ORAÇÃO A NOSSO SENHOR AGONIZANTE NA CRUZ

Era 10 de março 1988, quando Dr. Plinio, atendendo ao pedido de um jovem que terminara de fazer um  retiro, ditou esta esplêndida oração, plena de amor a Cristo padecente, humildade e filial confiança

Ó Senhor Bom Jesus! Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso olhar de misericórdia, parecendo desejar que, de meu lado, também eu levante os meus para Vos considerar!

Sim, para Vos considerar em vossa infinita perfeição, e no insondável abismo das dores que padeceis… por mim. Pois bem sei que todas essas dores, Senhor, Vós as sofreríeis só por mim ou por outro homem qualquer, se este fosse o único a depender de tais padecimentos para se salvar.

Vós me convidais a Vos fitar, Senhor! Mas Vós mesmo sabeis que não ouso fazê-lo. Não ouso pôr no vosso divino olhar os meus olhos pecadores, pois me é patente que não sou senão um  vermezinho e miserável pecador, como disse vosso grande e glorioso servidor São Luís Maria Grignion de Montfort. Entretanto, sei também, Senhor, que num extremo de misericórdia destes-me por Mãe vossa própria Mãe.

É ela a advogada que instituístes para pleitear minhas atenuantes ante o vosso tribunal, e para me obter a torrente de vossas misericórdias.

Assim, rogo-Vos, Senhor, por Maria Santíssima, Medianeira de todas as graças, favorável acolhida para as súplicas que passo a Vos apresentar.

Conheço, Senhor, quanto os horizontes de minha alma são de “teto baixo”. Isto é, quanto as cogitações para as quais me volto são meramente práticas, sumidas no concreto, de pouca elevação, todas restringidas ao âmbito natural e à vida terrena, cujos aspectos são precisamente os que mais me atraem. E procuro não olhar de frente o que existe de maravilhoso, de grandioso, de admirável, em suma, as criaturas terrenas que melhor refletem vossa supremacia e vossa glória.

Imploro-Vos, ó Bom Jesus, que limpeis de minha alma este, como tantos outros defeitos meus, tão indignos da condição para a qual me chamastes, a rogos de vossa Santíssima Mãe; tão indignos da condição de quem deve viver afastado de todas as coisas terrenas, cogitando destas apenas na medida que estejam ordenadas ao Céu, a fim de preparar neste mundo as condições para que os homens melhor se salvem e Vos deem a maior glória — “nunc et semper et per omnia sæcula sæculorum”. Fazei-me amar, reta e santamente, tudo quanto é grande, maravilhoso, régio e elevado. Dai-me a graça de ser totalmente inapetente das ninharias que até agora me atraem e de ser totalmente apetente das grandezas que me deixam enfastiado. Pois o fastio dessas grandezas, Senhor, acaba redundando em fastio de Vós. Quem é frio e resistente aos apelos que fazeis ao amor dos homens, através do que é santo e maravilhoso na terra, o é também em relação à vossa obra-prima, que é a graça. E o é, outrossim, em relação a todos os infinitos horizontes da fé, que devemos contemplar.

Não Vos peço apenas, Senhor, que esse defeito se atenue em mim, nem Vos suplico somente que dele me cureis. Imploro-Vos mais, muitíssimo mais: que eleveis minha alma ao amor de tudo quanto é grande na ordem sobrenatural e na ordem natural, e que eu a tudo ame com um amor que esteja no extremo oposto da indiferença que até agora me tem dominado.

Pela linfa preciosa que correu de vosso lado, pela Igreja que saiu de vosso flanco, pelo sofrimento de vossa Mãe aos pés da Cruz, peço-Vos, Senhor: perdoai-me todas as minhas infidelidades e fazei de mim o contrário do que sou. Amém.

Apresentação de Nosso Senhor no Templo

Após ter gerado do modo mais maravilhoso e feliz possível o Filho divino que o Espírito Santo concebeu nas suas entranhas virginais, Nossa Senhora quis se sujeitar, junto com o Menino, à Lei de Moisés pela qual deveriam se apresentar no Templo: Ela, para completar os dias de sua purificação, e Ele, a fim de ser oferecido e resgatado como primogênito.

Submetendo-se, sem o precisarem, a tais preceitos, Mãe e Filho nos deixaram um lindo exemplo de amor e obediência aos desígnios de Deus. Ao mesmo tempo em que proporcionaram ao santo Simeão a alegria indizível de ver com seus próprios olhos o Messias prometido pelas Escrituras.

Sustentando o Verbo Encarnado em seus braços, o profeta O louvou e aclamou como a glória de Israel, a salvação que Deus preparara diante de todos os povos, como a Luz para iluminar as nações…

(cf. Lc 2, 29-32).

Plinio Corrêa de Oliveira

Quem responderá pela perdição dos inocentes?

O amor de Jesus Cristo para com todos os homens, sua predileção pelos inocentes e sua misericórdia para com os pecadores, explicam sua severidade contra os que maculam a inocência ou desviam a contrição dos arrependidos.

 

Fala-se muito freqüentemente, e com razão, do amor que o Divino Salvador votou às almas pecadoras, arrependidas ou não: a estas, perseguindo com santa e afetuosa perseverança, até conseguir delas uma real correspondência à graça; àquelas, franqueando de par em par, com divina generosidade, as portas de seu Coração. Entretanto, fala-se infelizmente muito menos do amor que Nosso  Senhor Jesus Cristo votou às almas inocentes, e dos extremos de zelo com que defendeu contra as seduções do mundo, e contra as investidas dos fautores de escândalos, as ovelhas fiéis que jamais se afastaram do redil do Bom Pastor.

Maldade dos que desviam os inocentes

Um dos episódios mais tocantes do Santo Evangelho é, sem dúvida, aquele em que o Divino Mestre, fazendo aproximar de si os pequeninos, os afagou meigamente e prometeu o Reino do Céu àqueles que lhes fossem semelhantes.

Mas o que eram estes pequeninos, a quem Nosso Senhor com tanta ternura amou, senão os representantes de todas as almas inocentes, de todas as idades, em todos os tempos e em todos os  lugares, que o Espírito Santo haveria de suscitar na Igreja de Deus? E a quem se dirige aquela tremenda ameaça, na qual jamais devemos pensar sem medo, de que seria melhor que os que  escandalizassem a algum destes pequeninos fossem atirados ao fundo do mar, senão aos que procurassem desviar do bom caminho as almas inocentes?

Cada alma inocente constitui como que uma província de eleição no Reino de Deus. Para salvar cada uma destas almas, Nosso Senhor Jesus Cristo se encarnou, padeceu e morreu na Cruz. E ainda que a Redenção fosse necessária para a salvação de uma só alma, Nosso Senhor teria sofrido generosamente tudo quanto sofreu, para operar efetivamente tal salvação.

Assim, pois, o valor de cada alma inocente é o próprio valor do Sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo. E atirar ao abismo do pecado mortal uma alma inocente é desperdiçar  criminosamente os benefícios da Redenção. Por aí se compreende o opróbrio que pesa sobre aqueles que, por seu exemplo, por suas palavras por suas obras, por sua influência, arrastam para o pecado qualquer alma inocente, por mais ignorante e falha de dotes intelectuais que seja, uma vez que o valor da alma não se mede por sua cultura nem por sua inteligência, mas pelas  considerações que acima externamos.

O pecado dos que prejudicam as almas contritas

Não é muito menor a responsabilidade dos que fazem reincidir no pecado as almas penitentes. Para medir quanto desagrada a Deus que se procure afastar do bom caminho as almas sobre as quais Ele restaurou seu Reino, bastará que se tomem as parábolas mais tocantes do Santo Evangelho.

Que diria o pai do filho pródigo, aquele pai generoso e bom que acolheu com tais extremos de contentamento o filho contrito, se depois do festim em que se celebrou a volta do infiel, depois de  restabelecida a paz no lar e de reinstalada nele a alegria que sumira com a ausência do filho ingrato, que diria ele se depois de tudo isto um amigo pérfido dos maus tempos passasse pela casa paterna e, com solicitações infames, procurasse arrastá-lo novamente à vida má que levara?

Tomemos agora a parábola do Bom Pastor. O que  diria ele, que dá a vida por suas ovelhas, se, ao retornar do fundo do precipício aonde por mil perigos tinha ido salvar a ovelhinha extraviada, o lobo dele se acercasse para lha arrancar dos braços? Ele, que expusera sua vida para salvar a ovelhinha, não haveria de enfrentar animosamente o lobo, para a defender contra mais este risco?

Disse Nosso Senhor que Ele não veio destruir o arbusto partido, nem extinguir a mecha que ainda fumega. Pelo contrário, veio Ele reerguer o arbusto que enfermou, e reacender a mecha que ventos hostis extinguiram quase por completo.

Mas o que é um pecador contrito, que luta penosamente contra seus sentidos em revolta, senão um arbusto partido, que foi reerguido sobre sua base pelo Divino Jardineiro, e que, ainda fraco, se inclina fortemente sob a pressão da menor brisa? E que maior pecado haverá, do que partir de novo, e quiçá de modo irremediável, o arbusto que o próprio Deus carinhosamente consertou? O que é um pecador contrito, senão uma mecha fumegante que começa, lenta e penosamente, a se reacender? E o que haverá de mais desagradável a Deus, que não quer a morte do pecador mas sim que  ele se converta e viva, do que a ação cruel e ímpia dos que extinguem deliberadamente esta mecha, e matam na alma ainda convalescente os germes promissores de uma vida que começava a se reanimar?

Pela mesma razão em virtude da qual o Salvador amou o pecador contrito, é-Lhe sumamente odioso que alguém se esforce por arrastá-lo novamente à perdição. Um outro episódio do Evangelho
o demonstra de modo exuberante.

A indignação divina contra os ímpios

Todos conhecem suficientemente a cena célebre do Divino Salvador empunhando um zorrague, e enxotando do Templo de Jerusalém os mercadores que ali faziam um comércio inteiramente profano. Diz a Sagrada Teologia que cada alma é um templo do Divino Espírito Santo. Fazer uma alma cair em pecado é enxotar o Divino Espírito Santo do templo que Lhe foi conquistado pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, é profanar este templo, é transformá-lo, de templo de Deus, não apenas em lugar profano, mas em templo de Satanás.

Assim, se Nosso Senhor fustigou com um implacável zorrague aqueles que profanavam o Templo de Jerusalém, construído com material precioso pela piedade dos judeus, com que extremos de  indignação não deve desejar que seja atirado para longe do pecador aquele que, seduzindo-o para o mal, profana um templo espiritual, cujo preço não foi o ouro nem qualquer material precioso, mas o próprio Sangue de Cristo?

A prova disto está nas frases cheias de censura que Nosso Senhor atirou aos fariseus. Para que deu Nosso Senhor a estas frases tal publicidade? Se Ele queria chamar a atenção dos fariseus para o  estado lastimável em que se encontravam suas almas, não o poderia ter feito de modo mais reservado? Se o fez publicamente, não se pode licitamente conjecturar que o tenha feito a fim de destruir energicamente o prestígio dos fariseus junto do povo, impedindo-lhes, assim, que fossem nocivos a este, e por assim dizer fustigando-os com o zorrague de sua palavra, para os enxotar para longe das almas que eles desejavam perverter?

“Não!” às misericórdias mal entendidas

Rei de todas as almas em geral, Jesus Cristo é implicitamente Rei de cada alma, e Ele governa cada alma com a solicitude, com o afeto, com a atenção com que a governaria se fosse a única alma sobre a qual se exercesse seu império.

Jesus Cristo, como Rei das almas, é o modelo de todos os reis. Rei de misericórdia e de amor, não exerce Ele seu reinado com outro intuito que não o de beneficiar a alma que é seu reino. Nenhum de nós deixaria de chamar traidor a um rei que não empregasse todos os recursos de seu talento, e todas as energias de seu poder, a fim de preservar de uma agressão injusta seu país. Será  porventura Nosso Senhor menos perfeito? Não haverá uma blasfêmia em imaginar que, tocado de um falso amor para com o agressor, Ele haveria de aconselhar a seus soldados, que somos nós,  que negligenciássemos a defesa de seu Reino?

Haveria ele de oferecer o inocente em holocausto ao pecador, dar impunidade ao pecador para devorar o inocente, com a esperança de assim conquistar para si o pecador?

É porque o “Legionário” jamais pôde admitir esse absurdo, que ele se levantou sempre contra as misericórdias mal entendidas, as paciências ingênuas e imprudentes, as “habilidades”  contemporizadoras e criminosas, que, com o intuito de consumar uma arriscada manobra apostólica, de resultados mais do que duvidosos, expõem à perdição as almas inocentes ou contritas, na  problemática esperança de atrair o fautor de heresias. E se ele se não deixar enternecer? Nem o amplexo supremo do Divino Mestre enterneceu o traidor “que melhor seria que não tivesse nascido”. Se não se enternecer o agressor, quem prestará contas a Deus pelas almas que ele tiver devorado, pelos arbustos que partir, pelas mechas que extinguir, pelos filhos que arrastar para longe da casa paterna, nos antros malditos onde ruge a impiedade e espuma a luxúria?

Para o pecador, mesmo não contrito, toda a misericórdia. Mas essa misericórdia não deve ser nem tão arriscada nem tão imprudente que chegue à suprema crueldade de expor à perdição as almas que foram resgatadas pelo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 70 (Janeiro de 2004)

(Excertos do artigo do “Legionário”, de 27/10/1940. Título e subtítulos nossos.)

O sacrossanto olhar de Jesus

Para Dr. Plinio, o Evangelho era um tesouro de onde se tiram “coisas novas e antigas”. Com seu apurado discernimento, tecia ele considerações de uma profundidade emocionante a propósito de  vários aspectos e passagens desse texto sagrado. Por exemplo, sobre algo que o comovia entranhadamente: o olhar do Divino Mestre.

 

Em Jesus, o semblante, as expressões da face e até o timbre da voz não são senão comentários ao que mais O exprime, isto é, seu olhar. Este é sumamente ordenado e feito de gradualidades.

Quando fulgura, é como um sol. Quando não, mostra-se sempre de um certo modo, semelhante ao que representa o barítono para a música vocal: nem muito alto nem muito baixo.

Não é um olhar que sai de si para penetrar nos outros, a não ser raramente. Antes, convida a que se entre nele, para entabular elevados colóquios conosco. Olhar muito sereno, aveludado quase…  No fundo, porém, revelando uma sabedoria, retidão, firmeza e força que nos enchem ao mesmo tempo de encanto e de confiança.

A meu ver, todas as perfeições existentes na ordem do Universo  — a das estrelas como as de uma Gruta de Capri, ou as de qualquer outra maravilha — estão contidas no olhar de  Nosso Senhor Jesus Cristo,  e os estados de alma d’Ele correspondem a todas as belezas do mundo. Por isso, ao apreciarmos algum esplendor da criação, seria bastante proveitoso meditarmos na excelência do olhar d’Ele que se acha espelhada naquela grandeza criada.

Por exemplo, quando estou sozinho e contemplo o céu todo estrelado acima de mim, experimento a curiosa impressão de que sou visto, e de que aquele firmamento todo converge sobre mim. Esta é a sensação que se tem quando Nosso Senhor nos olha.

É todo um céu que se debruça sobre nós. Mas quando somos nós que nos pomos a fitá-Lo e colhemos o fundo de seu olhar, nos sentimos melhor do que ao sermos olhados por Ele. Pois ali, no conjunto dos olhares d’Ele, a ordem do Universo se reflete inteiramente, as regras da estética se resumem de modo perfeito, os princípios da lógica se articulam de maneira admirável. Numa palavra, o “pulchrum” e o significado interno de tudo quanto existe estão contidos no olhar de Nosso Senhor.

De sorte que, por exemplo, ao conversar com Lázaro, com Marta ou Maria Madalena, a fisionomia, a voz e o olhar de Jesus — sem indiscrição alguma — iam muito naturalmente mudando, e em sua expressão se podia compreender um número incontável de coisas.

 Olhar que acompanha a História

Por isso mesmo, considero o olhar de Nosso Senhor Jesus Cristo como se fosse quase outro Evangelho, e uma prodigiosa “leçon des choses”. De fato, Jesus é Rei do Universo e, portanto, Rei da História. Não o é apenas da história das nações, mas também da existência individual de cada um de nós. E os desígnios d’Ele vão se fixando e se traçando na medida em que a nossa trajetória neste mundo se desenvolve. Ele vai olhando para nós, e se pudéssemos vê-Lo em cada momento, teríamos o sentido daquilo que estamos vivendo a cada passo.

Imaginemos Nosso Senhor por ocasião da multiplicação dos pães, considerando o povo reunido em torno d’Ele: “Tenho piedade desta multidão” (Mt 15, 32). É concebível que Ele tenha proferido  essa frase com os olhos fechados? Não pode ser.

Se os olhos de Jesus não estivessem abertos enquanto Ele falava ou caminhava, teria atraído aquela multidão? Claro está que, se assim o quisesse, Nosso Senhor tocaria aquelas almas mesmo sem lhes dirigir o olhar. Porém, não procedeu dessa forma, e foi o olhar d’Ele que as atraiu.

Outra passagem do Evangelho na qual me parece que o divino olhar do Salvador se reveste de maior expressividade é o momento em que Jesus, flagelado e coroado de espinhos, foi apresentado ao ovo por Pilatos. Para mim, excetuando o instante em que Nosso Senhor fita o Apóstolo Pedro que acabara de negá-Lo, não há episódio do Evangelho onde o papel do olhar se manifesta tão evidente como no “Ecce Homo”. Tanto mais quanto, naquela circunstância, o Redentor não proferiu qualquer palavra, permanecendo num majestoso silêncio.

Cumpre ressaltar, aliás, o fato impressionante de que os algozes de Nosso Senhor, quando O esbofetearam durante a Paixão, não suportaram o divino olhar que os fitava. Para consumar as suas  atrocidades contra Jesus, tiveram de Lhe vendar os olhos…

 Devoção ao Sacrossanto olhar

Essas considerações nos fazem compreender bem que noite tremenda se fez para o mundo quando o olhar d’Ele se extinguiu! Noite na qual se teria vontade de pedir a Deus que nos levasse desta Terra. Pois uma vez que alguém se habituou ao convívio daquele olhar, tendo este se apagado, nenhum sentido restaria para se continuar a viver no mundo. Para fazer o quê? Turismo em alguma linda cidade européia? Visitar Paris, conhecer Viena? Como estas nos parecem pobres e insípidas, em comparação com a graça de ver aquele divino olhar! As maravilhosas jóias da casa d’Áustria, a extraordinária coroa do  Sacro-Império, nada seriam para o homem sobre quem pousaram os olhos misericordiosos do Salvador.

Muito embora a devoção ao Sagrado Coração de Jesus me fale tanto à alma, na realidade toca-me ainda mais a devoção ao olhar d’Ele. Talvez, pela razão mesma de ser o olhar a melhor expressão do coração. E esta seria, caso não o impugnasse a Teologia, a “devoção ao Sacrossanto  Olhar”…

A partir dessa ideia, poder-se-ia introduzir no “Anima Christi” outras  invocações como: olhar padecente, olhar misericordioso, olhar de divino Juiz… penetrai em mim e fazei-me entrar em vós.

Poder-se-ia, igualmente, compor uma “Ladainha dos olhares de Jesus”, a qual reluziria de uma beleza arrebatadora. Concluo, fazendo notar que, quando se analisa assim o Evangelho, encontram- se nele profundidades insuspeitadas. Suas páginas constituem um tesouro repleto de “nova et vetera” — coisas antigas e recentes.

Tudo quanto acima foi dito nos revelou algo imensamente valioso, mas é natural que se procurem também outras gemas preciosas nesse tesouro. As jóias que acabamos de admirar, a nós nos regalam, porque são as meditações que se acrescentam ao cântico antigo, em função de nossa vida, nossas batalhas e nossos sofrimentos nesta terra de exílio.

Plinio Corrêa de Oliveira

Grandeza infinita

Ao adorar o Homem-Deus, Dr. Plinio buscava explicitar o cume de suas perfeições infinitas, cujos maravilhosos aspectos, aparentemente antagônicos — compaixão, cólera, serenidade, seriedade, perdão, gáudio, tristeza — deveriam enfeixar-se em um ponto supremo.

Durante toda a vida, na contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o ponto mais alto da minha admiração é considerar como Ele é perfeitíssimo debaixo de todos os pontos de vista. E procurar na personalidade d’Ele o ponto supremo, no qual todas as virtudes convergem para uma que é um sol de todas as outras.

Píncaro de toda a Criação

Como é esse ponto? Se pudéssemos ver isso n’Ele, como O consideraríamos?

Imaginem uma catedral composta de numerosas ogivas que se sucedem umas às outras, desde a porta principal até o presbitério, e — existe isso em certas catedrais — há uma ogiva mais alta que abarca todas as outras. Qual é, em Nosso Senhor, essa ogiva suprema?

Gosto de figurar que é uma grandeza a qual contém todos os abismos de perfeição d’Ele. Por exemplo, analisando toda a Criação, considerar aquilo que podemos chamar o ponto alfa de todo o criado, o ponto mais alto que, em última análise, é Ele mesmo, porque é o Homem-Deus. Enquanto Deus, Ele está infinitamente acima dos seres criados, mas enquanto Homem é o píncaro de toda a Criação.

Outro aspecto: uma seriedade infinita, olhando todas as coisas pelos seus mais altos e mais profundos aspectos, pela ordenação que as coisas têm entre si, e amando-as enquanto tais, porque são e devem ser assim.

Depois, uma serenidade insondável, que absolutamente não é indiferença para com os outros. Pelo contrário, um amor a cada ser, sobretudo às criaturas humanas, um amor transcendente do qual não podemos nem ter uma ideia!

Se o olhar d’Ele pousasse sobre uma multidão com dez milhões de pessoas, e nós pudéssemos acompanhar esse olhar enquanto incidindo sobre uma delas, ficaríamos conhecendo como ela é, como é o amor d’Ele para com ela, qual o gáudio que Ele tem se essa pessoa for fiel, e a tristeza se for infiel. Que amor, que alegria e que tristeza!

É um olhar cheio de serenidade e de seriedade, compreendendo o que vale cada criatura humana, disposto a fazer-lhe todo o bem possível, e amando-a totalmente. De maneira que essa pessoa, se salvando, é para Nosso Senhor um estremecimento de alegria.

Mas se ela se perde, é uma iracúndia sublime! As tempestades do mar mais terríveis não são senão brincadeira em comparação com isso. E quando Ele expulsa alguém para o Inferno, então ficamos pasmos do horror que Jesus tem àquela criatura que até o fim não quis atender o chamado d’Ele, e que por causa disso se precipita no Inferno. Não podemos ter ideia do que é a cólera se não pensamos na cólera divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Grandeza fulgurante de Nosso Senhor

Ao mesmo tempo em que n’Ele existe esse amor e essa cólera, há uma compaixão enorme, porque Nosso Senhor sabe perfeitamente que todos nós, homens, fomos postos nesta vida para sofrer, somos filhos de Adão e Eva e, portanto, herdamos o pecado original, temos defeitos e estamos na Terra para purgá-los e expiá-los, sermos fiéis e irmos para o Céu.

Jesus manda as provações, as dificuldades, as tormentas, e Ele mesmo prepara para nós a solução, arranja um jeito de, suportando-as e vencendo-as, acabarmos sendo fiéis.

Considerar que tudo isso em relação a todos os homens, desde o primeiro até ao último, cabe naquela mente e naquele Coração, nos dá uma ideia da grandeza d’Ele. Perto da qual, o que adianta dizer que fulano é um grande homem? Ninguém é grande, todo o mundo é pequeno, insignificante diante da grandeza fulgurante de Nosso Senhor.

A consolação d’Ele quando via — porque conhecia o futuro — os cruzados montarem a cavalo e irem até a Terra Santa para libertar Jerusalém! Que alegria! Ele via São Fernando tomar Sevilha, e pouco depois Isabel e Fernando conquistarem Granada, e o reino maometano acabar. Nosso Senhor exultou de alegria pensando no grande São Fernando, que vingaria a glória d’Ele. Tudo isso são grandezas fulgurantes.

Mas, ao mesmo tempo, lembrando o bom pastor que tem pena de sua ovelha, tira-a do carrascal, leva-a sobre os ombros e a cura. E o pai do filho pródigo que perdoa, etc. Há uma pluralidade tão grande de aspectos, que ficamos sem ter o que dizer.

Eis a grandeza, a majestade de Nosso Senhor, fazendo com que queiramos muito a invocação que está na Ladainha do Coração de Jesus: Coração de Jesus, de majestade infinita, tende compaixão de nós!

Majestade do abandono

Este é também o divino equilíbrio que há no Coação de Jesus. Por exemplo, a serenidade, a calma e a visão geral das coisas que Ele conservou durante sua Paixão.

A agonia no Horto é uma perfeição de equilíbrio e de majestade. Ali Nosso Senhor entra diretamente em colóquio com o Padre Eterno e tratando de todos os destinos do mundo, vertendo gotas de seu Sangue. E, depois, a majestade do abandono! Quer dizer, tão grande que nenhum homem conseguiu ficar junto d’Ele.

Portanto, a soledade, a tristeza, mas tudo tão equilibrado, tão extraordinário, que se a pessoa tomasse o trabalho de raciocinar um pouco sobre isso, sairia mais equilibrada e menos nervosa.

Uma pessoa que conhecesse o grande São Fernando — o qual conquistou terras sem conta aos mouros e que, de fato, foi quem os expulsou da Espanha — e tratasse com ele, seria impossível falar com o Santo sem ter diante dos olhos continuamente a ideia: esse expulsou os mouros. E na hora em que ele pedisse água para beber, talvez se pusesse de joelhos por causa dessa ideia, indissociável da noção da mouraria enxotada da Espanha, e da coragem do grande São Fernando.

Ao menos eu não saberia olhar para ele sem ter isso em mente.

Assim também, se eu conhecesse São Tomás de Aquino — o Doutor que é como um sol da Igreja Católica —, como me seria possível vê-lo passar por uma estrada, ainda que distante, montado a cavalo e meditando sobre um ponto de Filosofia, e não imaginar que dentro daquela cabeça estava nascendo um sol? Sol de inteligência, de sabedoria, de santidade. E o que vale mais do que tudo é a santidade, evidentemente.

Antegozo do Céu

Diante de Nossa Senhora também pensaríamos tudo isto, mas com uma particularidade.

Imaginar, por exemplo, Nossa Senhora, que foi virgem antes, durante e depois do parto. Durante o nascimento de Nosso Senhor Ela se conservou virgem; como esse mistério se deu?!

Outro episódio da vida de Maria Santíssima: quando Ela notou a perplexidade de São José, viu seu esposo passar por aquele sofrimento sem nome, e percebeu a santidade dele que não duvidou d’Ela em nenhum momento. O demônio com certeza queria que ele duvidasse de Nossa Senhora; São José não duvidou em nenhum instante, mas resolveu retirar-se. E a tristeza com que ele se acomodou sobre a cama para dormir, antes de partir pela estrada para o desconhecido, porque era o homem que estava colocado na maior perplexidade que houve na História.

Quem sabe se Ela o olhou dormindo em paz, mas afogado na dor? E se Ela de repente notou — quando já era quase madrugada, perto da hora de ele se levantar e partir, no último sonho noturno — a fisionomia de São José se iluminar como um sol, e percebeu que na última hora Deus teve pena dele e revelou-lhe o que havia?

Ele no sonho viu o Anjo, não acordou logo, mas pouco depois um vulcão de alegria estourou dentro dele. São José ficou junto à porta do quarto de Nossa Senhora prostrado, à espera do momento em que Ela saísse, osculou o chão e os pés d’Ela, e a Virgem Santíssima entendeu tudo e nunca falaram sobre nada. É uma coisa para lá de sublime!

Conversar sobre temas desses é antegozar o Céu. Imaginem a hora em que cheguemos ao Paraíso e vejamos, de repente, São José com aquele bastão e aqueles lírios, cercado de uma coorte intérmina de Anjos, mas com uma alegria enorme no olhar porque estava vendo Nossa Senhora a pouca distância dele. E um pouco mais adiante Nosso Senhor, que sem ser filho dele segundo a carne, mas sim segundo a lei, sorriu para ele e disse: “Meu pai!”

Só de vermos essa cena teríamos uma felicidade própria para encher a eternidade.

Tenho a impressão de que, diante de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o tema é tão grande que a graça penetraria em torrentes dentro de nós para, por assim dizer, pensar em nós e por nós a respeito desses temas, porque não somos dignos, nem estamos à altura de cogitar convenientemente sobre isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/1/1992 e 31/1/1993)

Considerações sobre a Sagrada Face

Algumas representações de Nosso Senhor existentes nas catacumbas não se parecem com Ele. Aos poucos, a piedade católica compôs a Face do Redentor e, quando encontraram o Santo Sudário,  conferiu impressionantemente. Na Sagrada Face, conforme se analise, estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz.

 

Analisando a face humana, notamos que ela se compõe de duas linhas. Uma vertical e outra horizontal. Uma linha parte da fronte e desce à base do  queixo, de maneira que toda a horizontalidade das sobrancelhas, dos lábios e do queixo é percorrida sutilmente por uma verticalidade.

A face humana tem aspecto de cruz

Essa ideia de horizontalidade é acentuada pelas orelhas que têm no aspecto do homem uma importância que ninguém imagina! Mas é só um indivíduo não ter uma orelha que todo mundo nota. Se não tiver as duas orelhas, brame! Nenhum de nós olhou hoje para as orelhas dos outros, mas é só aparecer um sem orelha que se nota imediatamente, porque completa a fisionomia de modo imponderável, interessante, inesperado.

Trata se de saber qual é a altura ideal que na face humana deve ter a linha horizontal para completar a perpendicular, e dar esse aspecto de cruz que a face humana tem.

Poderíamos imaginar cruzes bonitas com a trave horizontal a diversas alturas. E esse mesmo princípio é enunciado de modo interessante pelo rosto humano, criando várias alturas do travamento da cruz. Podemos imaginar uma cruz bonita com o braço em cima, quase em forma de “T”; ou mais próximo do meio, contanto que não passe de certo ponto, pois deixaria de ser uma cruz na posição normal e passaria a ser cruz de São Pedro.

Depende de certa proporção entre o tamanho e a largura para indicar onde deve ficar a altura. A harmonia do rosto humano tem muita relação com isso. Esses indivíduos que interpretam os traços do rosto humano, etc., pensam que a harmonia consiste só em tomar esculturalmente cada traço e ver se é bonito. Mas isso dá a beleza, não o charme. O charme é dado, no fundo, por essa  proporção. E sempre que se encontra um rosto com certa expressão ou certo charme, deve-se procurar isso, porque no fundo encontra. É até um exercício interessante procurar o charme dentro  da fisionomia.

Vemos descrições de montanhas, de panoramas bonitos, e depois exclamações: “Como Deus foi sábio! Como foi bom ao criar isso! …” Eu concordo perfeitamente, mas por que não falam da face humana que vale muito mais do que qualquer montanha? A mais arrebentada das faces humanas contém mais elementos de beleza do que uma montanha linda. O homem é o rei da Criação, o resto é uma ralé em comparação com ele. Qualquer homem que quisesse saberia pôr em relevo algum cantinho de sua alma por onde ele tivesse mais dignidade do que o Himalaia, o qual, afinal, é uma imensa trouxa de terra e pedras.

Na Sagrada Face estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz

Da Sagrada Face eu tenho a impressão de que é impossível desvendar qual é a proporção, porque tudo é calculado de tal maneira que dentro da discrição dela nada é enfeitado. Estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz, conforme se analise.

Imaginem que nos dessem uma imagem da Sagrada Face na qual faltasse apenas traçar as sobrancelhas; e um de nós deveria fazer esse traço. Eu ficaria muitíssimo hesitante. Onde pôr as sobrancelhas ideais para a Sagrada Face? Quer dizer, um milímetro faz diferença. Como desenhar? Arqueadas? Retas? De que jeito?

Prestem atenção, elas estão presentes na Sagrada Face de maneira tão discreta, que nem nos lembramos do problema das sobrancelhas. Mas em todas há um mesmo tato que indica a mesma coisa e que guia por uma tradição de piedade e bom gosto os autores. E que indica uma forma.

Depois, a barba aumenta a linha perpendicular. Enquanto o cabelo caído e desdobrando-se pelos lados parece acrescer a linha horizontal. Então há possibilidades de horizontais dentro disso a perder de vista! É uma feeria de cruzes.

A Sagrada Face tem isso que também é insondável: vamos olhar nas catacumbas as representações de Nosso Senhor, e algumas não se parecem com Ele. Por exemplo, a pintura do Bom Pastor representa um pastor qualquer do campo romano com uma ovelha nas costas. É digno, estou longe de depreciar; mas não é a Face d’Ele. Depois, aos poucos, a piedade católica compôs a Face de Nosso Senhor e, quando encontraram o Santo Sudário, conferiu impressionantemente.

A Face d’Ele é tão perfeita que qualquer expressão da fisionomia que se queira comunicar-lhe – de tristeza, dor, majestade, bondade ou qualquer outra –, com um pequeno aceno fica  expressivíssima! São os opostos harmônicos. Não há face que seja mais expressiva e que menos precise mover-se para conter um mundo de expressões do que a d’Ele.

Mais ainda: as atitudes do Corpo divino importam pouco, porque a Sagrada Face absorve tanto a atenção que o resto fica quase como se fosse um busto.

Olha-se tanto para a Face que nem se deita bem a atenção sobre os pés divinos. Presta-se, isso sim, alguma atenção nas mãos.

Dimensões do universo e movimentos da alma humana

De posse desta noção, nós nos perguntamos o que fazer da ideia de São Tomás de Aquino segundo a qual o círculo é a mais perfeita figura, uma vez que é o efeito que volta à sua própria causa.

Então poderíamos nos perguntar se a cruz não é uma figura mais bonita. A cruz não é, propriamente, uma figura geométrica contínua, não é um triedro nem nada disso, são dois paus. Mas contém as duas dimensões do universo e os dois movimentos da alma humana.

A alma humana encontra um gosto específico em relacionar-se para cima e para baixo; e outro gosto especial em relacionar-se para o lado: transcendência e semelhança.

Ninguém pode viver sem essas duas disposições de alma. Por exemplo: alguém vive perpetuamente entre os inferiores e os superiores sem nunca encontrar um congênere, quando encontra faz uma festa!

Mas de uma vida só com um congênere dizemos: “Que tédio!” É de não poder suportar porque a alma humana pede, exatamente, esses dois movimentos. Então, deve haver – mas eu não tive tempo de refletir – no fundo da estética um princípio pelo qual se encontra também na natureza a presença da cruz como a coisa mais bonita que há.

Posto a forma esférica da Terra – agora a coisa é muito improvável, estou apresentando pontinhas de reflexão inacabada apenas pelo desejo de dar tudo –, poder-se-ia dizer que o meridiano e o eixo, projetados de certo modo, a sombra deles num plano daria uma cruz? Uma pergunta que se poderia fazer, mas é um pouco laboriosa.

Entretanto como se pode caracterizar isso numa Terra que é esférica? Por que isso não vale para qualquer ponto da esfera?

Disseram-me haver estudos demonstrando que o centro da Terra está no Santo Sepulcro. Isso me interessaria muito saber se houvesse dados a esse respeito, porque é uma coisa magnífica! Quando eu era pequeno, caçoavam nas aulas de Geografia do conceito da Idade Média, de que Jerusalém era o centro do mundo. E zombavam da ideia da esfera, dando a objeção que indiquei. E a objeção me deixava perplexo, naturalmente não saberia como responder, mas internamente pensava: “Demonstrem como quiserem, deve ser o centro, um dia isso aparecerá!”

De maneira que eu fico contente em saber e vai na linha das elucubrações que eu fazia a hipótese que estava lançando. Mas conhecer o critério segundo o qual isso é o centro me interessaria no mais alto grau. Serviria para uma série de outras elucubrações.

O dormir e o levantar-Se de Nosso Senhor

O perfil moral de Nosso Senhor, a meu ver, é inabarcável. Porque olhando para Ele – aliás também se dá de um modo curioso com Nossa Senhora, cuja verdadeira efígie, não conhecemos – temos a impressão de como a humanidade d’Ele, santíssima, resplandece de divindade. É natural. Jesus é tão pleno que em qualquer estado de alma em que esteja, temos a impressão de que Ele é aquilo e só aquilo.

Por exemplo, imaginando Nosso Senhor dormindo na barca, temos a impressão de um sono que não é o de bicho, desmaiado, mas é o repouso do equilíbrio perfeito da alma com o corpo. Não é, portanto, o sono do que ronca, gesticula, se move, sua, grita. Isso é uma coisa horrorosa!

Mas é um sono placidíssimo, em que a alma fica naquela distensão agradável, tranquila, porque o corpo inteiro não está se movendo e ela toda fica colocada sob a mão de Deus. E se tem a impressão de um repouso, de uma distensão e de uma união com o Padre Eterno e com o Divino Espírito Santo na inocência do sono, uma coisa que não se pode ter ideia! Então, tem-se vontade de dizer: “Olha, eu não creio que acordem a Ele nunca, porque de vê-Lo dormir eu vivo.

Eu tenho coragem para qualquer coisa, só de vê-Lo dormir!” Em certo momento os Anjos O acordam. Já pensaram o que é o despertar d’Ele? Sereno, tranquilo, abre os olhos… um caudal de compreensão de tudo, e começa a exercer, desde logo, um poder a respeito de todas as coisas, com a naturalidade com que um de nós move os braços. Ele Se levanta, “os ventos e os mares Lhe obedecem”(cf. Mc 4, 39). O erguer-Se de Nosso Senhor tem que ser mil vezes mais formoso do que o erguer-se do Sol. Não tem comparação!

Imaginem, por exemplo, de madrugada Ele se levantar e um Apóstolo, que acordou mais cedo, está na penumbra e se imagina não visto por Ele, começa a vê-Lo no momento em que Ele está, na aparência, inteiramente só, e aí começa a mover-Se, de repente Se levanta. E diante de nós aparece Ele, alto e majestoso. Nasceu o Sol! Se Sol se pusesse naquela hora, se Ele se levantasse no ocaso eu diria: “O Sol é uma bola inútil! Deixa de fazer esses seus sinais insignificantes porque você está reduzido a zero! O Sol nasceu aqui… vai ser dia porque Ele acordou! Não me venham com mais nada, o resto é lorota, está acabado!”

Estados de alma do Redentor

Vejamos agora os estados de alma. Na hora da compaixão temos a impressão de que Nosso Senhor é de tal  maneira compaixão, que Ele nem é capaz de outro sentimento a não ser este. Mas no momento da oração, tem-se a impressão que Ele se isola de tudo e fica em oração. E se alguém de longe O visse rezar poderia dizer: “A minha vida inteira não farei outra oração senão repetir a  d’Ele, porque depois que O vi rezar, não sei fazer outra coisa senão me lembrar daquilo e orar. O que são os meus Padres-Nossos, as minhas Ave-Marias em comparação com a oração feita por Ele?! Absolutamente nada!”

De repente é a ação. “Vamos ao mar da Galileia!” Pran!

Quer dizer, tudo isso tem uma tal grandeza que Nosso Senhor, em cada atitude da Alma, é como se Ele fosse aquilo! Ele é a Ação, o Sono, a  Compaixão, a Cólera, a Justiça. Aquela resposta aos fariseus: “Então dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus…” (cf. Mc 12, 17). Tem-se a impressão de que Ele ali é de uma argúcia tal que seus olhos resplandeceram de penetração.

Logo no primeiro brilho da argúcia, nos pomos de joelhos. Eu li que alguns autores espirituais censuraram uma atitude de São Pedro que, se forem todos, é censurável, mas se não for a totalidade  deles, estou do lado dos que admiram. Aquele dito de São Pedro para Jesus: “Afastai-Vos de mim, Senhor, porque eu não sou senão um miserável pecador!” (Lc 5, 8). Porque é tanta grandeza, tão  infinita, que não temos ideia; é muito além do que estamos afirmando! Tem-se vontade de dizer: “Eu me descomponho, me arraso, escorro como cera no chão diante de tanta grandeza. Senhor, afastai-Vos de mim porque sou um miserável pecador.

Mas não Vos afasteis demais porque sem Vos ver eu morro…”

Há em Nossa Senhora algo de parecido ao que existe em seu Divino Filho

De que maneira vemos isso em Nossa Senhora?

De modo muito bonito. Não sei se notaram que as invocações de Nossa Senhora são muito variadas, mas diversas delas se repetem. Por exemplo: Nossa Senhora Auxiliadora e Nossa Senhora do  Amparo são a mesma coisa. Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Nossa Senhora da Saúde é Ela enquanto socorre os doentes, portanto é uma especificação do gênero  Nosso Senhora do Perpétuo Socorro. Mas Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é Auxiliadora e Amparo, pois está socorrendo! Mas cada uma das imagens próprias a uma dessas invocações traduz uma personalidade própria. De maneira que Nossa Senhora enquanto Genazzano, ou enquanto Auxiliadora, é como se fossem pessoas distintas, harmônicas, mas diferentes.

É que a piedade popular se dá conta de que havia n’Ela, em proporções criadas, algo do que existe de parecido no Divino Filho d’Ela. E que em cada invocação Ela é tão plenamente, que julgaríamos estar tratando com outra pessoa.

Na realidade eu creio que se víssemos simplesmente Nossa Senhora, nós não aguentaríamos. Se Ela fizesse conosco como Nosso Senhor fez no Tabor, nós não suportaríamos, tal o esplendor, a pujança.

Alguém dirá: “Mas no Tabor até os Apóstolos pediram para ficar.” É verdade, porque foi mostrado tudo com uma doçura muito grande e com os contrapesos necessários.  Porque, do contrário, não aguentavam.

Pois um homem não aguenta a aparição de um Anjo, se este não ajudar o homem. E Anjo da guarda é a hierarquia menos elevada de Anjo. Imaginem Deus!

Façam, então, o retrospecto. A Santíssima Virgem dando explicações ao Menino Jesus Imaginem Nossa Senhora brincando com o Filho, dirigindo sua adolescência. O Filho perguntando para Ela com toda a seriedade: “Como é isto?

Explique-Me…” E a Santíssima Virgem sabe que Ele é Deus e conhece infinitamente melhor do que Ela. Mas Ela sabe também que a divindade não comunica essa informação à humanidade d’Ele, porque quer que esta a receba dos lábios d’Ela. Imaginem Nossa Senhora falando…

Para um de nós isso é um impacto que não aguentaria. Se o Menino Jesus dissesse: “Que forma tem a Terra?” Diríamos: “Hã! é, como é, isto é, ou seja… ahhh!…” E daí para fora, não saía a explicação. Depois começava a olhar para Ele e ficava intimidado.

“Sendo Ele tão infinitamente superior, o que vai achar da bobagem que vou dizer? Nem tenho coragem de me apresentar a Ele!”

Nossa Senhora, com toda a tranquilidade, diz: “Meu Filho…”, e dá a explicação angélica. Ele ainda faz duas ou três perguntas e Ela quase desmaia de encanto diante da sabedoria das indagações. Depois Ele agradece e vai brincar…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1980)

Os Reis Magos

Na vida espiritual pode haver momentos em que pensamos trilhar um caminho incerto, sem vislumbrarmos o almejado objetivo. Dizemos: “Afinal, andamos, andamos, andamos, como se à nossa frente estivesse a estrela que guiava os Reis Magos, mas, até agora, não chegamos a Belém…”

Ora, nesse instante de dúvida procuremos nos convencer de que, se diante de nós reluz a estrela, importa confiarmos, pois logo a Providência nos confirmará em nossa certeza, assim como os Magos se viram confirmados na sua esperança: ajoelharam-se aos pés do Menino Jesus, a Quem ofereceram ouro, incenso e mirra.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 13/3/1984)

A Epifania do Senhor

A Epifania — palavra grega que significa “manifestação” — celebra a primeira aparição de Jesus a todos os povos, representados pelos Reis Magos ajoelhados diante do Menino-Deus.

Sentado no colo da Virgem-Mãe, como se fosse num trono, Nosso Senhor começou a receber a adoração de todas as nações que, no decorrer da História, haveriam de desfilar, reverentes e transidas de amor, aos pés d’Ele, em um longo cortejo. E a todas, o Redentor cumulará de graças, favores e dons celestiais.

Plinio Corrêa de Oliveira

O olhar sereno e penetrante de Jesus

Há certas descrições que superam a própria fotografia. Um exemplo característico é a conferência na qual Dr. Plinio, entre outras coisas, descreve o quadro de Giotto representando o beijo de Judas. E interpreta a repercussão na alma do traidor da pergunta de Nosso Senhor: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”

O perfeito convívio entre o líder e os liderados supõe algo que seja o mais possível parecido com a autoridade entre o pai e os filhos. Mas de um pai que conheça perfeitamente o seu “métier” de pai — sua função, sua missão —, e compreende que faz parte dessa missão algo que é insubstituível: o querer bem. Não se reduz a isto, mas é uma coisa indispensável.

Censura e perdão

Ora, para querer bem é preciso ter entendido aquele a quem se quer. Os homens são desta maneira: para conseguir querer bem depois de ter entendido, é preciso uma forma de perdão, de suavidade, de mansidão que faça com que se consiga querer bem.

Quem é objeto desse sentimento, se for uma pessoa reta, não pode deixar de se sentir profundamente tocada. Essa é a escola que se aprende no Sagrado Coração de Jesus, no Coração Imaculado de Maria.

Por exemplo, na frase de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque: “Este é o Coração que tanto amou os homens e por eles foi tão pouco amado”, percebe-se pela redação que há um reproche, uma censura, mas há ao mesmo tempo um perdão.

Nela está contido o pensamento de que — apesar de quererem pouco a Nosso Senhor e Ele fazer uma censura, mostrando aos homens que essa atitude não está bem — isso é feito com tal amor pelo lado bom deles, e com tanta esperança de que se deixem tocar, que há qualquer coisa no homem que o seu lado duro, rebarbativo, pode, pela ação da graça, amolecer de repente e a pessoa ficar outra: agradecida, compreendendo que a montanha das suas imperfeições não levantou contra si um inimigo na Pessoa d’Aquele contra Quem as imperfeições foram levantadas.

A ovelha rebarbativa no meio do carrascal

Existe, portanto, um perdão suave, largo, enorme, infatigável e que, antes mesmo de a falta ser cometida, como que já foi esquecida. E o ofendido age como o bom pastor com a ovelha rebarbativa que se meteu pelo carrascal: é preciso ir pelo meio dos espinhos para pegá-la com jeito, porque a ovelha, que deveria ser jeitosa, não balir à toa e compreender o esforço daquele que já está metido no carrascal por causa dela, e não aumentar seu trabalho, pelo contrário, é caprichosa, cheia de gemidos, não suporta nada. Então, qualquer coisa que se faça ela esperneia, bale de um modo dolorido como quem diz: “Está doendo, está doendo! Você está querendo me tirar daqui? Tire mesmo, mas não deixe doer. Onde é que já se viu infligir-me essa dor?” Reclamando assim contra aquele que a está salvando.

Nós todos somos homens e sabemos que reações como essas podem nos vir ao espírito, e quanto nos toca — tendo feito coisas dessas em tal quantidade, que ficamos cegos e perdemos a noção de quanto fizemos — percebermos, em determinado momento, que nem aquele montão de ingratidões foi capaz de vencer aquela misericórdia. E que há a mesma doçura, a mesma bondade, o mesmo perdão, o mesmo desejo de ajudar absolutamente imutável.

Quando a alma sente isto e é tocada por uma graça especial, chegou a hora da vitória do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria.

Nosso Senhor Jesus Cristo é supremo em todos os sentidos da palavra e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora é suprema. Sendo Eles exemplos supremos, devemos imitá-Los nas ocasiões da vida particular — nas coisas pequenas, médias e grandes — em que recebemos ingratidões brutais, às vezes estúpidas, subestimas bárbaras, e não nos incomodarmos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, e a hora da punição não chega?”

Eu respondo: “Chega até para o Sagrado Coração de Jesus!”

Há certos graus de recalcitrância tão tremendos, que não se compreende como a maldade do homem chega a esse ponto.

Ósculo da traição

Sempre me causou repulsa máxima e furiosa a indiferença de Judas, naquele episódio em que ele trai Nosso Senhor. Os algozes não sabiam quem era Jesus e, portanto, a quem deveriam prender. Judas então diz: “Aquele a quem eu oscular, a este prendei!”

Quer dizer, a infâmia chega a esse ponto de ele, para indicar a sua vítima, a oscula, sabendo que recebe um ósculo de volta e, portanto, fazendo da troca dessa bondade, dessa amizade, o preço da traição!

Aí, naturalmente, há os limites que tudo tem, e se prepara a descarga da vindita de Deus no que ela tem de mais terrível. Nosso Senhor ainda é suave com ele, mas de uma suavidade com qualquer coisa da doçura de um acento materno e do estrépito de um trovão, quando ele diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”(1)

O famoso Giotto pintou um quadro figurando o ósculo de Judas a Nosso Senhor. Judas é apresentado mais baixo do que Jesus e beijando-O de baixo para cima, com uma beiçorra que parece estalar de carnes, um beiço sujo e molhado que ele cola com a sua saliva imunda no rosto divino do Redentor. Testa pequena, cabelo que desce até bem embaixo e já saindo desgrenhado da raiz da pele, e um jeito subserviente diante de Nosso Senhor, ou seja, traindo e ao mesmo tempo bajulando.

E Jesus com um olhar sereno, como quem penetra no fundo daquele lodaçal de infâmia, ainda para ser bom porque Ele é justo. Quer dizer, Ele quer fazer com que Judas tenha medo, pelo menos, já que não foi tocável pela bondade. Se a contrição não o tocou, que ele se salve ao menos pela atrição. Então vem aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?” Mas nesse “Judas” tem uma pergunta, como quem diz: “Meu íntimo, meu filho, aquele que está sempre comigo… Logo você?!”

Se Judas procurasse Nossa Senhora, obteria o perdão

Judas não dá resposta, mas vê a reação de Nosso Senhor e percebe-se que ele sai levando impresso na alma o castigo do pecado cometido. Ele não consegue mais desamarrar-se daquela pergunta, e aquilo repercute nele ainda que não queira: “Com um ósculo… com um ósculo… com um ósculo…! Judas! Judas! Judas! Tu trais… tu trais…” Trais quem? “O Filho do homem!”

Todas as perfeições de Nosso Senhor vêm ao espírito de Judas, e ele, imundo, levando a sua sacola de dinheiro, raciocina: “Traí por causa disso…”

E pela primeira vez aquela alma adoradora do dinheiro vê quanto este é pouco, ainda quando seja muito dinheiro. É tal o horror diante do que fez, que ele vai ao Templo e joga aquelas moedas no chão. Pensa libertar-se daquela figura, daquela pergunta, e do afeto envolvente daquela censura. Mas ele nem quer libertar-se da censura, nem deixar-se envolver pelo afeto. Se ele se deixasse envolver pelo afeto, iria procurar Nossa Senhora, prostrar-se-ia diante d’Ela e diria:

“Senhora, eu sou tão infame que pela primeira vez Vos chamarei de Mãe, apelando para esse extremo de bondade, porque Vos pedirei um perdão que só uma mãe concede ao seu filho, e mais ninguém. Minha Mãe, Mãe virginal e imaculada, que apesar disso também sois Mãe deste asqueroso, nojento, traidor, ganancioso, desleal, imundo que sou eu, aqui estou, pior do que qualquer leproso. Mas para Vós continua verdade que sou filho, e vos peço: curai-me!”

Todos os caminhos estariam abertos para ele. Mas ele não queria que o afeto o envolvesse, não queria voltar e pedir perdão.

Mas ele também não podia viver sem pedir perdão, porque o remorso era tremendo. Então, não podendo viver com, não podendo viver sem, a “solução” por ele encontrada foi de não viver. Resolveu se matar. Foi a uma figueira, pendurou-se ali e morreu.

Pode-se imaginar aquele corpo asqueroso pendente, malcheiroso, os urubus já esvoaçando em torno dele, as garras do Inferno já o segurando e dando risada, e pelos dedos do vento balançando em várias direções, quebrando de encontro à árvore, e ele se deixando fazer. Até o momento em que ele, por assim dizer, fechou as portas do Céu. Até o último instante ele não pediu perdão. Vemos, então, as vias de Deus infinitas, perfeitas, modelo da conduta de todo aquele que exerce uma autoridade espiritual ou temporal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/1/1993)
Revista Dr Plinio 201 – Dezembro de 2016

Natal

Após Dona Lucilia anunciar que a festa de Natal ia começar, todos — umas vinte crianças — dávamo-nos as mãos e começávamos a entoar o “Stille Nacht”. Íamos, então, levando o presépio com o Menino Jesus, desde a saleta onde estávamos até a sala dos brinquedos, na qual havia uma árvore de Natal.

Ali cantávamos canções de Natal, girando em torno da árvore, mas já sentindo o cheiro do chocolate com o qual se iam enchendo as xícaras, acompanhado de creme “chantilly”; e o odor do pinheiro um pouco queimado por algumas velas, que deitava um perfume de resina especial.

Havia uma alegria cândida, pura, eu ousaria dizer virginal, que não era perturbada por qualquer intemperança. Nenhuma criança fazia uma travessura, uma peraltagem, todas brincavam entre si com a maior calma, dentro daquela paz que parecia sair das imagens de Nossa Senhora e do Menino Jesus que estavam no presépio, e se difundia por toda a sala.

Essa alegria proporcionava uma coisa que eu não sei exprimir. Mas era a ideia do “Puer natus est nobis” — Foi-nos dado um Menino —, e uma grande alegria tinha nascido no Céu. O Menino era Jesus. E ali se realizava algo de único, como que a repetição do Natal; parecia-nos estar vivendo as graças do Natal.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/12/1976)