Noite santa, Silenciosa…

Ao longo dos séculos da história cristã, as noites de Natal têm recordado aos homens e lhes feito compartilhar as bênçãos inefáveis do augusto momento em que o Redentor nasceu para o mundo. Sobretudo antes das festas laicas e comercializadas de hoje, as celebrações natalinas possuíam um néctar, uma poesia, um encanto, um discernimento de espírito por onde todos como que sentiam e conheciam a graça de Deus e de Cristo que desce como um orvalho do mais alto do céu, ou seja, do claustro sacratíssimo de Nossa Senhora, e sem transgredir a virgindade intacta da mãe, entra nesta terra. A Virgem teve um filho e a humanidade se extasia!

Dir-se-ia revestido de completa beleza o cenário dessa noite na Terra Santa, iluminada por estrelas reluzentes como nunca, povoada de Anjos que anunciam o nascimento do Salvador. Entretanto, como lucra em formosura o Natal, quando considerado nas manifestações de piedade e de inocência com que o festejam os povos germânicos! Imagine-se a igrejinha, a paroquiazinha toda coberta de neve, com o relógio iluminado por dentro, indicando 10 para a meia-noite; os aldeões que se aproximam com os tamancões grandes, porque a neve enche o caminho, e ainda cai aos flocos. A igreja, bem aquecida, acolhe generosamente os seus fiéis que entram depressa e logo se acomodam naquele pequeno palácio do Menino-Deus.

Ao longe, as casinhas da aldeia espargem cintilações douradas através de suas janelas, pontilhando de luz o imenso manto de neve com que se veste a natureza. Das chaminés escapam tufos de fumaça: é a festa de Natal que já está preparada, a lareira acesa, as suculentas, atraentes e substanciosas delícias da culinária alemã postas no forno, os presentes junto à esplendorosa árvore montada na sala principal, enfim, tudo pronto para as santas alegrias que se seguem à jubilosa celebração litúrgica.

Esses vários aspectos constituem, dentro da inocência da neve, um quadro só, completado pelos sentimentos da canção natalina por excelência, o “Stille Nacht”.

“Stille Nacht! Heilige Nacht!Alles schläft, einsam wacht Nur das traute hoch heilige Paar. Holder Knabe im lockigen Haar, Schlaf in himmlischer Ruh!”

Noite silenciosa, noite Santa! Tudo dorme. Solitário, está velando O nobre e altamente santo Casal. E o Menino de cabelos cacheados, Dorme em celestial tranqüilidade!

Composta no século XIX por um modesto professor austríaco, o mundo inteiro a adotou como a música do Natal. E desde então não se compreende um 25 de dezembro em que não se entoe, nos mais diversos países e nos mais diferentes idiomas, o “Stille Nacht” é o nosso “Noite Feliz”…

Por movimentos aos quais não é alheia a mão da Providência, o consenso popular soube compreender o significado mais profundo desta canção, e daí a indiscutível primazia dela sobre as demais melodias natalinas. Que significado?

No “Stille Nacht” existe em alto grau a ideia de que os Céus se abriram, e o Menino Jesus fez um percurso gigantesco para chegar até nós. Portanto, por trás da ideia da Encarnação, e como elemento necessário para se situar inteiramente a posição do homem em face do nascimento do Verbo, está a noção de um acontecimento fabuloso, desmedido, imenso, que se deu e se converteu em intimidade e amor. E, por causa disso, em ternura, o tempo inteiro maravilhada.

É a ternura diante das fragilidades de um Deus feito homem, diante das quais nós não temos nem sabemos o que dizer. De outro lado, porém, esse mesmo Deus é o Senhor do Universo, onipotente, eterno Juiz de toda a Criação. Portanto, num sublime paradoxo, é a ternura e a compaixão para quem é infinitamente mais do que nós, extremamente delicadas, envoltas num alto critério de sentimento para serem dignas de se apresentarem Àquele que de fato merece essa compaixão, mas que é Deus. Então é a piedade humana ao mesmo tempo admirativa e súplice, é o homem que tem pena fazendo um pedido ao Deus de quem tem pena… Outro paradoxo, outra grandiosa beleza!

Paradoxos e contrastes que despertam em nossas almas toda sorte de delicadeza de emoções. Ao lado da ternura e da compaixão, a reverência, a veneração, a submissão de todo o nosso ser ao Divino recém-nascido, e um deixar-se levar a subidas cogitações às quais esse acontecimento entre todos bendito nos convida. Além disso, a noção recolhida, humilde e enlevada do sublime, e um imenso agradecimento de quem recebe uma misericórdia sem limites, por nos sentirmos visitados e impregnados por todas as graças que Ele trouxe ao mundo, para a nossa salvação.

A todas essas boas disposições nos inclina a melodia do “Stille Nacht”, cujas notas e inflexões têm isso de próprio, que fazem um comentário do sentido da palavra cantada. Então, nos tons mais baixos, é a ternura vigilante que se debruça sobre a manjedoura, velando para que nada toque no Menino, que nada O moleste. Ele está chorando, mas a Mãe o consola… E com que incomparável desvelo!

Em outros momentos, porém, nas notas mais agudas, novamente ressalta a ideia de que este Menino de cabelos cacheados, é Deus. O Menino dorme. E a sua tranqüilidade, assim como Ele, não é da terra. É do Céu…

Plinio Corrêa de Oliveira

Diante do Presépio

“Deus, ei-Lo exorável e ao nosso alcance, feito homem como nós, tendo junto de Si a Mãe perfeita, Mãe d’Ele mas também nossa, …e São José, o varão sublime, que reúne em si a maravilhosa antítese das mais diferentes qualidades.

Ao contemplá-Los, nossas almas crispadas se distendem. Nossos egoísmos se desarmam.

A paz penetra em nós e em torno de nós…”

Plinio Corrêa de Oliveira

Nasceu-nos um Menino

“Puer natus est nobis, et filius datus est nobis: cujus imperium super humerum ejus: et vocabitur nomen ejus, magni consilii Angelus” — Nasceu-nos um Menino e um Filho nos foi dado; o império repousa sobre seus ombros e será chamado Anjo do Grande Conselho.

Sob o sopro do Espírito Santo, a Igreja canta o dom que Deus lhe fez. É a voz dela, o puro sol sem atravessar vitral algum. Música composta para ser entoada por todos os povos, de norte a sul, de leste a oeste da face da Terra. Em todas as latitudes e longitudes, eis a alma católica universal, serena, simples, repassada de significado e substância, exprimindo a alegria que se eleva diretamente  ao Céu, o recolhimento desprendido dos valores terrenos, o caráter profundamente religioso do nascimento de Cristo Jesus.

Plinio Corrêa de Oliveira

A Sabedoria do Menino Jesus na Manjedoura

Será que ao dirigir-se a Jesus Menino devemos fazê-lo como a uma criança sem discernimento? Ou como a Alguém dotado de extraordinária Sabedoria? Tal Sabedoria existe na alma de uma criança? O que pedir a Ele no dia do Natal? Com profunda piedade unida à doutrina, Dr. Plinio discorrerá sobre estas e outras questões.

Diante da proximidade da festa supremamente significativa do Santo Natal de Nosso Senhor, parece-me que deveríamos nos perguntar: Como devemos nos preparar para o dia de Natal? E, sobretudo, como prepararmo-nos para o momento culminante deste dia, a Santa Missa? E ainda como nos prepararmos para os dois momentos auges dentro dela, a Consagração, e a Comunhão?

Como preparar-se para o Natal

Para esta preparação há uma dificuldade. Creio existir em muitas pessoas a ideia, apresentada pela iconografia comum, de que ao adorar o Menino Jesus, adora-se uma criança com todas as suas características e, portanto, até mesmo com a inteligência e falta de discernimento próprias a todo recém-nascido. Torna-se assim difícil a adoração de um ente em relação ao qual não se tem nenhuma comunicação de pensamento; e que sendo verdadeiro Deus é também homem, e em sua natureza humana não tem a sabedoria, a inteligência e a penetração de espírito do homem adulto. De tal maneira que a fisionomia humana que nós temos representada diante de nós, não nos convida a uma comunicação de alma como diante de uma pessoa que começa a pensar e a refletir. Por isso, a meditação clássica que se faz diante de um presépio consiste em ver o Menino Jesus tão criança, tão pequeno, tão frágil, e estabelecer o contraste entre a imensidade de Deus e aquela pequena criatura na qual Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, com a qual Ele assumiu a união hipostática.

Jesus, apesar de menino, possuía toda a inteligência e discernimento

Então se faz geralmente uma meditação a respeito da humildade de Deus, ou do desejo extremo de nos salvar que levou Nosso Senhor a Se reduzir àquela condição de frágil criatura posta numa manjedoura. Esta ordem de ideias é muito boa, ao ponto de ter se tornado comum, talvez demasiado comum. É possível, portanto, que se queira para esse Natal uma ordem de ideias mais perfeita, ao menos ao nosso modo de ver.

Deveríamos então nos perguntar se a iconografia católica, que nos apresenta Nosso Senhor Jesus Cristo como uma criança sem discernimento, olhando para as coisas sem ver bem o que é que são, sem entender o que está em torno de si, se essas imagens correspondem a algo de verdadeiro e, portanto, se é verdade que Nosso Senhor Jesus Cristo tinha essa inteligência própria à primeira infância.

A isso se deve responder o seguinte: Nosso Senhor Jesus Cristo, de algum modo, realmente teve as várias idades pelas quais Ele passou. Portanto, possuiu verdadeira alma infantil, de adolescente, de moço e de homem maduro. Porém, isso não quer dizer que Ele, em sua infância, tivesse a fraqueza e a falta de discernimento próprias a este estado.

Sapientíssimo desde o ventre materno

Ensina a Teologia que desde o momento da Encarnação, ainda mesmo no ventre de Nossa Senhora, Jesus já possuía toda a inteligência e lucidez, sendo, portanto, uma criança sapientíssima, embora a manifestação de sua sabedoria se desse de acordo com o comum de uma criança. Portanto, ainda que inteligentíssimo, Ele era realmente uma criança.

Assim sendo, vê-se que a iconografia católica não erra, porém mostra apenas um aspecto da verdade. Com certeza, para aqueles que tratavam com o Menino Jesus, Ele deveria causar a impressão de uma criança sujeita às condições comuns de criança. Porque o milagre não podia aparecer n’Ele de um modo irrecusável. Mesmo em sua vida pública, Ele praticou numerosos milagres que não possuíam o caráter de evidência; eram milagres mais ou menos como os que se dão em Lourdes; claros o bastante para que uma pessoa de boa-fé possa crer, mas não tão manifestos que excluam a necessidade da Fé. Pois, se o Menino Jesus, posto numa manjedoura, começasse a falar e dissertar, como se fosse um homem dotado de uma sabedoria extraordinária, seria patente tratar-se de um menino inteiramente incomum, e a Fé teria que ceder lugar à certeza. Por isso, Ele possuía as aparências de criança, pois por humildade Ele quis respeitar o tempo necessário e ir gradualmente Se revelando.

Jesus veio ao mundo conhecendo todo o passado, o presente e o futuro

Quando consideramos Nosso Senhor Jesus Cristo Menino, devemos considerar este mistério: Sendo verdadeira criança, parecendo possuir apenas um discernimento pueril, tem em Si toda a sabedoria da qual a natureza humana é capaz. De maneira que aquela Criança na manjedoura tinha incomparavelmente mais inteligência, conhecimento e santidade do que tiveram todos os entes que existiram antes e depois d’Ele sobre a Terra.

Devemos por isso considerar que ali deitado na manjedoura, Nosso Senhor Jesus Cristo via tudo quanto deveria fazer na Terra. Ele conhecia tudo o que em torno d’Ele se passava. Pela vontade d’Ele, todas as coisas eram de forma tal qual Ele queria. Ao contemplar Nossa Senhora, o Menino Jesus sabia ser Ela como era por vontade sua. Enquanto Maria O adorava, Ele percebia claramente que por sua vontade Ela o fazia e correspondia a essa adoração com uma generosidade, uma bondade perfeita, que inundava Nossa Senhora de gáudio.

Por sua vez, olhando para Ele, Nossa Senhora conhecia o grau de discernimento e santidade que havia n’Ele. Travava-se assim um diálogo mudo, mil vezes mais eloquente do que um diálogo falado, diálogo maravilhoso e insondável, no qual a Virgem Mãe se comunicava com seu Filho que revelava a Ela os mistérios de sua sabedoria e santidade, deixando-A arrebatada de enlevo, e fazendo-A crescer cada vez mais em santidade.

No primeiro Natal, Jesus via todos os Natais da História

Talvez o primeiro diálogo de Nosso Senhor com Nossa Senhora tenha consistido em considerar o seguinte: Pela vontade de Jesus, que acabava de nascer, é que estavam naquele lugar pobre. Pela vontade d’Ele os pastores vieram visitá-Lo. Ele sabia, já ao encarnar-se, que deveria morrer na Cruz, e talvez naquele momento tenha oferecido ao Padre Eterno tudo quanto Ele faria nesta Terra, para o cumprimento de sua missão.

É preciso ressaltar que Ele não pensava apenas em sua vida terrena, mas pensava na missão da Igreja por todos os séculos. Ele tinha a intenção de que seu nascimento fosse o primeiro Natal, e conhecia todos os Natais que viriam depois, até o fim do mundo. Sem dúvida, sabia de todas as magníficas festas de Natal nas esplêndidas catedrais da Idade Média; nas belas e nobres festas, em tantas igrejas do “Ancien Régime”; nas comovedoras e veneráveis igrejas dos séculos passados.

Ele viu também os Natais modernos, carentes de sentido sobrenatural, e celebrados talvez com um estado de espírito oposto ao que se deveria ter. Mas, sem dúvida, viu com imenso agrado os que permaneciam fiéis ao verdadeiro espírito do Natal, mantendo-se verdadeiramente católicos apesar das perseguições, das lutas e das dificuldades.

Quem sabe se o último dia do mundo não será um Natal?

Ele previu os esplêndidos Natais do Reino de Maria, e conheceu também os tristes Natais no tempo em que a humanidade do Reino de Maria começará a decair inexoravelmente, talvez entrando pelo caminho que levará ao fim do mundo. Ele previu até mesmo o último Natal.

Como será este último e grandioso Natal?

Eu o imagino da seguinte maneira: poucos fiéis esparsos pela face da Terra, festejando sozinhos o verdadeiro Natal, talvez sem se conhecerem, e percebendo que nada mais pode durar porque a Igreja Católica está em seus últimos haustos…

Quem sabe se à meia-noite do dia vinte e quatro do último dezembro da História, quando tudo parecer completamente perdido, um raio percorrerá o céu do Oriente ao Ocidente, um terror se apoderará dos povos, os anjos aparecerão, a abóbada celeste se enrolará como um pergaminho, e virá o Filho do Homem, em toda a sua majestade, para julgar vivos e mortos. Talvez enquanto alguns poucos fiéis, ao som do “Stille Nacht”, comemoram o nascimento de Cristo Nosso Senhor, Ele volta à Terra em meio às glórias do Natal e, de repente, começa a surgir a aurora, os mortos começam a ressuscitar, os justos aclamam Nosso Senhor, Nossa Senhora aparece à frente do cortejo das almas eleitas, e começa o julgamento.

Pedir a graça de permanecer fiel ao verdadeiro espírito de Natal

E, se admitirmos essa hipótese, é conveniente deitarmos o olhar para esses últimos irmãos, vítimas da última perseguição, e procurarmos compreender o sentido profundo do Natal para os que são perseguidos, desde o Natal das catacumbas até o Natal do fim dos tempos.

De tudo isso nos devemos lembrar ao aproximarmo-nos do Santíssimo Sacramento, quando O adorarmos após o milagre da Transubstanciação e quando O recebermos na Santa Comunhão. Então, por meio de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças, roguemos a Nosso Senhor que nos prepare espiritualmente para as provações que podem sobrevir.

Posto na manjedoura só para mim

Peçamos a Nosso Senhor perdão pelas faltas que tenhamos cometido, e supliquemos-Lhe que Se digne misericordiosamente fechar os olhos para nossos pecados, da mesma forma que nascendo fechou os olhos para as infidelidades do povo eleito e do mundo antigo. Roguemos que Ele assim inicie conosco uma nova era de graças, de misericórdia e de bondade, uma era de paz, na qual, inteiramente reconciliados com Ele, possamos ser os filhos que Ele nos convida a ser. Essas são algumas das orações que podemos oferecer a Ele, unidas a gemidos de arrependimento e manifestações de esperança, confiança e certeza de que, se Ele veio à Terra para salvar os homens, veio para nos salvar a nós; e que se Ele esteve na manjedoura para o bem dos homens, lá esteve para o meu bem.

Ainda que não houvesse senão um homem, e esse fosse eu, Ele teria Se encarnado e seria posto na manjedoura por amor a mim. De maneira que é legitimo imaginar que o Menino Deus lá está por causa de mim. Por isso devemos pedir a Ele que esse ato de amor maravilhoso não seja estéril em nossas almas, e que a bondade d’Ele passe por cima de nossos pecados e arrase os obstáculos edificados por nós, e, finalmente, nos converta fazendo-nos pertencer completamente a Ele. É isso que por meio de Nossa Senhora aconselho pedir na noite de Natal.

Oferecer os pedidos numa bandeja de ouro

Tenhamos em conta que bem junto ao presépio estava Nossa Senhora. Diz o Evangelho que os pastores O encontraram com Maria, indicando que só com Nossa Senhora, e junto a Ela, se encontra Nosso Senhor. Consideremos também que no momento em que veio ao mundo o Salvador, Ela conhecia que tudo quanto Ele deveria sofrer, o faria por nós. Ela pediu a Ele todas as graças necessárias para cada um de nós. E ainda agora no Céu continua a pedi-las.

Unamo-nos a esse pedido. Usando a expressão de São Luís Grignion, coloquemos nosso pedido nas mãos de Nossa Senhora, como um camponês que põe uma fruta comum numa bandeja de ouro, para oferecer ao rei. A salva de ouro são as mãos e o Imaculado Coração de Nossa Senhora. Peçamos que Ela recolha nosso pedido e o apresente a seu Divino Filho.

Com a certeza de sermos bem recebidos e atendidos, pois Nossa Senhora nunca recusa coisa alguma do que lhe peçamos, podemos transpor o Natal.

Oração para o momento da Transubstanciação

No auge do Natal, no momento da Transubstanciação, para mim a oração ideal é a “Salve Regina” ou o “Memorare”, pedindo a Nossa Senhora que me torne bem consciente de que nunca se ouviu dizer que Ela tenha recusado um pedido, e, portanto, naquela hora sacrossanta não recusaria o meu. E então peço a graça de ser inteiramente d’Ela. Apesar dos meus defeitos e ingratidões, que Ela tome conta de mim, e me faça inteiramente d’Ela, para eu ser o herói e o santo que Ela quer que eu seja. Esta é, em especial, a oração que nós devemos fazer na noite de Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 23/12/1971)

O Homem-Deus – II

Continuando seus comentários à divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Dr. Plinio salienta a extrema maldade daqueles que O supliciaram.

 

Dir-se-ia que vindo à Terra o Homem-Deus, diante de provas tão claras, de manifestações de uma superioridade divina a todo momento, o povo eleito — o qual sabia que o Salvador nasceria dele, e estava esperando-O — haveria de reconhecer o Messias, aclamá-Lo com glória e eleva-Lo ao píncaro do gênero humano. Se o povo judeu tivesse reconhecido o Messias, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, romanos, gregos, persas, egípcios, nada significariam. Esse povo seria elevado a um cume extraordinário!

Aqui se inicia o mistério da maldade humana. Esse povo que existia para isso, gemia porque o Messias não vinha; quando Jesus apareceu uma facção do povo se pôs desde logo contra Ele. E se cindiu: uma fração pequena do povo começou a adorá-Lo, a partir dos pastores que estavam em Belém e tiveram o anúncio do nascimento de Nosso Senhor. Mas, de outro lado, a maior parte passou a persegui-Lo.

Logo depois do nascimento de Jesus, Herodes fez o cálculo infame: “Deve ter nascido o Messias, porque os reis magos o estão dizendo. Ele ameaça o meu trono. É o Salvador previsto pelos profetas. Eu estou acreditando, ou pelo menos achando tão provável que até fico amedrontado”. E, para gozar a vida e ter o prazer de ser rei, Herodes quis matar Nosso Senhor sem nem sequer O ter visto, só porque Ele estava no mundo! Mandou, então, eliminar os inocentes, para evitar que o Inocente por excelência vivesse.

Desígnios misteriosos de Deus, caminhos que se compreendem só posteriormente! São José, coarctado pela falta de bondade da população em Belém, que não quis receber a ele e a Nossa Senhora, levou a Santíssima Virgem para uma gruta, fora da cidade.

Quando Nosso Senhor inicia sua vida pública, fazendo inúmeros milagres, o povo se entusiasma etc., aquele cálculo de Herodes se repete nas classes que mais O deveriam aclamar, quer dizer, na sacerdotal e na classe alta política, as quais começam a ter medo: “Quem é este homem que está levando atrás de si tais multidões? Ele é perigoso para nós; de repente nosso poder fica reduzido a nada!” Inicia-se, então, uma espécie de guerra, a “psy-war”, com calúnias e perguntas embaraçosas.

Os fariseus e os saduceus mandam pessoas fazer perguntas a Jesus, que O deixem mal à vontade. Pobres coitados! Se uma formiga quisesse lutar contra um animal quimérico, tão pesado como um elefante e forte como um leão, ela estaria mais próxima de vencer do que qualquer homem disputando com Nosso Senhor Jesus Cristo!

Questões elaboradas nos laboratórios da maldade e da insinceridade, todas retorcidas, cheias de ciladas. Posta a pergunta, vinha a resposta, em geral simples, direta, pulverizadora e luminosa.

— De quem é essa efígie?

— É de César.

— Pois dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.

Não há mais nada a dizer.

O Evangelho conta que se difundiram calúnias a respeito de Nosso Senhor: era glutão, mundano, ambicioso… Como poderia ser ambicioso Ele que era tudo? É mais ou menos imaginar que um leão quisesse fazer carreira, transformando-se na abelha-mestra de uma colmeia…

Disseram que Ele comia em casa de publicano, para bajular as pessoas que tinham dinheiro… Falaram até — suprema calúnia, supremo insulto contra a evidência — que Nosso Senhor tinha parte com o demônio. Logo Ele, que era direta e esplendorosamente o contrário do demônio; nem é tão exato dizer que Jesus era o oposto do demônio: o demônio era o contrário d’Ele!

Várias pistas da conjuração por excelência que operou o deicídio

Começa-se a criar uma onda contra Nosso Senhor, a qual leva, em primeiro lugar, os muito ruins, que eram uma minoria bem colocada, poderosa e influente.

A partir da tintura-mãe dessa maldade da minoria, a onda começou a crescer de “proche en proche”, de vizinhança em vizinhança, a tomar os ambiciosos, os que se vendiam, aqueles que não queriam o mal pelo mal, mas se amavam tanto que, colocados diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, eram capazes de dizer: “Ele é tudo isto, mas ficarei popular, bem-visto, terei importância, se ajudar a calúnia. Portanto, para que os maus me batam as palmas, me glorifiquem, vou também, embora não tenha certeza, começar a falar mal de Jesus”.

Depois desses maus de segundo grau, outra zona moral do povo foi atingida: a dos moles. “Se eu disser o que penso, serei perseguido, e isso não quero. Embora eu verifique que contra Jesus esteja se fazendo uma injustiça abominável, uma ignomínia, uma infâmia, essas coisas são com Ele, não comigo! Quero levar vida fácil, agradável, de maneira que eu possa me instalar bem nesta Terra. Comprometo a minha carreira, tomando a defesa de Jesus. Logo, vou também falar mal d’Ele.”

“Falar mal é horrível. Vejo fulano, um “molóide” como eu — que não tem coragem de enfrentar os outros para não ser perseguido —, falar mal de Jesus. Mas eu sou um homem reto, e não farei isso. Simplesmente não falarei bem. E quando disserem d’Ele, diante de mim, as coisas mais inverossímeis, ficarei quieto.

“Não sou inimigo d’Ele; no fundo, gosto d’Ele, às vezes rezo para Jesus e Ele é tão bom que me atende. Razão a mais para eu não tomar o partido d’Ele. Se Jesus não me ajudasse, eu talvez tivesse vantagem de tomar sua defesa, porque Ele então me atenderia… Mas, uma vez que Ele me auxilia até quando não tomo o partido d’Ele, fico bem com uns e com Ele. Encontro aí o caminho bom para mim, onde me ponho.”

Em seguida, vem a coorte imensa dos voluntariamente imbecis: “Não tenho bastante capacidade intelectual para me situar diante desse problema. Se eu o visse com clareza, tomaria posição. Mas, Deus me deu uma inteligência pequena, não tenho muito jeito para resolver isto. De maneira que vou fechar os olhos e deixar correr o marfim”.

Essas várias zonas do povo foram sendo atingidas, estabelecendo-se em torno de Nosso Senhor o vazio.

A crise no Colégio Apostólico e a traição de Judas

A entrada d’Ele em Jerusalém, no Domingo de Ramos, foi uma manifestação de quanto o povo, apesar de tudo, O via e apreciava, mas não na medida do necessário, do justo. Aclamavam-No, é verdade, mas Ele merecia muito mais!

Fazem-Lhe uma meia festa. Por isso, em geral, as pinturas e gravuras de Nosso Senhor entrando em Jerusalém O apresentam com tristeza, pesar, e dirigindo um olhar quase severo para a multidão que O aplaudia. Para Ele o interior das almas não oferece segredo, e Jesus percebia a insuficiência, a precariedade daquela ovação de que Ele era objeto.

Humildemente sentado sobre um burrico, Ele atravessava em meio à multidão, chamando a todos, pela sua presença, a amarem a Deus. Porém, ao mesmo tempo, percebia as negações, as recusas, a frieza, a hipocrisia deste ou daquele ato de admiração, e sofria com isso.

Se fôssemos estudar todo o padecimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não só a Paixão, dir-se-ia que a partir da primeira ingratidão Ele começou a sofrer. Quando teria sido essa primeira ingratidão? Não se sabe. Ela veio aos tufos, em grande quantidade, no Domingo de Ramos. Se fosse só isso…

Aproximam-se as festas judaicas da Páscoa. Nosso Senhor, inteiramente fiel à Lei — Ele era, como Deus, o Legislador —, realiza a ceia na quinta-feira e está com seus apóstolos à mesa. Sabia que um deles, portanto dos mais chegados, O havia traído. Esse apóstolo, que estava em crise, era um homem que Ele tinha chamado. Quer dizer, pela graça Nosso Senhor atraiu Judas Iscariotes para junto d’Ele, mas provavelmente Judas correspondeu mal, desde o primeiro momento. E foi um apóstolo medíocre, que deu depois num apóstolo infame. Crise, crise…

Confiaram a esse homem a guarda do dinheiro para as esmolas e, conta-nos o Evangelho, ele era ladrão. Roubava da caixa comum para gastos consigo a fim de satisfazer sua ganância.

Se fosse só essa crise… Os apóstolos “fervorosos” lá se encontravam com o Redentor; é o banquete. Ele lava os pés dos apóstolos, perdoa-lhes os pecados.

A tristeza vinha tomando a alma de Nosso Senhor; em certo momento disse o Redentor que um deles haveria de traí-Lo. Ele foi tão bom, que não afirmou outra coisa: “E vós todos haveis de Me abandonar”.

Ele conhecia a traição, e também o abandono. Um deles, São João, colocou o ouvido sobre o peito de Jesus, em gesto de amizade e intimidade, e perguntou quem era o traidor. Cristo respondeu: “Aquele a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Ele não quis dizer o nome de Judas. Para não perceberem, deu uma resposta rápida, e falou baixinho. Tomou o pão e ofereceu-o amavelmente a Judas. Carinho para com Judas até o último momento.

Nosso Senhor dá a Judas aquela ordem misteriosa: “O que tens que fazer, faze-o logo”. E o traidor saiu durante a noite, e foi consumar o pecado dele.

Jesus não mandou Judas pecar. Mas Judas, naquele momento, rompeu com Nosso Senhor e retirou-se. Podemos imaginar seus passos aflitos, apressados: “Trinta dinheiros! Quero trinta dinheiros!” É melhor não excogitar como se fez o pacto, e o que Judas pensou quando sentiu os trinta dinheiros pesarem na sua sacola.

E quando Judas O oscula para que Jesus fosse preso, ainda é uma pergunta com carinho: “Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?” Judas não ligou. Trinta dinheiros, o resto não importa!

Todos conhecem essa história, que terminou ignobilmente numa figueira…

O Divino Redentor passa pela tristeza de constatar que também os Apóstolos escolhidos não O viam. No Horto das Oliveiras, quando dormiam, todos os esplendores de Nosso Senhor Jesus Cristo para eles eram nada. Estavam com sono, queriam dormir. E na hora do perigo todos fugiram. Até aquele que pousara o ouvido sobre o peito d’Ele, e ouvira as batidas de seu Sagrado Coração!

Os algozes não podiam deixar de perceber a perfeição de Jesus

Na Paixão, Nosso Senhor sentia-Se completamente recusado pelos homens, pelo povo eleito. Entretanto, Ele era divino, incomparável! Por que tinham feito isso? Que enorme injustiça, que impiedade sem conta, que revolta atroz contra Deus! Vislumbramos, então, a tristeza, a indignação, o sofrimento de sua Alma.

É neste ponto que entra a flagelação, o primeiro mistério do Rosário considerando a agressão física contra o Homem-Deus. Amarram-Lhe as mãos, atam-No a uma coluna e começam a fustigá-Lo por ódio a Deus.

Poder-se-ia objetar: “Mas eles não sabiam que Ele era o Homem-Deus, e até negavam isso. Como o senhor pode dizer que era por ódio a Deus?”

Eles viam aquela perfeição, que é uma com Deus, e tal perfeição eles odiaram. Portanto, agrediram Nosso Senhor por ódio a Deus.

Se alguém, tomando a fotografia de um dos que está aqui, diz, embora sem conhecê-lo: “Mas que tipo antipático, detestável! Vou crivar de punhaladas essa foto; depois amarrá-la numa árvore e dar tiros contra ela; e ainda atear fogo nos molambos de papel que restarem”.

A pessoa assim ultrajada diria: “Esse homem não me quer, ele me odeia”.

É claro! Eles sabiam, neste sentido, que ali estava Deus.

Começa, então, o contraste pungente entre a mansidão, a bondade, a voluntária incapacidade de defender-Se, de um lado; e o ódio brutal, estúpido, cruel, de outro lado.

Para amarrar Nosso Senhor, os algozes Lhe dizem com brutalidade: “Dá cá as mãos!” Ele, não com uma mão, mas apenas com um dedo poderia expulsar aquela gente toda.

Se quisesse, o Redentor chamaria as coortes do Céu para descerem e defenderem-No; elas viriam imediatamente, porque Ele não chamava, mas mandava!

Jesus entrega as mãos, que eles amarram com brutalidade, utilizando corda tosca, rude, e um modo de amarrar que, com certeza, atormentava, prejudicava a circulação, tolhia os movimentos etc. Tinham a ilusão estúpida de que, amarrando-O, Ele estava amarrado. Bastaria Ele dizer: “Corda, rompe-te”, que ela cairia no chão; ou, se quisesse, poderia transformá-la em serpente, que atacaria aqueles malvados.

Mas Nosso Senhor queria sofrer. O extraordinário é que uns queriam flagelá-Lo e Ele queria ser flagelado. Jesus Se entregou à flagelação.

Os algozes já tinham tirado a túnica do Divino Salvador, ou mandaram-Lhe que a tirasse. Sua vestimenta sagrada era a túnica inconsútil —que não tem costura —, a qual havia sido tecida por Nossa Senhora, e não tinha sujeira nenhuma, pois o Corpo divino só podia irradiar a mais alva limpeza. Por um ato de vontade do Redentor, nada podia macular esta túnica, e os verdugos jogam-na ao chão, com raiva. Ele pensa nas mãos de Nossa Senhora, que a teceram, mas nada diz: era mais uma dor que Nosso Senhor queria sofrer.

A doçura inefável dos gemidos do Homem-Deus atado à coluna da flagelação

Levam-No para junto de uma coluna e, certamente com bofetadas, empurrões, gargalhadas, amarram aquela corda que prendia suas mãos em alguma argola da coluna — porque assim se faziam as flagelações. E aqueles homens — que homens! —, com terríveis açoites, começam fustigá-Lo com toda a força, e Ele a gemer.

Podemos imaginar a doçura, a beleza harmoniosa desse gemido, aquele Corpo santíssimo que se contorcia de dor, pela brutalidade do tormento que estava sofrendo; pedaços de carne caíam ao solo: eram carnes do Homem-Deus! Seu Sangue salvador corria aos borbotões. Ele de pé, digníssimo, inteiramente manso, sem nenhum protesto, nem exclamação de dor, apenas falando com o Padre Eterno. Era o seu refúgio naquela ocasião. E seu Corpo, do alto da cabeça até a planta dos pés, ficou repleto de ferimentos gravíssimos. Era o martírio do qual haveria de resultar a Redenção do gênero humano.

Terminada a flagelação, mandaram-No — os tempos eram de mais pudor do que os de hoje — apanhar a túnica. Com dores inimagináveis devido aos movimentos, Ele foi buscá-la e a revestiu, sabendo que iria começar a “Via Crucis”. Quer dizer, Ele entrava em outra sequência enorme de tormentos de toda ordem.

Considerem a muito bonita imagem de Nosso Senhor que está neste auditório. Ela é principalmente expressiva, vendo-a de baixo para cima. Seu olhar mostra, segundo o artista — a meu ver com fundamento —, o estado de espírito de Jesus durante a flagelação: preocupação, a aflição diante do tormento que vinha, a dor que Ele estava sofrendo em todo o seu Corpo. Mas uma distensão completa, uma mansidão perfeita e uma dignidade de Rei. Nunca rei nenhum teve uma púrpura igual à d’Ele: a do seu Sangue infinitamente precioso.

Isso foi o pórtico, o começo da Paixão cruenta de Nosso Senhor. Depois veio a coroação de espinhos, a Via Sacra, uma série de sofrimentos até o alto do Calvário.

Ele, carregando a Cruz, caiu três vezes sob o peso dela. Pregaram-No na Cruz e seu Corpo ficou doloridamente pendente; tentava apoiar-Se nos pés, mas os cravos neles fincados faziam aumentar a dor… E sua sede ia progredindo, em razão da quantidade de Sangue que tinha perdido. As torturas, as sombras da morte começaram a invadi-Lo, até o momento em que Ele bradou: “Meu Pai, Meu Pai, por que me abandonastes?”

Até o último instante cuidando dos outros, com uma lucidez divina ordenando todas as coisas. Para São João: “Filho, eis aí a tua Mãe”; a Nossa Senhora: “Mãe, eis aí teu filho”. Para o bom ladrão, São Dimas: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” Foi a primeira canonização, feita pessoalmente por Nosso Senhor; que glória, que alegria!

E, pensando o tempo inteiro no gênero humano que Ele redimiria quando completasse a Paixão, Jesus disse “Consummatum est”. Nesse momento, Ele salvou o gênero humano.

Nosso Senhor pensou em cada um de nós

Pensou em nós. Esta triste coleção dos homens passou diante de Nosso Senhor. Ele sofreu por este, por aquele, por aquele outro; por cada um dos que se encontram neste auditório, a fim de alcançar as graças pelas quais estamos aqui.

Quando cada um fizer o histórico de sua vocação — como foi chamado, de que modo correspondeu, se cambaleou, como se pôs de pé e continuou o caminho —, lembre-se que Nosso Senhor Jesus Cristo pensou em tudo isto no momento da flagelação!

Talvez, quando um pedaço de sua carne divina caía ao chão, em meio à dor, Ele tenha pensado: “É por aquele filho que há de viver no século XX, o qual amo especialmente e quero que traga outros a Mim. É terrível, mas está bem sofrido!”

E se algum de nós peca contra Ele, máxime em matéria grave, é a mesma coisa do que tomar o pedaço da carne que Jesus deixou cair ao solo por amor de nós, e Lhe atirar no rosto.

O que se pensaria de um flagelador tão cruel, ao qual Nosso Senhor dissesse: “Meu filho, por você caiu-Me esse pedaço de carne no chão”; e o flagelador respondesse: “Ah! é? Toma aqui”, e o lança na face? Seria pior do que qualquer açoite. Os católicos, sobretudo os especialmente chamados, fazem isso quando não são fiéis a Ele.  v

 

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/4/1984)

Revista Dr Plinio 152 (Novembro de 2010)

 

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei, a quem devemos obedecer, conhecendo a sua vontade e executando o que Ele nos manda com amorosa e pormenorizada exatidão.

Para isto, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos, por nossas boas obras, pela vida interior. Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.

Cristo é verdadeiro Rei

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados”, dizia o Papa Leão XIII na célebre Encíclica Immortale Dei, falando sobre a Idade Média. Ele acrescentava que naquele tempo “a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil”, de tal modo que, naquele grupo de nações europeias, os excelentes frutos foram superiores a toda expectativa.

Essa descrição corresponde a um estado de coisas que não pode ser chamado senão de reinado de Jesus Cristo, uma realeza à qual Ele tem direito por natureza e por conquista. Por natureza, porque “tudo foi feito por Ele, e sem Ele nada foi feito” (Jo 1,1). Por conquista, porque nos resgatou da tirania do demônio, a preço de sangue.

Essa é uma das linhas de reflexão desenvolvidas por Dr. Plinio, que o leitor encontrará na presente edição: o direito de Jesus ser Rei.

Dr. Plinio mostra que esse direito do Homem-Deus a ser Rei se exerce não só sobre a sociedade espiritual – a Igreja Católica –, mas também sobre a sociedade temporal, nos moldes da exposição de Leão XIII na referida Encíclica.

Em dezembro de 1925, o Papa Pio XI instituiu a festa de Cristo Rei. O tema vinha de encontro aos anseios do então jovem Plinio, de batalhar para implantar na face da terra esse reinado divino. O que Pio XI mostrava coincidia completamente com suas convicções: ou a sociedade civil organiza a vida na terra para constituir um vestíbulo do Céu, ou a transforma na antecâmara do inferno.

De fato, dizia aquele Pontífice, como a sociedade humana se recusava a aceitar a realeza de Cristo, já sucumbia sob diversas mazelas: ódios e rivalidades, cobiças desenfreadas, um “cego e desregrado egoísmo”, o fim da paz doméstica “pelo esquecimento e relaxamento dos deveres familiares”, o rompimento da estabilidade das famílias, tudo conspirando para empurrar para a morte a sociedade humana.

Como reverter essa situação? Com a implantação do Reino de Maria. Afinal, como argumenta São Luís Grignion de Montfort, “foi por intermédio da Santíssima Virgem Maria que Jesus Cristo veio ao mundo, e é também por meio d’Ela que Ele deve reinar no mundo”. Quando “o conhecimento e o reino de Jesus Cristo tomarem o mundo, será como uma consequência necessária do conhecimento e do reino da Santíssima Virgem Maria”. Assim pensava Dr. Plinio, que já via brilhar, no fim do túnel, a resplandecente luz de um reinado de Cristo muito mais completo, universal e perfeito do que foi na Europa medieval, confiado na promessa de Nossa Senhora em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 176 (Novembro de 2012)

ENCONTRO COM O CORAÇÃO EUCARÍSTICO DE JESUS

Certa vez perguntaram a Napoleão Bonaparte qual havia sido o dia mais feliz de sua vida. Apesar de toda a glória que lhe obtiveram seus ribombantes triunfos militares e políticos, ele não hesitou  em responder: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”. Este é um exemplo muito ilustrativo de quanto uma alma fica marcada, de modo indelével, pelo momento em que se abre para ela o  convívio com Nosso Senhor sacramentado. Tal se passou também com Dr. Plinio, naquele 19 de novembro de 1917, quando se aproximou pela primeira vez da Sagrada Eucaristia. Décadas mais  tarde, ele se comprazeria em recordar essa inesquecível data:

 

A atmosfera que cercava as Primeiras Comunhões, no meu tempo de menino, era muito especial, porque fora organizada segundo a doutrina e a mentalidade de São Pio X, o Pontífice das Primeiras Comunhões. Antes dele, a tendência corrente era de que uma pessoa só se aproximasse da Santa Mesa quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças a recebam, pois não têm critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

O que importa é o grau de inocência

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque, se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E, mesmo nesse início da vida de pensamento, as graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé. É esse um dos motivos primordiais pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia.

Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, quando ela passa a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Trajes especiais

São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. Datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas nessas ocasiões, e os trajes  cerimoniosos com os quais meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus sacramentado, símbolos do coração inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Recordo-me de que, na minha época (e talvez esse costume se conserve até hoje), as meninas apareciam diante de Nosso Senhor, o Divino Esposo das almas, trajadas de noiva, com vestido longo,  o véu cingido na fronte por uma grinalda de flores brancas, e brancos também os sapatos.

Por sua vez, os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto o permitiam as posses de seus pais. Aqueles com mais recursos mandavam confeccionar uma roupa especial para a ocasião. E no meu tempo, o hábito de Primeira Comunhão masculino era a cópia do uniforme solene de um dos colégios mais famosos do mundo — o “Eaton”, da Inglaterra: uma roupa muito pomposa, consistente em paletó e calça de casimira inglesa e corte elegante, camisa engomada, de colarinho duro, gravata escura. No braço esquerdo fixava- se um laço de fita branca, em cujas pontas brilhavam pingentes dourados. O branco simbolizava a castidade e a virgindade do menino; o dourado lembrava a sua fé.

Depois da cerimônia, a festa No dia da Primeira Comunhão, após o ato na igreja (comumente realizado pela manhã), as respectivas famílias costumavam se reunir nas casas dos meninos, onde as  mães haviam preparado uma grande festa para celebrar a data memorável. Além dos parentes, eram convidadas todas as crianças com quem o filho ou a filha tinha relações, não sendo raro  ajuntarem-se vinte ou trinta pimpolhos, em torno de uma lauta mesa. Naqueles idos de 1917, a maravilha que fazia a alegria da meninada era o prato de chocolate com o que chamavam de creme “chantilly”. Como São Paulo era, entretanto, uma cidade ainda nos primórdios de seu desenvolvimento, não se conhecia o verdadeiro “chantilly”, mas apenas uma deliciosa imitação feita com clara de ovo batida. Então vinham aquelas copiosas porções de chocolates sob o “creme francês”, e as crianças se regalavam. O passo seguinte era fazer as honras às frutas, sorvetes, refrescos e toda espécie de sanduíches e doces.

Terminado o banquete, começava a correria pelo jardim da casa, tanto maior quanto mais extenso fosse o terreno à disposição dos infatigáveis meninos. O cansaço só se apresentava à noite, quando se aprontavam para dormir, depois de terem rezado.

Assim transcorria o dia da Primeira Comunhão. “Hoje, pensem apenas no Santíssimo Sacramento” Para mim, minha irmã e uma prima que fez a Primeira Comunhão conosco, as coisas se passaram de modo diferente. Dª Lucilia, exímia organizadora de tudo, entendia que a comemoração em família não deveria acontecer na volta da igreja.

Julgava ela que, se realizada a festa no mesmo dia, poderia haver o risco de a criança, levada pela imaginação infantil, amanhecer pensando mais nos festejos do que na Sagrada Eucaristia. Então, com seu afeto e cuidado todo especial, mamãe nos chamou alguns dias antes para nos colocar a par do programa.

Disse-nos: — Vocês devem entender que a festa não vai ser no mesmo dia. Nessa data vocês devem se preocupar somente com a Primeira Comunhão. É como se fosse um feriado: não vão estudar nem se entregar a atividades muito dispersivas. Devem passar o dia vestidos com o hábito de Primeira Comunhão e terem atividades tranquilas, dentro de casa, sem ir ao jardim, e evitar de olhar pelas janelas, para não se distraírem com o movimento da rua. Passeiem de uma sala para outra, de um quarto para outro, andem pelos corredores, rezando e procurando lembrar-se do que se deu com vocês nessa ocasião. Quer dizer, pensem e concentrem a atenção no Santíssimo Sacramento. Depois, no dia seguinte, faremos a comemoração em grande estilo.

Um passo muito sério a ser dado

Nós três havíamos tido um curso de catecismo particular, ministrado por um padre amigo da família. Durante algumas semanas, ele nos explicou os pontos essenciais da Doutrina Católica, contou-nos a História Sagrada, etc., preparando-nos dessa forma para o solene encontro com Nosso Senhor Eucarístico. Dª Lucilia, por seu lado, também nos predispôs para a Primeira Comunhão, antes e mais do que tudo pelo ambiente que ela criava em casa, todo feito de piedade, de inocência, de inteira e ilimitada confiança nela, bem como de imenso afeto. Além disso,  mamãe nos ajudava a entender melhor as lições recebidas do padre, e nos fazia ter uma alta ideia do que significava a graça da Primeira Comunhão. É supérfluo dizer que a materna e zelosa  assistência dela nos foi de imenso proveito.

Assim, a preparação feita com muito cuidado pelo padre, somada às explicações de Dª Lucilia, que completavam os ensinamentos do sacerdote, e depois o programa traçado por ela dias antes da  Primeira Comunhão, fez-nos ver como era sério o passo que íamos dar. Evidentemente, esse ambiente criado em torno de nós era próprio a determinar todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu, particularmente, fiquei muito compenetrado e fiz o propósito de observar esse recolhimento quanto me fosse possível, nos meus nove anos. Depois de termos sido examinados, e verificado que  sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma turma de Primeira Comunhão da paróquia de Santa Cecília. Foi um mundo de crianças, vestidas de acordo com a situação financeira dos pais. Algumas estavam ricamente trajadas, levando nas mãos lindos rosários e livrinhos de oração encadernados com forro de madrepérola. Os de certas meninas eram até recamados de pérolas nas bordaduras. Outros eram impressos com várias cores e também muito bonitos.

A primeira confissão…

Antes desse grande dia, porém, fiz a minha primeira confissão. Tomei-a com tanta seriedade que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados na hora de dizê-los ao padre, fiz uma lista deles. Imagine-se o que podiam ser as faltas de um menino de nove anos… Entretanto, apesar da pouca gravidade que elas poderiam encerrar, tive de me arrepender a duras penas por havê-las cometido! Pois a Fräulein Mathilde, a governanta alemã que nos levara para confessar, era muito exigente. Antes de eu me dirigir ao confessionário, ela me perguntou: — Você está arrependido de seus pecados?

Eu entendia que estar arrependido era sentir vontade de chorar pelas faltas cometidas. Como tal sentimento não me viera, respondi: — Não!

Inflexível, a alemã (de quem conservo saudosa e boa recordação) replicou, num tom imperativo: — Faça uma Via-Sacra! Achei que, para uma alma dura como a minha, que não se arrependia dos seus pecados, a solução era mesmo rezar a Via-Sacra… Foi o que fiz com toda a convicção. Quando voltei para junto da “Fräulein”, ela me perguntou de novo: — Está arrependido? — Não! Creio que fiz umas duas ou três Vias-Sacras… Afinal, Nossa Senhora teve pena de mim e me concedeu algo vagamente parecido com uma tendência a chorar pelas faltas cometidas.

A governanta voltou à carga: — Você sente agora verdadeiro pesar?

Pensei: “As lágrimas estão vindo… ” Respondi então: “Sinto!” Ela imediatamente ordenou: — Vá fazer a confissão! Entrei no confessionário, puxei a lista dos meus pecados e a li para o sacerdote. Ele ouviu tudo com muita bondade e me deu a absolvição. Na saída, tomado pela importância do momento, não me dei conta de ter deixado cair aquela folha de papel. Quando já havia voltado para casa, mexendo nos bolsos dei pela falta dele. Então procurei Dª Lucilia e lhe disse: — Mamãe, eu preciso voltar à igreja para pegar tal papel, porque se alguém encontrar a lista dos meus pecados, ficarei em má situação.

Ela logo percebeu que era coisa de criança, mas ficou satisfeita ao ver como eu tinha levado a sério a minha primeira confissão. Enquanto nós dois conversávamos, aproximou-se uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, piedosa, chamada Madalena. Ela vinha trazendo umas roupas dobradas para guardar num armário e, naturalmente, prestou atenção na nossa conversa.

A Madalena achou graça na minha aflição de menino, e, voltando-se para mamãe, disse: — Ah, eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Então, Dª Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou  depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio!

Eu fiquei ultrajado ao extremo, mas vi que mamãe não tomou ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E eu, sabendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato. A  Madalena foi à igreja e não encontrou a lista.

Com certeza um sacristão, ou alguma faxineira limpando o recinto sagrado, encontrou aquilo e jogou fora. Estava acabado. Eram já não sei mais que pecados, mentirinhas não sei de que tamanho. Creio, porém, que os ter relacionado para não deixar de acusar nenhum e pedir perdão a Deus por todos, demonstra a compenetração com que me preparei para o Sacramento da Penitência, enquanto prelúdio da Primeira Comunhão.

Alegria por vestir o “Eaton”

Numa outra ordem de preparação, também tive de experimentar o famoso “Eaton” que usaria no dia solene. Obrigação para mim bastante enfadonha, pois toda a minha vida tive não pequeno desagrado em experimentar roupas: põe-se alfinete, tira alfinete, vira de cá, vira de lá, traçam-se marcas de giz… Nunca gostei disso. Enfim, o alfaiate contratado por Dª Lucilia fez os ajustes necessários, e chegou à conclusão de que o “Eaton” estava muito bom. Foi essa igualmente a opinião de mamãe, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eaton mal cortado. O  alfaiate seria muito bem tratado, receberia o justo pagamento pelo trabalho que fez, mas sob a condição de este estar perfeito. Ela achou que estava.

O encontro com Jesus Sacramentado

Na manhã seguinte, minha irmã, minha prima e eu nos dirigimos à Igreja de Santa Cecília, levando nossas velas que, assim como as das outras crianças, seriam acesas em determinado momento da Missa. O Santo Sacrifício, um tanto longo, dado que solene e cantado, foi seguido por mim com muita atenção, embora eu não soubesse ainda tudo quanto a Missa significa. Porém, o simples fato de estar presente a uma cerimônia da Igreja, pela qual eu já nutria imensa veneração, era o bastante para me fazer assistir àquilo com espírito de oração, com enlevo e profundo respeito.

Afinal, chegou o momento da Comunhão. Formaram-se, separadamente, a fila das meninas e a dos meninos que, pela primeira vez, receberiam em suas almas a visita de Nosso Senhor Sacramentado. Pelo favor de Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e procurei fazer minha ação de graças com intenso fervor e devoção.

Quando, terminada a celebração litúrgica, eu retornava para casa, estava radiante de contentamento. Junto com minha irmã e minha prima, passei o dia em recolhimento, conforme o programa estabelecido por Dª Lucilia. No dia seguinte houve uma festa soberba, com guloseimas de toda espécie, as costumeiras correrias pelo jardim, etc.

Preparação para uma vida de amor à Igreja Para concluir essas reminiscências de uma data que me é tão cara, gostaria de frisar um ponto que responde à seguinte pergunta: de que me serviu a Primeira Comunhão? Sendo o marco inaugural de uma série de comunhões, ela preparou e fortaleceu minha alma para enfrentar os combates que, dali a pouco, eu teria de travar pelo bem e pela virtude. Ajudou meu espírito a ter o vigor necessário para opor resistência — dolorida, mas forte e decidida — às solicitações más, e quantas vezes pecaminosas, que se apresentam a todo adolescente e a todo jovem.

Ela me preparou para uma vida que, graças à Santíssima Virgem, procurou se fazer sempre de piedade, de vontade de cumprir perfeitamente os mandamentos, e de entranhado amor à Igreja, para  cujos serviço e triunfo eu quis dedicar continuamente todos os meus esforços.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 20 (Novembro de 1999)

Santidade, o ideal de todo homem

De que aproveitará ao homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26) — é a advertência, repassada de solicitude, que nos faz o Divino Mestre. Na verdade, riquezas e glórias  terrenas, reconhecimento e aplausos nesta vida, de nada nos valerão para a eternidade, se não procurarmos a perfeição. Por isso Dr. Plinio tomava tanto a peito formar seus filhos e discípulos no  maior e mais belo dos ideais: a santidade.

 

Neste mundo em que o existir humano se volta, cada dia mais, para os interesses meramente terrenos, é muito importante termos bem claro qual o verdadeiro fim a que o homem deve aspirar na sua vida.

A felicidade da perfeita realização

Em primeiro lugar, consideremos que a criatura humana, por sua natureza, é dotada de valores e possibilidades que ela deve procurar cultivar e aperfeiçoar, caso deseje se realizar por inteiro. Para  e valer de uma comparação, tomemos por exemplo um vidro de perfume aberto numa sala. Ele contém uma fragrância da qual o próprio é evaporar-se e impregnar com seu envolvente  aroma o ambiente em que se encontra. Suponhamos que o perfume, posto no frasco, pudesse pensar. E imaginemos que ele permanecesse tampado no seu invólucro de cristal sem que ninguém  jamais o cheirasse, guardado numa gaveta, esquecido, durante 100, 150 anos, até que alguém, ao arranjar um armário velho, numa velha casa de família, o achasse, o destampasse, e dissesse: “Isto  é um perfume antigo que não vale para nada”.

E logo em seguida o espalhasse pelo jardim, deixando que seu cheiro deteriorado e repelente espante as minhocas e bichinhos que vivem dentro da terra. Se esse perfume pensasse, ele julgaria que  ua existência foi bem sucedida?

Reflitamos um momento. Dentro de um vidro de cristal que abafa, colocado na semi-obscuridade de uma gaveta segura, ele teria todo o conforto e a tranqüilidade das coisas nas quais ninguém mexe, que não passam por nenhum susto, que não trabalham, das coisas que, afinal de contas, são zero. Ele estaria ali cercado de toda comodidade. Um perfume não come, não bebe, não dorme; um perfume simplesmente se limita a existir, e existir dentro de um vidro. Um bonito frasco de cristal é um palácio para um perfume, com todas as facilidades de uma boa existência.

Entretanto, algo nele lhe é motivo de sofrimento. É que está na natureza dele perfumar, e ele preferiria qualquer coisa a não poder fazê-lo, pois esta lacuna é contrária à sua essência.

Semelhante raciocínio se aplicaria, por exemplo, às águas que correm sob a terra. Existem rios, fontes subterrâneas que não chegam a aflorar na superfície, e vêem suas águas caudalosas, abundantes, viverem numa perpétua obscuridade. Essas águas poderiam pensar o seguinte: “Felizes somos nós, que não temos bichos, que não precisamos suportar o peso de nenhum barco, e não temos de fazer outra coisa senão deixar a força da gravidade nos ir levando para onde for. Para nós é o ideal!”

Mas, imaginemos que uma dessas águas, de repente, passasse por uma fenda qualquer, encontrasse finalmente a luz do sol e começasse a longa travessia de uma massa líquida desde a sua nascente até o oceano onde ela deve sumir.  É uma epopeia que atravessa mil vicissitudes: um pouco dessa água é absorvida pela terra, outro tanto se evapora, forma-se em nuvem e vai cobrir os céus de algum lugar distante do mundo; um pouco dessa água é derramada aos pés de uma flor, transforma-se em matéria que fará desabrochar uma linda magnólia ou uma bela rosa…

A água passará por mil vicissitudes, mas quando ela saísse da terra e começasse a sua movimentada trajetória, se ela pudesse pensar, se ela pudesse cantar, ela cantaria depois de ter pensado, e diria: “Chegou a minha vez de ser flor, de ser bebida pelos homens e pelos animais, chegou a minha vez de ser nuvem, chegou a minha vez de ser tudo! Afinal, realizarei aquilo que está na minha natureza ser!”

E por mais aventurosa que fosse a existência daquela água, nisto ela encontraria uma felicidade que não lhe seria dada em nenhuma outra condição.

Todo homem procura um ideal

Se essa  necessidade da existência realizada parece tão evidente nos seres inanimados quando nós os imaginamos vivos, como não o será para o homem? Ao procurar a sua felicidade, a sua realização, o  que ele deseja? Ficar engarrafado? Ser um curso de água subterrâneo? Ele procura não ter história, nem vencer dificuldades?

Não. Inteligente, dotado de uma alma espiritual, a primeira coisa que o homem procura, pela sua natureza, é ter um ideal: uma verdade suprema de onde ele deduza todas as outras verdades; uma  beleza suprema da qual ele deduza todas as outras belezas; uma santidade suprema em cuja luz ele contemple todas as outras santidades. Isto o homem deseja, sem que lhe baste ficar apenas no  pensamento. Depois de pensar, ele quer agir, quer ter uma vida em que mexa as coisas e as faça andar num determinado rumo, ainda que isto lhe custe muito. E ao atingir o anoitecer da existência, o homem se perguntar á sobre seus dias neste mundo. E terá imensa alegria se compreender que ele foi um perfume que se evaporou, foi uma água que fecundou terras ou se transformou em flor; se ele compreender, sobretudo, que foi um herói, enfrentando riscos, realizando seu ideal. Então, feliz, ele pode encarar de frente o pouco tempo que lhe resta, e dizer:

“Eu fiz o que eu deveria ter feito, a minha vida está realizada! Vivi! E agora só me resta a coroação da vida: é morrer.”

Ser santo, a mais bela ambição humana

Trata-se de um impulso interno  existente em todo homem, e que se reveste de particular riqueza se considerarmos o seguinte: quando uma criatura humana procura se realizar, procura ser “perfume”, procura ser “água”, procura ser herói, ela não pode ter ambição mais bela e mais nobre diante de si, do que a de ser santa.

Enganar-se-ia quem pensasse que o ideal de santidade não está ao alcance de qualquer um, mas apenas para aqueles expoentes da humanidade que um dia chegam à glória dos altares.

Na verdade, segundo a doutrina católica, sabemos que, pela ação da graça, dom sobrenatural de Deus, todos nós podemos ter uma participação criada na existência incriada do Altíssimo. Com  isto, algo de divino penetra em nós, e recebemos uma força para conhecer e crer em coisas as quais nossa inteligência, por maior que fosse, não teria capacidade de compreender sem esse auxílio da graça. Assim como à nossa vontade é comunicado um vigor para fazer e conseguir coisas que, sem a ajuda sobrenatural, não faria nem conseguiria.

Quer dizer, a graça eleva o homem a uma tal condição que o menor indivíduo — como capacidade, como apresentação, como cultura, como tudo —, sob o influxo da vida sobrenatural vale mais do que  o maior dos homens sem aquele dom divino.

Convidados para a corte celestial

E o primeiro convite que Deus Nosso Senhor nos dirige, quando a Providência d’Ele nos encaminha para o batismo, é este: “Meu filho, Eu te dei a condição de homem; não queres mais? Não queres  ser um príncipe na minha Criação? Eu te concedo uma participação criada na minha própria vida. Com isso Eu habitarei em ti, e tu serás o templo no qual Eu viverei. Far-te-ei meu herdeiro.”

É um chamado maravilhoso, que se desdobra em outros não menos extraordinários. Depois de ser dado ao homem o Batismo, após ser infundida nele esta virtualidade incomparável que é a graça,   própria graça o impele para coisas inauditas, superiores à sua estatura, coisas em que o homem galgue acima de si mesmo e realize feitos de heróis de sonho, de heróis de paraíso, numa palavra, de heróis do Céu.

O verdadeiro católico no qual vive a vida sobrenatural deseja, portanto, o maior. E se ele não chegar ao maior, não chega a nada. Ele quer o quê? Ser um cortesão de Deus no Céu, desfrutando de uma felicidade sem jaça, imorredoura, na contemplação e no diálogo contínuo com o Ser Supremo, Perfeito, que é Deus Nosso Senhor, por toda a eternidade.

Ali teremos esse convívio perpétuo com o Criador, no qual Ele nunca se cansa de nós, e nós nunca nos cansamos d’Ele: Verdade, Bondade, Virtude, Santidade e Beleza personificadas, recompensa  demasiadamente grande que encontraremos no fim desta altíssima escada que todos subimos, degrau após degrau, passando por aventuras, batalhas, sacrifícios e privações. Ali, Deus se revela a nós na sua eternidade, com todo o atrativo daquilo que existiu sempre e daquilo que sempre existirá — o passado no seu esplendor, o futuro na sua magnificência.

É uma situação simplesmente admirável a que somos chamados, fazendo-nos santos, postos na visão e na adoração contínuas da Trindade Santíssima. Então, compreendamos que um homem de fé não se sente talhado para a vida insípida do perfume engarrafado, que envelhece e em determinado momento é jogado fora. Ele se sente, sim, feito para uma imensa, criteriosa, sábia, mas ousada aventura, aquela em que ele ordena sua alma para Deus, a purifica e embeleza, preparando-a para o salto dentro da morte. E com a proteção de Nossa Senhora, Mãe e Rainha de Misericórdia, este salto será para a bem-aventurança eterna, para a corte celestial onde um assento nos está reservado.

Julgados e premiados segundo o amor

Para concluir, é oportuno lembrarmos ainda que Deus tem seus mistérios, e não há quem possa afirmar com toda a certeza que tal bem-aventurado é maior que outro aos olhos do Senhor. Quem  poderá conhecer os arcanos da maravilhosa história das almas? Quem poderá ter exata noção de quantas pessoas se sacrificaram pela Fé nos desertos da África e da Ásia, nas vastidões das Américas, em  meio a populações bárbaras e indígenas, aqui, lá e acolá? E com quanto amor essas pessoas aceitaram esse sacrifício?

Ora, é pelo amor que somos grandes aos olhos de Deus. E se alguém, apagado e obscuro no entender do mundo, entretanto fez um imenso sacrifício com imenso amor, quando forem reveladas todas as coisas no Juízo Final, o maior será esse.

Donde, também, não devemos nos pôr a pergunta se os homens reconhecerão nossas realizações e nossas grandezas. Importa sabermos que Deus nos assiste a todo momento, perscrutando no fundo das almas o amor com que O servimos. E se é verdade o ensinamento de São João da Cruz, segundo o qual “no entardecer desta vida, seremos julgados segundo o amor”, o amor que tivemos a Deus, é verdade então que Ele olhará para quem mais O adorou e glorificou, de forma notória ou oculta, e lhe dirá: “Este me amou de modo extraordinário e merece a maior recompensa!

Por sua vez, este homem que santificou sua alma, no instante de transpor os umbrais da eternidade poderá dizer as palavras mais magníficas que imagino postas nos lábios de um moribundo, repetindo São Paulo: “Eu percorri toda a extensão que deveria percorrer; combati por Vós o bom combate, o combate pelo bem; dai-me Senhor, agora, o prêmio de vossa glória!”

É na esperança de podermos viver, de batalhar pela nossa santificação e de morrer na paz de Deus, confiantes em Nossa Senhora, agradecendo a Ela porque nos obteve graças para nos tornarmos  outros heróis da Fé e príncipes do Céu, que devemos atravessar nossos dias nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 44 (Novembro de 2011)

Cristandade, o verdadeiro reinado de Cristo

Percorrendo a vossa cidade, e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: Ao Deus desconhecido. Pois bem! O que venerais sem conhecer é que eu vos anuncio” (Atos 17, 22). Isto disse São Paulo no Areópago de Atenas, há mais de dois mil anos.

Os atenienses nem sequer conheciam a Deus, porém o adoravam. Por quê? “Anima humana, naturaliter christiana”, já dizia Tertuliano.

Se a alma humana é naturalmente cristã, seu autêntico gáudio está onde Cristo verdadeiramente se encontra, ou seja, na Igreja Católica. Constituída por membros vivos que compõem o Corpo Místico de Cristo, a Igreja transmite aos fiéis a própria imagem do Salvador.

Nas seguintes considerações, Dr. Plinio nos apresenta a intrínseca ligação que há entre a Igreja e a Cristandade:

“Lendo a História Sagrada explicitei que Nosso Senhor Jesus Cristo era a própria perfeição, e que as coisas só deveriam ser amadas na medida em que se parecessem com Ele.

“Era preciso ser conforme a Ele, e, portanto, conforme a Igreja instituída por Ele. E, por causa disso, era necessário amar as pessoas que tinham o espírito religioso, bom, verdadeiro.

“Em certo momento, pela natural maturação do espírito humano, dei-me conta de que havia nações, veios, correntes de opinião mais católicos e menos católicos. E que a esse mundo formado segundo a Religião Católica, se dava o nome de Cristandade.

“O nome me pareceu, no seu próprio som, augusto e majestoso, deleitável no mais alto ponto. Cristandade, mas que expressão bonita! Como é que uma simples palavra podia ter tanta majestade, tanta doçura? Cristandade!

“O que é a Cristandade? É, afinal de contas, a ordem de Cristo, quer dizer, a boa ordenação das coisas segundo Jesus Cristo, no Reino de Cristo.

“O que é o Reino de Cristo?

“É o conjunto das nações, que forma uma família em torno da Igreja e que vive na paz de Cristo, sob o Reino de Cristo; essa é a Cristandade.

“A Cristandade é a família das nações que vivem no Reino de Cristo. Esse conjunto de nações, como a nação é uma realidade temporal, existe nesse mundo, mas não existirá no outro mundo. No Céu não haverá nações, elas todas se dissolvem na realidade celeste.

“Qual é a relação entre a Cristandade e a Igreja? A Igreja é a alma da Cristandade. Não é possível que uma nação pertença à Cristandade sem pertencer à Igreja. A nação que se afastar parcialmente da Igreja será um membro doente da Cristandade. A Igreja é a sociedade de todos os indivíduos que acreditam na verdadeira Fé, estão sob a autoridade dos legítimos pastores e vivem segundo a Lei de Deus.

“Os homens que constituem a Igreja, vistos no plano terreno, constituem a Cristandade.

“Poderíamos dizer que — todo exemplo claudica — Igreja sem Cristandade é como uma alma sem corpo; mas a Cristandade sem a Igreja é como um corpo sem alma. Quer dizer, a Igreja faz mais falta à Cristandade do que a Cristandade faz falta à Igreja. Porque uma alma sem corpo vive; um corpo sem alma é um cadáver, apodrece.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1983)