalava o perfume da perfeita harmonia social, onde os maiores tinham gosto em  proteger os menores; e os menores, por sua vez, alegria em servi-los. Um característico exemplo disso é o pitoresco conto natalino a seguir, narrado por Dr. Plinio…

Há um pitoresco livro de Georges Lenôtre — a meu ver, o mais saboroso historiador da Revolução Francesa —, composto de contos referentes a essa época.(1)

Poder-se-ia perguntar: que valor têm esses contos? Não seria melhor um fato histórico?

Quando se dá um acontecimento muito importante, como a Revolução Francesa, ao lado dos fatos que deixaram recordação nos arquivos, existiram outros que se contavam de boca em boca e se tornaram célebres. Esses últimos um literato pode registrar a fim de conservar para a História. Foi o que fez Lenôtre.

Depoimento coletivo sobre a Revolução Francesa

Um fato fica célebre quando se propaga entre muitos, que veem nele algo de típico. Quer dizer, muitos que viveram a Revolução, participaram dela, ouvindo o fato contaram-no para outros, porque acharam que era característico. É uma espécie de depoimento geral sobre o ambiente da Revolução Francesa.

Alguém poderia dizer: “Mas Dr. Plinio, cuidado! Quem conta um conto aumenta um ponto. Será que esses fatos não contêm inverdades?” Aí está o mais saboroso. Esses fatos passam de boca em boca e vão sendo modelados, porque cada um coloca algo de mais característico. E fica uma contribuição anônima de muitos sobre como eles viram a Revolução Francesa. Quer dizer, tais fatos se tornam uma espécie de depoimento coletivo de como aquelas pessoas sentiram a Revolução Francesa, embora determinado fato tenha, às vezes, apenas um núcleo verdadeiro e sua periferia seja historicamente discutível.

Além disso, através desses fatos se conhece o ambiente dos acontecimentos. Mais ou menos como, por meio dos fatos semi mitológicos da Grécia Antiga, se toma conhecimento do ambiente da Grécia Antiga, embora muitos deles sejam falsos e outros discutíveis.

Preso na Conciergerie…

Eu gostaria de comentar um desses fatos que nos reproduz a mitologia da Revolução Francesa.(2) Como eu me julgo inferior a Lenôtre, vou repetir o que ele narrou.

Imaginemos a Conciergerie — a lúgubre prisão na qual eram detidos os nobres que eram processados —, nas vésperas da noite de Natal do ano de 1792, onde está preso um conde francês. Preso por ser nobre, de uma família que prestou grandes serviços no tempo das Cruzadas, nas lutas contra os adversários da Igreja etc., por representar um elemento que se destacava dos outros por sua cultura, elegância, distinção. E condenado à morte, esperando que na manhã seguinte se repetisse a cena de todos os dias.

A Conciergerie ficava cheia de presos e todas as manhãs ali chegava uma carretinha em que cabiam dez, doze, quinze pessoas — às vezes eram duas ou três carretinhas, naquele tempo puxadas por cavalo ou burro —; um homem descia e todos os prisioneiros se juntavam. Lia-se então a lista dos que naquela manhã deveriam morrer, quinze, vinte, trinta presos, que eram levados para o suplício; os outros ficavam aguardando o dia seguinte…

O indivíduo que não era chamado tinha um pouco de respiração depois da partida da carretinha, mas à medida que ia entardecendo ele sentia que talvez fosse o crepúsculo de sua vida que ia chegando. E à noite, quando conseguia dormir, acordava agoniado, achando que poderia morrer no dia seguinte. Era uma guerra de nervos.

…um conde recorda as festas de Natal

Suponhamos aquele conde sozinho olhando pelas grades de sua masmorra, e se relembrando de fatos passados, do Natal que, na sua mansão de Paris, era de tal modo.

Ele era viúvo e possuía apenas um filho ainda menino. E todas as noites de Natal o conde preparava para seu filho uma ceiazinha, acordando-o quando chegava meia-noite. O menino levantava-se e encontrava na sala uma pequena árvore de Natal brilhantemente enfeitada, coisas para comer e depois via nos sapatos, que estavam colocados próximo à lareira, os presentes que o Papai Noel teria trazido para ele. O pequeno era órfão de mãe e o conde procurava ser para com ele o mais afetuoso possível, a fim de substituir sua progenitora.

Numa noite de Natal, esperando sozinho chegar a hora para acordar o filho, o conde de repente ouve na chaminé uma barulheira e, na lareira ainda não acesa, cai uma criança.

Era propriamente o meninote que ele pagara para fazer a limpeza, desobstruir de fuligem a chaminé, a fim de que as chamas pudessem subir bonitas. Tratava-se de um menino pobre, o qual tinha a incumbência de subir pelo teto e limpar a chaminé; era uma profissão.

O menino todo sujinho se ergue espantado e vê diante de si a sala bonita, na qual se encontra aquele homem sozinho. Podemos imaginar a cena: o conde — com sapatos de verniz com salto vermelho, como usavam os nobres, fivelas de prata, ou de ouro, com brilhantes e outras pedras preciosas, meia de seda até o joelho, vestido todo de seda, cabeleira branca empoada — contando as horas e que se espanta quando cai aquele meninote.

Ele o vê levantar-se e percebe que sua primeira reação foi um olhar cheio de vontade de comer as coisas que estavam na mesa, destinadas para o outro menino. Fica com pena dele, mas não pode desfalcar a festa de seu filho; ajuda-o a remover a sujeira e manda-o lavar-se. Depois o menino vem agradecer ao conde que, ao despedi-lo, lhe dá um presente de Natal.

E era um presente régio: uma moeda de ouro chamada luís, porque tinha a efígie do Rei Luís. Havia luíses do tempo de Luís XV e Luís XVI. Essa moeda seria mais ou menos como a libra esterlina de hoje, e com ela se poderia fazer uma festa de Natal régia. O menino se retira muito agradecido; e nos anos seguintes, quando se aproxima a festa de Natal, volta à casa do conde para limpar a chaminé.

O conde acha graça e resolve dar a cada Natal uma moeda de ouro para o menino. E começa durante o ano a ajudá-lo e também à sua família; formam-se, então, como que, relações semifeudais, de vassalagem, simpatia e proteção, entre o conde e o menino.

Encontro do filho do conde com o limpador de chaminés

Passam-se os anos; o limpador de chaminés e o filho do conde ficam mocinhos. Arrebenta a Revolução Francesa e o conde é perseguido, preso; seu filho foge de casa, a qual fica abandonada.

São vésperas de Natal. Enquanto o conde está na prisão, lembrando-se dessas e de outras cenas familiares, seu filho, pobre, vagueia à noite pelo bairro onde antigamente fora sua mansão e encontra o limpador de chaminés, do qual ficara amigo, que lhe pergunta como está o conde.

— Você não sabe? Meu pai foi preso.
— Mas como? Então o conde foi preso? Como foi isto?
E o filho do conde conta-lhe que os nobres estavam sendo presos. Então o rapaz diz para o limpador de chaminés:
— Este ano, meu caro, não tem luís de ouro, nem para você, nem para mim. Só tenho aqui um maço de moedas para eu subsistir e arranjar um jeito de libertar meu pai. Mas não sei como libertá-lo.
O limpador de chaminés pergunta-lhe:
— Onde está seu pai?
— Na Conciergerie, em tal local.
— Se me der o maço de moedas para eu libertar seu pai, o senhor confia em mim que de fato o conseguirei?
— Tome as moedas.

O conde é libertado

Dia de Natal na Conciergerie. O conde está pensando e em sua cela há uma lareira miserável, raquítica, acesa.

O jovem limpador arranja um jeito de descer pela chaminé, não se queima com as brasas que estão ali vegetando e, trazendo nos braços um pacote, aparece para o conde, que fica muito surpreso e lhe indaga:

— Mas, você aqui? Entrando por esse local?
Diz o limpador de chaminés:
— Olhe, nós não temos um minuto a perder. O senhor execute o plano que vou lhe propor e sairemos bem. Estou trazendo uma roupa toda suja, de limpador de chaminés, para o senhor vesti-la. E o conde faz o que nunca imaginou na vida: mete-se numa roupa de limpador de chaminés. O mocinho apanha fuligem, arranja a cara do conde e lhe diz:
— Agora, nós vamos sair pela portaria, dizendo que somos os limpadores de chaminé e já fizemos o serviço. É a hora da troca de guarda, e o que assume não sabe quem entrou para limpar a chaminé e não controla quem vai sair. Se formos já, existe uma possibilidade de nós dois escaparmos. Se não der certo, ficamos presos aqui, mas eu arrisco minha vida pelo senhor. E não adianta perder tempo em me agradecer. Agora é preciso sair.

O conde entende a situação, e os dois se dirigem à portaria. Lá chegando, o rapaz se apresenta ao porteiro, que estava dormitando, pisca para o conde e lhe recomenda: “Vá andando”.

E disse para o porteiro:
— Nós somos os limpadores das chaminés…
— Ah! Chama aquele lá que vai andando!
— Ele é meu colega; eu queria dizer a você o seguinte: tenho aqui um pacote de moedas que mandam para seu chefe. Agora, não sei bem se ele e eu esperamos seu chefe acordar, ou se nós saímos e deixamos as moedas para você guardar.
Nesse momento, a situação de ambos ficou entre a vida e a morte. O homem pensou um pouco e disse:
— Pode deixar aqui que eu entrego, e vocês vão andando.

Os dois saem devagar, entram pela Paris deserta e vão até próximo à casa do conde, onde o limpador de chaminés tinha marcado encontro com o filho do conde. Ali se encontram, tomam os cavalos e fogem; os três estavam salvos da fúria revolucionária.

Harmonia entre as classes sociais

Esse é um conto que representa um Natal contrarrevolucionário dentro da Paris revolucionária, e dá uma versão real das relações entre as classes sociais antes da Revolução Francesa. É a imagem inteiramente oposta à que esses livrinhos que falsificam a História apresentam por aí.

A figura que normalmente se teria de um conde, em cuja casa cai, através da chaminé, um menino, seria:
— Pst! Fique aí na lareira! Além de estragar a chaminé, você quer sujar a casa? Você vai apanhar!
Manda chamar um homem e lhe ordena:
— Embrulhe esse sujeito com papel ou num pano para não me sujar a casa. Leve-o para fora e, lá na rua, dê-lhe umas chicotadas e um pontapé.
E voltando-se para o menino lhe diz:
— Ainda bem que você não tem nada dessa comida, que está aí na mesa para meu filho. Vagabundo! Plebeu! Essa comida é para nobre, não para plebeu. Vá embora!

Essa é a imagem que esses livrinhos de História insinuariam a respeito desse episódio.

Vimos, entretanto, que a realidade é inteiramente diferente. Havia harmonia, afabilidade, bom relacionamento entre as classes sociais, baseado num princípio profundamente católico, que é o seguinte:

Deve haver uma hierarquia de classes sociais; mas essa hierarquia não pode ser levada tão longe, que aquele que está em cima negue a elevada condição de homem ao que está embaixo, e, sobretudo, a alta condição de pessoa batizada que é membro do Corpo Místico de Cristo. Portanto, o superior deve tratar o inferior com bondade, afabilidade, protegê-lo, ajudá-lo nas suas necessidades, e até além de suas necessidades.

O cumprimento desse dever, por parte dos que estão acima, traz um dever dos que se encontram embaixo: a gratidão. Quando aquele que foi benfeitor está em apuros, os beneficiados retribuem. Aí está o vínculo que reúne as classes sociais diversas numa unidade.

Esse pequeno episódio ilustra uma realidade histórica e dá um exemplo concreto de um princípio profundo da Doutrina Católica. Mostra como a desigualdade das classes sociais pode ser aproveitada como elemento para a união dos homens, e não para sua desunião.

São Tomás de Aquino diz formalmente que há nobres e plebeus, grandes e pequenos, ricos e pobres, inteligentes e menos inteligentes, para o benefício não só dos que são mais, mas também dos que são menos; porque aquele que é menos, recebendo um benefício de quem é mais, vê neste como que uma imagem de Deus e pode amar melhor o Criador.

No fato narrado percebemos como o limpador de chaminés viu, na bondade do conde, uma imagem da bondade de Deus; depois ele se dedicou ao conde, num ato que tem qualquer coisa de dedicação ao próprio Deus. De um modo fácil de guardar, atraente, interessante, está ilustrado um princípio doutrinário profundo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/8/1974)

1) Lenôtre, G. Légendes de Noël, contes historiques. Paris: J. M. Dent et Fils, 1916.
2) Idem. pp. 161-176.

Presépio

Repousais, Senhor, em vosso misérrimo e augustíssimo presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros inauferíveis de seu respeito e de seu carinho. Jamais uma criatura adorou com tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus.

Nunca um coração materno amou mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera criatura. E nunca filho amou tão plenamente, tão inteiramente, tão super abundantemente sua mãe.

Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: Mãe, eis aí teu filho. Filho, eis aí tua Mãe (cf. Jo 19, 26). E, considerando a perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta das profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens de boa vontade” (Luc 2, 14).

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “Catolicismo” n° 156, dezembro de 1963)

O “vitral” do Menino Jesus

Sem dúvida, uma das luzes da Civilização Cristã é o belo e imenso repertório de cânticos natalinos por ela engendrado. Cantado por diferentes nações, o mistério do Natal adquire, segundo a índole de cada povo, diversos coloridos e matizes, como os raios do Sol ao atravessarem um vitral.

Enquanto ouvia esses belos cânticos natalinos ingleses, eu estava pensando: Como é bonita a Civilização Cristã! Vemos como, nos vários povos, as canções de Natal variam de acordo com a índole nacional. Mas, de outro lado, como estão sempre presentes as mesmas características.

Hinos de entusiasmo pela inocência

Por exemplo, as músicas de Natal norte-americanas, brasileiras, italianas, alemãs, francesas, espanholas, são bem diferentes. Entretanto, por toda parte os mesmos sentimentos despertados pelo Menino Jesus, por Nossa Senhora, por São José, pelo presépio, etc., aparecem cantados de acordo com a índole de cada país.

Quais são essas notas características?

A primeira é a inocência. Os diversos povos souberam transmitir verdadeiramente um hino de entusiasmo pela inocência de Nosso Senhor, mas que repercute sob a forma de acordes da inocência com os quais cada um glorifica o Menino Jesus. Quer dizer, cada um dá o que tem de inocência para glorificar o Divino Infante. Isso vale muito mais do que o tambor(1).

O entusiasmo que cada um tem pela inocência d’Ele é um elemento de inocência em nós, porque se não tivéssemos nenhuma inocência, não nos interessaríamos por Ele. Quantas pessoas há por aí afora que não se interessam por Ele! E isso porque não têm verdadeira inocência. Se nos interessamos e cantamos bem a inocência do Menino-Deus, é porque há uma inocência em nós. Então, vê-se a inocência presente nesses cânticos.

A ternura por Deus-Menino

Está presente também a ternura. Dado o fato de o Menino Jesus ser tão fraco, tão pequeno, mas ao mesmo tempo Deus, há uma espécie de ternura, eu quase diria de compaixão, porque sendo Deus tão grande, entretanto está, por assim dizer, contido naquela criancinha. Surge, então, uma vontade de proteger o Menino Jesus contra qualquer perigo. Por isso, certas canções de Natal tomam, em certo momento, um ar de defesa e de proclamação de um hino.

Um ”vitral” de músicas natalinas

Eu gostei muito de encontrar essas várias notas nas canções inglesas que vocês cantaram tão bem. É a permanência do mesmo efeito salvífico, divino, salutar, do Menino Jesus sobre as almas das várias nações. É mais ou menos como o Sol que tem sempre a mesma cor, mas quando seus raios incidem sobre um vitral, ao atravessarem os vidros, tomam coloridos diferentes e muito harmoniosos. E se a luz se projeta no chão, fica uma beleza, como se alguém tivesse jogado ali pedras preciosas.

Assim também, Jesus é um só, mas cantado pela alma anglo-saxônica — inglesa ou americana —, vê-se n’Ele uma beleza; cantado pela alma germânica, outra beleza; pela alma latina, outra beleza. Já ouvi canções eslavas em louvor do Menino Jesus, inclusive russas, muito bonitas, mas com uma outra nota. Também brasileiras, hispano-americanas, etc. Tudo isso forma o “vitral” do Menino Jesus. E foi a beleza que eu notei muito aqui, nas canções há pouco entoadas.

Um verdadeiro presente

Agradou-me muito também constatar a força, energia, ênfase e resolução com que cantaram. Agradeço este verdadeiro presente, em primeiro lugar, porque me deu uma recreação agradável após um dia inteiro de trabalho. Mas também porque são sentimentos internos que vocês revelam e que para mim valem muito mais do que qualquer canção. Ainda que fosse um concerto na Ópera de Nova York, com um coro fantástico, valia menos para mim do que essas canções entoadas pelos meus “bem-te-vis”(2) passados, presentes e futuros. Fico muito agradecido pela iniciativa que tomaram e peço a Nossa Senhora que os abençoe.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/12/1988)
Revista Dr Plinio 189 – Dezembro de 2013

1) Dr. Plinio se refere à história de um pobre menino que, não tendo com que presentear a Jesus recém-nascido, toca diante d’Ele seu velho tambor.
2) Título afetuoso dado por Dr. Plinio a seus jovens discípulos norte-americanos.

Natal: festa na terra e no Céu

Ao meditar sobre o ambiente onde nascera o Menino Jesus, em Belém, Dr. Plinio narra saudosas recordações dos Natais que passara em seu tempo de menino.

O Natal é o primeiro passo — quão humilde, velado e discreto — que o Rei glorioso haveria de dar no caminho de sua dor, sua luta e sua vitória.

A palavra agonia, em grego, quer dizer luta. Os atletas que lutavam nos circos eram chamados agonistas. E a agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo foi propriamente sua luta heroica durante a Paixão: Ele imergiu na morte para depois ressuscitar, a fim de nos salvar e podermos reinar ao seu lado no Céu.

Numa gruta em Belém…

O Natal evoca um casal colocado na situação mais triste que uma pessoa possa ter na Terra, na ordem humana dos valores.

A casa de David estava de tal maneira posta de lado, que São José era um carpinteiro pobre. Ele, príncipe da estirpe de David, vai registrar-se em Belém para obedecer às ordens de um soberano estrangeiro, César Augusto, que dominava naquele tempo a Terra Santa. O descendente dos antigos reis vencidos obedece ao decreto do imperador vencedor.

Qual a razão desse decreto de César Augusto?

Vaidade! Ele queria saber quantos homens estavam submetidos ao seu poder, e por causa disso mandou que cada um se recenseasse no lugar de onde era sua família. A de São José era originária da cidadezinha de Belém.

Podemos imaginar Nossa Senhora, na posição difícil de uma mãe que está com uma criança para nascer, montada num burrico, e São José andando a pé. Chegando a Belém, batem de porta em porta pedindo hospedagem e ninguém os acolhe. Foram então a uma gruta onde ficavam os animais.

Nessa gruta se deu o acontecimento mais importante da História: o Filho de Deus, feito carne no seio puríssimo da Virgem Maria, veio ao mundo.

Houve ali uma alegria feita de contraste: uma grande miséria, mas uma grande elevação; uma riqueza à qual nada se compara na Terra, o Filho de Deus feito Homem colocado no lugar mais pobre, numa manjedoura de animais.

A glória, à qual ninguém sabe dar valor, exceto aquele casal, está ali representada no estado de um Menino débil, frágil, que chora, tem fome e estende os bracinhos para a Mãe.

E no Céu, na maior festa até então realizada, todos os Anjos — querubins, serafins, arcanjos —, em coro magnífico com brilho extraordinário, glorificaram a Deus pelo Natal de Jesus Cristo. Esta glória impregnou a gruta discretamente, porque era preciso que somente as almas de Fé a sentissem. E, excetuando Nosso Senhor Jesus Cristo, a maior alma de toda a História — a qual vale mais do que todos os Anjos e todas as almas que houve, havia e haverá até o fim do mundo — estava ali reclinada, rezando: Maria Santíssima. E orando a Ela e ao Menino Jesus, o homem que teve a honra de ser escolhido para Seu esposo.

Vemos assim como é dentro de um quadro da maior pobreza que nasce a maior de todas as glórias.

Nossa Senhora e São José viam aquele Menino chorar, dando a entender que queria alguma coisa, ou que estava com frio. E a Santíssima Virgem O vestiu com as roupinhas que Lhe havia preparado, sabendo que Ele era o próprio Deus cheio de glória, uma só Pessoa, embora em duas naturezas. Aquela Criança era o Criador d’Ela, que Lhe abria os braços; e o dono de todo o universo, que chorava desejando receber um pouco de leite e roupa para se cobrir.

Aerologia do Natal

Tendo Ele nascido à meia-noite, podemos imaginar o que seria esse horário num lugar ermo daquelas vastidões do mundo antigo, onde tão pouca coisa se movia. Na cidade de Belém, o silêncio, todos dormiam, tudo estava escuro. Mas dentro daquela gruta, onde estava aquele casal único, havia uma luz brilhante, pois nascera um Menino que era o Rei de todos os séculos, o próprio Deus encarnado.

Isso faz parte do que poderíamos chamar aerologia do Natal, oposta à da Páscoa. Esta é uma grande vitória triunfal que se comunica a todo o mundo. O Natal é um acontecimento divino, mas que se realiza aos olhos de poucos; a maior das glórias reside num Menino e permanece escondida. De maneira que quem contempla aquela cena deseja se recolher, ficar quieto, para senti-la dentro de si, mais do que proclamá-la a grandes brados. Tem reverência enternecida, uma espécie de comiseração de Deus, porque consentiu em fazer-Se tão pequeno; ao mesmo tempo, não sabe como agradecer a honra de tocar de perto em tão alto mistério: o Verbo de Deus assumiu voluntariamente a natureza humana. E encontra dificuldade em exprimir ao mesmo tempo o respeito tão grande, que chega ao temor, e a ternura tão profunda, a qual quase liquefaz a alma.

Então, suma veneração, adoração e ternura, bem como noção de uma honra — perto da qual percebemos que nada somos — e concomitantemente de uma humilhação. Isto explica o que há de noturno no Natal. Não teria beleza abolir a Missa do galo e celebrar o Natal com uma Missa ao meio-dia. Não se compreende que essa festa não seja comemorada à noite, porque sua luz é muito discreta e pede a noite para dentro dela brilhar.

Stille Nacht, a canção natalina por excelência

A alegria do Natal é tão íntima e delicada que teme se expandir inteiramente. O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX por um simples mestre-escola, passou a ser a canção de Natal por excelência. Uma de suas genialidades está em que ela consegue exprimir essa delicadeza e intimidade. Dir-se-ia que o coro está na gruta e canta porque ficou tão emocionado, que quase não conseguiu deixar de fazê-lo. Porém, canta baixinho para não acordar o Menino e não perturbar a canção indizível e serena com que Nossa Senhora está embalando o próprio Deus.

Assim, compreendemos o papel do noturno e as mil delicadezas que vibram no Stille Nacht. Essa canção manifesta uma espécie de compaixão em relação Àquele que está sendo celebrado, como que dizendo: é tão pequeno esse Deus infinito, mas tão infinito esse Deus pequeno!

Foram necessários dezenove séculos de meditação para que desabrochasse essa canção, como uma flor dentro da Igreja Católica.

Pressa pelo Natal

Imaginemos a pressa de Maria Santíssima pelo nascimento do Redentor. Pressa que tiveram todos os profetas pela vinda d’Aquele que haveria de pôr as coisas em ordem, esmagar o demônio e os efeitos do pecado original.

Em meu tempo de moço, tal pressa era representada pela expectativa pelo Natal que havia em toda parte na pequena cidade de São Paulo. Essa expectativa — com uma dessas delicadezas de alma que somente a Igreja Católica possui —, para não ficar uma coisa teórica para as crianças, era ao mesmo tempo a pressa da vinda do Menino Deus e também da festa de Natal.

Às vésperas do nascimento de Jesus

Assim como Jesus ficou oculto antes de nascer, a comemoração do Natal se preparava no mistério para as crianças. Os mais velhos confabulavam entre si e combinavam o tamanho da árvore de Natal, seus enfeites, as mesas de doces para a criançada, o que deveria ser diferente do ano anterior, e o presépio a ser posto aos pés da árvore de Natal.

As crianças não podiam assistir a essa conversa. Sentiam que se preparava uma grande festa de alegria não só para o corpo, mas também para a alma. Mais do que isto, era uma festa religiosa: vinham graças de Deus especiais; era como se o Menino Jesus nascesse. Procurava-se ouvir as últimas palavras dos mais velhos, as quais as crianças contavam entre si para conjeturar como seria a comemoração do Natal.

E havia o mistério do presente natalino. As crianças bem novinhas acreditavam que São Nicolau trazia o presente de Natal. Os pais sondavam para saber mais ou menos o que elas queriam, mas nada diziam. E quando as crianças estavam dormindo profundamente, eles colocavam os presentes aos pés das camas.

Lembro-me que dormia na expectativa do dia seguinte. Minha cama era pintada com laca de cor branca, com figurazinhas de santos e cenas pastoris. Havia um quadrinho na parede que dava para o jardim do fundo da minha casa. Atrás desse jardim existia um terreno baldio — São Paulo não era ainda muito habitada — onde havia uma cabana, que datava, creio eu, do tempo dos índios. E dentro dessa cabana, uma quantidade enorme de grilos. Eu adormecia ouvindo os grilos… Parecia-me ser o latejar de todas as coisas à espera do Natal que viria.

Às vezes, minha pressa de receber o presente era tão grande que eu acordava uma ou duas vezes durante a noite e, quando me virava — sempre fui de virar-me muito na cama —, sentia seu peso nos pés, pois em geral, tinha tamanho grande. E eu ficava desejoso de me sentar para ver o presente. Mas não o fazia porque desgostaria mamãe se eu acendesse a luz para olhá-lo; além disso, eu pensava de mim para comigo o seguinte: será mais gostoso ver o presente amanhã cedo e agora continuar a dormir, com a ideia de que ele já chegou e é pesadão, como estou sentindo.

É melhor fruir esta expectativa e amanhã ver o presente, do que destruí-la, brincando excitado com o presente, e depois não conseguir mais dormir. Então eu me afundava nas cobertas e continuava repousando, embalado pela certeza de ter recebido o presente.

Uma manhã de alegria plena

Na manhã seguinte havia o melhor dos acordares para mim. Assim que manifestava alguns sinais de haver despertado, ocorria o que não se dava em nenhuma outra manhã do ano — exceto se eu estivesse doente: mamãe estava — com um olhar que, ao longo de minha vida, nunca recebi igual — aos pés de minha cama, vendo meu acordar, deleitando-se com o prazer que eu iria ter com o presente dado por ela. Porém, mamãe não sabia que para mim a alegria dela era um maior presente do que aquele colocado aos pés da cama. Quando percebia que eu estava inteiramente acordado, ela estendia os braços e dizia: “Filhinho!” E eu, antes de ver o presente, ia para os braços dela, porque sua alegria e a interpenetração de nossas almas valiam mais do que o presente concedido por ela. Ao mesmo tempo em que a abraçava, eu ia olhando para o presente e depois corria para apanhá-lo.

De todos esses presentes, nenhum deixou uma recordação mais profunda em minha alma do que um de grande valor não quantitativo, mas qualitativo: Um grupo de soldadinhos de chumbo, alguns montando bonitos cavalos; tinham couraças de aço e chapéus com a crina caída, e todos com a espada na mão. Esses soldadinhos me deixaram encantado.

E já de manhã havia a distribuição de algumas boas iguarias, pão de mel com manteiga, deixando as mais saborosas para serem servidas à noite. Depois eu ia para o quarto de brinquedos.

Junto à árvore de Natal

A certa hora da noite, todos os primos estavam em nossa casa, com trajes de festa, que eram então roupas de gala para criança, e não esses vestidinhos de hoje em dia. E todos com modos mais respeitosos e elegantes uns com os outros, porque estavam em trajes de gala.

Afinal, aparecia mamãe anunciando que a festa de Natal ia começar. Então íamos para uma saleta onde nos reuníamos, dávamos-nos as mãos e descíamos uma escada externa da casa para o andar térreo, que dava diretamente para o jardim, onde havia uma árvore de Natal. Éramos umas vinte crianças, todas cantando o Stille Natch, e vínhamos trazendo uma imagem do Menino Jesus, que até hoje está em minha casa, a qual todos os anos mamãe adornava com vestidinhos diferentes.

Girando em torno da árvore, cantávamos canções de Natal, já sentindo o cheiro do chocolate com creme chantilly, com o qual iam se enchendo as xícaras; e também o do pinheiro que, ao ser um pouco queimado por algumas velas, deitava um perfume de resina especial, próprio do Natal.

Em tudo isso havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia travessura, peraltice; todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia emanar das imagens do Menino Jesus, de Nossa Senhora, de São José e, naturalmente, do boizinho e burrico que em todo presépio não podem faltar.

Essa alegria era algo que não sei exprimir. No fundo, provinha da idéia do Puer natus est nobis — foi-nos dado um Menino —, e participava da felicidade do Céu. Realizava-se como que a repetição do próprio nascimento de Jesus, e sentíamos estar vivendo as graças do primeiro Natal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)
Revista Dr Plinio 141 – Dezembro de 2009

O “canticum novum”

Quais as graças, as cogitações, a poesia e os cânticos que caracterizarão os Natais no Reino de Maria? A este respeito Dr. Plinio tece belos e inéditos comentários.

Gostaria de tratar de alguns aspectos do Natal a partir de conjecturas a respeito de como seria a música de Natal no Reino de Maria. Sobre isso haveria diversas hipóteses que se entrecruzam.

Uma canção natalina que abrangesse desde o Nascimento até a Ascensão de Jesus

A mim pessoalmente agradaria uma música que considerasse o mistério do Natal relacionando-o com o futuro do Menino Jesus. Assim, em determinado momento, desenvolvesse algo sobre a vida contemplativa d’Ele com Nossa Senhora durante os trinta anos vividos em Nazaré. Depois, a dor da despedida, a vida pública, Paixão, Morte, Ressurreição, glória no Céu. Terminando, por exemplo, com esse pensamento: se os Anjos cantaram “glória a Deus no mais alto dos céus e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Lc 2, 14), o Homem de boa vontade por excelência foi Ele, o Homem-Deus. Ninguém teve boa vontade como Ele, em nenhum sentido, nem de longe. Logo, a glória d’Ele não se iguala à de ninguém. Os Anjos, quando entoaram “glória a Deus no mais alto dos céus”, cantaram a Ele enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade também. E quando cantaram “paz na Terra aos homens de boa vontade”, glorificaram-No enquanto trazendo para a Terra a possibilidade da verdadeira ordem e, com esta, a verdadeira paz.

Depois a luta d’Ele e a Ascensão ao Céu, porque sendo Ele o Homem de boa vontade por excelência que realizou tudo quanto devia realizar, teve uma glória incomparável no Céu. Seria, portanto, uma música muito mais longa do que simplesmente o Stille Nacht.

Cântico do inocente, do penitente, do pecador e do guerreiro

Eu também imaginaria de bom grado canções natalinas para estados de alma diferentes. Então, para a alma inocente que, imersa neste mundo e dentro da luta, tem receio de ver a sua inocência comprometida, agradece a Deus a inocência que tem e pede que essa inocência seja de aço até o fim.

O cântico de Natal da alma inocente seria diferente do cântico da alma penitente. O penitente arrependido, humilde, de cabeça baixa, se acerca da manjedoura e canta a São José e a Nossa Senhora. A São José dizendo não ser digno, mas pedindo ao Santo Patriarca que obtenha da Santíssima Virgem para ele um olhar e uma compaixão. Seguem-se a resposta afirmativa de São José e um apelo a Nossa Senhora. A Mãe de Deus atende e o recebe maternalmente.

O pecador arrependido então pede a mediação d’Ela para chegar até o Menino Jesus. Sentindo-se indigno de entrar na gruta, canta do lado de fora, dizendo: “Até o bafo do boi é digno de estar ali dentro, porque está na ordem de Deus. Mas eu sou o pecador que rompi em determinado momento essa ordem. Portanto, não sou digno de aproximar-me dali. Onde os animais entram eu não posso entrar. Mas se Vós, minha Mãe, me cobrirdes com o vosso manto, eu ouso tudo!” Ela o cobre, e coberto pelo manto, ele recita um Confiteor e recebe do Menino Jesus um gesto, que pode ser interpretado como um movimento instintivo de uma criança, mas na realidade tem o sentido de um perdão. O penitente se retira agradecido.

Outro poderia ser o cântico natalino do pecador atolado no pecado. Que gostaria de sair desse estado, mas não o quer com toda a eficácia. Mas ao menos de longe, de fora, canta implorando a Nossa Senhora enviar-lhe um mensageiro que leve a Ela uma súplica dele. Aproxima-se um passarinho, e o pecador põe a mensagem no bico da ave.

A súplica é entregue, e nela ele diz não ser como o pecador anterior que tendo rompido com Deus, rompeu depois com o pecado. Aquele, quando entrou na gruta, após reconhecer que não merecia estar onde até o boi e o burro eram dignos, já estava reconciliado com Deus. Este, entretanto, não é nem o pecador arrependido nem o boi: ele é a serpente, pois se encontra em estado de pecado mortal. Está carregado de pecados, mas tem tristeza e esperança, e implora de longe a Nossa Senhora, cujo pedido pode obter de seu Divino Filho que um aceno de mão remova as montanhas internas do pecado na sua alma e faça dele um homem que, afinal, se arrependa e se entregue a uma vida de penitência.

Quando o pecador se aproxima de Nossa Senhora, o Menino Jesus sorri, senta-Se e abre os braços. Diante desse gesto, ele pede perdão, é perdoado e sai contrito.

Poderíamos imaginar também o Natal do guerreiro, do combatente, do cruzado aos pés do muro de Jerusalém. Viriam as objeções: “Natal é festa da suavidade, da concórdia, não entra em considerações de guerra.” Mas se essa guerra é lícita, por que não cabe um lugar para ela aos pés da manjedoura onde está o Menino Jesus?

Seriam, portanto, cânticos destinados a vários estados de alma, para dar ânimo aos mais miseráveis como aos mais fortes.

Acréscimo legítimo às comemorações natalinas

Contra tudo quanto acabo de dizer há uma objeção muito séria. É a defesa do não se acrescentar nada ao Natal como atualmente é comemorado. O Natal é uma festa com um significado próprio, preponderante, não de um Deus presente no mundo e já exercendo a sua missão. Mais tarde Ele perdoará os pecadores, moverá as montanhas. No momento está existindo só para Nossa Senhora e São José, e deve ser considerado apenas assim. Por causa disso, é ordenado que os espíritos retos fruam a beleza específica do Natal e mais nada. Misturar todos esses pensamentos seria tirar a especificidade dessa festa. A liturgia da Igreja tem outras comemorações reservadas ao pecador, por exemplo, a Paixão de Nosso Senhor.

O Natal é a festa da candura, da infância, da aliança de Deus com o homem, encarnando-Se e descendo à Terra. É a festa da distância fabulosa no caminho percorrido pelo Verbo de Deus, estando eternamente na Santíssima Trindade, convivendo com as outras duas Pessoas num relacionamento perfeito e ininterrupto, sem começo nem fim, e que Se faz Homem, vem para a Terra, e está ali, no Presépio, entre Maria e José. Isso tudo é tão alto e tão cheio de significado que não se deve misturar com outras considerações.

A meu ver, essa defesa tem seu sentido, mas de fato o Natal existiu não só para que Nossa Senhora, São José, os pastores e os Reis Magos contemplassem o Divino Infante, mas também todos os outros homens. Portanto, o Natal enquanto vivido por todas as outras gerações que, em certo sentido, se aproximam do Menino Jesus merece essa ampliação.

Daí não vem uma censura ao Natal atual, mas o desejo de algo a mais. Ouso esperar que no Reino de Maria esses argumentos sejam ponderados por quem de direito possa realizar esse acréscimo. Temos assim uma ideia apenas esboçada, porque nunca aprofundei esse pensamento, de como seriam os vários Natais do Reino de Maria.

Sacralidade dos Natais de outrora

A isso acrescento um elemento que me parece decisivo dentro do assunto. Havia nos antigos Natais um traço que eu alcancei: uma sacralidade da qual as gerações mais novas não podem fazer ideia.

No meu tempo, nos dois, três dias que precediam o Natal, já um certo aroma, uma certa atmosfera natalina começava a envolver a São Paulinho. No Centro velho, o triângulo formado pelas Ruas Líbero Badaró, XV de Novembro e Direita, depois o conjunto de ruas em torno e dentro desse triângulo, havia lojas que vendiam brinquedos e expunham na vitrine um presepe. Esses estabelecimentos comerciais possuíam gramofones que tocavam músicas de Natal. Então, percorrendo a pé, por exemplo, a Rua Direita, de ponta a ponta ouviam-se as melodias natalinas.
Quando chegava a noite de Natal, as famílias todas começavam a ir em grupos para a igreja, devagarzinho, nas ruas vazias de qualquer gente que não fosse quem se dirigia para a Missa, na paz, naquele andar vagaroso de famílias que saem numa hora na qual costumam estar dormindo. Da igreja saía uma luz forte que iluminava a rua cada vez que se abria a porta, e lá dentro estavam começando a cantar. Em certo momento batia o sino e começava a Missa.

Tinha-se a sensação de uma graça vinda de uma altura, mas de uma altura…! Graça de uma qualidade tal que enchia a pessoa de duas disposições de espírito aparentemente incompatíveis, mas que convivem maravilhosamente: a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e a doçura de quem recebe uma misericórdia sem limites. Talvez de nada da minha infância eu tenha tantas saudades quanto desse aroma e dessa graça de Natal.

A graça de Natal no Reino de Maria

Como será essa graça no Reino de Maria? Estou certo de que ela se reapresentará. Porém, ninguém pode prever qual vai ser sua magnificência e esplendor. Lendo o que São Luís Grignion escreve a respeito desse assunto, notamos que ele prevê em palavras magníficas a vinda do Reino de Maria, mas não o descreve, porque tem qualquer coisa superior a tudo quanto poderíamos imaginar.
É compreensível, pois o tormento dos justos na época em que estamos é superior a tudo quanto poderíamos conceber. E se esse foi o tormento dos justos, foi também o sofrimento de Maria, que previu e padeceu com tudo isso. Portanto, a um tormento sem proporções com nada deve seguir-se uma glorificação e um gáudio sem proporções com nada.

Eu pergunto: Aos que formos fiéis até a hora do Reino de Maria, não é verdade que a alegria do primeiro Natal deverá ser com graças que ninguém imagina? Mais ainda: às vezes tenho me perguntado se o primeiro dia do Reino de Maria não será um dia de Natal. Quer dizer, na véspera o demônio é derrotado, seu reino acaba e os Anjos levam umas tantas horas para limpar a Terra dos vestígios dos pecadores. A própria natureza torna-se diferente. Tem-se a impressão de que do alto do céu, mas também do fundo da terra saem bênçãos, evolam-se graças, é tudo tão diverso… É a primeira noite de Natal, nasceu o Reino de Maria! É uma possibilidade, não digo que seja certo. É uma hipótese entre outras, e é legítimo fazer hipóteses.

O nascimento de uma nova melodia natalina

Compreende-se como nascem as grandes coisas. Nessa noite uma pessoa dotada de dons poéticos, caminhando rumo à igreja, sussurra aos ouvidos de um companheiro: “Está vindo à cabeça uma poesia em louvor do Menino-Deus e de Nossa Senhora!” E recita um poema que ele mesmo não percebe ser admirável. Isso se espalha, e uma pessoa com dotes musicais começa a cantar, ali mesmo na rua. A certa altura, todos aprenderam a melodia e entram na igreja entoando esse cântico.

Nasceu mais uma música natalina para todos os séculos. O Anticristo, quando vier, ainda encontrará essa canção sendo entoada. Os últimos fiéis, na escuridão de alguma catacumba, ainda cantarão a mesma melodia no último Natal da História. Qual será a surpresa deles quando perceberem que alguém canta muito melhor do que eles essa música, do lado de cima da terra. Eles ficam comovidos e delegam alguém para subir, pé ante pé, e ver o que está acontecendo. Ele volta correndo e extasiado: são os Anjos que estão cantando no céu!

Um gênero de poesia livre da rima e da métrica

Como serão essa música e essa poesia? Vem aqui uma conjectura, mais uma vez toda ela pessoal: A poesia como ela existe hoje, e mesmo como os clássicos romanos e gregos a conheceram, eu admiro muito, é muito bonita. Mas ela tem qualquer coisa que me dá a impressão do que sentiria um homem ao usar um colete para corrigir a desvio na espinha dorsal ou algo semelhante. Aquele sistema métrico, aquela rima que deve bater com a outra… Parece-me que o pensamento e o sentimento ficam meio algemados dentro daquilo.

E eu gostaria de imaginar um gênero de poesia liberta desses entraves, e que fizesse exprimir toda a sua beleza sem a obrigação desse pesadelo da rima e da métrica. Eu, tão desconfiado com a espontaneidade, nesse ponto advogo uma certa espontaneidade. Assim, eu imaginaria algum gênero de composição que fosse poético muito mais pelo pensamento, pelo sentimento, do que pela forma literária. Como seria isso? Também não sei. A canção de gesta tem um pouco disso.

O verdadeiro espírito poético e o “canticum novum”

Como se forma o espírito poético? Nós estamos tão deformados pela Revolução que quando se fala de espírito poético vem à mente a ideia da canção sentimental, com a eterna lenga-lenga do rapaz que queria a moça e ela não queria o rapaz ou vice-versa. Então sai um choro mole, triste, que por vezes dá numa reconciliação, e fica no puro choro e acabou-se. É a última lágrima, o último ponto final da poesia.

Não é isso. O espírito poético verdadeiro é de quem não tem na alma esses vapores tóxicos do sentimentalismo. É uma alma limpa do vício da pena de si mesmo, e que não quer cantar as suas aspirações, a sua vida interna, mas os ideais para os quais vive. Quer dizer, é o cântico da alma generosa que compreende o elevado, o sublime, e quer cantar a sublimidade. Uma poesia onde possivelmente não figure sequer a palavra “eu”, nada egocêntrica. Não canta a sua dor, canta aquilo que adora.

Quem cantou o grande Carlos, quem compôs a canção de gesta? Discute-se. Uma das hipóteses é que um anônimo tenha cantado pela primeira vez, e depois as multidões começaram a repetir, acrescentando episódios, trovas, etc. É quase um imenso autor anônimo que não se preocupou em deixar seu nome para a posteridade, mas desinteressadamente se preocupou em cantar os pares de Carlos Magno. Essas são as almas capazes de poesia.

Na América Latina há mil criatividades à espera da hora da graça, e que Deus não quis que se gastassem na época da Revolução. Estão reservadas para glorificar a Mãe d’Ele quando Ela reinar. Serão o canticum novum(1) que este continente, descoberto pela Europa e povoado muito preponderantemente por filhos daquelas terras, acrescentará ao lindíssimo, ao admirável canticum antigo que a Europa entoou, e que ela conservará e legará para o futuro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/1/1989)
Revista Dr Plinio 237 – Dezembro de 2017

1) Do latim: cântico novo.

O menino do tambor

Há mais de dois mil anos, nos imensos e longínquos arenais da Arábia, vivia um menino muito pobre, que possuía tão somente um pequeno tambor. Órfão de mãe desde muito pequeno, vivia sozinho com seu pai, guardião de um oásis, cujas águas eram abundantes e cristalinas.

Numa fria noite de inverno, enquanto o menino tocava seu tambor, apareceu no céu uma estrela que brilhava mais do que todas as outras. Contemplando o luminoso astro, logo compreendeu que ele prenunciava um feliz e grandioso acontecimento.

Na manhã seguinte, o menino divisou no horizonte uma longa fila de homens e animais. Percebeu não se tratar de uma caravana comum, pois até o menor dos servos vestia-se ricamente. No fim do longo cortejo, sentados no alto de vigorosos dromedários, vinham três nobres senhores, vestidos com trajes coloridos e turbantes de seda. Um deles era um ancião de longa barba, outro um homem maduro de vivos olhos e ruivos cabelos, o terceiro um vigoroso árabe de pele escura. Dir-se-ia que os três eram poderosos reis.

Ao se aproximar a caravana, curioso, o menino dirigiu-se aos reis: “Senhores, perdoem meu atrevimento, mas a que se deve a presença de tão ilustres pessoas nestas desoladas paragens?”

Um dos reis sorriu e explicou-lhe que vinham de muito longe e que seguiam uma estrela que haveria de guiá-los até o local onde nasceria o Messias, o Salvador da humanidade, anunciado pelos profetas. “Então, tomamos ouro, incenso e mirra e pusemo-nos a caminho, a fim de prestar-Lhe homenagens”.

O menino sentiu um irresistível desejo de ir conhecer o Messias prometido e, com a permissão de seu pai, juntou-se aos viajantes.

Alguns dias depois, a caravana fazia sua entrada em Belém de Judá e numa humilde casa, sobre a qual se detivera a milagrosa estrela, os três nobres senhores encontraram um inocente Menino nos braços de uma bela Senhora. Logo compreenderam que aquele lindo Infante era o esperado Messias. Prosternaram-se, adorando-O e Lhe ofereceram ouro, incenso e mirra.

Mas, eis que ouve-se o rufar de um tamborzinho e uma harmoniosa e pueril voz:

Eu quisera pôr a vossos pés
Algum presente que vos agrade, Senhor!
Mas Vós sabeis que eu sou pobre também,
E não possuo mais do que um velho tambor!

Era o “menino do tambor” que cantava para o Salvador uma humilde e bela canção, acompanhada pelos graves acentos de seu tambor. E a face do Menino Jesus iluminou-se com um belo sorriso.

Felix Cæli Porta

Na hora bendita entre todas as horas, de um modo só conhecido por Deus, a Mulher bendita entre todas as mulheres, a Feliz Porta do Céu e sempre Virgem — como A exalta o cântico “Ave Maris Stella” — torna-Se, efetivamente, Mãe de Deus, pois a maternidade se completa quando Maria Santíssima dá ao mundo o Filho que Ela gerou.

Há uma belíssima música de Natal que canta de modo muito expressivo, como uma melodia vinda do alto: “Aparuit! Aparuit!” Afinal, apareceu na manjedoura o Verbo de Deus encarnado!

(Extraído de conferência de 2/7/1995)

Stille Nacht

O Stille Nacht, a bela música alemã composta no século XIX, passou a ser a canção de Natal por excelência. Ao ouvi-la, tem-se a impressão de que o coro está na gruta de Belém e canta emocionado, mas canta baixinho para não acordar o Menino…

 

O comentário, evidentemente, abrange uma interpretação do Natal, visto com uma categoria extraordinária pelo povo alemão.

Há vários descendentes de alemães aqui, que poderiam falar a esse respeito com mais autoridade do que eu… Existe uma característica não muito própria ao latino, mas sim ao alemão: conceber as coisas de tal maneira que tudo quanto é altamente sacral vem acompanhado de muita calma e muito recolhimento.

A concepção italiana da noite de Natal

Um presépio elaborado, por exemplo, em certas regiões da Itália tem as figuras tomando atitudes muito enfáticas, tais como: o Menino Jesus, deitado na manjedoura, estendendo os braços a Nossa Senhora, a qual está debruçada sobre o Divino Infante, numa atitude de ternura profunda, mas borbulhante, que tende a se manifestar em gestos, e só falta falar.

Se o artista conseguir dar a Nossa Senhora e ao Menino Jesus uma impressão por onde alguém diga “Só falta falarem!”, ele fica encantado, porque o falar, se manifestar, é o auge da realização da cena. E São José — ao qual cabe, no diálogo entre Maria Santíssima e o Divino Infante, um papel mais modesto porque ele é apenas o pai jurídico do Menino Jesus — tem também uma atitude, que se não falta apenas falar, falta somente chorar ou sorrir, conforme a interpretação. Mas ele está se exprimindo.

É a ideia de que a emoção religiosa deve exprimir-se por meio de grande vivacidade. E, como é próprio a toda vivacidade, esta, por sua vez, precisa manifestar-se por pensamentos e palavras; os pensamentos devem ser vivos e as palavras enfáticas, calorosas.

A concepção alemã

É exatamente o contrário a concepção alemã da noite de Natal. Em todos os povos, a comemoração do Natal, para ser sacral, tem que produzir nas almas uma impressão profunda. Em certas partes da Itália se entende que essa sensação profunda deve manifestar-se, exteriorizando-se.

Mas para a mentalidade alemã, porque é profunda, tal impressão não deve expandir-se; estando no fundo da alma, o melhor modo de exprimi-la é o silêncio, o recolhimento e a calma.

 Quer dizer, enquanto para uns o auge da expressão é a palavra e os gestos, para outros, pelo contrário, esse auge está numa forma de silêncio e de inação, que dão a conhecer profundidades insuspeitadas da alma humana; e o próprio silêncio indica a importância que a pessoa dá ao assunto, para exprimir tudo quanto ela pensa. Trata-se de uma posição de alma menos exclamativa do que meditativa, elucubrante — eu diria quase filosófica ou teológica —, recolhida.

E a calma não é, entretanto, meramente científica, mas profundamente enternecida. Uma ternura indicando um afeto tão grande que prefere calar-se, a falar.

Então, se alguns têm a eloquência da palavra e do gesto, outros possuem a eloquência do silêncio e do recolhimento. São duas posições diferentes. Muitas vezes as coisas grandiosas, para o alemão começam na imparcialidade, na serenidade, piano, pianino, devagar, para acabar, em certas ocasiões, na barulheira wagneriana. Enquanto que no temperamento latino, do qual, sob alguns aspectos, o italiano — pelo menos de certas partes da Itália — é a expressão mais característica, tudo já se inicia no grande estilo.

Qual das duas posições é melhor? Compreendo que os italianos achem uma coisa, os alemães outra.

E a posição brasileira qual é? Entender perfeitamente ambas as posições e degustar tão bem uma quanto outra. É o que sinto em mim. Eu, como brasileiro — ainda mais tendo a loquacidade do nordestino nas minhas veias —, certamente falaria mais do que o alemão, e estaria um pouco aquém do italiano.

São variedades regionais, através das quais Deus quer ser adorado por cada povo. Não se trata aqui de escolher, mas de contemplar a beleza das variantes. Temos uma variante alemã. Não sei se existe alguma canção de Natal italiana. As francesas não possuem a beleza da alemã. Os Noëls franceses são muito bonitos, mas não como o Stille Nacht, que é propriamente a canção de Natal. A nós compete apreciar a música como vai ser apresentada aqui, característica de uma noite de Natal alemã.

O que o alemão sente na Noite Sagrada

O que o alemão sente na Weihnacht, na Noite Sagrada?

Uma grande calma, sobretudo numa cidadezinha da Alemanha onde foi composta a Stille Nacht. Houve uma dificuldade qualquer na paróquia, em razão da qual não puderam cantar a música sacra tradicional. Então, a pedido do vigário, solicitaram ao professorzinho secundário do lugar que compusesse uma musiquinha para a noite de Natal. E ele, sem julgar estar fazendo uma coisa genial, compôs uma canção que ficou a música de Natal do mundo.

Bem depois, pela difusão dessa canção, esse professor ficou célebre. Conserva-se a casa dele, que é visitada por turistas. Compreende-se muito bem o Stille Nacht, Heilige Nacht vendo fotografias da cidadezinha na neve, os tetos, em forma de cone, branquinhos, as casinhas marrons, tudo parecendo feito de pão de mel para se comer. E uma igrejinha como que feita de marzipã, um brinquedo de criança, como são as aldeias alemãs.

Imaginemos o caminho que conduz para a igreja, um pouco em zigue-zague, feito sobre a neve e bordejado de neve de ambos os lados, as casinhas todas com luzes acesas e suas janelinhas com renda e bem cuidadinhas, como os alemães fazem; o sininho que toca em certa hora e as famílias que aparecem todas agasalhadas — cada indivíduo parecendo uma bolota de lã —, criancinhas que vêm em fila, carregando lanternas — porque esses felizardos não têm iluminação pública. 

A neve, sem fazer barulho, cai em flocos ligeiros. Um imenso silêncio, recolhido, de uma noite sagrada, onde todo o mundo pensa no silêncio que cercava a gruta e a manjedoura. Meia-noite, Nossa Senhora e São José, sozinhos no estábulo. São José recolhido e Maria Santíssima num altíssimo êxtase; em determinado momento, não se sabe como, Nossa Senhora e São José ouvem um vagido: o Filho de Deus entrou no mundo, conservando intacta a Virgem, antes, durante e depois do parto. O maior fato da História, até então acontecido, se deu naquela manjedoura.

Nossa Senhora olha, pela primeira vez, a face de seu próprio Filho e se enternece extasiada; adora-O. São José não sabe o que dizer. Mas tudo é silêncio, eles não comentam nada, mas mil anjos ali estão em revoadas insensíveis. Sem que se ouça uma nota de música, mil músicas são entoadas dentro desse silêncio.

A união de alma da Virgem Maria com seu santo esposo atinge o auge em função do Menino, que nasceu d’Ela, mas sobre o qual São José tem um verdadeiro direito de pai, porque, como esposo, tem o direito ao fruto das entranhas da esposa. De maneira que sem ser o pai, ele tem o direito. Além disso, ele é da Casa de Davi e aquele Menino também o é.

Podemos imaginar o Divino Infante fazendo um gesto para São José, a adoração deste e a afabilidade com que Nossa Senhora lhe entrega o Menino Jesus, exercendo pela primeira vez a sua função de Medianeira.

Aquele silêncio só foi interrompido pela música dos anjos que, vindos do mais alto dos Céus, aparecem e comunicam aos pastores que nasceu o Menino-Deus. Essa música foi pastoril, quer dizer, com a tranquilidade, a candura, a inocência do ambiente pastoril.

Os pastores inocentes acordam e exclamam: “Que beleza!” E perguntam: “O que será?” Depois da explicação, eles começam a andar por extensões ligeiramente onduladas, numa daquelas noites brilhantes do Oriente Próximo, em que as estrelas aparecem num coruscamento quase excessivo para nossa sensibilidade de ocidentais. Uma maravilha! Um céu mais de Paraíso do que desta Terra. Chegam à manjedoura, e encontram Nossa Senhora e São José adorando o Menino Jesus. Tudo é silêncio, calma, harmonia, estabilidade. Temos a impressão de que, se lá estivéssemos, desejaríamos que aquela noite nunca mais terminasse, e por fim lá morrêssemos e fôssemos para o Céu.

O estado de espírito que Stille Nacht exprime

Foi esse estado de espírito — pastoril, angélico, sobrenatural, familiar, íntimo, de uma grande dignidade e um grande alcance metafísico — que a canção quis exprimir.

Vejamos alguns trechos dessa música.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!”: Noite silenciosa! Noite Santa!

“Alles schläft, einsam wacht”: Tudo dorme, só está acordado

“Nur das traute hoch heilige Paar”: O venerável e altamente santo casal

 

“Venerável e altamente santo casal” — a adjetivação é caracteristicamente alemã.

Nota-se na alegria do Natal uma ternura meio lírica, na qual existe certa compaixão. Dentro do festivo há uma tristeza, devido ao frio e à pobreza em que nasce o Menino Jesus. Mais do que isso: é uma tristeza prevendo a Cruz. Há algo da sombra da Cruz que se projeta sobre a noite de Natal. De onde uma ternura com compaixão para Aquele que veio, afinal de contas, para ser o Redentor, sofrer e morrer.

 

“Holder Knabe im lockigen Haar”: Um Menino com cabelos cacheados

“Schlaf in himmlischer Ruhe!”: Dorme numa tranquilidade celeste

 

A nota de tranquilidade está acentuada de todos os modos. Trata-se de uma serenidade do céu, onde se movem as estrelas; não é a modorra da Terra, do menino preguiçoso.

 

“Stille Nacht! Heilige Nacht!” : Noite tranquila! Noite santa!

“Hirten erst Kundgemacht”: Pastores, aos quais foi feito o primeiro precônio

“Durch der Engel, Halleluja”: O Aleluia dos Anjos

“Tönt es laut von fern und nah”: Faz-se ouvir alto, longe e perto:

“Christ, der Retter, ist da!”: Cristo, o Salvador, está aqui!

 

Nota-se muito a impressão de um problema que se resolveu, pois uma salvação veio à Terra.

 

“Stille Nacht! Helige Nacht!”

“Gottes Sohn, o wie lacht”: Ó Filho de Deus, que sorriso cheio de amor

“Lieb’aus deinem göttlichen mund”: Sai de vossos lábios divinos

“Da uns schlägt die rettende Stund”: E bate para nós as pancadas da hora da Salvação

 

Quer dizer, os lábios se movimentam num sorriso, como se fosse um relógio que desse o timbre da hora da Salvação.

 

“Christ, in deiner Geburt!”: Ó Cristo, no dia de teu nascimento!

 

Vemos que é uma canção muito simples, popular, mas de um sentido profundo. Feliz o povo onde a cultura está tão entranhada em tudo, que um homenzinho do interior, de repente, abre a boca e sai tal música de seus lábios!

A cultura não consiste em ter somente gênios, mas em estar tão disseminada que floresçam coisas dessas inesperadamente, nos vários degraus da sociedade.

Uma magistral lição de vida interior

Tratar-se-ia de perguntar se os meridionais, sobretudo os de aquém-Atlântico, com sensibilidade borbulhante, têm algo a lucrar com isso. Eu responderia que bastante.

Os povos muito intuitivos são por demais extrovertidos e, por isso, se tornam facilmente agitados. Esta calma convida para o recolhimento, a interiorização, a fim de perceber a voz da graça dentro da alma e não estar a toda hora prestando atenção no outro, mas sim em Deus.

Uma magistral lição de vida interior nos é dada por essa música.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/12/1973)

Revista Dr Plinio 153 (Dezembro de 2010)

 

Um Natal na São Paulo de outrora

Nas suas reminiscências do tempo de menino, Dr. Plinio se comprazia em recordar as celebrações natalinas vividas por ele na “São Paulinho” do início do século passado, e mais especialmente em seu próprio lar, sob o carinhoso e maternal olhar de Dona Lucilia…

Para descrever uma noite de Natal na pequena São Paulo daquela época, é preciso fazer uma distinção entre as comemorações nas casas e as que se faziam no centro da cidade.

Preparativos para a magna festa

Nas residências, quatro ou cinco dias antes já se começava a sentir a alegria própria dessa data. Grandes pacotes chegavam das lojas, acolhidos e “confiscados” sumariamente pelos adultos, furtando os assim da curiosidade das crianças. Eram presentes, objetos para a árvore de Natal, enfeites destinados a chamar a atenção para o Nascimento do Menino Jesus, de um modo deleitável.

Além disso, nós, os pequenos, víamos as senhoras sair à rua e retornar com diversos embrulhos, não sem procurarmos nos lembrar do que havíamos pedido a São Nicolau que nos trouxesse. E este sempre os mandava o anelado presente!

Na verdade, não me recordo de uma só vez em que São Nicolau tenha trazido menos do que eu solicitara, e em várias ocasiões enviou mais do que o esperado por mim. Meu São Nicolau não era rico. Possuía apenas o suficiente para atender as minhas petições. Porém, era muito afetivo, e se percebia que ele fizera algum sacrifício para, de vez em quando, superar a minha própria encomenda!

A grande festa se aproximava, e um aroma de pão de mel, mesclado com o de chocolate, invadia as dependências da casa.

As crianças, que naquela época formavam um “submundo”, trocavam telefonemas — nós ligávamos para os nossos primos, e vice-versa —, contando as “últimas novidades” dos preparativos.

Ambiente da véspera e Missa do Galo

O dia 24 já amanhecia completamente diferente. Alguns cômodos estavam interditados para os meninos, os quais eram relegados para o jardim, se o clima o permitisse. Se não, para um quarto de brinquedos ou outro de crianças, onde devíamos passar o tempo. A partir de certo momento, nem neste último podíamos entrar, pois ali também estavam aprontando delícias.

Às 5 ou 6 horas da tarde, o movimento das ruas começava a declinar. Nas residências se acendiam todas as lâmpadas, o que conferia um ar mais festivo aos ambientes. Às vezes, as salas da frente — em geral, de cerimônia, e habitualmente fechadas nos dias comuns — tinham suas janelas abertas de par em par, permitindo ao cintilar das luzes refulgir no exterior, e aos transeuntes perceberem uma ou outra árvore de Natal erguidas lá, cá, e acolá.

Por volta das 9 horas da noite a expectativa da Missa do Galo era tão viva que a molecada na rua começava a bater com paus nos postes (então de ferro e ocos por dentro), ocasionando muito barulho, numa rudimentar imitação dos sinos das Igrejas. Estas começavam a se abrir a partir das dez horas, e logo chegavam os fiéis que desejavam obter um bom lugar para participar da cerimônia.

Aos poucos, ia se formando o público todo, e o templo sagrado se enchia. Em certo momento, o sino se punha a tocar para festejar o Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Todos se levantavam, cânticos natalinos eram entoados. Revestido com paramentos solenes, o sacerdote entrava portando a imagem do Divino Infante, a qual, depositada no Presépio, era venerada pelo público.

Terminada essa homenagem, o padre se dirigia para o altarmor e dava início à celebração da Missa do Galo.

A comemoração em casa

Ao voltarmos da Igreja, as crianças eram reunidas numa ou duas salas da parte da frente da casa, intensamente iluminadas. Nós, vestidos de gala, aguardávamos em meio a animadas conversas, enquanto terminavam os últimos arranjos para a festa. Afinal, quando tudo se achava pronto, nossos pais e as governantas nos vinham buscar. Era então organizada uma descida pela escadaria externa da casa, passando pelo jardim, todos de mãos dadas e cantando músicas de Natal — bem entendido, em alemão.

Em seguida, entrávamos no quarto de brinquedos, agora completamente transformado: no centro, erguia-se uma grande árvore de Natal, toda recoberta de enfeites, e em cujo topo brilhava uma estrela prateada ou dourada, ornada com uma figura de Anjo. Aos pés da árvore, um lindo e tocante Presépio.

Nos cantos do quarto estavam dispostas as mesas com toda espécie de iguarias. Mas, recomendação formal: “não comer nem beber nada antes de ter rezado para comemorar o Nascimento de Nosso Senhor”. Eu, sempre afeito às delícias do paladar, procurava ver o que haviam preparado. Não ousava me desviar do meu lugar (mamãe não o toleraria!), mas, de quando em vez, lançava furtivas olhadelas para aqueles lados…

Dando prosseguimento às comemorações, todos se ajoelhavam junto ao Presépio e Dona Lucilia recitava algumas orações, creio que compostas por ela na hora. Eram dirigidas ao Menino-Deus, a Nossa Senhora e a São Jo-sé, pedindo abundantes graças para cada um de nós e para a família inteira. Ela rezava de modo suave, com muita seriedade e piedade profunda, procurando nos incutir os mesmos sentimentos que a animavam.

Nenhuma criança se atreveria a soltar uma lamúria porque a oração se prolongava, nem ousaria se levantar para pegar alguma guloseima antes da hora. A ordem estava mantida pela simples presença de Dona Lucilia, de um modo irrepreensível. Mas, por via das dúvidas as Fräuleins vigiavam seus pupilos, e não fariam a mínima cerimônia em reprimir severamente aquele que desobedecesse.

Após a recitação das preces, todos se levantavam, davam-se novamente as mãos e se punham a cantar e a girar junto à árvore de Natal. Pouco depois era servido o lanche.

De longe chegava o som dos sinos bimbalhando. De longe, também, vinham ecos de outras casas onde igualmente se cantava e outras crianças tinham o seu Natal. Quase nenhum barulho nas ruas. Toda a festa era das famílias, nos lares, voltada para o Menino Jesus.

Mais delícias natalinas

O Natal ainda nos reservava algumas delícias. Uma delas, o repouso.

Terminadas as comemorações, os visitantes se retiravam para suas respectivas residências, e podíamos, afinal, descansar um pouco. Na casa voltava a reinar a tranqüilidade e um certo silêncio, posto que nós, meninos, juntos provocávamos uma tremenda barulheira. Agora éramos apenas minha irmã, uma prima que morava conosco, e eu.

Subia para meu quarto e, sob o ordenativo olhar da Fräulein, aprontava-me para dormir e me deitava. Uma vez na cama, pensava: “Ah! O repouso! Como é gostoso descansar! Como o travesseiro está bom, a roupa de cama fresca, a fronha aconchegante, o colchão macio!”

Mas, eu sabia que algo de melhor me esperava. Com efeito, na noite de 24 para 25 vinha São Nicolau, e deixava sobre os nossos sapatos, ou aos pés da cama, os presentes que nos eram destinados. Como já disse, aqueles mesmos que havíamos pedido. São Nicolau era muito exato…

Não será difícil imaginar como eu ficava na espreita de ver os meus novos brinquedos. Era-me muito agradável acordar de madrugada, pela expectativa, e sentir o peso dos presentes colocados junto aos meus pés. Eu dizia para mim mesmo: “Vou beber aos golinhos esta boa surpresa. Sei que acordarei várias vezes durante a noite, mas quero sentir o peso delicioso dos presentes a cada despertar, e depois adormecer de novo. Quando amanhecer, então será a hora de eu me lançar sobre os embrulhos!”

“No dia seguinte à festa de Reis a árvore era desmontada. Mais um Natal havia terminado…”

E assim, na manhã do dia 25, as alegrias natalinas se redobravam, diante dos maravilhosos presentes que tanto desejávamos.

O “enterro dos ossos” e o “Natal dos Pobres”

Também nesse dia havia o que no meu tempo se denominava “o enterro dos ossos”. Tratava-se do costume de comer o que sobrara da ceia, mas conservando uma parte importante desses restos, tendo em vista o “Natal dos pobres” celebrado no dia de Ano Bom. Então, os pacotes de alimentos que não tinham sido utilizados, o que ainda era novo e podia ser oferecido a uma criança indigente, separava-se e guardava-se para aquela ocasião, acrescidos de mais iguarias que se mandava comprar.

Na noite de 31 de dezembro procedíamos ao mesmo cerimonial de Natal, a descida da escada até a sala adornada para a ceia, etc., sob o olhar dos pobres. Estes entravam conosco na sala, acompanhavam as orações, e em seguida nós os estimulávamos a terem liberdade de se servir do lanche. Como, naturalmente, eram muito acanhados, lhes dizíamos: “Pegue isto, tome aquilo”, etc., para deixá-los à vontade.

Dessa vez, as crianças da família estavam severamente proibidas de comer mais do que os pobres. A comemoração era deles, não nossa, e por isso devíamos nos contentar com o que sobrasse. A árvore de Natal permanecia no quarto de brinquedos até a festa de Reis. No dia seguinte, acontecia o que sempre sucede com as coisas neste mundo: era o fim. A árvore era desmontada, mamãe guardava os enfeites e o Presépio.

Mais um Natal havia terminado…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 69 – Dezembro de 2003