A História: um imenso drama

Ao longo dos milênios em que o homem peregrina sobre a terra, incontáveis foram os disparates e os lances de selvageria ou torpeza, praticados por gente comum ou por personagens altamente colocados. Será que, no ensino da História, é proveitoso para os alunos apresentar-lhes esses episódios sinistros da vida da humanidade, muitos deles passados em eras remotas? Questão um tanto  inesperada, e relacionada com estas outras: de que  adianta estudar História? De que vale conhecer o passado? As respostas são dadas por Dr. Plinio na conferência que transcrevemos nas páginas seguintes.

 

Conjecturar o futuro não é tarefa das mais fáceis. Para fazê-lo, importa arquitetar uma série de raciocínios, de cálculos, etc., até se vislumbrar algo do que ele nos reserva. Em certas circunstâncias, esse conhecimento é de extrema utilidade, dado podermos adequar nossos objetivos e ações em vista do que irá acontecer.

Mais ainda. Sabendo como outros planejaram o futuro, estará a nosso alcance “desplanejá-lo”, caso tenhamos intenções contrárias às deles. Tome-se o exemplo de dois rivais políticos. Na disputa que travam, vencerá aquele que melhor compreender quais os desejos do adversário, os lances, manobras e combinações que este realizará amanhã, pois, conhecendo- os de antemão, poderá  tomar a dianteira e sair vitorioso.

Um modo especial de jogar xadrez

O mesmo princípio se aplica a dois jogadores de xadrez que se olham de frente. Se um é capaz de perceber qual será a próxima jogada de seu contendor, pode mexer  determinada peça e ganhar a partida. Vem a propósito evocar de passagem uma reminiscência do meu tempo de moço. Um tio meu, muito apreciador do jogo de xadrez, gostava de aproveitar as tardes livres dos fins de  semana para uma partida com seus filhos ou sobrinhos. Diversas vezes era eu o escolhido e de bom grado assumia o outro lado do tabuleiro.

Em determinado momento, eu percebia que meu tio fazia seus planos olhando para as peças, procurando descobrir as minhas intenções. Eu, porém, procedia de modo diferente: enquanto meu  oponente observava as peças, eu lhe fitava o rosto e o olhar, acabando por descobrir qual seu próximo lance. Empurrava, então, um cavalo, uma torre, bloqueando-lhe o caminho, sem ele nunca  haver atinado com minha estratégia…

Era uma maneira de conhecer o futuro, que também tinha, naquele âmbito familiar e recreativo, a sua utilidade.

A história dos assírios: “O que eu lucrei em saber dessas selvagerias?”

Mas, quando  e trata de História, de nos voltarmos para o passado, retrocedendo até os primórdios da humanidade, que proveito nos advém desse conhecimento?

Eu me situo novamente na minha sala de aula, no tempo do Colégio São Luís, quando o professor de História entrava, sentava-se à sua mesa e dizia: “Hoje vamos estudar os assírios!” O tema me despertava um interesse apenas moderado.

Porque, afinal, em pleno século XX, com os assírios ou sem eles, as coisas mais ou menos se resolvem. Eu pensava comigo: “O que me importam esses reis, aliás muito antipáticos?”

De fato, uma antipatia que me ficou da consideração de uma gravura existente no meu livro de História Universal, reproduzindo um alto-relevo da época assíria. A cena esculpida era  confrangedora. Tratava-se de um rei tomando atitude de vencedor diante de prisioneiros de guerra. Ele, representado como um homem alto, usando chapéu cônico (mas um cone truncado, não  em ponta) de material muito rico, sob o qual escachoavam abundantes cabelos, eximiamente frisados, formando filas, como se diria de soldados em ordem de batalha.

A barba, igualmente farta, alternava-se em segmentos lisos e cacheados. Estava vestido de túnica e calçava sandálias. Uma fisionomia de expressão feroz, certos olhos compridos e em diagonal,  característicos daqueles povos, nariz adunco de ave de rapina, e uma lança na mão.

À frente dele, lavrados em tamanho menor, uma série de prisioneiros, cada um com argolas atravessando o seu lábio inferior, e todas essas argolas presas por cordéis que chegavam até a mão do  rei vitorioso. A cena perpetua o momento em que dois daqueles infelizes estão ajoelhados diante do soberano, e este na iminência de lhes furar os olhos com a lança. Terrível castigo que ele  infligiria às centenas de vencidos, para se vingar e, posteriormente, ter braços que trabalhassem para ele  sem lhe causar grandes estorvos. Estão cegos, não podem fugir, fazem o que se lhes manda.

Transformam-se em animais de tração. Era costume dos assírios fazer grandes obras públicas, muros muito altos, etc., e necessitavam de homens que construíssem pacientemente essas imensas  edificações. Ora, como tais empregados provinham, em geral, das prisões de guerra, era preciso destinar inúmeros soldados para vigiá-los e impedir que desertassem. Então aquele rei — a quem a  legenda da gravura dava o nome de Assurbanipal Tiglapilazar — teve a horrível ideia de cegar todos os prisioneiros, de modo a não poderem escapar. Nessas condições, um único guarda bastava para tomar conta de quinhentos ou mais escravos.

Quando a faina diária terminava, os desgraçados eram levados para um cocho qualquer, recebiam uma péssima refeição e dormiam, para tudo recomeçar na manhã seguinte.

Uma situação pavorosa, abominável, fruto da civilização pagã, alheia à noção de que, embora desiguais entre si, os homens são iguais pela natureza. E que, portanto, essa desigualdade tem limites,  ão sendo lícito a um homem abusar de seu semelhante.

Então, eu pensava com meus botões: “Valeu a pena essa visão de pesadelo e drama passar por meus olhos e minha mente, como pelos de todos os alunos que estão aqui? O que eu lucrei em saber  dessa selvageria e torpeza? Não lucrei nada. É uma coisa horrorosa! Para que ensinam isso?”

Desatinos de certos personagens históricos

Se não eram assírios, eram os babilônios, era a Índia, e era a luta dos persas contra os gregos, envolvendo uma série de fatos, alguns inexplicáveis. Dario, imperador da Pérsia, homem de imenso  poder, levou suas tropas até as margens do Mediterrâneo, numa caminhada que se tornou célebre, porque muito difícil. De fato, a grande distância que separa a Pérsia desse mar não podia,  naquele tempo, ser vencida pelo exército inteiro montado a cavalo. Tinha-se de ir a pé, sobrepujando inúmeros obstáculos.

Chegados ao Mediterrâneo, os persas encontrariam ali uma poderosa frota que os aguardava para conduzi-los à Grécia. Porém, quando já se dispunham a embarcar nos navios, um vento fortíssimo  soprou, encapelando as ondas e dispersando toda a frota. Assim, a pequena Grécia, com poucos soldados para se defender contra a Pérsia, viu-se livre da invasão.

Diante do fracasso, Dario ficou furioso e ordenou que um certo número de chicoteadores do seu exército açoitassem o mar, para se vingar do que este havia feito com suas naus.

Eu pensava: “Aqui é outro desatino! Do que adianta chicotear o mar? O mar vai e vem, quando quiser, sobe, inunda o lugar onde estão todos os chicoteadores, leva alguns consigo e os mata. O mar  az o que quiser. De que adianta flagelá-lo? É uma estupidez!” Mas era preciso aprender que Dario mandou chicotear o mar… O que lucrei com isso?

Tudo se explica em função de Nosso Senhor Jesus Cristo

Certo dia caiu-me nas mãos um livro de História, de cujo título não me lembro, que infelizmente já desapareceu de circulação. Era uma verdadeiro tesouro e uma maravilha de erudição. Baseado  em textos de autores pagãos, mostrava o mundo de tolices, asneiras e crimes que se cometiam antes de ser difundida a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo pela face da Terra, e como aqueles  cessaram depois dessa propagação.

De súbito, aquelas velhas histórias do meu professor secundário tomaram vida para mim: “Ah! Agora eu compreendo. Quando penso em Nosso Senhor Jesus Cristo e no Tiglapilazar… Quando  considero a suavidade e a doçura dEle ao curar cegos, coxos e doentes de toda ordem, com infinita bondade, e, de outro lado, vejo a ferocidade desse rei animalesco, e imagino que todos daquela  época eram como esse soberano, eu entendo que essas crueldades sem nome foram se apagando lentamente, à medida que os ensinamentos de Nosso Senhor  se propagaram pelo mundo e dulcificaram os povos.”

Ao ver que dessas populações dulcificadas floresceu a Cristandade, eu pensava: “Estou  compreendendo a História, ao ver nela os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, os passos da Igreja dEle! É  por causa da doutrina que Ele trouxe aos homens, da Igreja que Ele fundou, da graça que essa Igreja difunde, e que Ele mesmo diretamente esparge sobre as almas, a rogos de Nossa Senhora, a  todo momento e de todos os modos — que se formou essa realidade incomparável chamada Cristandade, a imensa família das nações católicas apostólicas romanas”!

“Que papel admirável teve Ele na História! Como Ele é grande! Que maravilha!”

A História, ao girar em torno do Verbo Encarnado, tomou sentido para mim. Ela deve ser vista, portanto, enquanto ordenada em relação a Nosso Senhor: a narração de todos aqueles crimes,  infâmias e ignomínias que O precederam, que Ele viria remir; como também a descrição de todos os restos de belo, bom e verdadeiro que ainda subsistiam na natureza humana, e que Ele iria  tomar, elevar e conduzir à sua excelência. O bem, antes dEle minoritário, incompleto, esmagado, com Ele sairia vitorioso.

Em função de Jesus Cristo, tudo toma interesse. Sem a presença dEle, a História se parece com uma sala durante a noite. Esta pode estar decorada com os mais belos quadros do mundo; se, porém, estiver imersa numa escuridão absoluta, do que me adianta estarem ali as mais célebres obras-primas da Terra? Eu não as vejo! Alguém poderá me dizer: “Ali está um Fra Angelico  magnífico!” A minha resposta é: “O que tenho eu com isso? Não estou vendo! Não me interessa!”

Contudo, acende-se a luz… “Ah! Que esplêndido quadro de Fra Angelico!” É a reação normal, porque eu passo a ver as coisas e elas tomam interesse para mim.

É o que acontece quando estudamos a História em ordem a Nosso Senhor Jesus Cristo. Com a presença dEle, a luz brilha nas trevas, tem-se vontade de acompanhar os fatos, de entendê-los, etc., em função dEle, que é não apenas o centro, mas o ápice da História.

O sentido profundo da História: uma luta, um imenso drama

Vista assim, a História se divide em três grandes períodos: o primeiro, da criação do homem, passando pelo pecado original, até o advento de Nosso Senhor Jesus Cristo; o segundo, quando Ele  nasceu e morreu na cruz por nós, resgatou o gênero humano e fundou a Igreja; terceiro, os séculos que antecedem a outra vinda dEle, no fim do mundo, para julgar os vivos e os mortos,  encerrando a História da humanidade.

É tomada nesse amplo contexto, relacionada não apenas com um povo ou uma civilização, mas com a globalidade do gênero humano, que a História adquire o seu sentido profundo e merece ser  examinada. Um sentido profundo que remonta a Deus Criador, tirando do nada o universo, com todas as suas incomensuráveis riquezas, os anjos, e a síntese da matéria e do espírito que é o  homem, posto por Ele no Paraíso Terrestre, lugar de delícias e de extraordinária felicidade física, espiritual e intelectual.

Se não tivesse havido o pecado original e, portanto, o gênero humano continuasse a se propagar no Paraíso, este, com o contínuo e magnífico crescimento da virtude, inspirando os mais variados e  excelentes talentos, teria se tornado resplandecente de glória e beleza. Desse modo, o homem prestaria sua colaboração para deixar ainda mais esplendorosa a obra de Deus. E assim o foi de início,  quando — diz a Escritura — às tardes o Senhor descia ao Éden numa brisa fresca, para passear e conversar com Adão, fazendo com que este compreendesse e aperfeiçoasse a beleza de  todas as coisas.

Porém, essa ordem e esse plano maravilhoso foram frustrados pelo Pecado Original. Adão e Eva caíram, e foram expulsos do Paraíso. Punidos, iniciam nesta Terra de exílio a sua vida difícil.  Nascem os primeiros filhos. Um deles é a flor da progênie: Abel. Abel o suave, Abel o bom, Abel o perfeito.

O outro, Caim, é um filho torto, que vê com maus olhos o irmão virtuoso, em relação ao qual se consome de inveja e de vontade de liquidar. Os pais notam a perversidade no íntimo da alma de  Caim e procuram aconselhar: “Abel é seu irmão, você precisa amá-lo”.

Debalde. Cedendo à tentação, Caim mata Abel. E aí, presumivelmente, pela primeira vez Adão e Eva viram uma criatura morta, e puderam contemplar em todo o horror — na pessoa de seu filho —  morte que viria para eles e para todos os seus descendentes, por culpa deles.

Podemos imaginar a atitude de Eva, sentada sobre uma pedra, com Abel em seu colo, sem vida. Ela segurando a cabeça de seu filho dileto, enquanto, ao longe, Caim se afasta gritando ultrajes!… Ela tinha ali a figura do primeiro assassinato, do primeiro morto e do primeiro bandido. É a História do gênero humano que vai começando.

Passam-se os séculos. Os “Nabucodonosores”, os “Assurbanipais” aparecem. Os reis também vão se tornando celerados. Tudo vai se tornando crime pelo mundo. Mas, em Israel, no povo eleito, uma  Virgem imaculada havia, a qual, ao lado de alguns poucos justos, insistentemente rogava a Deus a vinda do Messias. “Rorate coeli desuper, et nubes pluant justum” — reza a Igreja no Advento. 

“Destilai, ó céus, lá dessas alturas o vosso orvalho; e as nuvens chovam ao Justo”. Quer dizer, que venha o Bem-amado e o Bem-esperado de todas as gentes.

O Perfeito surgiu, afinal, para modificar o curso do mundo. Durante séculos O esperou a nação de Israel. Eis que o Redentor chegou. O que fez esta nação? Matou- O! Uma minoria fiel O  acompanhou e constituiu a Igreja. A maioria, infiel, sacrificou o Verbo Encarnado! Mas não sabiam que o Salvador, com sua morte, resgatava o gênero humano! O pecado original e todos os pecados atuais, até o fim do mundo, necessitavam de uma expiação condigna diante do Altíssimo. Esta, o Homem-Deus a satisfez inteiramente.

Redimido o homem, perdoado, pelo mundo começam a soprar outros ventos. Aparecem os santos, os mártires, e as obras de caridade de toda ordem. Em determinado momento, surgem os  eremitas e os doutores da Igreja, gerados do sangue infinitamente precioso de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Iniciou-se, igualmente, a grande batalha da Cruz através dos séculos. Assim como no Céu, Deus se serviu de São Miguel Arcanjo e dos Anjos bons para de lá expulsar os demônios, assim também,  na Terra, é desejo de Nosso Senhor que os homens bons combatam os maus, numa luta que perdurará até o fim do mundo. Temos, então, de um lado, a história da graça divina, que vai soprando  aqui, lá e acolá, para tal pai de família, para esta e aquela pessoa, etc., a fim de serem melhores que os outros, para chamá-los e guiá-los. A história do Santo Sacrifício da Missa que se repete  diariamente no mundo inteiro, da Igreja que vai distribuindo os Sacramentos, vai ensinando, governando e santificando os homens, no intuito de que todos alcancem o Céu. É a tarefa por  excelência da Hierarquia sagrada. E dos fiéis, sob as ordens da Hierarquia, travando essa batalha com vistas a levar para a bem-aventurança eterna o maior número de almas.

Essa é a história da  salvação

De outro lado, é a história dos maus, que constituem organizações, que tramam entre si e promovem propagandas para arrastar as almas ao inferno. E o grande, o verdadeiro sentido da vida  cotidiana, não é saber se tal povo irá conquistar tal outro, ou se o preço do petróleo vai subir ou cair. Essas são coisas completamente acidentais. O problema é: eles estão se salvando ou se  perdendo? Nós estamos nos salvando ou nos perdendo?

Quando saímos à rua e observamos o fluxo contínuo de pessoas a pé ou de carro, a pergunta que devemos nos fazer não é: Para onde vão? Qual é a marca do automóvel de cada uma delas? Tudo  isto é secundário. A questão é: elas são ou não de Deus? Estão ajudando o bem ou o mal?

Este é o sentido mais profundo da História da humanidade. Toda ela é uma luta pela salvação ou perdição de muitos, uma batalha em que uns homens influenciam outros, aproximando-os ou os  afastando de Nosso Senhor Jesus Cristo. E compreendemos que, assim, ela deixa de ser o formigamento de um sem número de pessoas que nem conhecemos, que morreram muitos séculos antes  de nós, que não tinham nada a ver conosco, e se transforma na história de um imenso drama.

E nós podemos compô-la como um quadro gigantesco, onde percebemos nossas próprias pessoas dentro do drama. Porque todos nós, cada homem nascido em um determinado século, faz parte  do drama da sua época, e tem um inalienável papel — disposto pela Providência — a desempenhar na ingente luta pela salvação das almas.

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 11 (Fevereiro de 1999)

Devoção ao Sagrado Coração de Jesus

Atendendo ao pedido de um discípulo, Dr. Plinio tece comentários transbordantes de ardoroso amor acerca da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Estando na contingência de tratar sobre um tema tão caro, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, meu modo de ser me levaria a procurar estudar, pensar e meditar a respeito dele, até ter conhecido a respeito do assunto tudo quanto seja possível. A meu ver, assim também deve ser o amor, feito do máximo sentimento possível, mas a par do sentimento deve estar também o raciocínio pelo qual nós buscamos entender ao máximo aquilo que se sente. Da soma destes dois fatores resulta o verdadeiro amor.

Contudo os deveres de meu apostolado não me permitem agir de acordo com este princípio, ao menos não tanto quanto gostaria. Mas, ainda que eu não tenha podido fazer estudos profundos a respeito deste tema, algo sempre se conhece, proponho assim que entremos no assunto valendo-nos, sobretudo, daquilo que sentimos a respeito desta devoção.

Duas concepções de coração

Primeiramente, eu gostaria de analisar duas concepções distintas, mas não contrárias, a respeito do que representa o coração.

Uma é a concepção moderna, segundo a qual o coração é símbolo do sentimento puro, divorciado da razão. Debaixo desta visualização, o coração de alguém deve vibrar à vista de algo que lhe causa boa impressão, enternecimento, e produz um sentimento de bondade e condescendência.

Algo disso, por exemplo, se dá comigo sempre que vejo uma imagem do Sagrado Coração de Jesus que está numa Igreja da cidade de São Paulo, a Ele dedicada. Ao ver aquela imagem, lembro-me de uma série de emoções de ordem religiosa que tive diante dela. Estas emoções, evidentemente, de nenhum modo eu as considero ruins. Mas pergunto: Será que o coração representa só isso? Devemos considerar que os antigos entendiam o coração num sentido mais profundo; para eles o coração representava o conjunto de tudo aquilo que o homem conhece e ama. Porém, com um amor segundo a concepção que apontei acima, ou seja, sentindo, raciocinando, julgando, e conforme o caso, aderindo e amando. Tudo quanto desta forma o homem ama, constitui um conjunto que é a mentalidade do homem, a qual é representada pelo coração.

Diante desta concepção, a devoção ao Sagrado Coração de Jesus adquire uma profundidade insondável.

Diversos aspectos de uma mesma cena

Imaginemos como alguém, que conhecesse Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua vida terrena, deveria amá-Lo, a ponto de saber reconhecer o majestoso e suave timbre de sua voz. Consideremos que essa pessoa tivesse visto um olhar repleto de bondade e misericórdia d’Ele para alguém. Por outro lado pudesse contemplá-lo açoitando os vendilhões do Templo, ou respondendo aos guardas do Templo: “Ego sum”, e todos caírem no chão.

Creio que se eu fosse pintor, seria capaz de fazer ao menos uns cinquenta quadros representando diferentes aspectos que n’Ele deveriam transparecer naquele momento. O mesmo se poderia fazer a respeito da cena onde, do alto da Cruz, entre gemidos Ele disse: “Mãe eis o teu filho! Filho eis aí tua mãe!”(Jo 19, 26-27). Com que fisionomia Jesus terá dito isso? Ou então, quando Ele afirmou ao bom ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Nesta mesma cena é preciso considerar não só as palavras d’Ele ao bom ladrão, mas também, o silêncio gélido d’Ele em relação ao mau ladrão.

Quanta expressividade tem o silêncio de uma pessoa como Nosso Senhor Jesus Cristo!

Pois bem, se a mim fosse dada a graça de presenciar tudo isso, creio que, apesar do meu empenho em conhecer as mentalidades, eu esqueceria tudo para só prestar atenção n’Ele. Evidentemente, também em Nossa Senhora e um pouco nos Apóstolos, fora deles, mais nada. Mas, sobretudo eu teria procurado conhecer Nosso Senhor o quanto me fosse possível. Não por controle ou desconfiança, mas, pelo contrário, para poder amá-Lo e entregar-me cada vez mais a Ele.

Como será a mentalidade de Nosso Senhor?

Tomada esta concepção de coração, podemos nos perguntar como deve ser a mentalidade de Cristo.

A resposta é muito difícil, pois o tema é tão alto que estando em baixo tem-se medo de subir. Por outro lado, quando se chega em cima não se tem vontade de descer. Se considerarmos, sobretudo, a natureza humana de Nosso Senhor, podemos tentar explicitar algo, pois no tocante à divindade o assunto atinge tal altura que se torna impossível ao homem alcançá-lo.

A Fé nos ensina que Jesus Cristo é o Verbo de Deus encarnado que passou a habitar entre os homens (Cf. Jo 1,14). Na Pessoa dele a natureza humana e a divina se unem hipostaticamente (Cf. Cat. 467). Esta união é insuperável e inatingível por qualquer criatura humana, nem sequer Nossa Senhora, à Qual acredito ter sido dado o dom da permanência eucarística, pode ter uma união com Deus comparável à que teve a natureza humana de Jesus.

A relação entre a humanidade e a divindade na Pessoa de Jesus é algo tão extraordinário que São Luís, Rei de França, tinha o belo costume, depois adotado por toda a Igreja, de inclinar-se quando durante o Credo se afirmava: “Et Verbum caro factum est et habitavit in nobis”.

A maior alegria e o mais terrível sofrimento

Que alegria tal união deveria produzir na natureza humana de Jesus? Sem considerar a divindade pela qual Cristo é a própria Fonte de toda alegria. Apesar disso, por algum mistério, durante sua oração no Horto esta alegria parece ter cedido lugar a uma terrível sensação de abandono que o levou a pedir: “Pai, se for possível afasta de mim este cálice!”(Lc 22, 42).

Ainda mais eloquente é o brado lançado do alto da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonaste?”(Mc 15, 34). O que terá se passado naquele momento com esta união da natureza humana e a divina, que possa ter causado um tão grande sentimento que O levou a, pouco depois, dizer: “Consummatum est!” (Jo 19,30) e render seu espírito?

Por aí se vê que, apesar da união da natureza humana de Nosso Senhor com a divina, Ele podia sofrer. E por certo equilíbrio que nesta vida costuma haver entre a felicidade e a dor, considerando as alegrias de Jesus, podemos medir quão profundos devem ter sido seus padecimentos.

Creio que um dos mais pungentes sofrimentos pelos quais Cristo passou deve ter sido o do inexplicável. Pois nenhuma dor humana é tão grande quanto à de sofrer sem saber a razão. Apesar de Nosso Senhor enquanto Deus conhecer tudo, e saber que Ele não é passível de culpa, de alguma forma misteriosa Ele deve ter passado por esta forma de dor, do contrário seu sofrimento não seria completo.

Tenho a impressão de que assim como Deus, após criar cada ser que existe no Universo, considerou o conjunto e viu ser este melhor, de modo análogo, Nosso Senhor, após haver passado por todos os tormentos da Paixão, deve ter olhado a beleza do conjunto de seus padecimentos, e deve ter pensado: “Está tudo oferecido; tudo quanto podia sofrer, sofri, para a redenção do gênero humano”, então exclamou: “Consummatum est!”

Mentalidade composta de contrários harmônicos

Ora, é preciso termos presentes estes aspectos de grandeza e fortaleza de alma que vemos transparecer nos últimos atos da Paixão do divino Redentor ao analisarmos cada momento de sua vida terrena. Pois, Ele que sofreu uma morte como essa, é o mesmo que acariciou as criancinhas quando se aproximaram d’Ele, e a respeito das quais disse: “Deixai vir a Mim os pequeninos, porque deles é o Reino do Céu” (Mc 10, 14). Não há homem, de qualquer idade, que ouvindo estas palavras não se sinta nelas concernido, pois diante d’Ele quem não se sente pequenino? E pensa: “Então também para mim há um lugar junto a Jesus”.

Devemos considerar que estas palavras transbordantes de doçura saíram dos lábios d’Aquele que durante a Paixão mostrou possuir inigualável força e decisão.

Mas, como pode a alma humana reunir num só quadro todos estes aspectos, de maneira que, à vista de Nosso Senhor, O considere como Aquele que expulsou os vendilhões do Templo, ao mesmo tempo veja n’Ele aquele que com indizível bondade acariciava as criancinhas, curava os doentes, espargia em torno de Si alegria, consolação, tranquilidade, saúde e encanto? Mais ainda, como conjugar numa só visão o Varão tão forte, único e incomparável que se vê no Santo Sudário, com o Menino Jesus recém-nascido, abrindo os braços e sorrindo para Nossa Senhora?

Se bem que já ao abrir os braços os punha em forma de cruz, prenunciando que nascia para ser crucificado, como pode alguém imaginar que naquela Criança cândida, inocente e frágil, já estava o Herói que iria suportar os mais terríveis padecimentos que já se viu e se verá até o fim do mundo?

Males de uma visão unilateral

Como então condensar todas estas perfeições do Homem-Deus numa só visão?

Estas perfeições são tantas que seríamos propensos a nos contentar com a consideração de um só aspecto. De fato, cada um O adora da forma que se sente chamado a fazê-lo, mas em meu caso particular, pelo meu modo de ser, eu nunca me satisfaria em adorá-Lo sob um só destes aspectos, sem procurar reuni-lo aos outros, de modo a formar, ainda que sumariamente, uma noção de conjunto.

Por isso, se eu pudesse conhecê-Lo nesta vida, o que mais me aprazeria admirar n’Ele seriam as transições de estados de espírito, para que nessas variações eu pudesse ver a harmonia que elas formavam.

No teto da Igreja do Sagrado Coração de Jesus há uma pintura no estilo do século XIX, a qual tem a característica, proveniente de uma tendência dos homens desse século, de representar as coisas exatamente como elas são na realidade prática. Daí surgiu a escola de arte chamada Realismo. Isso para mim não é verdadeira arte. Pois o valor de uma obra de arte está em representar algo de imponderável que só os olhos de verdadeiros observadores captam.

Se representar as coisas tal como a vemos tem valor artístico, a mais perfeita das artes deveria ser a fotografia. Ora, a maior lacuna tanto do Realismo quanto da fotografia está em não retratar estas transições de alma de que acima me referia. Por isso, nos quadros de Jesus que seguem esta escola, nota-se que o artista escolheu um só aspecto de Jesus e procurou representa-lo. E geralmente o que se procura representar de Nosso Senhor é sua misericórdia infinita, o que apesar de ser muito justo é, porém, incompleto.

Na ladainha do Coração de Jesus há a seguinte invocação: “Coração de Jesus, abismo de todas as virtudes”. Isto quer dizer que a profundidade das virtudes d’Ele é tal que constitui um abismo para os homens. Poderíamos até chama-lo Céu de todas as virtudes, considerando o Céu como sendo um abismo para cima.

Pintando belezas esquecidas

Quão bom seria se alguém pintasse quadros representando outras cenas da vida de Cristo. Por exemplo, Ele meditando no deserto quando lá passou quarenta dias em jejum e oração. Poder-se-ia até imaginá-Lo junto a uma pedra, em meio a um deserto árido, onde houvesse somente uma vegetação ordinária e parca, em contraste com a grandeza daquela cena, ao longe vastidões cobertas de uma bonita areia que se encontra com o horizonte, no qual se nota um por de sol cor de brasa, recortado pelo perfil de Jesus.

Ou ainda, poderia ser feito um quadro de Cristo agradando a Nossa Senhora. Pois, se Ele já se tinha deleitado na contemplação do Universo, quanto não Lhe agradaria olhar para Aquela que era superior a todo o Universo! Então representá-Lo olhando nos olhos de Nossa Senhora, Ela cheia de enlevo para com Ele que por sua vez pensava: “Minha obra prima!” e, enquanto filho: “Minha Mãe! Que perfeição!”

O que não daríamos em troca de contemplar uma cena como essa, ainda que pelo buraco de uma fechadura? Depois de vê-la, para que continuar vivendo? Pois, se alguém nos dissesse: “Olha o mar, que bonito!” Eu que gosto tanto do mar, pensaria: “O que é ver o mar depois de ter visto Maria?”

Enfim, como gostaria que se procurasse representar todos os estados de espírito d’Ele, pois não me contento em adorar e aderir somente à sua misericórdia.

Consideração de tudo quanto fez pulsar e vibrar o Sagrado Coração de Jesus

Além disso, outra coisa que muito me agradaria fazer seria uma coleção dos timbres de voz de Nosso Senhor. Por exemplo, d’Ele enquanto ensinava, Ele que é o Divino Mestre, quanta clareza, sabedoria, profundidade, vastidão de horizontes e simplicidade deveriam transparecer em seu timbre de voz!

Talvez, ainda mais do que os timbres de voz, o que não se daria para ter a representação de alguns olhares de Jesus? Para falar só de dois. Como teria sido o olhar que Ele deu a São Pedro, a ponto de convertê-lo e fazê-lo chorar amargamente de arrependimento durante toda a vida? Ou então o último olhar que Ele dirigiu à sua Mãe junto à Cruz. Quanto carinho, apreço e amor deveriam se manifestar neste olhar? Por outro lado, como terá sido o olhar severo dele, expulsando os vendilhões do Templo; ou o olhar desgostoso d’Ele para Pilatos; ou então o olhar de repreensão para Anás e Caifás?

Todo esse conjunto está contido no Sagrado Coração de Jesus, e repercutiu n’Ele de tal forma que, em cada um destes vários momentos, Ele deve ter pulsado de modo diferente, ora mais intensamente, ora menos.

Sendo o Coração de Jesus composto por todos estes aspectos, para termos verdadeira devoção a Ele não basta conhecer e amar somente um destes aspectos, mas é necessário ter uma visão de todo o conjunto que Ele representa. Isto evidentemente ninguém é capaz de atingir inteiramente sem um especial auxílio da graça, mas para os que almejam e empenham-se em conhecer e amar o quanto seja possível este magnífico, indizível e inestimável conjunto, que compõe o Sagrado Coração de Jesus, essa graça em certo momento virá.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/4/1984)

Adoração da Pessoa de Nosso Senhor

Nosso Senhor Jesus Cristo sempre foi o padrão supremo em função do qual Dr. Plinio concebia a verdade, o bem e a beleza de todas as coisas, como também o relacionamento humano.

A escola filosófica pela qual o conhecer a biografia do filósofo não interessa em nada, limitando-se em considerar as ideias dele, priva-se de alguma coisa que a Providência dá ao homem no conhecimento da verdade, da beleza e do bem.

Pedra angular

O indivíduo que trata de um assunto põe ali, ainda que não queira, notas da sua luz primordial(1) e do atraente que para ele esta possui, por onde o lado bom dele é conhecido no que tem de mais profundo.

Aristóteles, por exemplo, poderia pensar em Deus como “Causa Primeira” e, se ele fosse fiel, fazer disso o que se poderia chamar a sua luz primordial.

Já São Paulo dizia que não pregava a não ser Jesus, e Jesus crucificado(2). Por quê? Porque no Apóstolo todas as considerações de Aristóteles sobre Deus chegavam até Alguém que existiu, e que é Nosso Senhor Jesus Cristo na unidade de sua Pessoa e na dualidade de suas naturezas, em Quem São Paulo via, mais completamente do que Aristóteles, aquilo que o próprio Aristóteles dissera. E o Apóstolo pôde afirmar: “Vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim”(3), em vez de dizer: “É Deus que vive em mim”.

No meu espírito, o caminho pelo qual a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo me levou à consideração da sociedade temporal, foi um modo especial de analisar o “bonum, o verum, o pulchrum”. Mas o elemento fundamental é a contemplação da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo na dualidade das naturezas humana e divina.

O que há de mais profundo na minha alma é essa visão religiosa da Pessoa de Nosso Senhor. Essa é a pedra de ângulo a partir da qual todo o “verum, bonum, pulchrum” se deslinda.

Em menino, fazendo a análise psicológica de Nosso Senhor

Em presença de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que minha alma sentia, tendo a notícia d’Ele que pode ter uma criança com três, quatro anos? Qual era essa primeira cognição, e como era esse primeiro ato de adoração?

Eu O considerava através das imagens que via em mais de um quarto de minha casa, de um livrinho de Religião para criança, do que mamãe contava d’Ele, da História Sagrada, etc.

Dona Lucilia não falava do Credo diretamente, mas o que ela dizia pressupunha o Credo e o ato de Fé, que era o ponto de partida. Mas ela não criava, nem de longe, o problema: “Eu vou provar que a Igreja Católica é verdadeira…” Porque ela considerava que, ao contar a história, já estava provando ser verdadeira. E para a criança é realmente assim.

Eu tinha a sensação evidente de que Ele era o Homem-Deus — porque mamãe, ao tratar disso, deixava claríssimo —, e procurava fazer uma análise psicológica de Nosso Senhor.

Ele era de uma elevação de cogitações e de vias absolutamente excelsa! Os critérios segundo os quais Nosso Senhor considerava todas as coisas eram de uma superioridade que deixava qualquer outra pessoa sem nenhum paralelo possível. Ele ficava desde logo numa altura inacessível ao homem.

Olhando para Ele, eu compreendia o que, no Homem, resplandecia de divino. Mas, de fato, eu entendia que era uma elevação própria a Deus e que a humanidade d’Ele estava numa atitude permanente de contemplação e adoração da divindade das três Pessoas da Santíssima Trindade.

A partir disso, Nosso Senhor tinha um contato com todas as almas, porque, estando naquela altura e sem as limitações de um simples ser humano, Ele conhecia todas as outras almas, sabia o que acontecia com cada uma delas e intervinha dentro de todas. Sua superioridade Lhe dava o direito ex natura rerum(4) a esse contato.

Naturalmente, tudo isso em mim era muito implícito. Não imaginem um menininho de quatro anos fazendo pedantemente essas digressões. Mas, explicitando agora, noto que era isso.

Fuga do bom para o ótimo

O próximo ponto da minha meditação é: de que natureza era essa ação de Nosso Senhor? Como Ele toma contato com essas almas?

Não posso saber como é nos outros, mas posso perceber como é esse contato de almas estudando-o em mim. Eu me sinto, antes de tudo, elevado algum tanto acima de mim mesmo, por ver essa grandeza do ser e do cogitar d’Ele.

De onde se abre em mim uma luz no cogitar e no ver, que me extasia, porque algo em mim é feito para olhar mais do que eu. E quando saio da minha vida de menininho e percebo algo em mim que vê mais do que eu, que é mais do que eu, tenho a impressão de que eu escapo, fujo do bom para o ótimo, ponho-me ali na ponta dos pés e me alegro.

Outro ponto: eu noto que, ao mesmo tempo em que contemplo assim essa vida existente em Nosso Senhor — que é um pensar, um querer, um sentir —, Ele me faz como que tocar com as mãos no pensar, no querer e no sentir d’Ele. E isso me comunica, com a elevação própria a isso, uma retidão e uma santidade do pensar, do querer e do sentir, as quais são como um remédio que eu bebesse, e na hora de sorver essa bebida deliciosa ela me agradasse sobremaneira, mas ao mesmo tempo me corrigisse.

Fico compreendendo que devo ser assim, por uma dupla ação: primeiro porque, vendo como Ele é, eu O adoro. E, em segundo lugar, porque, adorando-O, noto que coisas tortas em mim, que eu nem percebia serem tortas, se endireitam, e com isso Nosso Senhor me cura de coisas que me tornavam doente sem eu saber.

Entrevendo a luta que aparece no horizonte

Daí me vinha uma ideia da qual eu propriamente não fugia, mas não fixava muito a atenção nela. Não quero me acusar de uma imperfeição que não estava em mim, mas desejo mostrar que ali havia uma raiz de imperfeições proveniente do pecado original.

Então eu percebia que naquela hora aquilo era delicioso, mas quando passasse o mais intenso disso, essa ação corretiva ser-me-ia duro manter. E, portanto, em certo momento eu teria que sofrer e lutar muito.

Eu tomava conhecimento dessa realidade, mas, à maneira de uma criança, pensava: “Bem, ainda não chegou a hora, e aqui está tão bom, que deixo isso para depois”. Tinha mais curiosidade de fixar a minha atenção no que Deus estava me mostrando — sem saber ser Ele Quem mostrava — do que naquilo que eu poderia deduzir por mim mesmo, e que era o combate. Por isso, eu apenas entrevia e deixava meio de lado.

E, olhando para os meninos com quem eu vivia, notava que alguma coisa dessas Jesus fazia em suas almas também, mas eles davam muito menos atenção. E eu tinha certa ideia de que era culpa dos outros, uma indecência.

Também aí nota-se o começo da luta que ia aparecendo no horizonte, mas isso não me empolgava como empolgou mais tarde.

Como ainda não via neles o mal, mas apenas um bem menor, eu não pensava no futuro disso. Sentia um vácuo que eu gostaria que fosse muito diferente, mas não um choque que me levasse diretamente para a luta.

Ação direta e ação supletiva

Vinha-me outra ideia que em termos atuais eu exporia assim: “Ecce quam bonum et quam iucundum habitare fratres in unum — Eis como é bom e alegre que os irmãos morem juntos.”(5) Eu formava com aqueles meninos um todo tão alegre e agradável que me levava a concluir: “Como isso é bom! Mas o é, sobretudo, porque há neles um efeito da ação de Nosso Senhor Jesus Cristo!” Eles não eram inimigos de Nosso Senhor, não tinham estabelecido um corte de relações com Ele. Assim, eu me sentia posto na minha situação própria e natural: contemplando Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica — cuja noção começava a aparecer no meu espírito —, em mim, em mamãe — muitíssimo, mas muitíssimo! — e nos que me circundavam também.

De maneira que era um mundo todo católico dentro do qual eu sentia a complementação normal da felicidade, que me dava a contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Detendo-me por um instante nesse ponto, pode-se ver a noção que nascia aqui implícita: a condição normal do homem para adorar a Nosso Senhor Jesus Cristo, receber sua influência, ser como Ele, enfim, viver, é contar com a harmonia e a ação supletiva dos outros. Tomando em consideração que a parte do bem que Nosso Senhor Jesus Cristo não me fazia diretamente, Ele a exercia por meio dos outros.

Então, Ele com cada um tinha uma ação direta, e depois uma ação supletiva, por meio dos outros. Aqui entrava o pressuposto da sociedade temporal cristã: a Cristandade.

O meu lar, os meus parentes, todas aquelas famílias que moravam no bairro dos Campos Elíseos, aquilo tudo eu considerava como sendo igualmente bom.

Era o mito de uma Cristandade sustentado por uma série de aparências boas que o mundo ainda tinha naquele tempo, e que eu supunha habitadas pela influência de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um sol que não cessava de brilhar

Eu via, por exemplo, uma dona de casa sair da igreja com quatro, cinco filhinhos que se seguravam pelas mãos; ela tomava as mais criancinhas, na ponta estavam os mais velhinhos, e ia conversando e vigiando. Atrás, com uma bengala debaixo do braço, segurada pelo castão, vinha o pai, com ar grave de quem os defende contra qualquer ataque que pudesse ocorrer. Era um defensor que pairava acima de todos.

Tudo tão direito, tão normal, Jesus Cristo tão presente em tudo isso, que me dava a ideia de que, para ser inteiramente “cristiforme”, o conveniente era que tudo em torno de mim fosse “cristiforme” também.

Depois veio a Primeira Comunhão, com suas graças características, o conhecimento mais exato da Doutrina Católica recebida em cursos regulares de Catecismo, da História Sagrada.

Comecei a observar a Igreja e ver que nela, e em tudo quanto eu conhecia do passado, do presente e do que estava profetizado para o futuro, Nosso Senhor Jesus Cristo habitava e Se fazia sentir de um modo especial por uma ação que eu ainda não sabia chamar-se graça e que era como um sol que não parava de brilhar.

Daí a ideia — complementar do convívio com meus próximos — de uma grande instituição que era a fonte dessa ação de Cristo sobre os homens. E meu ambiente tinha aquelas características devido ao fato de ter aderido a essa fonte, pois era um ambiente católico.

Em última análise, até minha ligação com Nosso Senhor Jesus Cristo se devia a isso: Ele tinha esse nexo com a minha alma porque eu era católico. Enfim, eu possuía a noção clara de encontrar Nosso Senhor Jesus Cristo dentro da concha sagrada da Igreja. Mas não apenas como se alguém dissesse, por exemplo: “Jesus está na casa do centurião Cornélio.” Ali está Ele, mas os arredores da casa não têm nada a ver com sua presença. Não era isso. Eu notava que, na Igreja, a presença de Nosso Senhor ilumina tudo e transfigura as coisas por dentro. Por isso, na Igreja Católica até a soleira da porta era uma coisa santa, pois algo da ação d’Ele estava presente ali. Quantas e quantas vezes eu tive vontade, antes de entrar numa igreja, de me ajoelhar e oscular a soleira da porta, pensando: “A partir daqui começa a casa d’Ele!”

Ato de humildade

Certa vez vi uma pinturazinha com a inscrição “Hæc est porta cœli”, e pensei: “Mas é claro, a porta do Céu é essa. E Plinio, preste atenção! Você é objeto da ação dessa graça, é trabalhado por ela e a ama tanto; está perfeitamente bem. Mas você tem seus doze anos e já sente as garras dos seus defeitos. E deve sentir também que as suas resistências resultam de alguma coisa que existe de fundamentalmente mau em você, e que procura separá-lo disso. E que, portanto, você é ruim. Essa graça o torna bom, mas lhe vem de fora para dentro. E, propriamente, você não é digno de nada disso. Agradeça o fato de, apesar de ser ruim, Nosso Senhor Jesus Cristo ter permitido tudo isso para você. Compete-lhe, pois, um sentimento profundo de sua maldade e de sua indignidade, e querer oscular a soleira da porta compreendendo que você se honra com esse gesto, pois não seria digno nem sequer disso.”

Ao fazer essas considerações, eu sentia sobre mim um efeito curioso: percebia Nosso Senhor mais distante, mas atuando muito mais profundamente em mim. Depois vim a saber tratar-se de um ato de humildade. Eu carregava meu ato de humildade com todas as minhas forças, por me sentir, por causa disso, mais perto d’Ele. O objetivo era sentir essa proximidade.

Eu entendia de um modo confuso que se bocejasse em cima dessa indignidade e pensasse: “É verdade, mas Nosso Senhor me admite. Portanto, vamos passar por cima de tudo isso porque, de repente, Ele se dá conta de que isso é mesmo assim, e me expulsa!” Seria como querer fraudá-Lo. E se eu fizesse isso, começaria a apagar-se a Fé Católica na minha alma.

Então, tomei como princípio o seguinte: Quanto mais eu martelar nessa indignidade e a tiver em vista, mais estarei próximo d’Ele. Então martelo até me arrebentar para me unir tanto quanto eu quisera! Eu quisera unir-me mais! Mas, tanto quanto posso, martelo mesmo!

À vista disso, eu tanto martelei que, possuído a fundo dessa ideia, tomei o hábito, por exemplo, de oscular as imagens apenas nos pés, porque não era digno nem disso; a imagem era benta e os meus lábios não eram dignos disso, por causa dessa radical maldade existente em mim, que me tornava objeto explicável da repulsa divina.

Provações contra a pureza e o choque com a Revolução

Com isso ia me sentindo mais unido a Ele. Nunca com vontade de fugir! O que estava na minha mente é que só Nosso Senhor tinha palavras de vida eterna, e que, portanto, era preciso estar com Ele. Depois, eu não saberia viver a não ser assim.

Começa a época das provações contra a pureza, do choque com a Revolução. Portanto, o medo, a tentação da fuga, os instantes, eu não diria de desânimo, mas como que o momento da falta de energias e de mobilização própria para entrar na luta.

De outro lado, na linha da luta contra os revolucionários, o esforço é tão enorme! E ver-me de repente, não naquela espécie de paraíso de Cristo vivendo em todos, mas, pelo contrário, uma realidade que é como se o demônio vivesse em todos, com exceção de poucas pessoas. Então, a necessidade de lutar. Mas, a preguiça de lutar!

Como eu me privava do agrado, do deleitável, do contato amistoso, jovial e engraçado com os outros, das alegrias despreocupadas da minha infância, sentindo-me quase um moço velho e fanado pelas provações, pelos problemas, pelas reflexões! Entretanto, eu tinha dez, onze anos! Era a minha posição diferente do mundo inteiro! Eu me resolvo a arcar com essa luta?

O lado da consciência do mal, que no fundo era a voz da humildade, me dizia: “Veja, hein, quando você de tal maneira se descarregava sobre si próprio, que razão você tinha… Veja bem quem é você!”

Mas se sou assim — pensava eu — não sou sequer digno de rezar a Nosso Senhor, de levantar meus olhos a Ele, nem de me aproximar d’Ele. E Ele me rejeita com um desprezo tanto mais magnífico quanto mais magnífico é Ele! Isso tanto é assim, que se Ele não me rejeitasse eu não O adoraria! Eu O adoro na rejeição que Ele faz de mim e na punição que Ele me dê, porque aí vejo que Ele era Quem eu pensava. Mas, de outro lado, como arranjo esse caso?

Aparece o ”arco-íris”

Aí apareceu o “arco-íris”: Nossa Senhora! Na Igreja do Coração de Jesus, o “sorriso” da imagem de Nossa Senhora Auxiliadora e a compreensão: Tudo isso daria, aparentemente num caos. Mas não é um caos, porque Ele mesmo, superior a tudo quanto eu podia pensar d’Ele, excogitou esse meio, deu-me a Mãe d’Ele para minha Mãe!

Ali está a solução! Sendo eu ordinário como sou, é a solução para sempre. Porque se eu não me apegar a Ela, tudo está perdido! Mas pelo trato, pelo jeito, pela bondade d’Ela, sinto que, por eu ser tão ordinário, tão fraco, tão ruim, ter essa semente de mal em mim tão marcada como eu vejo, Ela tem uma pena especial. E enquanto meço a profundeza das minhas chagas, Ela sorri para mim e como que me diz: “Meu filho, é verdade, você tem razão. Mas muito mais Eu sou boa do que você é ruim! E passo por cima disso, o afago, lhe quero bem, trago-o para junto de Mim.”

Daí brotar de meus lábios: Salve Regina, Salve Regina, Salve Regina! E daí também o sentido da palavra “salve”: o de me salvar! Eu não a considerava como uma saudação; não estava pensando em protocolos na hora em que eu naufragava. Era S.O.S.! “Salve Regina…”

Esse era o aspecto “vida interior” de algo que transbordaria, no contato com a vida, numa noção da Cristandade, num conceito completo de Revolução e Contra-Revolução.

Qual é o papel do “verum, bonum e pulchrum” — de que eu falava há pouco — nessa visão das coisas, da sociedade temporal e da luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cuja noção foi-se desenvolvendo paralelamente com isso?

Ardor no conhecimento do verum

Há nisso tudo um enlevo constante em relação a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não sei se é correta a palavra “enlevo”. Tenho certeza de que a palavra “adoração” é inteiramente suficiente — e talvez só ela seja suficiente — para indicar a disposição de nossa alma em relação a Ele.

Mas, na própria adoração, o que prepondera? A consideração do “verum, do bonum ou do pulchrum”?

É uma coisa evidente que no ato de adoração existe simultaneamente um abrasamento no conhecimento do verum, um amor entusiasmado e comovido ao bonum, e um deslumbramento pelo pulchrum.

Nosso Senhor mesmo, como Ele é veraz! Como é verdadeiramente o Homem-Deus! Como na unidade da Pessoa d’Ele habitam duas naturezas, e como isso é reversível, ordenado, perfeito! E, sobretudo, o que é Deus ali dentro, que coisa fantástica!

De outro lado, que natureza humana perfeitíssima! E como o encontro da natureza humana com a divina é admirável!

O verum aqui está não só em que isso é assim, mas numa outra coisa: como tudo é coerente dentro disso! É lógico, deve ser assim! E, portanto, um entusiasmo da verdade possuída.

Como é esse entusiasmo? Não é um entusiasmo exclusivamente silogístico: “Eu raciocinei e cheguei à conclusão”, porque o ato de Fé em mim precedeu de muito esse raciocínio; mas é uma espécie de evidência meio mística dada pela Fé, que o raciocínio apologético vem calçar depois, mas não vem suprimir; vem servir a essa ação meio mística dada pela Fé.

De tal maneira que eu ouço pessoas falarem na firmeza das minhas convicções. Tenho vontade de sorrir, e dizer: “Você não entende nada. Fale da firmeza de minha Fé!” Porque a partir da firmeza da minha Fé, no que eu dela deduzo, tenho muita certeza; ali eu piso com sapato de ferro, porque não tenho medo de peso nenhum! No que eu não deduzo, não tenho essa certeza.

Por outro lado, também o modo categórico com que distingo uma coisa má de outra boa. A boa deve ser praticada, favorecida, estimulada, louvada. A má deve ser execrada, detestada; deve-se viver no reconhecimento e na desconfiança constante do mal que aquilo representa, numa atitude a mais policialesca que se possa imaginar contra esse mal, pegando-o e triturando-o implacavelmente.

Pulchrum e simbolismo

Sobre o pulchrum, o que dizer?
Como o pulchrum é o término do trajeto, nele se vê o verum e o bonum, e se acaba proferindo a palavra: pulchrum. Mas essa palavra não exclui o verum e o bonum, ela os contém com a luz própria a cada coisa.

Então, o pulchrum é o esplendor da verdade e do bem, com mais algo; não significa que ele não existe. Ele é ele; mas me levava a dizer, numa espécie de ousadia de pensamento, que talvez houvesse entre o verum, o bonum e o pulchrum uma relação análoga — à maneira de um reflexo — à existente entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

O pulchrum tem no meu pensamento grande papel. Inclusive porque ele tem qualquer coisa de sensível, mas este próprio sensível precisa ser entendido.

São Tomás define o pulchrum como: “aquilo que, visto, agrada”. Houve a aplicação de um sentido. Por exemplo, olhei e aquilo me agradou aos olhos. Isso é o pulchrum.

Na palavra “agrada” entra algo que funcionou assim em mim a vida inteira. Depois cheguei a perceber o lado de Doutrina Católica que há nisso, e que ocupa o meu pensamento.

O sensível tem esse papel — ao qual eu sou muitíssimo aberto e tenho até uma necessidade enfática de alma — de discernir nas coisas o por onde elas simbolizam a Deus e a Nosso Senhor Jesus Cristo. De maneira tal que, não tendo esse simbolismo, elas não me interessam.

Um palácio, mesmo uma igreja que não tenha esse simbolismo, para mim diz muito menos do que poderia dizer uma cabana com uma expressão simbólica muito grande.

O simbolismo é uma analogia entre uma coisa e determinada perfeição de Deus, por onde eu, pelos sentidos, como que vejo essa perfeição de Deus. E minha alma é sedentíssima disso.

Algo me agrada, sobretudo, enquanto caminho para perceber naquilo um símbolo de Deus, ou seja, um reflexo criado de Deus que completa o que as graças de ordem mística fazem perceber.

Então, o que as pessoas alcançam pela graça o símbolo faz de algum modo perceber também pelos sentidos, iluminados pela graça. O pulchrum é o delectabile(6) espiritual, simbólico e digno de ser tocado pela graça.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/4/1989)

 

1) Aspiração para contemplar as verdades, virtudes e perfeições divinas de um modo próprio e único, pelo qual uma alma ou um povo dará sua glória particular a Deus. Sobre este assunto, ver Revista Dr. Plinio, n. 54, p. 4.
2) Cf. 1Cor 1, 23; 2, 2.
3) Gl 2, 20.
4) Do latim: pela própria natureza das coisas.
5) Sl 133, 1.
6) Do latim: deleitável.

Os suaves fulgores da penitência

Dotado de especial senso histórico, Dr. Plinio conhecia, entre outras coisas, as características mais profundas das civilizações, dos povos e dos estilos de arte. Nessa exposição ele explica como decaiu o gótico, e nos adverte a respeito da necessidade da graça do arrependimento e da penitência, para que surja o estilo artístico do Reino de Maria.

 

Consideremos o estilo clássico e o românico: não há dúvida de que o estilo românico, de algum modo, inspirou-se no estilo clássico. Por exemplo, aquelas arcadas e colunas do estilo românico são do estilo romano, é evidente. Mas entrou um elemento artístico e arquitetônico novo, que corresponde ao elemento psicológico novo também, o qual em alguns dos seus aspectos se percebe.

Arte clássica e o ideal do homem olímpico

Por diversas razões, a fortaleza não foi um ideal arquitetônico nem dos gregos nem dos romanos. Isso se deve talvez aos conceitos deles de arte militar, com exércitos muito móveis, e depois a noção de falanges e de legião, que era uma espécie de fortaleza viva a qual de algum modo dispensava a muralha.

Mas o fato concreto é que a fortaleza não esteve presente, a não ser muito esporadicamente, nas suas cogitações e não marcou a fundo a sua arquitetura. E por causa disso nenhum prédio deles visa ser forte. Por exemplo, a mais típica das construções dos gregos, o Parthenon. Também a tribuna das Cariátides, que eu acho tão bonita, não visa de nenhum modo proteger o orador contra uma agressão; é uma tribuna no sentido mais próprio da palavra, em que o orador faz-se ver e tem facilidade de dar alcance à sua voz.

Uma coisa curiosa que está em toda a psicologia clássica: fica insinuado, sem dizer, que a produção intelectual e a artística se fazem de modo indolor. De maneira que na arte não está de nenhum modo representado o esforço da elucubração; esta é olímpica, se desenvolve com a facilidade de um cortejo de bailarinos que vão saindo de um templo para executar um ato religioso qualquer. Assim também os raciocínios vão se desenvolvendo uns depois dos outros.

Ora, é impossível que a elucubração deles não fosse penosa. Isso que eles procuravam ocultar dava o ar olímpico às suas construções, as quais não visavam de nenhum modo ser fortes.

O estilo românico e a noção do homem real

Na concepção medieval, não. Entre os bárbaros há qualquer ideia de ocultar o pecado original, ideia essa que entre eles era co-idêntica com a civilização. Aliás, os bárbaros nem tinham ideia clara do pecado original, mas sim dos efeitos desse pecado, que eles procuravam esconder.

E a arte, simplesmente, começa a conviver abraçada nos efeitos do pecado original, mais ou menos como o homem que precisa andar apoiado numa bengala e se apresenta naturalmente com ela. E tira até uma fotografia solene com a bengala na mão; ele e a sua bengala formam um todo.

E entre os bárbaros o belo surge como uma trepadeira que se enrosca numa árvore dura, rugosa, num sulco dos mais rebarbativos que se possa imaginar, fica cheia dessas contingências, florescem umas rosinhas cor de coral e se forma uma coluna toda rósea.

Assim a arte, com essas contingências, produz uma coisa nova que a meu ver é o românico. Vê-se que o traçado de muitas igrejas românicas era para ser um, mas foi outro porque de repente o terreno começou a ceder e tiveram medo; então, puseram uma estaca, quer dizer, não levaram o prédio até onde pretendiam. E a igreja se apresenta como se tivesse levado um murro de um lado, mas de outro lado apareceu a necessidade de prestar culto à santa tal, que protege contra as intempéries; então acrescentam uma capelinha, que perturba o plano da igreja. Tudo somando, ficou um encanto, muito mais bonito do que estava no original. Mas que é o fruto da aceitação da contingência pelo homem, e a sua modelagem de acordo com a contingência, não para ser o homem olímpico, mas o homem real, descendente de Adão e Eva, remido por Nosso Senhor Jesus Cristo e entrando na vida desta Terra.

Acho que até Saumur tem algo disso, com aqueles campanários em cima, meio inesperados, mas sua planta geral é um quadrilátero compacto, maciço. Mas Saumur já é gótico, e estou falando do românico.

Não vou dizer que uma reflexão soberba de Aristóteles não seja séria, mas não tem a seriedade total. Na medida em que procura ocultar sua elaboração mental e sua dor, a pessoa não é séria, escamoteia uma parte da realidade.

O Parthenon é seríssimo por alguns lados; por outros lados falta-lhe seriedade.

O sério irrompe na arte e por detrás dele uma luz que vale infinitamente mais do que ele: o sobrenatural, o sacral.

O gótico causa a impressão de algo fechado

Dada esta teoria, poderíamos nos perguntar: Com o que nos é dado entrever sobre a Idade Média, o que podemos prever do Reino de Maria?

Ao examinar as coisas da Idade Média, creio haver um problema que perturba, o qual só se deve analisar bem quando se tiver o aparato da cultura e erudição necessária; nós não temos esse aparelhamento. Mas que é preciso considerar que havia algo que tornava um tanto pesadas as asas do voo medieval: frequentemente se apresentam manifestações diabólicas ou gnósticas dentro da arte medieval. E um trato sério da questão não pode deixar de levar isso em consideração.

Por exemplo, há algum tempo atrás eu estava vendo um monumento funerário gótico, mas daquele gótico moribundo já no século XV, em que a arte funerária começou a se desdobrar um pouco exageradamente; depois atingiu no século XVI exageros únicos. Nesse monumento, seis anjos carregavam o esquife de um senhor feudal, mas um desses anjos era um demônio com a cara voltada para trás, dando risada. Como é que isso foi feito, estava à vista de todo mundo, ninguém destruiu, ninguém sabe da explicação disso, a família aceitou, entrou na igreja, o padre celebrou Missa? Mais ainda, nós olhamos o monumento e, se não nos advertissem para aquele anjo de cara virada, o acharíamos sublimíssimo; entretanto a nota gnóstica está ali presente. E isso aflui em várias coisas.

Não estou falando dos demônios nas gárgulas, postos pelos anti-gnósticos que queriam representar o demônio como horroroso e, portanto, no papel que lhe é próprio.

Além disso, há o seguinte: o gótico dá impressão de algo fechado, do qual não irá sair a inspiração nova. Ficou tão bonito, tão admirável, tão perfeito que já chegou ao termo de si mesmo, não vai elaborar nada mais de novo. E, portanto, a imobilidade pela ausência de originalidade marcará para todo o sempre aquele estilo, que será uma infidelidade abandonar, e será uma outra infidelidade ficar dentro dele.

O “flamboyant” já tem infidelidade.

O espírito comercial e a saciedade do sobrenatural

A resposta, a meu ver, é a seguinte: também a vida de sociedade naquele tempo estava admitindo uma porção de atividades novas, que já eram vistas num prisma novo do qual as pessoas não se davam conta. Vou dar o exemplo característico. Na “aldeia de marzipã” haveria pequenos comerciantes, mas estes não a deteriorariam. Porque as proporções do comércio eram, por assim dizer, domésticas e humanas, e tudo quanto se passasse ali tinha, portanto, uma certa relação com o homem.

Quando começam a se desenvolver as estradas e se faz a famosa economia aberta, nasce um espírito comercial que não é mais ligado a nenhuma aldeia, a nenhum lugar, bem ou imóvel, mas que quer apenas ter um dinheiro volátil através de todas as estradas da Europa. E que se exprime melhor pela deusa fortuna do que por qualquer outro símbolo. A sede de aventura do militar passa para a sede de aventura do mercador, que transporta as suas riquezas e procura com isso aumentá-las fabulosamente. E o ricaço no fim da vida é o aventureiro bem sucedido como o marinheiro ladrão, pirata. Ou o guerreiro que se uniu ao deus malfazejo e durante a vida foi um bandido, como aqueles tipos de senhores feudais que tinham castelos à beira das estradas para irem roubar as pessoas que passavam, etc. Há uma coisa qualquer que vai mudando.

Essa posição mostra como a sensação de ciclo terminado existia por causa de uma saciedade do sobrenatural, do sacral, do sofrimento enquanto redentor, enquanto ligado à virtude, à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Entre os homens bons crescem cada vez mais aqueles que são numerários. A dedicação e a renúncia a si mesmo passam a ser, não mais da sociedade, mas de um filão de gente que vive na sociedade; o resto é pessoal que entra na patuscada. Compreende-se, assim, como o fruto social da Idade Média tivesse que caminhar para aquela extinção.

A ”cisterização”

Então, para se compreender para onde é que ela devia ter rumado, precisaríamos imaginar dois caminhos: ou o caminho de São Francisco de Assis, de São Bernardo, ou o de São Bento sublimado. Uma volta àquilo que estava sendo abandonado e uma “cisterização”(1) da Europa. Portanto, um retorno para uma ebriedade da pobreza, da simplicidade, da austeridade, que geraria padrões novos de beleza. Os vitrais das abadias cistercienses são muito bonitos, mas têm uma nota nova: são grandiosos, porém de uma certa simplicidade.

Dever-se-ia imaginar uma clara ruptura com a época anterior estagnada, e o surgimento de uma época deliciosamente penitencial sem ter nada de revolucionário. Ou uma época nova que recebesse uma graça à São Bento, e que fosse muito para cima.

Ou uma terceira hipótese: uma época que tivesse uma graça cisterciense na qual, ao cabo de uns cem anos, florescesse uma coisa beneditina, quer dizer, com o estilo, o amor muito maior às riquezas do beneditino, mas sempre com a cautela de não provocar uma nova ruptura.

Isso eu não sei verdadeiramente como imaginar, mas sei tirar da nossa vida um exemplo de algumas coisas que fazem compreender um sistema da Providência. Alguém vai andando muito bem, mas em certo momento peca, quebra. Na ruptura, reza o Miserere e faz um rebaixamento… depois surge uma flor mais alta do que a anterior.

Há um problema histórico por onde, cada vez que uma coisa vai chegando ao apogeu, os dirigentes do apogeu não se devem tomar de entusiasmo, mas precisam ter medo do demônio gnóstico, das indulgências, das tolerâncias em relação às como que gnoses. E já devem estar prontos para fazer a “cisterização”, se for necessária.

Em concreto, na História sempre houve pessoas que observaram o fenômeno, mas não tiveram coragem de falar sobre ele, produzindo baixas de que o demônio tira proveito, porque é muito desalentador.

E volto a dizer: a história de Cister mostra que também há ali, naquelas austeridades, na sensação do apogeu, a necessidade de outros apertos. Creio que se Cister não foi o que poderia ter sido é porque a marcha das “cisterizações” parou.

É lícito esperar que não seja necessário uma “cisterização”, mas, pelo contrário, progresso? É uma pergunta que se pode fazer. Eu respondo da seguinte maneira: se não houver dilúvios sucessivos de provação, não acho que seja lícito esperar. O mal está nos dirigentes da instituição, os quais esperam que, afinal, ela tenha chegado ao século de ouro, em que não terá provação nem decadência.

Pelo contrário, se não perceberem que estão vindo provações, tremam. Porque a hora da “cisterização” chegou. Ou a instituição começa a se flagelar a si própria ou, se os acontecimentos não a flagelarem, decorre a deterioração dela.

Inocência e contrição formam uma ogiva perfeita

Pode-se admitir que uma entidade, um convento, uma Ordem religiosa, uma Ordem de Cavalaria chegasse ao seu apogeu, e vá somando apogeu com apogeu para chegar até o fim do mundo, numa série inimaginável de apogeus? Essa é a pergunta que mais precisamente se poderia fazer.

Resposta: se os responsáveis por essa obra — que pode ser também uma nação ou algo semelhante — não forem capazes de compreender que, se ela não é mais provada, precisa começar a se flagelar, do contrário a obra apodrece de fato. Quer dizer, se os responsáveis de uma Ordem religiosa pensam que, por não estar mais sofrendo incursões de inimigos da Igreja, de cátaros, albigenses, ela chegou a uma espécie de era de ouro, e, portanto, eles podem praticar a virtude sem a luta, eles são os reitores do banquete da putrefação.

Acho que isso ocorre frequentemente, porque não é ensinado o que se deve fazer.

E aqui surge o inesperado mais esperado: como podemos imaginar o Reino de Maria?

É bom método tomarmos as esperanças, os anelos que Nossa Senhora nos deu, inclusive com o que havia de mais infantil, e perguntar de que forma esta luz pode acender-se na ponta do pavio da mortificação, da penitência e do arrependimento. Aí nós vemos a possibilidade do Reino de Maria.

Mas é na feeria da graça misturada, entretanto, com os suaves fulgores da penitência, da tristeza, do “Miserere mei”, da coisa que doeu e que se pagou. É do contato de duas pedras, a graça da contrição e a da inocência as quais se juntam, que nós formamos uma ogiva perfeita. O que resta em nós de inocência, e o que devemos inovar como contrição forma uma ogiva perfeita, que nos dá o estilo do Reino de Maria.

Será uma ogiva? Não sei. Será uma coisa que, quando nós formos como devemos ser, começaremos a culturalizar nessa direção.

Uma sutil fuga da penitência

O estilo beneditino primitivo era a contrição da sociedade que tinha sido pagã, havia se putrefeito depois das catacumbas e não tinha correspondido bem à graça do eremismo.

Dessa sociedade nasceu uma outra coisa que é a graça beneditina. Em certo momento, os claustros beneditinos deixaram de ser elementos de penitência. Ficou o elemento pureza, o elemento luta, mas não basta ser mosteiro-fortaleza. É preciso a penitência: “’Peccavi’, e eu vou me flagelar a mim mesmo, com as minhas próprias mãos, porque pequei”. Desta noção, que é indispensável, eu tenho impressão de que a Ordem beneditina, em certo momento, começou a escapar.

Creio, não sei se é verdade, ter sido a Alemanha o país que mais contribuiu para desnaturar nesse sentido a Ordem beneditina. Aqueles mosteiros beneditinos na neve, lugares totalmente inóspitos, oferecendo uma proteção soberba para o corpo, para que este ali procurasse, sem preocupação, praticar a virtude e a cultura… Começam a aparecer os pães pretos magníficos, as cervejas, feitos no claustro. É mais perigoso do que a sutileza francesa, porque se tornou tão parecido com a virtude que era preciso amar muito a virtude para não se cair na contrafação.

Nesse sentido, o claustro alemão me dá um certo receio. Terá sido assim? A bela Itália como trabalhou nisso? Que lavorou nisso, lavorou…

Em que consiste a penitência

Para um inocente, todas as exigências da luta já são a taça da penitência. E para ser lutador até o fim, é uma batalha tão grande que isto já dá a penitência. Para o que não é inocente, é preciso acrescentar algo; não basta isso.

E notem que para aqueles que são amados por Nossa Senhora, mais vale a pena eles mesmos irem se adiantando. Porque, como Maria Santíssima os ama mais, provavelmente Ela lhes dará um belo naco de penitência nesta Terra. Mas o que Ela faz — porque o amor de mãe às vezes é como que sublimemente fraudulento —, para não ter que castigar os filhos, é soprar em seus ouvidos que eles precisam se castigar a si próprios.

Da reunião de hoje o que mais deveríamos reter é a penitência, porque é de extrema certeza que nós mais facilmente dela esquecemos. Quer dizer, contraímos hábitos mentais devido aos quais, dois, três minutos — ao pé da letra é isso – depois de sairmos daqui, nós teremos esquecido a penitência. E no que mais devemos pensar é na penitência. Porque esta é o antibiótico que torna possíveis as condições de saúde em nós, e sem ela a própria degustação daquilo que estou falando se torna inviável.

Sobre essa penitência se poderia falar algo.

É preciso notar o seguinte: não confundir penitência com sofrimento. Porque o indivíduo pode ter sofrimento sem penitência nenhuma.

O que vem a ser penitência?

A penitência é, antes de tudo, a convicção de que se andou mal. E essa convicção, por sua vez, resulta primordialmente de admitir como pressuposto o seguinte: eu, no fundo, não sou bom, sou mau; a todo momento a tendência para o mal está levantando a cabeça dentro de mim e, se eu não desenvolver um esforço extraordinário, pratico o mal. E depois o mal muito rapidamente se torna em mim um hábito. E o indivíduo mau é o que praticou o mal, mas sobretudo é mau aquele que transformou o mal num hábito.

Se eu não tiver essa ideia de que sou coisa podre, e de que sem a graça de Deus só farei o mal — portanto, devo ter um inimigo capital na vida chamado eu mesmo —, vou acabar formando de mim uma ideia de bonzinho, meio-termo, pessoa que no total é bem melhor do que as outras, a partir da qual a penitência é impossível. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/2/1983)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2014)

 

1) Neologismo com o qual Dr. Plinio caracteriza, nesta conferência, a influência do espírito cisterciense na Europa medieval.

 

Espelho perfeito da Sagrada Face

Nosso Senhor Jesus Cristo é o modelo de tudo quanto há de bom, grandioso e belo no mundo. Se Ele não tivesse existido ou não fosse Deus, a vida terrena seria algo tão fútil e vazia, uma mera sucessão de deleites alternados com sofrimentos que, em última análise, não se encontraria nela razão autêntica para ser vivida.

Se esse princípio é verdadeiro, devemos reconhecer que a Santa Igreja Católica é o espelho perfeito de seu Fundador, o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim, se alguém desejar sentir um pouco da impressão que teria ao ver a face sagrada do Divino Redentor, pode fazê-lo ao perceber os movimentos de sua alma ao contemplar as maravilhas engendradas pelo espírito católico ao longo dos séculos da Civilização Cristã.

Pode percebê-lo ao admirar uma catedral gótica, uma grande pompa litúrgica, um estupendo órgão tocando composições sacras, um coro cantando músicas gregorianas, ou assistindo a uma emocionante celebração eucarística, com um clero piedoso e um povo fiel. Podemos pensar numa encantadora comemoração de Natal na Catedral de Reims, de Amiens, de Colônia, ou de Bourges, em meio às mil coruscações de velas acesas, espargindo cintilações sobre as colunas de pedra e os vitrais recolhidos nas suas ogivas, na abençoada noite natalina.

Semelhantes sensações teria essa alma diante de incontáveis outros monumentos e obras da Cristandade, próprios a suscitar no coração humano aquela impressão que lhe causaria a visão da face adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque, repetimos, todas as belezas e riquezas da Igreja e da civilização por ela inspirada, irradiam-se da figura do Filho de Deus e n’Ele encontram sua incomparável matriz. Ele é a alma de envergadura infinita que foi e continua sendo a autora de todas essas maravilhas, através dos séculos.

E não compreender essa verdade, não perceber os sentidos últimos dessa unidade sublime que unge e explica todos os aspectos belíssimos da Igreja, é ter compreendido pouco ou não ter compreendido nada da mesma Santa Igreja Católica Apostólica Romana…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/3/67)

Divina visita

Qual não seria nossa alegria ao saber que à porta de nossa residência está um personagem ilustre, o qual veio nos visitar? Como o receberíamos?

Imaginemos que, de repente, parasse diante de nossa casa um magnífico Rolls-Royce, e dele descesse um ajudante de campo, esplendidamente fardado, tocasse a campainha e anunciasse a chegada da Rainha da Inglaterra, dizendo:
— Aqui mora fulano de tal?

A criada que o atendesse diria surpresa:
— Sim, é aqui que ele mora.
— Então abra as portas porque Sua Graciosa Majestade, a Rainha Elisabeth II, veio fazer-lhe uma visita a fim de demonstrar toda a estima que tem por ele, e aqui permanecerá por dez minutos. Imediatamente se abririam as portas, e nós não saberíamos o que fazer para agradecer à rainha que estaria honrando nossa casa com sua presença.

Mais ainda do que honrar a casa, ela nos estaria beneficiando com o seu convívio: quando se trata de um visitante tão especial, algo de sua nobreza, de sua excelência, de seu talento é transmitido ao visitado.

***

Pois bem, haveria algum propósito, ao cabo de dez minutos, nós dizermos à rainha: “Majestade, me desculpe, mas esta conversa está demasiado cansativa. Precisaríamos encerrá-la”?

Pelo contrário, ficasse a rainha o tempo que quisesse, multiplicaríamos nossos esforços para conseguir que ela permanecesse onze minutos em vez de dez; e, caso conseguíssemos, pensaríamos: “Está vendo? Ela iria ficar aqui por dez minutos, mas porque eu sou simpático ficou onze.”

***

Ora, quando na Sagrada Eucaristia, Jesus penetra em nós, dá-se um convívio infinitamente mais intenso do que aquele da visita feita pela Rainha da Inglaterra.

Na Sagrada Comunhão, Nosso Senhor Jesus Cristo visita nossa alma intimamente; não se trata de algo externo ao nosso ser — como visitar nossa casa —, mas sim, de algo interno: Ele entra em nós.

Poderíamos, após esta visita de Nosso Senhor, estar contando os minutos para encerrar nossa ação de graças?

Pelo contrário, devemos fazer uma compenetrada ação de graças após a Comunhão; e para isso é indispensável que para ela nos preparemos bem, adequadamente, tendo bem presente o ato maravilhoso e grandioso que vai se dar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 19/2/1971 e 16/7/1977)

Sinal de contradição

A invocação de Nossa Senhora da Luz refere-se ao episódio em que Ela apresentou o Menino Jesus no Templo, onde Ele foi recebido por um profeta, Simeão, e por uma profetisa, Ana.

Simeão fez uma linda profecia na qual ele enaltece Nosso Senhor como Luz para iluminar as nações e sinal de contradição para a queda e o soerguimento de muitos em Israel.

Assim como uma pedra posta no meio do rio separa as águas, estaria Ele no centro da História da humanidade, dividindo os homens, sendo objeto da ira de uns e do amor de muitos outros, para  que se revelassem as cogitações dos corações.

Devemos ter o desígnio de representar Nosso Senhor nesta perfeição: sermos pedras a dividir as águas. De maneira que onde o rio da impureza e da Revolução corre sem ninguém se contrapor, ali esteja um escravo de Maria contestando: “Eu não estou de acordo!”

Que linda vocação! (Extraído de conferência de 19/7/1985)

Apresentação do Menino Jesus

Em tudo, Nosso Senhor e sua Mãe Santíssima são para nós modelos que devemos imitar. Ela estava acima da lei que obrigava as mulheres a se purificarem depois de ter dado à luz, e Ele, da que preceituava o oferecimento e resgate dos primogênitos. Entretanto, por amor a essas leis, ambos se dirigiram ao Templo para cumpri-las.

Assim se realizavam os desígnios da Providência: a fim de que Nossa Senhora guardasse em seu coração as esplêndidas profecias do velho Simeão a respeito de Jesus, e para que Mãe e Filho se tornassem exemplos de observância aos Mandamentos divinos.

Plinio Corrêa de Oliveira

Escravidão de amor a Nossa Senhora

Eis a conclusão das palavras dirigidas por Dr. Plinio a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração a Nossa Senhora, pelo método de São Luís Grignion de Montfort. Dr. Plinio lhes explicara inicialmente o contexto no qual esse Santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

Em seu “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, São Luís Grignion estabelece vários princípios que justificam a nossa consagração a Ela como escravos de amor.

Medianeira desejada pela Providência

O mais importante deles é a mediação universal de Nossa Senhora. Ou seja, o fato de que Ela é a medianeira entre Deus e os homens para a obtenção e a distribuição de todos os dons divinos que pedimos ao Céu.

De tal modo essa intercessão de aria é querida pela Providência que — ensinam os teólogos — nada do que os fiéis pedem a Deus seria alcançado, se a Santíssima Virgem não rogasse também por eles. Pelo contrário, se Ela sozinha fizer a mesma oração em seu favor, será atendida.

Compreende-se. Escolhida para ser a mãe do Verbo encarnado, sempre imaculada e cheia de graça, a união que Nossa Senhora tem com Jesus é a mais alta que uma simples criatura humana pode ter com Deus. Em virtude desse vínculo extraordinário, Nosso Senhor nada recusa à sua Mãe, o que faz d’Ela uma intercessora onipotente junto a Ele. Esse é o princípio  ensinado por São Luís Grignion e reconhecido pela Igreja.

Passemos a outro ponto.

Co-redentora do gênero humano

Quando foi decidido pelo Pai Eterno que Jesus Cristo deveria morrer para expiar nossos pecados, quis Ele ter o consentimento da Santíssima Virgem, o que representou para Ela um golpe espantoso.

Pensemos em nossas mães. Se alguém lhes dissesse: “Quer me dar seu filho, para que ele sofra blasfêmias, seja ridicularizado, perseguido, preso, entregue ao desprezo e ao ódio do povo, flagelado, coroado de espinhos, obrigado a carregar sua cruz até o Calvário e morra de modo atroz?” — nenhuma delas cederia o filho! Não há mãe que queira isso para aquele que ela trouxe ao mundo.

Porém, Nossa Senhora sabia ser necessário esse holocausto para a redenção do gênero humano. Ela deu seu consentimento, e com isso sofreu uma dor intensíssima, como se um gládio Lhe transpassasse o coração. Daí vem a devoção a Nossa Senhora das Dores, e a imagem d’Ela com o coração aparente, atravessado por uma espada.

É uma evocação do sacrifício que Ela fez.

Nos seus eternos desígnios, Deus quis que esse padecimento de Maria fosse unido ao de Nosso Senhor para resgatar os homens, e por essa razão Ela é chamada pela Igreja de Co-redentora do gênero humano.

Nossa Senhora é nossa arqui-mãe

Em conseqüência dessa participação de Nossa Senhora na redenção do mundo, podemos dizer, com inteira propriedade, que Ela é nossa mãe: sem o auxílio e o consentimento d’Ela, não teríamos nascido para o Céu e para a vida da graça. Ela aceitou e quis o sacrifício de seu Divino Filho por todos e cada um dos homens, até o fim dos tempos, e é, portanto, mãe de todos e cada um de nós.

Mãe a um título mais alto que simplesmente o de mãe natural, posto ser mais alta a vida sobrenatural para a qual Ela nos gerou. Em certo sentido, Ela é a nossa arqui-Mãe, a Mãe das mães. E tem, então, para conosco, uma tal misericórdia, que São Luís Grignion de Montfort não hesita em afirmar que Maria ama cada um em particular mais que todas as mães somadas amariam seu filho único. Daí, diga-se de passagem, a entranhada confiança que devemos depositar na clemência d’Ela.

É louvável que nos consagremos a Nossa Senhora

Ora, se Nossa Senhora nos deu de tal maneira seu sacrifício, sua alma, se Ela nos amou a tal ponto, se é tão autenticamente nossa mãe, se Ela nos ofereceu seu Filho, o Filho de Deus, se O imolou por nós, se nos cumulou de tantos bens, é justo e louvável que nos consagremos a Ela por completo.

Eis a tese de São Luís Grignion. Pertencemos a Ela, de direito, pelo que Ela fez por nós. O santo autor diz muito bem que, quando um rei (ele se referia aos monarcas absolutistas) conquista um povo, torna-se senhor desse povo.

Nossa Senhora nos comprou e nos conquistou por seu sacrifício, e por isso Lhe pertencemos. Mas, como somos seres inteligentes e livres, é preciso que, por uma deliberação nossa, nos entreguemos a Ela. Com nosso consentimento, essa união se torna completa.

De fato, não pode haver dom mais proporcionado ao que Nossa Senhora nos fez, do que a doação de nós mesmos a Ela, como seus devotíssimos escravos. Quer dizer, a escravidão de amor à Santíssima Virgem Maria como Mãe de Deus, como nossa Co-redentora e nosso celestial amparo.

Características dessa escravidão

Por essa escravidão consagramos nossa vida nas mãos de Maria Santíssima, e Lhe entregamos todos os nossos méritos para que disponha deles como melhor quiser. Convenhamos, não é um muito bom negócio para Ela… Que são os pobres méritos dos homens em comparação com os que Ela alcançou! Mas, se é este o desejo d’Ela, deixemos que Nossa Senhora use de nossos méritos como Lhe aprouver, em benefício de terceiros, em tal intenção da Igreja, etc., etc. São Luís Grignion, entretanto, procura nos fazer ver a inestimável vantagem dessa entrega, aplicando à  generosidade de Nossa Senhora uma  expressão francesa muito interessante: “Em troca de um ovo, ela nos dá um boi”.

Ou seja, damos diminutos méritos e, em retribuição, Ela nos concede uma torrente de graças.  Devemos, pois, fazer tudo o que Nossa Senhora deseja que façamos, quer dizer, cumprir a lei de Deus e procurar sermos perfeitos. Em outras palavras, tudo o que sabemos que seja o melhor para os interesses da Igreja, segundo a moral e a perfeição cristã.

Em compensação, Ela nos toma sob sua proteção de modo especial, e nos torna beneficiários de méritos superabundantes. Eis no que consiste essa consagração de amor à Santíssima Virgem.

 

A gota d’água no cálice de vinho

Ainda sobre o papel do nosso sofrimento (que Dr. Plinio aborda neste número com base na vida dos pastorinhos de Fátima), mais uma consideração: ele nada seria, se não se associasse à Paixão redentora de Jesus Cristo, que o vivifica e lhe confere méritos sobrenaturais abundantíssimos.

Embora os merecimentos da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo sejam superabundantes, dispôs a vontade divina que deles se aproveitassem os homens, em muitas circunstâncias, unindo seus próprios sacrifícios aos do nosso Redentor. Assim nos ensina a Santa Igreja.

Donde, para conseguir tocar e converter determinada alma, por exemplo, seriam suficientes os méritos infinitos alcançados por Jesus, sem os quais nada obteríamos. Porém, é do superior desejo de Deus que essa conversão se efetue mediante o concurso dos nossos sofrimentos, associados aos de Nosso Senhor.

E se almejamos, portanto, uma imensa transformação moral para a sociedade contemporânea, ou um “renouveau” da vida da Igreja, cumpre que soframos todo o necessário, nos consumindo nesse sofrimento como uma tocha ardente. Tais são os desígnios de nosso divino Salvador, para que, de fato, a dolorosíssima Paixão d’Ele se verificasse útil a essa alma, àquele grupo social, ou mesmo àquele ciclo de civilização.

A essa necessidade de unir nossas dores às de Jesus, costuma-se aplicar um dos muitos e lindos simbolismos da liturgia eclesiástica. Trata-se da gota d’água que o sacerdote verte no cálice com vinho, durante o Ofertório, a qual representaria o sofrimento humano depositado no oceano do sofrimento divino, para, juntos, serem imolados ao Padre Eterno.

Quiçá esse simbolismo não tenha fundamento na história litúrgica, porém exprime ele adequadamente um pensamento piedoso suscitado por esse ritual da celebração eucarística.

E sempre que observo o padre fazer essa mistura da água com o vinho, lembro-me dessa ideia muito formativa: é a gota do nosso sofrimento no mar das dores de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por outro lado, reveste-se de extrema beleza o fato de essa gota d´água, uma vez dissolvida no vinho, ser também transubstanciada. Quer dizer, o que não era matéria para consagração, acaba se tornando uma só coisa com a espécie do vinho e se transubstancia no Sangue preciosíssimo de Cristo. Isto manifesta bem o valor descomunal  de nossos méritos, de si tão minguados quando unidos aos méritos infinitamente valiosos de Nosso Senhor.

O sofrimento humano completa o desenho da Criação

Poder-se-ia, agora, aprofundar a razão de ser desse vínculo entre o nosso sacrifício e o de Jesus. Considerando os desígnios divinos, chegaríamos à conclusão de que, tendo Deus criado seres inteligentes e dotados de vontade, intencionalmente deixou que uma parte da beleza da criação fosse completada por esses seres. Daí uma série de coisas lindas da natureza surgirem graças ao engenho humano. Por exemplo, o casulo do bicho-da-seda é uma obra saída das mãos do Onipotente, com a manifesta intenção de que o homem o utilizasse para fabricar o rico tecido com que orna mobílias, decora ambientes ou confecciona magníficas peças de vestuário.

De si feios, o verme e o casulo oferecem ao talento dos artífices a matéria para realizarem maravilhas. E assim, mil outros elementos se encontram na criação, tornando-a semelhante a esses desenhos pontilha pontilhados no seu contorno geral, feitos para  serem completados e coloridos pelas crianças.

O homem, entendendo a criação, amando-a e aperfeiçoando-a, recebe de Deus a honra incomparável de ser elevado à dignidade de continuador d’Ele no seu plano para o mundo. Ora, tendo acontecido que Deus, além de Criador, se fez Redentor, dispondo que Jesus Cristo padecesse e morresse na Cruz para nos salvar, era natural que o homem também fosse associado a essa obra-prima da criação, que é a Redenção. E que ele, portanto, tivesse um sofrimento complementar a oferecer ao Padre Eterno, unido ao sacrifício do Verbo Encarnado.

Grandeza das almas que sofrem pelas outras

Temos, então, as mais diversas e tocantes formas de padecimento do homem nesta terra de exílio. É belo o sofrimento do apóstolo, com seu caráter expiatório ou imprecatório, como um ato de amor e de holocausto desinteressado, tantas vezes misturado a lutas e dificuldades de toda ordem. É belo, quando ele precisa levar a bom termo sua faina apostólica num determinado meio, e surgem as incompreensões, as calúnias, os motejos, precipitando-se sobre o apóstolo. Ele enfrenta todos os obstáculos, parecendo abandonado por Deus. Por quê?

Porque é preciso que ele sofra, assim como é necessário que ele atue e reze. Sem esse sacrifício do apóstolo, Nosso Senhor poderia recusar a aplicação dos méritos da Paixão d’Ele para aquele ambiente, para aquele meio, para aquela alma.

Belo é, igualmente, o padecer daqueles dos quais a graça divina se serve para atuar, pela primeira vez, junto a um determinado grupo social. Esses instrumentos suscitados por Deus são como que fundadores, e devem ter um sofrimento mais intenso do que os outros. De fato, o homem que inicia uma obra possui a glória de tê-la começado. Mas essa glória traz para ele o peso tremendo de sofrer pela obra inteira. E se esta for chamada a perdurar até o fim do mundo, produzindo frutos que o tornarão ainda mais engrandecido, é natural que ele irrigue com suas dores a existência
inteira dessa fundação.

Para suprir a debilidade dos homens no oferecimento de seu sacrifício, existem na Igreja as almas que têm a vocação de sofrer pelas outras. Diante dessas pessoas desejosas e capazes de padecer pelo próximo, teria vontade de me ajoelhar e lhes dizer — “servatis servandis” — como São João Batista a Nosso Senhor: “Não sou digno de desatar as correias de seu sapato”. De tal maneira me empolga e entusiasma essa forma de apostolado, merecedora de meu respeito e profunda veneração.

Nada é mais nobre e mais bonito, nada revela maior integridade de alma e maior sinceridade em todos os propósitos, nada é mais eficiente em seu gênero próprio, do que a alma que aceita sofrer pelos outros. Barreiras enormes se abatem, preconceitos tremendos caem, dificuldades fabulosas se resolvem quando uma determinada alma decide ser conseqüente e abraçar a dor até onde o permita a vontade de Nosso Senhor.

Não tenho palavras para exprimir a gratidão emocionada, o sentimento de culpa e de vergonha que me toma diante de uma alma que realmente seja capaz de levar essa vocação até o fim. “De culpa e de vergonha”, digo, porque sempre me fica a impressão de que, na raiz do êxito admirável de nosso apostolado, existem almas que sofreram e talvez já morreram — ou ainda estejam vivas — padecendo para nos alcançar tudo o que a nós foi concedido por Nossa Senhora.

Se me fosse dada a felicidade de conhecer uma alma assim, sem dúvida me ajoelharia e lhe beijaria os pés. Porque, abaixo de Deus, eu estaria diante da causa verdadeira da  nossa grandeza, da razão primeira de nossos sucessos, da minha perseverança e do que possa haver de virtude em mim. Com efeito, se alguém não tivesse tomado a cruz às costas e subido ao alto do Calvário, imolando se por nós, não creio que eu pudesse realizar a obra que me foi confiada.

Portanto, essa alma sofredora é o sustentáculo de minha fraqueza, o remédio para as minhas lacunas, enfim, é o fator preponderante para que nossas atividades progridam e frutifiquem.

Nada se faz sem os “micro- Cristos”

Claro está que as almas mais especialmente chamadas por Nosso Senhor para se associar ao sofrimento d’Ele nos entusiasmam, pois se entregam a algo que poucos têm coragem de abraçar.

Muitos estão prontos para agir, alguns para rezar. Onde estão os dispostos a sofrer? Onde encontraremos alguém que deseje se sacrificar, com este sentimento: “Eu sofro, peço à Nossa Senhora que conforte a minha fraqueza, mas aceito e dou esse passo”?

É natural que em nossa obra a Providência suscitasse almas dispostas a sofrer e a fazer do padecimento seu  primeiro apostolado. Essas almas seriam as principais entre nós, incumbidas da missão mais difícil, mais necessária, mais urgente.

Para se compreender o mérito dessa vocação particular, devemos tomar em consideração que o sofrimento não é só se flagelar ou se martirizar. Não. Antes de tudo, é aceitar bem as diversas provações que Deus permite em nossa existência diária. Devemos recebê-las de frente e dizer: “É verdade, eu sofro. Posso até agir para eliminar essa dor. Mas, enquanto não for evitada, acolho-a de bom grado, porque é algo inapreciável para a minha alma e para a dos meus semelhantes.

É preciso que alguém se imole por eles”. Penso não existir expressão mais vil do que esta: “Vê lá se eu sou um Cristo para aguentar tal coisa!”. Embora seja de uma sordície inominável ela tem um pressuposto curioso: existem micro-Cristos, digamos, que  aqui, lá e acolá se deixam crucificar ara que as realizações humanas cheguem a bom termo. E sem esses micro-Cristos, nada se faz. Eles são a honra, a glória, a alegria, a vitória dos ambientes pelos quais sofreram. É deveras inapreciável essa condição de sofredores dentro da Igreja.

Almas que devemos amar entranhadamente, porque foram corajosas o bastante para oferecerem a Nosso Senhor sua própria imolação: “Quero unir meu sofrimento ao vosso. Se tenho de ser como uma azeitona a ser espremida para dela tirardes o óleo, ou como a uva da qual extraíreis o vinho, ou como o grão de trigo triturado para dar a hóstia, é este o meu desejo!”

Tenho a impressão de que eu diria com o Salmo: “meus ossos humilhados exultam”, se visse em nosso movimento almas chamadas por Nossa Senhora para o sofrimento e a dor.

Holocausto digno de admiração e gratidão inteiras

Em um de seus famosos escritos, Huysmans nos conta que há em Lourdes um Carmelo cujas freiras têm por missão sofrer e expiar para conseguir conversões e curas no Santuário. Porém, no momento daquelas lindas “procissões das velas”, daquelas curas miraculosas, daquelas grandes transformações morais, daquela glorificação de Nossa Senhora em meio à felicidade do povo, ninguém está se lembrando do convento das carmelitas, onde existem religiosas doentes, morrendo, sofrendo aridezes interiores e desolações tremendas, para que os outros estejam na alegria ou sendo objeto da benevolência divina. Não importa: aos olhos de Nossa Senhora, a fonte de toda essa alegria está naquele Carmelo.

O mais bonito é que as freiras assumem o compromisso de não pedir a própria cura. Pergunto: haverá na Terra algo mais digno de admiração do que essa forma de holocausto? A esse respeito, vale recordar um lindo fato da vida de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela desejava ardentemente ser tudo na Igreja: missionário, padre, apóstolo leigo… E essa vontade intensa chegava a constituir para ela um verdadeiro suplício. Mas, a partir do instante em que entendeu o valor do sofrimento, através do qual poderia obter graças para as almas que cumpriam essas vocações, e, desse modo, atender o seu anelo de fazer tudo em todos os lugares ao mesmo tempo — ela então encontrou ânimo para sofrer e achou paz para a sua alma.

É compreensível que, diante de uma pessoa assim, nos emocionemos até o extremo que nos seja possível. E que a veneremos, respeitemos e lhe externemos nossa gratidão, em toda a medida que nos seja dado agradecer.