Oração da alma reta

Minha Mãe, se é verdade que, infelizmente, permaneço com este defeito, consegui, pelo menos, vê-lo e detestá-lo por inteiro! Eu me inclino diante de Vós e Vos peço perdão porque pequei e andei mal. Dai-me vossa misericórdia e vossa ajuda!

Estou certo de que virá o dia no qual Vós tereis pena de mim e me atendereis! Então, depois de tanto me humilhar, bater no peito e detestar minha maldade, acabará nascendo em mim uma luz, uma força, uma capacidade de me modificar, por onde me sentirei outro; e, de repente, estarei felizmente resgatado, livre do defeito que eu tinha.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/11/1978)

Pela dor do santo Encontro…

Quem, Senhora, vendo-Vos assim em pranto, ousaria perguntar por que chorais? Nem a terra, nem o mar, nem todo o firmamento poderiam servir de termo de comparação à Vossa dor. Dai-me, minha Mãe, um pouco, pelo menos, dessa dor. Dai-me a graça de chorar a Jesus, com as lágrimas de uma compunção sincera e profunda:

“Ó minha Mãe, pela dor do santo Encontro, obtende-me a graça de ter sempre diante dos olhos Jesus Sofredor e Chagado, precisamente como O vistes neste passo da Paixão.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Da Via-Sacra composta por Dr. Plinio em 1951).

 

“Carregou nossos pecados e suportou nossas dores”

Os comovedores acentos de um cântico que recorda as dores de Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua Paixão, oferece a Dr. Plinio a oportunidade de meditar na infinita misericórdia do Divino Redentor ao abraçar a cruz e se entregar à morte para redimir os homens e lhes abrir as portas do Céu.

Entre os belos e tocantes cânticos que a piedade católica engendrou para honrar a Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo está o “Ecce vidimus”, que evoca os atrozes desfiguramentos que as injúrias físicas provocaram na pessoa do Divino Redentor.

“Eis que O vimos sem formosura”

O texto dessa música, retirado do Profeta Isaías (53, 4-5), nos sugere a ideia desses padecimentos, e assim diz: Eis que O vimos disforme e sem formosura. Ele está irreconhecível. Carregou nossos pecados e sofreu por nós. Está ferido por causa de nossas iniquidades. Somos curados em virtude de suas chagas. Na verdade, Ele carregou nossas fraquezas e suportou nossas dores.

Trecho em extremo significativo, pois é uma apóstrofe ao ilogismo e à contradição do que se abateu sobre Nosso Senhor.

De fato, não podemos sequer imaginar a extraordinária formosura do Filho de Deus, toda a beleza do seu corpo e de sua face sagrada. Sem dúvida, o conjunto dos princípios da estética do universo estavam condensados no semblante de Jesus. E quem fala da face, deve pensar no olhar. O olhar divino d’Ele, espelho da alma, certamente ainda mais esplendorosa que o corpo. Só esse olhar seria suficiente para encantar os anjos por toda a eternidade.

Além disso, devemos pensar em Nosso Senhor caminhando, com movimentos repassados de graciosidade, nobreza no andar, distinção no porte, sobriedade de maneiras, e sua infinita bondade se irradiando a todo momento de modo incomparável.

Que dizer então da voz do Divino Mestre dirigindo-se ao povo que O seguia? Quem pode conceber a variação dos timbres, a capacidade de expressão e de santa sedução que Ele imprimia em suas frases? Terá sido o som mais cativante que foi dado ao homem ouvir, desde o começo até o fim do mundo.

Ora, diz o cântico, este que reunia em si toda a beleza do universo foi visto passar carregando a cruz, palmilhando a via dos tormentos, disforme e sem formosura. Todo aquele esplendor fenecera; seus traços maravilhosos perderam a forma. Tudo desaparecera por força dos maus tratos, dos flagelos, dos açoites que Lhe arrancaram pedaços da carne e espalharam seu sangue por todos os lados. Na aparência externa de Nosso Senhor, tudo deixara de ser atraente. Ele não era senão uma imensa chaga sanguinolenta que passava, levando a cruz às costas.

O mais formoso dos homens com uma aparência de feiúra: que insondável paradoxo!

Irreconhecível porque carregou nossos pecados

À vista desse fato inaudito, a letra acrescenta, com acentos de profunda ternura: Ele está irreconhecível. Carregou nossos pecados e sofreu por nós.

Ou seja, nada mais lembra a figura do suave Jesus, Filho de Maria. Ele todo é sangue, ferida, irreconhecível porque pagou pelos nossos pecados.

Não carregava os pecados d’Ele, nem sofria por suas faltas. Verbo Encarnado, Jesus era a própria virtude, não tinha pecados a expiar. Essa grande vítima, acabrunhada sob o peso de tantos castigos, era a inocência infinita. E Ele padeceu nessa proporção desmesurada por causa da enormidade dos nossos pecados. Pecamos tanto e de tal maneira, que o Filho de Deus aceitou de oferecer ao Pai Eterno essa incalculável reparação: transformar-se nessa chaga trágica e pavorosa, acumulando outros sofrimentos até chegar ao alto do Calvário e ali, crucificado, pronunciar o “consummatum est”.

Cumpre a cada um de nós, redimidos por este holocausto, lembrar-se de que foi o pecado a causa de todo esse horror padecido por Jesus. Foram minhas fraquezas e minha maldade que Ele carregou vinte séculos antes de eu nascer. Naqueles dolorosos momentos de sua Paixão, Nosso Senhor pensou em mim, conheceu minha iniquidade, os lados miseráveis de meu caráter, e quis sofrer para me resgatar, pagar o preço de minhas culpas e abrir para mim as portas do Céu.

Essa verdade deve me tanger de gratidão. Deve, sobretudo, varar-me de lado a lado de compunção e de tristeza o pensar que Quem carregou os meus pecados era a pureza, a santidade, o sacrossanto por excelência, o Filho de Deus e de Maria Santíssima.

Não há, na capacidade humana, compunção nem intensidade de adoração, de reconhecimento e de reparação suficientes para agradecer o infinito benefício que recebemos do nosso Salvador.

O remédio das misérias humanas

Com efeito, prossegue o cântico: somos curados em virtude de suas chagas. Ou seja, todo esse sacrifício não foi em vão. Em cada chaga, em cada gota de sangue vertida por Nosso Senhor, estava a cura de nossos males e de nossas misérias morais. Contemplemos o corpo desfigurado e machucado do Divino Mestre: esta ferida, aquela outra, curaram minha alma. Se nesta existe algo de bom, é por causa daqueles ferimentos sagrados que vejo passar diante de mim.

Na verdade, Ele carregou nossas fraquezas e suportou nossas dores.

Quer dizer, o peso daquela cruz é o fardo das minhas fraquezas. Jesus as carregou. As dores que eu, por justiça, deveria sofrer, Ele, o inocente, padeceu-as por mim.

Mais uma vez, deve resultar dessa consideração um sentimento de gratidão indizível a Nosso Senhor, de reconhecimento a Nossa Senhora porque Ela consentiu no holocausto de seu Divino Filho por nós. Além disso, uma atitude de completa confiança em relação a Eles: pois quem foi resgatado por preço tão imenso, por pouco que confie no valor desse preço, por menos que peça seja aquele sangue derramado sobre nós para nos regenerar, este pode esperar sua salvação. Pode ter a certeza de que, mais dia menos dia, uma moção da graça, um movimento interior o reconduzirá ao caminho da virtude e do Céu.

Súplicas em nome das santas chagas de Jesus

Há, nesse sentido, duas lindas súplicas que exprimem as verdades acima consideradas. Uma: “Perdão e misericórdia meu Jesus, pelos méritos de vossas santas chagas”.

Quer dizer, “não mereço perdão nem misericórdia, mas vossas chagas, Redentor Divino, têm mérito infinito e foram oferecidas ao Altíssimo em meu favor. Constituem meu tesouro infinitamente grande. Peço-vos, pelos méritos de vossas santas chagas, perdão e misericórdia para mim”.

É uma súplica que dificilmente não tocará a bondade infinita de Nosso Senhor, pois invoca as próprias chagas com as quais Ele curou nossas almas, alcançou-nos graças para corrigirmos nossos defeitos e crescer no amor que devemos ter a Ele.

Outra jaculatória muito substanciosa e bela, despertada pela consideração das chagas de Nosso Senhor, é esta: “Padre Eterno, eu vos ofereço as santas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo para curar a minha alma”.

Ou seja, eu, diante do Padre Eterno, posso ter defeitos e pecados, mas apresento a Ele as santas feridas de Nosso Senhor Jesus Cristo a fim de obter de sua infinita misericórdia o remédio para as minhas doenças de alma.

Pedir por meio de Nossa Senhora, “dona” das chagas de seu Filho

A essas considerações devemos acrescentar um ponto muito importante: não convém e nem será próprio do devoto de Maria Santíssima, meditar nos lances da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, abstraindo da figura co-redentora de sua Mãe.

E ao invocarmos as chagas do Salvador como a cura de nossos pecados, é preciso lembrar que tal impetração passa pelos rogos da Medianeira de todas as graças. Dispensadora, por vontade divina, de todos os dons celestiais, os méritos dessas chagas como que foram todos entregues a Ela, para deles dispor em benefício dos homens. Em certo sentido, Ela é, pois, a dona dessas chagas. Aliás, as imagens de Nossa Senhora da Piedade — inclusive a famosa Pietà de Michelangelo —, que representam Jesus morto no colo de Maria, exprimem muito bem a ideia desse augusto senhorio: a Mãe é a dona daquele cadáver e, portanto, de todos os méritos infinitos que aquele Homem inanimado em seus braços conquistou para nós. Tudo nos vem através d’Ela, e por mais extraordinário que seja o valor dessas chagas, sem a intercessão de Maria nada obteremos.

Peçamos, então, o patrocínio de Nossa Senhora das Dores, a invocação propícia para essas súplicas. É a figura da Santíssima Virgem que traz seu próprio coração chagado e ferido pela consideração dos padecimentos do Filho. Nunca a alma de uma mãe carregou chaga semelhante à que feriu o coração de Maria, tomado por imensurável tristeza durante a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Esse Imaculado Coração transpassado pela espada da dor é a porta por onde atingimos as chagas de Jesus. Rezemos a Nossa Senhora, do fundo de nossa alma, confiantes e humildes, na certeza de que Ela alcançará em nosso favor a aplicação dos méritos infinitos dos sofrimentos redentores de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/3/1967)

Semana Santa

Sob o peso da Cruz, o Divino Redentor suportava o fardo das nossas fraquezas, padecendo por nós todas as suas dores. Que esta verdade incite a profunda gratidão de nossa alma e nos seja motivo de ilimitada confiança. Pois quem se viu resgatado por preço tão imenso, embora pouco mereça, deve esperar que esse Sangue preciosíssimo se derrame sobre ele para regenerá-lo e salvá-lo, despertando em seu coração o movimento que o reconduza ao caminho da virtude e o leve, finalmente, ao Céu.

Dor e glória

Em Nosso Senhor Jesus Cristo o que mais atraía Dr. Plinio era seu sofrimento, com o matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, com uma bondade que  chega até o último ser.

Passemos à consideração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, com base em um bonito Crucifixo.

Dor, majestade, paz e misericórdia

A meu ver a fotografia faz ver uma beleza do Crucifixo — porque a fotografia não pode inventar —, mas que só um olhar muito atilado de um bom crítico de arte percebe. Arte só, não, piedade. Como o estado de alma de Nosso Senhor no alto da Cruz está bem interpretado!

Os dois pontos da escultura em que mais o trabalho artístico e a expressão se aprimoram são: os lábios abertos, os dentes separados ligeiramente, dando a ideia, também levemente, do queixo caído; depois, os olhos que fitam, triste e desoladamente, alguma coisa que eles estão contemplando, mas não estão vendo.

O olhar está distante, na consideração de algo muito diverso que o enche de tristeza. O queixo, assim ligeiramente caído, dá a impressão de tal abandono das forças, que não há mais vigor nem sequer para manter cerrados os lábios.

Contudo, apesar do extremo dessa dor moral, mais do que física — de fato, Nosso Senhor sofreu mais a Alma do que no Corpo durante a sua Paixão —, nós notamos uma paz, uma misericórdia, uma delicadeza de sentimentos, em que o furor não está presente. A tristeza, sim, está em tudo e por tudo. Mas uma tristeza tal que, Esse condenado à morte, privado dos trajes que qualquer passante possui, entretanto tem uma atitude que deixa longe a majestade de qualquer rei!

O artista soube muito bem representar os cabelos de Nosso Senhor, não penteados direito — porque isso não teria propósito depois de tudo quanto Ele sofreu —, mas lindamente desgrenhados, de maneira a formarem cachos lindíssimos! A barba é tão pequena que não daria jeito para pô- -la revolta. Então, ela cai ordenadamente para emoldurar o rosto.

Nosso Senhor chorou também a decadência das nações católicas

A pessoa que contempla essa imagem tem quase a impressão de que entrará, de um momento para outro, no campo de visão desse olhar. O aspecto de tristeza é pungente.

Durante sua Paixão e Morte, Nosso Senhor Jesus Cristo previa tudo quanto iria acontecer até o fim do mundo, como a humanidade tomaria aquele sacrifício extraordinário, único, realizado por  Ele; gemia e sofria por todas as ingratidões que os homens teriam para com Ele. De vez em quando, o horizonte da História era cortado, diante de seus olhos proféticos, por esta ou aquela figura, este ou aquele Santo, esta ou aquela Ordem religiosa, esta ou aquela escola de pensamento, esta ou aquela Cruzada cheia de fervor.

E o Divino Redentor sentia-Se confortado em meio a sua dor. Isso não O terá ajudado a carregar a Cruz e a sofrer sua Paixão até o último alento, até o último ponto em que Ele disse: “Meu Deus,  meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Podemos ter certeza de uma coisa: em determinado momento, Ele chorou a decadência das nações católicas do Ocidente. Tudo quanto nos causa horror nos dias de hoje, que repulsa terá provocado à santidade infinita do próprio Deus?

Percebem-se os grandes espinhos que transpassaram a fronte de Nosso Senhor. No alto do olho esquerdo nota-se uma machucadura terrível. Tem-se a impressão de que um espinho esteve lá e caiu, deixando um ferimento medonho.

Vejam com quanta delicadeza escorre o Sangue ao longo do Corpo Divino, de maneira a formar dois longos filetes, na ponta de cada um dos quais está um rubi!

O primeiro canonizado da História

A impressão de desolação e de desamparo é muito acentuada nesta fotografia. É uma dor de quem sabe não ter remédio, nem limite, e caminha para a morte que se anuncia, não com as  consolações de quem está esperando o Céu, mas na tristeza do que vai acontecer, porque Ele percebe a maldade dos homens que estão se jogando contra Ele.

Podemos imaginar a diferença entre essa fisionomia e a que deve ter feito o bom ladrão, no momento em que ouviu Nosso Senhor lhe dizer: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Ao dizer ao bom ladrão que ele estaria no Paraíso, Jesus afirmava, antes de tudo, que Ele estaria lá, e o ladrão se encontraria com  Ele. O bom ladrão foi o primeiro canonizado na história das  canonizações; teve ali o Céu garantido.

Por que Nosso Senhor disse isso a ele? O bom ladrão pediu perdão e Jesus o perdoou. Mas na hora de perdoá-lo o Redentor quis dar-lhe essa alegria, para ele transpor com ânimo os terríveis  umbrais da morte.

Ora, essa alegria não se nota neste semblante. Alguém dirá: “Dr. Plinio, não há uma contradição?” Não. Jesus quis beber a taça da dor até o fim, sofrer tudo quanto era possível sofrer. Ao outro Ele  deu uma alegria no momento do passo final. Nosso Senhor entrou triste na hora de sua Morte, mas logo depois Ele teve, naturalmente, a alegria em que sua Alma santíssima, hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, deixava de sofrer as dores do Corpo. Começava o período em que Ele ia ao Limbo para encontrar todas as almas que estavam lá e levá-las para o Céu.

A boa tristeza e a má alegria

Nesse semblante a desolação parece tão profunda que se tem a impressão de não tardar para sobrevir a morte. A desolação moral é maior do que a física. Dir-se-ia ser uma longa meditação que vai chegando às suas últimas e mais amargas consequências.

Os autores que comentam a construção das grandes catedrais da Idade Média observam que elas são construídas na consideração da glória de Cristo Ressurrecto. E que a ideia da alegria e da vitória d’Ele encheu de luz a piedade dos medievais.

É verdade que, quando a Idade Média começava talvez a entrar no seu declínio — é difícil precisar —, iniciou-se um movimento extraordinário de devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado.

Esse movimento foi se difundindo por São Francisco de Assis com os estigmas, etc. Mas o que a Idade Média deixou de mais característico foi Cristo Ressurrecto.

Entretanto, desde menino, o que mais me impressionou foi Jesus Cristo na sua dor. Estivesse Ele crucificado ou não; numa atitude como o Sagrado Coração de Jesus, mostrando seu Coração aos  homens e dirigindo- -Se a eles; ou em qualquer outro episódio  de sua vida, como naquele conjunto escultural da Igreja do Sagrado Coração de Jesus que O representa entre os doutores no  Templo, etc.; o que sempre me atraiu mais para considerar e adorar foi a Ele enquanto, naquele determinado episódio, sofrendo.

E dando ao seu sofrimento aquele matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, mas de bondade que chega até o último ser, o último verme,  o último pecador  que se coloque diante d’Ele. Isto foi o que sempre, de modo muitíssimo especial, atraiu- -me n’Ele e me levou a adorá-Lo. Não custei a perceber que essa disposição de minha alma estava em contraste diametralmente com a alegria de fandango que dominava a minha época de menino, com a difusão de toda a atmosfera de Hollywood, de todo o ambiente do cinema moderno, criando  um clima de alegria artificial, doida, tonta, agitada, sedenta de pecado e já meio imersa no pecado, que caracterizava o meu tempo de infância. Então, era uma alegria má. E eu ficava colocado  entre a boa tristeza e a má alegria.

Eu não sabia discernir bem entre a boa e a má alegria, e me parecia que havia no mundo duas correntes, considerado o mundo do ponto de vista psicológico: uma era a dos que amavam a dor e  que, portanto, adoravam a Nosso Senhor; e a outra a dos que amavam a alegria e eram os partidários do cinema. E isso formava uma contradição que eu não sabia explicar inteiramente.

Porém, eu era levado a um equívoco de ponto de vista, segundo o qual toda pessoa alegre era suspeita de certa adesão ao fandango cinematográfico, que ia arrastando tantas e tantas almas para o  pecado. Pelo contrário, a pessoa triste eu considerava que estava sempre no caminho certo, pelo menos para se converter, se não era uma pessoa inteiramente virtuosa.

Levei anos para perceber que aqueles que estão tristes com Nosso Senhor são os alegres desta vida, e aqueles que estão alegres com satanás são os tristes desta vida.

Tristeza digna, nobre, varonil

Sempre me pareceu que, apesar disso ser verdadeiro, por estarmos nesta época de tanto pecado e  tanta ignomínia — que determinou  a mensagem de Fátima com tudo o que ela contém —, o  autêntico católico poderia ter sua alma alegre, estaria bem, mas essa alegria nunca deixaria de ter um véu de tristeza digna, nobre, varonil, como quem acompanha Nosso Senhor até o alto da Cruz.

Observando as cerimônias religiosas daquele tempo, eu notava isto: mesmo nas cerimônias mais gaudiosas estava presente um traço de dor, certa compaixão a qual tinha por objeto a Nosso  Senhor Jesus Cristo. Inclusive na festa mais límpida, mais alegre, mais desanuviada, o  Natal, havia uma nota de tristeza, de compaixão do Menino que nasce tão pequenino, no frio, deitado na  mera palha, e que vem começar sua longa jornada na Terra… Essa nota de compaixão perpassava as alegrias luminosas  e magníficas do Natal.

Na própria Páscoa da Ressurreição, Nosso Senhor é apresentado ressurrecto, mas com suas chagas brilhando.

As chagas lembram tudo aquilo pelo que Ele passou. Quer dizer, uma reminiscência da dor, da Cruz sempre presente, de um modo ou de outro, numa cerimônia católica. Foi por essa razão  também que eu quis sempre ter a cruz nas nossas sedes: cruzeiros pretos, altos, secos, como foi negra e sem consolações a Paixão de Nosso Senhor. E dois magníficos crucifixos na Sede do Reino  de Maria, um dos quais acabamos de comentar. Assim me veio a ideia de ser esta a posição natural da alma do católico.

Daí nasce a seguinte convicção: a vida, para ser tomada catolicamente, tem que levar consigo esse traço de grandeza e de seriedade, sem o qual ela não vale nada. A vida é uma participação na Cruz  e Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu tenho que sofrer como Ele sofreu. E quanto mais eu padecer, tanto melhor será, porque terei tido maior honra de me achegar mais a Ele.

E, diante do sofrimento, adestrar a nossa sensibilidade. Não para fugir, não para rogar incondicionalmente a Nossa Senhora que afaste de nós a dor. Pedir pode-se. Ele mesmo pediu: “Se for  possível, afastai de Mim este cálice”. Mas Ele acrescentou: “faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Lc 22,42).

Assim nós devemos olhar para a dor que nos espreita no caminho: “Se for possível, afastai de mim este cálice; se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha”. E estar com a alma  preparada e temperada para, a qualquer momento, com paz, com varonilidade e, sobretudo, com espírito de Fé suportar qualquer dor: a mais inopinada, a mais injusta, a que abalaria mais nosso   princípio axiológico. Seja lá o que for, aguentar, porque foi assim que Ele sofreu.

Que Nossa Senhora nos ajude a ter essas reflexões bem no fundo de nossas almas.

Penetramos nos tempos cujo dia seguinte nós não conhecemos. Espreitar-nos-á a dor? Talvez! Se nos espreitar a dor, nos espreita a glória. Vamos para a frente!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/8/1985)

“Em vossa Cruz começastes a reinar!”

Já não estais por terra, meu Deus. A Cruz lentamente se levantou, não para Vos exaltar, mas para proclamar bem alto vossa ignomínia, vossa derrota, vosso extermínio. Entretanto, era o momento de se cumprir o que Vós mesmo havíeis anunciado: “Quando for elevado, atrairei a Mim todas as criaturas” (Jo 12, 32). Em vossa Cruz – humilhado, chagado, agonizante – começastes a  reinar sobre esta Terra. Numa visão profética, víeis todas as almas piedosas de todos os tempos, que viriam a Vós.

Meu Deus, foi na Cruz que começou vossa glória, e não na Ressurreição. Vossa nudez é um manto real, vossa coroa de espinhos um diadema sem preço, vossas chagas são a vossa púrpura.

Ó Cristo Rei, como é verdadeiro considerar- Vos na Cruz como um Rei! Mas como é certo que nenhum símbolo exprime melhor a autenticidade dessa realeza quanto a realidade histórica de vossa nudez, de vossa miséria, de vossa aparente derrota.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de “O Legionário”, abril de 1943)

Templo onde Jesus quer ser invocado

Ó Jesus que viveis em Maria, vinde e vivei em vossos servos, no espírito de vossa santidade, diz São Luís Grignion de Montfort na conhecida Oração a Jesus vivendo em Maria.

Nosso Senhor viveu em Maria, e d’Ela comunicou-se aos homens. Nossa Senhora é o sacrário onde está Jesus Cristo, e o santuário de dentro do qual todas as graças se difundem para o gênero  humano. Por isso, rezemos a Jesus enquanto vivendo em Maria, porque Ele quer ser invocado dentro do seu templo, que é a Santíssima Virgem.

Pedir a Ele o quê? Que Ele venha e viva em nós, como vivia n’Ela. Jesus viver em nós significa termos o espírito da santidade d’Ele, o espírito da santidade de Maria, que é o mesmo espírito da  Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

Isto é o que devemos pedir, por meio de Nossa Senhora, a Jesus enquanto vivendo n’Ela.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A Paixão trajada de pulcro

Desde os remotos tempos de minha juventude tocaram-me de modo muito particular as celebrações da Semana Santa. Recordo-me, por exemplo, de assisti-las na Igreja de Santa Ifigênia (então a Catedral provisória de São Paulo), onde me colocava junto ao coro e, lá do alto, contemplava as cerimônias se desenvolverem, enquanto a música sacra ungia o ambiente com seus acentos de dor e contrição.

Aquele conjunto de movimentos e cânticos se me apresentavam com uma majestade santa, uma grandeza divina e incomparável, cumulando minha alma de veneração, respeito e desvelo religioso. Em última análise, através do cerimonial, dos símbolos e personagens, a graça agia no meu interior, fazendo-me compreender a sublime beleza com que a Igreja rememora o trágico e glorioso fato da Redenção.

Tais sentimentos se intensificaram quando tive ocasião de conhecer as célebres procissões da Paixão realizadas na Andaluzia, notadamente as de Sevilha, talvez as mais belas do mundo. Ainda os menos sensíveis e os afeitos a ritos singelos não podem negar um elogio ao esplendor dessas celebrações.

Sob dosséis recamados de ouro e prata, cintilantes à luz de centenas de velas, desfilam os passos das várias Confrarias, cada qual excedendo-se no brilho, na compenetração e devoção com os quais reverenciam os sofrimentos do Homem-Deus. E embora uma crítica rigorosa não deixasse de ver, nestes ou naqueles pormenores, nestas ou naquelas imagens, certas concessões aos exageros do renascentismo, isto não impede que nos entusiasmemos diante do maravilhoso ornando as dores de Jesus e de sua Mãe Santíssima, recordadas em verdadeiros espetáculos esculturais e cenográficos.

Por ruelas e becos, às vezes tendo ao fundo a silhueta da famosa torre da Giralda, vão passando lentamente aqueles penitentes cuja identidade se refugia sob o distinto anonimato de suas lindas vestimentas: a grande túnica e o capuz pontiagudo, no meio do qual apenas se percebe o olhar sério e contristado do que caminha junto ao andor.

E como a procissão monumental lucra em percorrer aquelas vielas centenárias, tortas, traçadas sem planos nem medidas! É o que lhe confere vida e expressão de alma! Ela morreria ou perderia muito de sua beleza se tivesse de atravessar largas avenidas, povoadas de prestigiosos hotéis, bancos e lojas de luxo.

Não, é por entre as ladeiras e ruas estreitas que se apresentam em todo o seu esplendor aquelas obras de escultura magnificíssimas, a profusão de rendas, os mantos de veludo bordados a ouro, as jóias e coroas ricamente lavoradas, os lindos candelabros, os andores cobertos de flores vermelhas “éclatantes”, como só lá existem, e que combinam de maneira perfeita com as imagens da Paixão, como se quisessem dizer a Jesus: “Meu Senhor, se me fosse dado estar convosco na Via Dolorosa, aos vossos pés eu teria posto cravos. Os mais rubros cravos de Andaluzia para vossos pés divinos!”

É o pulcro, o belo oferecido a Nosso Senhor como ato de reparação. E nessa atitude só podemos ver nobreza e seriedade de espírito, cercando de ornato a dor multiplicada pela dor: ora é o Filho de Deus carregando sua Cruz, ora flagelado e coroado de espinhos, ora posto diante de seus algozes sem ter como se defender. Jesus humilhado e grandioso, isolado na sua inocência, suportando no silêncio o gravame de nossos pecados.

E a procissão continua o seu lento caminhar, deixando à sua passagem um rastro de tristeza e maravilhamento.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Prêmio demasiadamente grande

Segundo uma bela e tão razoável tradição, no momento em que a Santíssima Virgem, meditando na figura do Messias profetizado nas Sagradas Escrituras, completou a imagem que Ela deveria  formar a respeito d’Ele, o Arcanjo São Gabriel Lhe apareceu.

Assim, a primeira tarefa de Nossa Senhora foi conceber em seu espírito como seria o Redentor. Que santidade deveria ter a Virgem Maria para, com êxito, imaginar a fisionomia, o olhar, o timbre de voz, os gestos, o caminhar, o repouso do Filho de Deus!

E que alma era preciso ter para, depois disso, receber de Deus esta sentença: “Dedicaste a tua mente a desvendar este mistério, fizeste-o com tanto amor e tanto acerto que Eu Te digo: “Aquele que excogitaste, Tu gerarás!”

Prêmio maravilhoso, como nunca houve nem haverá igual na História! Ele disse de Si mesmo àqueles que fossem fiéis: “Serei, Eu mesmo, a vossa recompensa demasiadamente grande” (cf. Gn 15,  1). Nosso Senhor Jesus Cristo é tão perfeito que até para Nossa Senhora Ele foi o prêmio demasiadamente grande.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 2/2/1985)

Aspecto democrático em Nosso Senhor Jesus Cristo

Nosso Senhor é Rei de infinita grandeza, seu modo de ser é aristocrático. E, estando presente nos sacrários das igrejinhas espalhadas por toda a Terra, onde atende e conversa com qualquer pessoa do povo, Ele manifesta seu aspecto democrático.

O Magistério da Igreja ensina que das três formas de governo — monarquia, aristocracia e democracia — nenhuma é contrária à justiça e, portanto, à Lei de Deus. Assim, um povo pode optar por qualquer uma delas, conforme entenda, porque todas são lícitas.

A Revolução Francesa quis impor a república em toda a Europa

Foi o que se praticou na Idade Média, em que havia tanto monarquias como cidades aristocráticas sem chefe monárquico — por  exemplo, a República Sereníssima de Veneza, cujo chefe, o Doge, era temporário, eleito pela aristocracia inscrita no livro de ouro de Veneza. Ele mesmo devia ser aristocrata, e substituído ao cabo de dez anos de mandato.

Havia também várias repúblicas democráticas na Idade Média, principalmente as cidades livres na Alemanha, Suíça e Itália, nas quais os plebeus burgueses, trabalhadores manuais elegiam o  governo.

Nunca se sustentou, na Idade Média, a ideia de que uma destas três formas de governo fosse injusta e incompatível com as outras. Por isso, não passava pela mente de ninguém, naquela época, fazer uma cruzada de um país contra outro para impor determinada forma de governo. Pelo contrário, conviviam na maior boa vontade, na maior bonomia, e cada um se organizava como queria, segundo as peculiaridades, as circunstâncias, o transcurso dos acontecimentos históricos e mil outros fatores.

Esta é a soberania pela qual cada um escolhe para si próprio o governo que entende.

Com a Revolução Francesa começaram a aparecer as guerras para impor o regime republicano à Europa inteira. A partir desse momento, estabeleceu-se uma luta das aristocracias e monarquias contra as repúblicas e vice-versa. Mas é porque o movimento republicano passou a ser animado pela Revolução, coisa que não acontecia na Idade Média.

Ora, a Revolução tem uma tese: a monarquia e a aristocracia são formas de governo opostas à dignidade humana e, como tais, contrárias ao Evangelho, à lei de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, é necessário eliminar, por meio de lutas libertadoras, esses regimes dos povos oprimidos. Alguns inábeis defensores das monarquias e das aristocracias, vendo o caráter intrinsecamente mau do movimento republicano do século XIX, deduziram daí que a república era intrinsecamente má, sem se lembrarem dos precedentes anteriores, nos quais havia tantas cidades livres
republicanas em que a investidura do chefe da república no cargo era feita na igreja, em cerimônia religiosa, assim como a investidura do monarca e do príncipe.

Leão XIII condenou a tese de que a democracia é uma forma de governo injusta e desenvolveu o que estou dizendo aqui, naturalmente com o brilho e com a autoridade dele.

O movimento modernista — heresia secreta que lavrou no tempo de São Pio X, o qual a esmagou com a Encíclica “Pascendi Dominici gregis”, mas renasceu no tempo de Bento XV sob outras formas — sustentava o contrário, isto é, que só a democracia é a forma de governo legítima.

São Pio X condenou severamente essa tese, de maneira que devemos pensar a respeito desse assunto o que o Magistério da Igreja nos indica.

Devemos admirar e tender para o mais perfeito

Entretanto, submetendo a ulterior juízo da Igreja, acrescento a este pensamento o seguinte: São Tomás de Aquino diz que a mais perfeita das formas de governo é a monarquia, sobretudo quando ordenada, composta com a aristocracia e a democracia.

Quer dizer, devem coexistir certos elementos de monarquia, de aristocracia e de democracia dentro das formas de governo. De que modo? “L’Histoire par l’image” (CC 3.0)

O Portugal do Ancien Régime(1), até o século XVIII, por exemplo, possuía isso muito bem distribuído, porque para a direção do reino havia o rei; para a direção da parte rural do país, a nobreza, ainda com os seus castelos, remanescentes vestígios dos antigos feudos; e havia, nas cidades habitualmente habitadas pela burguesia, um regime de foros, que eram liberdades da cidade em relação ao rei e ao senhor feudal, pelas quais se conferia à urbe o direito de governar a si mesma, os seus assuntos internos, desde que não contundisse com as leis do rei, nem com as prescrições do senhor feudal.

Essas liberdades forais eram muito apreciadas, e os estudiosos as têm analisado e considerado muito sábias, variando de cidade para cidade, conforme as circunstâncias de cada uma, a evolução histórica, etc.

Não era, portanto, uma espécie de “saco de gatos” de três formas de governo opostas; tampouco  o sistema inglês: Câmara dos Lordes aqui, Câmara dos Comuns ali, vamos ver para que lado a balança pende… Não era isso. Cada um tinha a sua esfera.

Aliás, um francês definiu a província, a região, assim: esfera de influência de uma grande família. Acho a definição magnífica. No regime misto a que me refiro, o governo do reino é do rei; a  direção da província, da região pertence ao nobre; e a do município, ao povo que nele habita. É tão natural, tão claro, e constitui uma das modalidades possíveis de combinação dessas formas de governo.

Não obstante, parece-me que, sendo a monarquia a forma de governo mais perfeita, embora o povo que não viva em regime monárquico tenha esse direito — e até, se a monarquia não se ajustar bem às circunstâncias dele, ele não deve adotá-la —, é natural que ele tenha uma simpatia e uma admiração prevalente por aqueles povos onde a forma de governo mais perfeita possa se executar e desenvolver as suas excelências.

A humanidade deve, criteriosa e sabiamente, tender quanto possível para o mais perfeito e não pode considerar um título de orgulho estar no regime menos perfeito, como seria o meramente aristocrático ou democrático.

Essas considerações, acrescentadas com a devida veneração aos ensinamentos de Leão XIII e São Pio X, não me parecem contundir em nada com o pensamento deles.

As imagens de Nosso Senhor, elaboradas ao longo dos séculos, e o Santo Sudário

Então nasceria uma pergunta até muito bonita. Houve quem me indagasse a respeito dos aspectos aristocráticos e monárquicos do Sagrado Coração de Jesus. Mas como seria também a  democracia no Sagrado Coração de Jesus? Não vamos ter medo da pergunta.

Haveria dois ângulos pelos quais poderíamos abordar o tema: um seria tomar Nosso Senhor Jesus Cristo como Ele é, e considerar o que de monárquico, de aristocrático e de democrático se irradia n’Ele. Outro ângulo seria o seguinte: tomado, em tese, o ensinamento d’Ele, encontrarmos o fundamento para dizer que em tal passagem ou circunstância Ele manifestou-Se mais favorável a esta ou àquela forma de governo.

De momento, parece-me mais conveniente a primeira fórmula. Nas figuras de Nosso Senhor que eu tenho visto, em fotografias ou diretamente, nas catacumbas de Roma, há pinturas  representando-O, por exemplo, como o Bom Pastor ou em outros de seus atributos, mas não me lembro de pinturas que representem sua Sagrada Face. Não se sabe de alguém que, tendo  conhecido pessoalmente Nosso Senhor, O tenha retratado em imagens. Sou propenso a admitir que se conheciam  suas feições por tradição oral.

Tendo caído o Império Romano do Ocidente, começaram as construções da alta Idade Média, e surgiram as imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo cujas feições seriam comprovadas, séculos mais tarde, com a descoberta do Santo Sudário.

Dir-se-ia ser muito explicável que cada povo modelasse o Divino Mestre segundo a imaginação, produto da própria cultura. Entretanto, as figuras elaboradas ao longo de séculos indicam, com  maior ou menor precisão, mas indiscutivelmente, que a Pessoa do Santo Sudário é a mesma representada pelas imagens comuns.

Como se deu este salto por cima dos séculos e se “adivinhou” a figura Sagrada de Nosso Senhor Jesus Cristo? Nunca tive tempo de estudar a fundo isso, mas li o suficiente para fazer uma  conjectura séria, que é a seguinte: Aos poucos, com o auxílio da graça, a piedade dos fiéis foi compondo essa figura.

Pode ter acontecido também que algum Santo ou Santa tenha visto, em uma  revelação privada, e tenha até pintado a figura de Nosso Senhor. Essa imagem agradou enormemente ao senso geral dos fiéis e, por causa disso, foi se espalhando de país em país e sendo aceita por todo o mundo como indiscutível, e assim se propagou por toda a Igreja.

Ora, isso é fruto da graça, uma espécie de revelação privada da verdade, que Nosso Senhor teria dado muito belamente à Igreja, à medida que ela ia se distanciando da vida terrena d’Ele, levada pelo curso da História. Com o passar do tempo, fomos nos afastando dos dias em que Ele esteve aqui presente, de um modo visível, sensível. Para consolar a nossa orfandade, Ele nos deixou, antes de tudo, a Sagrada Eucaristia, mas também o Sagrado Rosto d’Ele, por essas formas de produção, evolução e fixação do senso dos fiéis.

Vemos, por aí, como há mistérios lindíssimos que Nosso Senhor e Nossa Senhora guardam, e que só as posteridades depois vão conhecer.

Maria Santíssima provavelmente conhecia a utilização que a Providência faria do Santo Sudário, mas não creio que os Apóstolos a conhecessem, nem mesmo Santa Maria Madalena; muito menos
Nicodemos ou José de Arimateia.

Entretanto, o Sudário com o qual Jesus foi sepultado seria, dali a dois mil anos, a prova de que Ele tinha estado naquele pano. Assim, na sepultura, morto, Ele estava envolto no documento que comprovaria a sua vinda e o seu futuro.

“Vox populi, vox Dei”

Este aspecto — a meu ver, lindíssimo — dá-nos muito a ideia do caráter de participação popular na vida da Igreja. Não houve um grande homem, não houve ninguém que aparecesse e dissesse: “Ele foi assim”, pintou-O e as multidões caíram de joelhos. Alguém terá pintado, mas o que de fato assegurou a expansão foi o consenso geral, uma espécie de sufrágio universal.

Há uma expressão que diz “vox populi”, vox Dei: a voz do povo de Deus é a voz de Deus. É muito bonito, muito ordenado, muito direito. Dou outro exemplo.

No século XIX a “vox populi” se pôs a cantar o Stille Nacht, e o mundo inteiro a adotou como a música de Natal por excelência, por um consenso universal. Por que se canta o Stille Nacht aqui, na Nigéria, na Libéria e em quantos lugares há na Terra? A história dessa canção está ao alcance de todo mundo; sabe-se qual foi a aldeia alemã em que ela nasceu, o nome do compositor; há até um museuzinho organizado na casa dele. Entretanto, o que fez a celebridade dessa música foi o consenso, expresso por ela, a respeito do que todos sentiam por ocasião do Natal.

Não houve uma bula do Papa mandando cantar o Stille Nacht, nem qualquer outro decreto. Nem se trata de um canto litúrgico. Entretanto, não se compreende uma festa de Natal onde, antes ou depois da celebração litúrgica, não se cante o Stille Nacht.

Vê-se que a mão da Providência não é alheia a isso; muito pelo contrário, graças a Ela chegou-se a esse ponto maravilhoso de consenso popular geral. Mas esta é uma questão tão fina, tão sutil, que seria impossível explicá-la à maior parte das pessoas que, ouvindo o Stille Nacht, puseram- se a cantar também.

O senso é uma coisa diferente do raciocínio quadrado, e um povo pode ter um grande senso até não tendo grande instrução. Essa é, por exemplo, uma forma magnífica de colaboração do fator popular na Igreja.

Na própria infalibilidade da Santa Igreja há certa participação daquilo que eu chamaria de fator democrático. É admitido pela Teologia que Deus não pode deixar cair em erro todos os católicos em todos os lugares. E quando a Igreja inteira, com sua Hierarquia e os fiéis, aceita durante muito tempo determinada doutrina, aquilo é verdade infalível, ainda que não tenha sido explicitamente definida pelo Magistério eclesiástico.

Para que a colaboração popular seja proveitosa e possa dar o seu melhor fruto é preciso saber interrogar o povo e deixá-lo exprimir-se, permitindo que os costumes — que são a boa voz do povo — vão se constituindo.

Uma pessoa que, vendo um vale qualquer, pensasse: “Esse vale e a altura desses montes são semelhantes aos do Roncal. Que tal fazer aqui uns quinze municípios independentes?” Seria uma bobagem. Essas coisas nascem e não têm cópia no mundo inteiro. É a originalidade da coisa popular que não é feita para ser copiada, nascida do profundo dos costumes, do dia a dia, sendo em cada lugar de um jeito.

A meu ver, a voz do povo não se faz ouvir simplesmente por meio de propaganda pelo rádio e pela televisão, convocando depois a população para dar opinião sobre problemas com os quais certas parcelas do povo não têm nada a ver.

Por exemplo, o Governo do Império ou da República no Brasil precisa dispor medidas sobre a navegação fluvial no Amazonas. Ora, o que o eleitor gaúcho, na outra ponta do País, vai entender desse assunto? Entretanto, quando chegar a hora de votar uma lei sobre a navegação no Amazonas, a bancada do Rio Grande do Sul, como todas as outras, vai ter que opinar.

O que o representante dos santistas ou dos cariocas, nascidos no litoral, pode decidir a respeito de problemas do Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, onde não existe mar? Hoje as coisas entre nós estão organizadas assim, todos os problemas nacionais devem ser objeto de decisão da parte do País inteiro.

Entretanto, ninguém tem tempo de tomar nota de tudo isso. O regionalismo sadio, deixando às várias partes do povo a liberdade de opinar de um jeito ou de outro, tem muitos elementos para a solução dos problemas nacionais. Nesse sentido, eu seria inimigo de quem, no Brasil, fosse separatista. Creio que o Brasil poderia ser mais largo como federação.

Os Estados Unidos têm federação muito mais ampla do que o Brasil e, mesmo assim, parece-me que poderiam ser mais descentralizados ainda, porque aí se ouve a “vox populi”.

Tirar o colete de cem mil leis

Alguém dirá: “Mas o que o senhor pensa do sistema representativo moderno, com votos, câmaras, etc.?” Penso que ele, habitualmente, é menos mau do que as ditaduras. Porém, a meu ver, nem ele nem as ditaduras valem nada. E se me perguntassem qual é a opção entre uma coisa e outra, eu diria: Nada! Eu não tenho nada a escolher nessa bandeja.

A minha sugestão é muito simples: tirar o mundo inteiro de dentro desse colete de cem mil leis em que as pessoas se embaraçam, e deixar a liberdade respirar e organizar a si mesma, sob certo controle, certa vigilância, principalmente num ponto, isto é, que a Lei de Deus seja observada.

Porque se a Lei divina for conhecida, amada e praticada, tudo se arranja; se não for, não há o que conserte nada. Podem assar, cozinhar e fritar como quiserem, sai uma porcaria, seja monarquia, aristocracia ou democracia.

Tocamos, então, no ponto final: Nosso Senhor Jesus Cristo, visto sob seu aspecto democrático. O que quer dizer isto? Considerado enquanto Rei de infinita grandeza, de majestade insondável e de uma bondade tal que Ele mora realmente presente no pequeno sacrário de cada igrejinha no vale do Roncal e de todos os outros “Roncais” que possa haver espalhados pelo mundo, bem como em qualquer pequena aldeia existente nos Andes ou no centro montanhoso do Brasil — enfim, onde for—, ali, pela sua presença eucarística, Nosso Senhor Jesus Cristo fala ao fiel que se ajoelha. É um dom que não tem qualificativo, acima de toda dádiva, uma beleza, uma maravilha!

Pela sua Igreja, Ele ensina a doutrina, alimenta e salva as almas, tornando- as assim bastante ordenadas para que elas constituam, naturalmente, um concerto de grandes e pequenos, como os instrumentos diversos de uma orquestra quando tocam o Stille Nacht. Assim também, todos juntos vão contribuindo com a sua própria opinião para formar o consenso geral. Donde saem as instituições originais, os modos de ser, as peculiaridades de cada lugar, sem que um país se sinta obrigado a copiar nenhum outro.

Deixem vir de baixo para cima o consenso geral, então se estabelecerão as leis e os costumes que duram séculos. O Sagrado Coração de Jesus é a fonte de tudo isso, é a sanidade do povo garantida pela santidade da ação divina d’Ele sobre cada homem”.

1) Ancien Régime

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/12/1985)