Para cada pessoa Deus envia o sofrimento adequado

O espírito pagão leva as pessoas a considerarem a dor como um azar. Entretanto, cada sofrimento pelo qual passamos pode ser comparado a um golpe de cinzel dado por Deus que, à maneira de um escultor habilíssimo, nos modela para o nosso bem, segundo sua infinita sabedoria.

 

Sois membros de Jesus Cristo. Que honra! Mas quanta necessidade de sofrer por causa disto! A cabeça está coroada de espinhos e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça está escarnecida e coberta de lama no caminho do Calvário, e os membros estariam no trono, cobertos de perfumes? A cabeça não tem um travesseiro para repousar e os membros estariam delicadamente deitados entre plumas e arminho? Seria monstruosidade inaudita.

O homem que não se mortifica tem ódio do crucificado

Nós poderíamos aplicar esse trecho da Carta Circular aos Amigos da Cruz(1) – escrita por São Luís Maria Grignion de Montfort – à situação atual da Igreja, Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo do qual somos membros, e que, estando ela coroada de espinhos, poderíamos estar coroados de rosas? Em nossos dias, a Igreja Católica está escarnecida e coberta de lama, no caminho do Calvário; podem seus membros ocupar um trono coberto de perfumes?

Não, não vos enganeis; estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos, não são verdadeiros discípulos nem verdadeiros membros de Jesus Cristo crucificado; faríamos injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se acreditássemos o contrário.

Ao se referir aos cristãos excessivamente educados e circunspectos, São Luís Grignion põe o dedo na chaga de um dos aspectos do “Ancien Régime”. A escola de educação e de circunspecção daquela época é uma verdadeira maravilha, mas chegou a um exagero, evidentemente. Porque reduzir todo o convívio social a um perpétuo sorrir e a um mútuo lisonjear contínuo é uma coisa contrária à verdade, à seriedade e à compostura que a vida deve ter, e preparava o rugido da Revolução Francesa, exatamente por esse excesso.

Ah, meu Deus, quantos fantasmas de cristãos se consideram membros do Salvador e são seus mais traiçoeiros perseguidores, porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são, de coração, seus inimigos!

Como nós poderíamos dizer isso hoje! Quantos indivíduos são inimigos da Cruz! Quando alguém está nessas condições, não é só inimigo da Cruz porque não se deixa crucificar, mas há uma coisa sutil: é que o homem imortificado tem ódio do crucificado e da mortificação. Vendo outro que se crucifica, ele se indigna, e quando lhe falam de cruz fica extremamente irritado.

Deus faz com as almas como o pedreiro com suas pedras

Se sois conduzidos pelo mesmo espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos – numa palavra, cruz –, porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de Sena, uma cora de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos, sem hesitar, e ponde-a na cabeça para vos assemelhar a Jesus Cristo.

Não ignorais que sois os templos vivos do Espírito Santo e que deveis, como outras tantas pedras vivas, ser colocados pelo Deus de Amor no edifício da Jerusalém celeste.

A Jerusalém celeste tem aqui na Terra a sua prefiguração na Igreja Católica que, considerada no seu conjunto, pode ser vista como um Templo do qual cada um de nós é uma pedra viva.

Disponde-vos, pois, a ser trabalhados, cortados e cinzelados pelo martelo da Cruz; de outra maneira permaneceríeis como pedras brutas que em nada são empregadas, que são desprezadas e repelidas para longe.

A ideia dele é muito bonita: Deus faz com as almas como o pedreiro com suas pedras: as que deseja aproveitar ele talha, corta, martela, fere de mil modos para adequá-las às finalidades que tem em vista. Enquanto na pedra que o pedreiro rejeita, ele não mexe, não toca. Assim também os homens que sofrem são os que serão aproveitados para a Igreja. Portanto, quando vemos um homem sofrer muito, devemos dizer: “Este é uma pedra que o construtor vai aproveitar.” E o instrumento para talhar as pedras, o modo pelo qual se faz o martírio do homem, é a Cruz. São os sofrimentos sucessivos que sobre a pessoa devem cair.

Tende cuidado para não opor resistência ao martelo que vos bate; prestai atenção ao cinzel que vos talha e à mão que vos molda! Talvez o hábil e amoroso arquiteto queira fazer de vós uma das primeiras pedras de seu edifício eterno e um dos mais belos retratos de seu Reino celeste.

Exatamente as pedras mais lavradas são as que na arquitetura têm mais importância. Também as almas mais sofredoras são as mais aproveitadas para o edifício de Deus.

Devemos aceitar, com amor, a dor inexplicável

Deixai-o fazê-lo, pois. Ele vos ama, sabe o que faz, tem experiência; todos os seus golpes são hábeis e amorosos, nenhum é falso, a menos que o inutilizeis pela vossa impaciência.

Esse é um ponto que muito especialmente nos deve consolar na hora do sofrimento. Muitas pessoas com espírito pagão em face da dor têm uma mentalidade pela qual consideram o sofrimento um azar que desabou em cima delas. Uma coisa que podia não ter caído, mas caiu, e não deve fazer para eles bem nenhum. É um puro horror que aconteceu, está acabado. Nós, pelo contrário, sabemos que Deus nos faz sofrer para o nosso bem. Mas, sobretudo, o que devemos ter em mente é que cada sofrimento pelo qual passamos corresponde a um golpe de cinzel dado por um escultor, um pedreiro habilíssimo que nos toca no ponto que vai nos fazer bem naquela hora. Assim, o sofrimento mais estúpido, mais imprevisto é, entretanto, o melhor para a nossa alma, naquela hora e daquele jeito. Nesse sentido, não é nenhuma forma de azar, mas, pelo contrário, é por excelência a aplicação daquilo que Nosso Senhor diz no Evangelho: a Providência toma conta de cada homem a ponto de até os fios de cabelo de nossa cabeça não caírem sem o seu consentimento (Lc 21,18).

Às vezes vemos acontecerem coisas das quais se diria: “Mas, meu Deus, o menos arquitetônico, o mais maluco é isso! Tudo podia me acontecer, mas isso eu não compreendo”.

Ora, na aparência anti-arquitetônica do que aconteceu talvez esteja o mais arquitetônico. Precisamente aquilo que Deus nos pede, daquele jeito que não quereríamos imaginar, é o que nos deve fazer bem. Neste sentido, Deus é como um cirurgião exímio que nunca corta a não ser onde é preciso. Ademais, ainda que o cirurgião faça um talho enorme, sabemos que foi o menor possível. Conosco também, às vezes, não entendemos bem tanta coisa. Ainda aí foi a mão de Deus que abriu o menos possível, mas nossa alma precisava daquilo e daquele tamanho. Entretanto, tudo foi feito com muito amor, muita consideração e muito propósito.

Portanto, devemos aceitar, ainda que não entendamos, porque o melhor está em não entender a dor inexplicável, o sofrimento que vem sem eira nem beira e cai em cima de nós, mais ou menos como se entrasse de repente aqui um cachorro bravo e mordesse alguém. É esse o melhor sofrimento, com o qual Deus fere aqueles a quem Ele mais quer salvar.

Quem suporta o sofrimento é um elemento escolhido da Igreja

O Espírito Santo compara às vezes a cruz a uma peneira, que purifica o grão da palha e das escórias: sem resistir, deixai-vos, pois, sacudir e agitar como o grão na peneira; estais na peneira do Pai de família e dentro em pouco estareis em seu celeiro.

Aqui também, a expressão é muito bonita. Porque a única seleção verdadeira é a que se pode fazer na dor. Aquele que suporta o sofrimento é o elemento selecionado da Igreja de Cristo. Aquele que não tem padecimento nenhum, afinal de contas, o que vale diante de Deus? Nada, pois não passou por provação nenhuma.

Outras vezes Ele a compara ao fogo que tira a ferrugem do ferro pela vivacidade de suas chamas. Nosso Deus é um fogo que, pela cruz, permanece numa alma a fim de purificá-la, sem a consumir, como outrora na sarça ardente. Outras vezes a cruz é comparada ao cadinho de uma forja, onde o ouro bom se afirma e o falso desaparece na fumaça: o bom sofrendo pacientemente a provação do fogo, o falso erguendo-se como fumaça contra as chamas. É no cadinho da tribulação e da tentação que os verdadeiros amigos da Cruz se purificam pela paciência, enquanto que seus inimigos desaparecem na fumaça por causa de suas impaciências e murmurações.

O papel da tentação aí é muito grande. Tenho encontrado muitas dificuldades em fazer aceitar isso pelas gerações mais novas, que sempre tomam a tentação como sinal de decadência na vida espiritual. É automático: “Fui tentado; logo, estou apetecendo coisas ruins. Se estou apetecendo coisas ruins é porque piorei.” Não é verdade. A tentação pode atingir um santo. Ademais, ela é uma das modalidades mais duras de sofrimento e, por isso mesmo, uma forma de cruz que devemos amar. Nós devemos pedir para a tentação passar, mas nos alegrar por termos sido tentados, e até mesmo pelo fato de a Providência não tirar a tentação de nossa alma, desde que seja desígnio d’Ela. Até lá precisamos chegar.

Embora esses conceitos sejam conhecidos, é sempre bom lembrá-los. Quem de nós não tem algo que o faça sofrer? Oxalá seja uma só coisa… Como receberíamos melhor esse sofrimento se nos lembrássemos do que acabo de dizer, da mão de Deus que deu aquele sofrimento para ser recebido daquele jeito, naquela hora. É evidente.

Inclusive no apostolado o sofrimento é necessário, inteiramente indispensável. Que o apostolado nos traga aborrecimentos, amarguras, é normal. O apostolado que não acarrete aborrecimentos e amarguras não é abençoado por Deus.

Por vezes, as dificuldades no apostolado são tais que nos dão a impressão de abandono de Nossa Senhora. Se nos dedicamos inteiramente a uma obra de apostolado, basta dar início que começam a se multiplicar em torno de nós as dificuldades, às vezes completamente inesperadas, imprevistas.

Pedir o espírito de cruz

Olhai, meus queridos Amigos da Cruz, olhai diante de vós uma grande nuvem de testemunhas que provam, sem nada dizer, o que vos digo. Vede, de passagem, o justo Abel assassinado por seu irmão; o justo Abraão estrangeiro na terra, o justo Ló expulso de seu país; o justo Tobias atingido pela cegueira; o justo Jó empobrecido, humilhado e coberto, dos pés à cabeça, por uma chaga.

Olhai tantos Apóstolos e Mártires cobertos com a púrpura de seu sangue; tantas Virgens e Confessores empobrecidos, humilhados, expulsos, desprezados, que com São Paulo exclamam: “Olhai nosso bom Jesus, autor e consumador da fé que temos n’Ele e na sua Cruz; foi preciso que Ele sofresse a fim de, pela Cruz, entrar em sua glória.”

Vede ao lado de Jesus Cristo um agudo gládio que penetra, até o fundo, no coração terno e inocente de Maria, que nunca tivera qualquer pecado, original ou atual. Como me pesa não poder estender-me falando sobre a Paixão de um e de outro, para mostrar que o que sofremos nada é em comparação do que sofreram!

Depois disto, qual de vós poderá eximir-se de levar sua cruz? Qual de vós não voará depressa para os lugares onde sabe que a cruz o espera? Quem não exclamará, com Santo Inácio mártir: “Que o fogo, o patíbulo, as feras e todos os tormentos do demônio desabem sobre mim, para que eu possa gozar de Jesus Cristo!”?

Essas são considerações muito sabidas, mas que convém sempre relembrar. O que mais me empolga é precisamente a ideia de que o sofrimento foi medido, adequado para mim, embora eu não perceba e, portanto, daquilo nada se perderá.

Para cada pessoa haverá outras dificuldades e soluções a considerar em face do problema da dor. Mas pelo menos quando sabemos que aquilo tem uma utilidade superior, sentimo-nos bem.

Que Nossa Senhora nos dê esse espírito de cruz para nos consagrarmos adequadamente ao Coração Imaculado d’Ela.   v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 30/9/1967)
Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2018)

 

1) Os trechos comentados por Dr. Plinio nesta conferência correspondem aos números 27 a 32.

 

Instintos, Revolução e Contra-Revolução

Só se tem a perfeição do equilíbrio mental quando os instintos são regidos pela Moral Católica e a inteligência recebe como norma a Doutrina da Igreja. Faz-se, então, o amplexo ordenado entre o instinto e a inteligência. A Revolução vai fazendo com que os homens se tornem cada vez mais joguetes dos instintos, levando-os até o delírio e depois insuflando neles a acomodação

 

A meu ver, o processo intelectual mais fecundo de elaborar um tema não é ir ao livro diretamente, mas tentar explicitar e colocar por escrito tudo o que se tem na cabeça a respeito do assunto. Depois disso é que se está com critérios seletivos adequados para ler analiticamente sem se deixar devorar pelo livro. Qualquer leitura que não seja feita assim é a deglutição do leitor. Não que ele vá se convencer das opiniões do autor, mas acabará por engolir os pressupostos da obra. Começar analiticamente a leitura de um livro é o jeito de barrá-lo inteiro na alfândega; não fazer assim me parece que é capitular diante do livro, de algum modo.

Na leitura de São Tomás, uma complementação necessária

Eu só não sigo essa regra com relação à Igreja. Tudo aquilo que vejo proveniente de fonte séria, idônea, de pensamento católico não espero ter pensado antes para depois ler. Porque há em mim, que sou batizado, por efeito da graça – e creio que em todo católico quando cogita com senso católico a respeito das coisas –, algo por onde minha alma já propende para o fundo da Doutrina Católica em determinada matéria. A Doutrina Católica, portanto, ensina em parte explicitando o que, pela própria graça, a pessoa já possuía pendor de saber.

De maneira que entre o ensino católico e a alma do batizado há uma relação que não é a mesma existente entre o livro seco e o católico. Por esta razão, nas coisas da Igreja, sem sequer eu me dar conta – por exemplo, na leitura de encíclicas papais, etc. – fui embarcando assim: “É verdade, não tem análise prévia…” Isso me dá um bem-estar de alma fenomenal! Porque me sinto encontrado, realizado ao longo da leitura daquilo.

Entretanto, no que diz respeito a São Tomás – que é Doutrina Católica pura, e todos conhecem a minha devoção a ele – é preciso levar em consideração que o modo do Doutor Angélico apresentar os temas é, não inteiramente, mas quase, desligado da realidade concreta. De maneira a termos muitas vezes dificuldades em nos dar conta de qual é a realidade concreta à qual ele está se reportando.

Então, debaixo deste ponto de vista, estudar São Tomás é de grande ajuda na medida em que se faça um trabalho de “conversio ad phantasmata”, de voltar à situação concreta depois ou antes de o ter lido, e entender bem de que coisas concretas ele está tratando.

Assim, na leitura de São Tomás não é necessário um cuidado prévio, mas uma complementação que, conforme o feitio de espírito, será anterior, ou mais ou menos concomitante, ou posterior, mas parece-me necessária sob pena de darem muitos tomistas subindo no ar eternamente, que não se entusiasmam nem entusiasmam ninguém.

Como construir o sistema dentro do qual se deseja expor um tema? Em geral, pelo senso católico se dá o seguinte: quando um tema passa diante de nós, ele causa em nosso espírito a sensação que a caça produz em um bom caçador. Ele pensa: “Ah, é uma perdiz!” Lá vai o tiro! Mas se passar diante dele outra ave que ele não costuma caçar, o caçador se mantém inerte.

Assim também conosco, habitualmente, passa determinada coisa que, ou é uma verdade que desejamos muito demonstrar, ou um erro que queremos muito refutar. Mas este “queremos muito”, em geral, é em função da elaboração genérica dos nossos espíritos em face da Revolução, ou por uma necessidade de alma, ou ainda por exigência da Causa Católica. Nasce então em nós a ideia: “Isto é preciso pegar!” Daí surge naturalmente o método, em função da meta e da natureza da “flecha” que tenho a jogar. O que é a “flecha”? São os recursos de produção intelectual que eu possua, ou seja, o que está na minha cabeça, a minha aptidão para aquilo, os meios de informação e a leitura que tenha para completar os dados sobre aquele tema.

Apresentados estes pressupostos, passo a tratar da temática sobre os instintos no ser humano.

Perfeição do equilíbrio mental do homem

Não afirmo que os instintos mandam de tal maneira que a razão não tem influência e o homem não é senão um joguete dos seus instintos. Penso o contrário. Infelizmente, a Revolução vai tornando o ser humano cada vez mais um joguete dos instintos; porém, na realidade, ele não é um mero joguete deles. O equilíbrio mental do homem provém de um feliz consórcio entre os instintos, no seu estado de equilíbrio, e a inteligência. Portanto, do racional com o razoável. Aí entra a perfeição do equilíbrio mental.

A pessoa só tem essa perfeição quando os instintos são regidos pela Moral Católica e quando a inteligência recebe como norma a Doutrina Católica. Porque então se faz esse amplexo ordenado entre o instinto e a inteligência, e o homem chega, enfim, à perfeição, ao equilíbrio de si mesmo.

Embora a prevalência deva ser da Fé sobre a razão – uma prevalência normativa, amiga, não despótica e persecutória, com uma submissão enlevada da razão em relação à Fé –, não obstante, continua verdade que mesmo os movimentos realizados pela inteligência e pela vontade para conhecer a verdade e querer o bem não são feitos sem os instintos, mas sim com o auxílio, a colaboração deles para captar a realidade, dentro de um alegre convívio, uma coexistência mais do que pacífica, colaboradora dos instintos com a inteligência.

Por exemplo, quando leio São Tomás e tenho noção da lucidez do pensamento dele, isto produz na minha inteligência o efeito de se sujeitar: São Tomás tem razão. Mas produz também outro resultado: eu me encanto com essa diáfana transparência do pensamento e da demonstração dele. E nisto encontro uma alegria do meu instinto que me leva a querer a verdade. Esse deleite, essa degustação da verdade enquanto tal tem qualquer coisa de instintivo. De maneira que o instinto é, no sentido bom da expressão, companheiro de viagem da razão. Não há um determinado momento do processo mental em que a razão diz ao instinto: “Cala-te, escravo miserável! Agora vou te matar e andar sem ti.”

Uma maravilhosa harmonia das inteligências, das vontades e dos instintos

Ontem, ao ouvir o órgão tocar, pouco antes da Missa, e vendo o teclado dedilhado pelo organista, veio-me ao espírito a seguinte reflexão a respeito dos instintos.

A instintividade humana é tal que ela possui uma multidão de movimentos. E assim como a conservação do órgão supõe que, de vez em quando, cada tecla seja tocada – imagino que se algumas teclas não fossem tocadas nunca e outras o fossem muito, esse órgão ficaria meio cambaio –, assim também todos os instintos têm, ora com mais frequência, ora com menos, necessidade de serem satisfeitos, ou seja, de serem postos em movimento para aceitarem ou rejeitarem algo. Por causa disso, a vida é um contínuo tocar de teclado da Providencia através dos Anjos e dos acontecimentos. Mais ainda: através dos demônios, que Deus também permite que toquem o teclado de modo errado, de maneira a, de vez em quando, vibrarem em nossas almas teclas que, conforme o gênero de tentação, emitem notas aloucadas no meio da mais delicada harmonia, ou um ruído que falseia todo o som.

Mas tudo em nós tem que tocar. Cada um de nós é um “órgão”, quer dizer, um jogo de instintos que de modo irrepetível, isto é, nunca houve nem haverá em ninguém daquele jeito, tem uma espécie de equilíbrio, de harmonia que o indivíduo precisa realizar durante a vida, e que ele efetuará por meio da sua santificação, dando-lhe um certo tipo de perfeição como nunca ninguém teve ou terá.

Então, não se trata só de elaborar, “in genere”, o conceito teórico de equilíbrio – o que é muito válido e bom –, mas em concreto o equilíbrio que cada homem individualmente considerado realiza, o qual é uma obra-prima de Deus dentro da grande harmonia dos incontáveis teclados que são os homens criados ao longo da História. De maneira que, no fim do mundo, quando todos os justos estiverem salvos, se tocará uma harmonia não só das inteligências e das vontades, vendo e querendo de modo complementar e maravilhoso, mas também dos instintos, fazendo uma harmonia de cuja beleza nós nem sequer temos uma ideia.

Por outro lado, do fato de o homem ser sociável, os seus instintos não são isolados – há uma interação de uns sobre os outros que, quando todos os indivíduos são virtuosos, ou os virtuosos sabem recusar as instintividades más que outros lhes sopram – provém uma harmonia de instintos que forma propriamente o deleite da sociabilidade e constitui um outro modo de interferir no jogo dos instintos, dentro do plano da Providência; de tal maneira que os instintos das outras pessoas com quem estou em contato, os quais percebo mais ou menos confusamente, repercutem em mim. E se eu reagir adequadamente diante deles, como o órgão, estarei executando aos “ouvidos” de Deus a sinfonia que Ele quer ouvir, o “canticum novum”(1) que devo cantar para Ele, e que ninguém entoou em nenhum século, pois é o meu canto, o qual estarei cantando até mesmo sem perceber.

Instinto genérico do brasileiro: afeto e bondade

Aqui caberia uma consideração a respeito dos povos e nações.

Os homens individualmente têm instintos, mas não se pode dizer que um povo possua instintos, nem que ele forme uma família de instintos ou que há famílias de instintos dentro dos povos, com uma interação parecida com a dos indivíduos de uma família. Entretanto, dentro do Brasil, por exemplo, o modo de fazer política de um gaúcho, um paulista, um mineiro, um carioca ou de um baiano são, no fundo, meio complementares.

É curioso que todos esses instintos dão origem, em cada nação, província, Estado, município, como em cada família, a uma espécie de axiologia própria dependente do instinto. O brasileiro tem o instinto genérico de que, por fim, o afeto e a bondade acabam tendo a melhor palavra, com vantagem para todo mundo. De maneira que se houve uma briga ou guerra entre duas nações ou indivíduos, foi um desastre ou uma inabilidade. Mas o verdadeiro equilíbrio se encontrará num jeito pelo qual aquilo se recompõe. E, portanto, não vale a pena estar gastando demais a atenção em tratados. Caso não se chegue a uma composição afetiva, nada é nada na terra de ninguém. Embora esse afeto recíproco possa ser muito decepcionado, de qualquer forma é preciso apelar para ele como a carta suprema, fora da qual a vida não vale a pena ser vivida.

Esta seria a ideia primeira a respeito dos instintos. Só depois de estar ela bem posta se pode, então, tratar a respeito dos instintos em relação à Revolução e à Contra-Revolução.

Equilíbrio sacral existente na Idade Média

Consideremos a Idade Média. A atmosfera das catedrais, dos castelos, das aldeias medievais criava uma espécie de equilíbrio instintivo ocasionado, em larga medida, pelo sacral. Porque fora de uma perspectiva sacral não pensem em equilíbrio dos instintos, porque seria como cogitar em voar sem asas, andar sem pernas, ver sem olhos; não se consegue, simplesmente.

Na Idade Média esse equilíbrio sacral tinha chegado a modelar a sociedade temporal do modo mais alto possível, depois de ter exercido na própria Igreja o influxo mais salutar, pois, nascido da própria sociedade espiritual, lhe faz bem como uma fonte que surge do chão e começa por regar o solo de onde nasceu.

Há uma espécie de equilíbrio medieval, um ponto de repouso dos instintos na presença do sacral por onde eles perdem sua condição de impulsos perpetuamente famintos ou sedentos, que marca todas as outras situações de instintos fora dessa alta cúpula medieval. Ninguém conhece um conjunto de povos tão altamente equilibrado nos seus instintos como a Europa daquele tempo. Não porque não houvesse também desequilíbrios, mas o ponto-chave era equilibrado.

Explosão dos instintos e acomodação

Insisto então nesta ideia: os instintos se movimentam em nós, mas geralmente prestamos atenção neles quando estão uivando de sede ou de fome. Mas fora disso não os percebemos. Habitualmente todos os nossos instintos são assim: alguns estão inertes e outros querendo criar caso. E toda a capacidade vital se concentra desordenadamente sobre alguns instintos que, uma vez ausente o sacral, tornam-se insaciáveis. A partir disso, se colocamos numa alma o tonel das Danaides(2), onde quanto mais se põe água mais o tonel se esvazia, então não há solução para nada.

Para jogar o povo no “mare magnum” de uma revolução é preciso, antes, fazê-lo rejeitar o equilíbrio instintivo do sagrado para que se ponha a fazer papel de louco: assobiar, silvar, uivar…  Por onde se chega à conclusão profunda, mais ou menos inadvertida, de que não pode haver ordem. Sucede, então, um caos das tendências, dos projetos, das doutrinas, tudo a serviço de certas metas que o indivíduo reputa que vão proporcionar para ele uma determinada felicidade nesta Terra. Mas todos têm, ao mesmo tempo, uma certa noção confusa de que essa situação é insolúvel.

Há muita gente que nunca pensou nesses assuntos; entretanto, têm mais ou menos isso no fundo da cabeça e vivem assim, sempre com a ideia de que no próximo gole satisfazem o instinto. E cada vez que bebem mais um gole ficam com mais sede. Não podem parar de beber, porque se não beberem é um tormento; bebem, o tormento aumenta.

Então, o sujeito compra um automóvel e pensa: “Afinal tenho um automóvel…” Logo em seguida ele precisa de um automóvel melhor e, pouco depois, se ele não tiver o automóvel-ápice, aquele que ele possui não vale nada. Mas quando obtiver o automóvel-ápice, ele reflete: “O que é esse automóvel? Imagine viver só com um automóvel, coisa ridícula! Eu preciso ter mais tal outro…” E lá vai! Não tem limites. São os instintos desatarraxados.

Acontece que, depois da primeira explosão revolucionária dos instintos, há uma certa acomodação. Porque está no jogo dos instintos não gastar demais a vitalidade. Aquilo que a pessoa queria demais, quando ela sente ter sacado demais de si para obter, ela já não tem vontade de dar. Então, há períodos de revolução e períodos de acomodação.

As revoluções na História se fazem, em geral, de eras nas quais está sobrando o instinto vital para o combate, e eras em que aquilo cessa e a pessoa quer se entregar de qualquer jeito, ter uma vida sossegada. É um instinto que dá lugar a outro.

Desprovida do sacral, a ambição por coisas belas e nobres transformou-se em instrumento da Revolução

E como faz a Revolução para desencadear uma revolução? Na Idade Média o que ela fez? Começou por tomar instintos nobres e, por falta de sacralidade, levou as pessoas a ambicionarem aquelas coisas nobres e belas desordenadamente, a quererem umas e rejeitarem outras; e as desejadas o eram numa perspectiva forçada, errada.

Dou um exemplo. A coragem é uma nobre posição da alma que corresponde à ideia de que o homem se encontra em estado de prova – já estava antes mesmo do pecado original –, e que precisa, portanto, combater. Para isso ele tem o instinto que o leva à luta. Mais ainda, a culpa original tornou sua pugna mais urgente, mais cogente. Mas ele tem proporção com isso e há uma beleza que talvez não existisse nem no Paraíso terrestre, que é a luta do homem sobre os efeitos do pecado original.

Então, uma certa ideia da beleza que há na aventura, no risco, no enfrentar o incógnito, sem o que a alma não tem equilíbrio. A isso se alia a noção de como é razoável e intrinsecamente belo expor nobremente a vida por um ideal superior.

Entretanto, como o homem que pratica esse heroísmo se torna digno de aplauso, começa então um elogio debandado do herói e de suas qualidades, mas abstração feita da perspectiva sacral. O herói, por ser herói, é um colosso. E o heroísmo é tão belo se praticado do lado de Maomé quanto de Nosso Senhor Jesus Cristo; ou feito simplesmente para ganhar glória e brilhar aos olhos dos homens.

Temos, então, a Cavalaria que passa de religiosa para puramente metafísica e natural, e de idealista para faceira. Ela baixou o teto. Ela continua a ser heroica, mas um heroísmo que, por ter perdido o caráter religioso, se degenera nas mais diversas formas, inclusive a do duelo.

O respeito do cavaleiro andante pela viúva, pelo órfão, por todos aqueles que são presas dos fortes se faz muito sentir e, enquanto tal, é uma coisa sublime, não há dúvida nenhuma. Mas, se formos analisar bem, isso foi levado ao respeito, ao culto à dama, porque ela, como mais fraca, merece reverência. Acabou resultando daí uma espécie de sublimação da debilidade feminina e, em função do que a mulher tem de mais delicado que o homem, a afirmação da superioridade dela sobre ele, sendo transformada num ideal do homem.

Vêm, então, aquelas descrições – a fisionomia é assim, com olhos de tal cor, nariz e pele de tal jeito, mãos e pés pequenos, etc. – que fazem pensar na dama como uma criatura ideal, produzindo uma afetividade por uma pessoa cuja alma se deduz do rosto e da linha geral do corpo. Essa afetividade já é meio divinizante, dessacralizada e pagã, e leva o indivíduo à adoração de uma determinada mulher. Mas, depois, à adoração a várias mulheres de um tipo feminino ideal que ele não encontra em nenhuma. Daí surge o romantismo com todos os seus desvios, sua sensualidade e tudo o mais. O respeito religioso à dama séria, à mulher forte da Escritura desaparece para dar origem ao culto à “mulher-bibelot”, ao mesmo tempo, à mulher-sonho, à mulher pseudomística: a Isolda do Tristão ou a Julieta do Romeu, daí para fora… Uma avalanche de sentimentalismo e de sensualidade derramou-se sobre o mundo.

A Revolução aciona os instintos para toda forma de excesso

Com a tendência para desequilibrar a afetividade e a coragem, surgiu também a propensão ao desequilíbrio de outro instinto legítimo, que leva ao gosto da prudência. O burguês que deseja levar uma vida trabalhosa, mas sossegada e, por causa disso, quer amealhar dinheiro, ter uma garantia contra o infortúnio, contra o ladrão, pondo cinco trancas na porta de sua casa e grades em todas as janelas. Tem ele um instinto razoável que se compraz na segurança. Mas, destemperado, esse instinto delira: o homem quer ficar riquíssimo; começam a aparecer em todas as nações os “Cresos”(3) desarrazoadamente ricos que acionam as alavancas monetárias dos acontecimentos. Assim, tudo tende a extremos desordenados.

A Revolução vê que todos os instintos são manuseáveis para tudo, exceto o equilíbrio, e que ela pode facilmente acioná-los para qualquer forma de excesso. Então, ela estuda um pouco e percebe quais instintos prevalecem livremente no momento e quais passaram para o segundo plano. Com base nisso, ela apresenta uma meta cultural, ideológica, afetiva, consuetudinária que encaminha para levar até o delírio aquilo para o que há uma tendência. Trata-se, então, de conduzir os indivíduos fazendo-os galopar com ênfases e na euforia de uma suposta juventude – pois todos os desregrados se pretendem eternamente jovens – até esse ponto do exagero e do delírio.

Quando o instinto delirou, ele passa por uma “quarta-feira de cinzas”; é o palhaço que durante os três dias de Carnaval bebeu e comeu demais, se “empalhaçou” demais, e deita jururu no chão do seu quarto, ainda fantasiado, e cozinha sua bebedeira, farto de tudo. Depois, quando acorda, lava-se mais ou menos e vai para a repartição onde ele é datilógrafo. Sonhou exageros, delírios de fantasia durante três dias; quando chegou à saturação e à explosão do instinto, ele tende ao oposto.

A Revolução já sabe e vem com sua proposta: “Olha, tal coisa assim é boa…” De fato, ele está precisando pôr dentro de si algo do que rejeitou, sob pena de não readquirir o equilíbrio, e o instinto de conservação não permite. Então ele vai voltando atrás em alguma medida do caminho percorrido. Em certo momento o pouco que voltou atrás já o sacia, e ele dá um pulo bem mais para a frente, procurando refúgio em outro exagero ainda maior. Assim, balançando, a Revolução o vai jogando até delírios que são uma explosão. Ou, então, ele apostata daquele caminho e entra num outro instinto que começa a tocar nele.

No Ocidente, por razões históricas, nós ainda estamos no jogo dos instintos correspondente a um horror ao sacral, ao equilibrado, ao sensato, àquilo que se mantém seriamente, com o desejo de algo que nos liberte disso, custe o que custar, aceitando qualquer forma de delírio. Os vários recuos da Revolução e os posteriores avanços para excessos maiores se explicam assim.                v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/3/1986)
Revista Dr Plinio

 

1) Do latim: cântico novo (Sl 96, 1).

2) Lenda da mitologia grega, segundo a qual as Danaides tinham sido condenadas a encher perpetuamente de água um tonel furado.

3) Creso, último Rei da Lídia, da dinastia Mermnadas. Famoso por sua riqueza, reinou de 560 a 546 a. C.

A medula da Contra-Revolução em Plinio Corrêa de Oliveira

Desde a infância, pode-se dizer que Dr. Plinio teve uma verdadeira troca de vontades com a Igreja, e foi recusando, uma por uma, as coisas revolucionárias que passavam diante dele. E, em sentido oposto, gradualmente foi concebendo uma Ordem Religiosa contrarrevolucionária, através da qual vislumbrou o Reino de Maria.

 

Comigo, as devoções se inserem dentro de ciclos de pensamento e vão sendo assim relacionadas. É uma coisa muito singular. Suponho ser assim com todo o mundo, mas as pessoas não tomam o trabalho de explicitar.

A tintura-mãe mais sacral, forte, perfeita, insondável da Contra-Revolução

As graças que recebi quando pequeno, e até mocinho, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, foram muito profundas como visão de Quem e de como é Nosso Senhor. De tal profundidade e alcance que pude, depois, crescer em explicitação, mas duvido que eu pudesse — salvo um fenômeno da vida mística que não tive — conhecer mais do que conheci.

E isso foi acompanhado o tempo inteiro pela devoção a Maria Santíssima, a partir daquela graça de Nossa Senhora Auxiliadora, que se deu quando eu era ainda muito menino(1).

Na minha impostação, toda a luta da Contra-Revolução é uma defesa do que poderíamos chamar a mentalidade, o espírito do Sagrado Coração de Jesus contra a Revolução; porque é a tintura-mãe mais sacral, mais forte, mais perfeita, mais insondável da Contra-Revolução.

E daí se dar, com o passar do tempo, um contínuo relacionar disso com a luta Revolução e Contra-Revolução, por onde eu ia conhecendo o mesmo espírito, a mesma mentalidade, mas já no contraste com o oposto, aplicando e crescendo muito mais em fidelidade do que compreensão, nessa segunda fase. Em compreensão também, naturalmente, pois ia maturando com a idade; mas o crescimento da fidelidade era muito maior, porque, uma por uma, as coisas revolucionárias passaram diante de mim, e eu tive que recusá-las.

O lado positivo desse processo foi a elaboração gradual do que eu chamaria nossa Ordem Religiosa e, através dela, o vislumbre do Reino de Maria, que antigamente era para mim a mera Idade Média.

Isso levou anos e anos — quase toda a minha vida — correspondendo a elucubrações que, afinal de contas, pressupõem não haver uma concepção cultural, artística, política, moral, ou de qualquer outro caráter, que não gire direta e especificamente em torno disto: o Sagrado Coração de Jesus.

A certa altura, entrou o Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, de São Luís Grignion de Montfort, e com isso uma ideia muito maior da intimidade com Nosso Senhor, por meio da sagrada escravidão a Nossa Senhora.

Então, a devoção a Ela cresceu muito, enquanto que a Ele continuou, dando numa dessas adesões estáveis, tranquilas, profundas, se Deus quiser da vida inteira, mas que parece não se mover. Precisamente por ter chegado a um certo ponto onde tem todo o necessário para alimentar o resto da trajetória.

Reflexões a partir da infinita nobreza de Nosso Senhor

Lembro-me de coisas ínfimas. Por exemplo, quando eu era pequeno, e até moço, meu quarto na casa de vovó ficava numa posição em que da janela avistava-se a escada de serviço, por onde entravam os empregados. E eu os ouvia, subindo, descendo e conversando.

Ademais, minha avó era caritativa e apareciam umas figuras populares pitorescas por lá, para pedir esmolas. Por exemplo, uma italiana, velhinha, muito branca, nariz aquilino, com umas veias azuis aparecendo pelo rosto, mãozinhas pequenas, arqueadas, as quais ela não conseguia fechar inteiramente, de tão velha que estava. Ela se arrastava, não sei de que porão das redondezas onde morava, e ia comer, juntamente com o “Antônio cego” e uma mulher chamada Serafina, embaixo da escada, que era um pequeno “Pátio dos Milagres”(2).

Eu ficava deitado na cama, fazendo a sesta, mas acordado, e ouvia o borbulhar daquela gente. Depois, olhava para meu quarto que era muito bem arranjado, agradável, espaçoso, com um papel de parede que me encantava, vindo de Paris.

Chegavam-me também os ecos da sala de jantar: minha mãe, minhas tias, minha avó conversando, com risos, exclamações, o telefone que soava, o cachorrinho lulu da minha prima, que ladrava, etc.

Ora eu analisava o meu quarto, ora os ruídos vindos de fora, e fazia reflexões sobre classes sociais que eram, no fundo, pensamentos sobre a transcendência, mas a partir da ideia da infinita nobreza de Nosso Senhor Jesus Cristo, que me parecia a própria personificação do nobre.

Mas percebia que se não abrisse os olhos e não fizesse essas classificações direito, na ambiguidade de todas as coisas, eu acabaria sendo devorado para baixo. E, portanto, precisava evitar, a todo custo, decair porque deixaria de assemelhar-me a Nosso Senhor Jesus Cristo.

As maneiras “hollywoodianas” pareciam-me o contrário da sacralidade, e um atentado contra Ele. A tintura-mãe do conceito de nobreza é a sacralidade.

Podia ser que, terminada a sesta, eu conseguisse encontrar aberta a sala de visitas, a mais fina da casa. Entrava, então, escondido e ia me ambientar ali. E me regalava com aquela ambientação, que era o extremo da meditação iniciada junto à escadaria, onde estava o meu quarto, e que ia subindo, subindo, até aquele ponto.

Tudo isso representava destilações e aplicações ao concreto da fidelidade ao Sagrado Coração de Jesus. Quer dizer, era uma verdadeira meditação, por onde Ele me acompanhava nisso tudo.

Sucessão de dois estados de espírito

Lembro-me de uma espécie de dualidade que havia em mim a qual mais ou menos se resolveu, cicatrizou de todo em todo quando entrei para o Movimento Católico.

Não era a dualidade clássica, que naturalmente havia e há em nós até morrermos, entre o homem mau e o homem bom, entre o estado de graça e a tentação para o pecado mortal. Não se tratava disso. Nem a matéria de pecado estava diretamente envolvida no assunto.

Eram dois estados de espírito que se sucediam, mais ou menos como uma luz que se apaga ou se acende dentro de uma sala, por exemplo.

Um era de um personagem menino, já muito sério, com as vistas muito voltadas para o maravilhoso, para tudo quanto há de mais elevado, para todas as harmonias, todas as profundidades; portanto, para uma coisa que eu não sabia que se chamava recolhimento — mas que era uma espécie de recolhimento contínuo — e algo que eu não sabia que era piedade — porque piedade para mim existia só na hora estrita de rezar —, mas noto hoje que era piedade. Era, então, um menino muito voltado para os assuntos relacionados com a Revolução e a Contra-Revolução.

Este menino não era um asceta e julgava como natural próprio dele fruir as coisas normais que, dentro do estado de graça, o menino pode desfrutar. Não tinha ideia de santidade, não possuía o intuito de alcançar a perfeição moral, mas apenas o de realizar uma obra para a qual se sentia chamado. Entretanto, tinha um propósito firme de se manter no estado de graça.

Este estado de espírito, no fundo, apesar das misérias, era profundamente bom, elevado e revelando um chamado muitíssimo marcado, que transpassava a minha alma de lado a lado. Era congênere com este estado de espírito uma certa seriedade um tanto melancólica, tristonha, mas carregada com ânimo varonil. E detestando tudo quanto era superficial, brincadeira idiota, etc.

De repente, havia uma amnésia de tudo isso e vinha, durante uma, duas, três horas, um estado de espírito diferente, superficial, brincalhão, e me deixando arrastar pelas formas de alegria dos anos 20 — que eram muito vivas, muito comunicativas, muito “hollywoodianas” —, sempre que eu não notasse nelas qualquer coisa de revolucionário. E elas comportavam muitas coisas que não eram revolucionárias, mas constituíam uma espécie de embalagem para entrar na Revolução. Esta eu não bebia, mas o que não era Revolução eu tomava e gostava, até muito.

Por exemplo, quando tinha entre 13 e 15 anos, de repente eu cantarolava a plenos pulmões esta ou aquela música que estava na moda — e em casa toleravam, não sei como, pois sempre tive uma voz muito forte. Cantarolava ou intimamente me lembrava de alguma coisa divertida, que assistira em algum teatro, repetia aquilo e achava graça.

Nas conversas com minha irmã e meus primos, sobretudo nas quintas-feiras, quando eles iam jantar em casa, havia uma mesa dos mais moços, na qual a brincadeira era debandada e eu era um dos chefes desse divertimento. Nunca havia coisas imorais, mas eram brincadeiras de mocinho, de mocinha, com toda intimidade. Então falando mal deste, daquele, da sociedade, dos parentes deles, empregando apelidos, debicando a minha família do norte… Sem nada de insultante. E às vezes um acentuando o defeito do outro, etc.

Eram coisas que contrastavam com o estado de espírito dessa seriedade que eu devia tomar. E, se me deixasse entregar, isso me levaria depois para uma atitude de alheamento em relação à minha própria vocação, e estremeço em pensar até onde esse alheamento me poderia conduzir.  Mas disso tudo eu não tinha noção.

Como eu vivia continuamente na companhia desses primos, minha presença também determinava, excetuadas as quintas-feiras à noite, muitas conversas sérias sobre História, às vezes discussão a respeito de religião com o marido de uma prima, que era ateu, mas muito meu amigo. Chegava à discussão furibunda, e entrava muito de seriedade pelo meio.

Aos poucos fui me dando conta da contradição entre aquelas brincadeiras e o meu perfil de contrarrevolucionário, e eu mesmo comecei a acentuar o corte com aquilo, até cortar completamente.

Ouvindo músicas de Chopin e Verdi

Certas músicas e formas literárias do século XIX pareciam contrarrevolucionárias, em comparação com o que a Revolução apresentava nesse período descrito por mim. E levei algum tempo para perceber que elas, no fundo, eram revolucionárias também, embora correspondessem à Revolução atrasada.

Então, havia certos compositores que me diziam muito. Desde logo e sempre, mas com prolongamentos de condescendência até hoje — não cumplicidade, mas compreensão —, Mozart. Eu ainda não conhecia Boccherini…

Mas tinha uma certa admiração, por exemplo, por Chopin. Então, na Polonaise Triunfal eu apreciava o lado heroico, contrário ao cinema norte-americano. Na Marcha Fúnebre, via um hino da seriedade, que era o oposto dos funerais hollywoodianos, com o cadáver maquiado sentado numa sala, bem como outras coisas que já naquele tempo se faziam e repercutiam sobre mim muito desfavoravelmente.

Certos trechos de Lamartine e outros literatos franceses do século XIX me pareciam elevados, grandiloquentes, e eu não percebia diretamente o aspecto revolucionário.

Nessa idade eu não tinha conivência com a Revolução; isto posso afirmar. Havia falta de percepção. Por ingenuidade, eu via um lado que existia mesmo e, por contradição, era contrarrevolucionário. Mas não notava o aspecto revolucionário. Com o tempo, percebendo que era ruim, fui deixando também.

Confesso que até Verdi teve uma certa repercussão na minha alma. A Marcha da Aida eu reputava o auge da Contra-Revolução! Eu tinha uma vitrola, um gramofonezinho, comprava discos e certo dia adquiri o dessa marcha. Ao mesmo tempo, comprei-o pela música e pelo fato de ser feito de uma matéria vermelha. Por aí podem ver as cogitações infantis, misturadas com o encanto pelas cores, desde o começo.

Aqueles atores italianos cantavam a plenos pulmões, e eu colocava o gramofone a todo volume e a Marcha da Aida enchia a casa! Não havia quem se lastimasse com aquilo. Fico pasmo e, rememorativamente, agradecido pela paciência que todos tinham, pois eu também não percebia. Não existia a mínima ideia sensual ou sentimental com a Aída, nem nenhuma Aida no meu espírito. Mas aquilo me parecia grandiloquente, o grande drama do teatro.

Eu imaginava o Scala de Milão repleto de gente, o rei, a rainha — a Itália ainda era uma monarquia naquele tempo — assistindo em camarotes, e os atores cantando a plenos pulmões, sustentando aquela espécie de desafio, de maneira a simbolizar a pompa social e a monarquia real em termos culturais no seu esplendor.

O teatrinho ”João Minhoca”

Dou um outro exemplo.

Havia em Santos, onde íamos passar as férias no meio do ano, um parque de diversões próximo ao Hotel Parque Balneário, onde existia o “João Minhoca”, teatro de fantoches animados por um italiano. As figurinhas entravam, cantavam, diziam isto, aquilo, etc., e o bom italiano, talvez sem se dar conta, era extremamente pitoresco.

Um colega descobriu isso e convidou-me para assistir, com mais três ou quatro amigos. Fomos e fizemos propaganda. De maneira que, em certas noites, ia um farrancho de gente do Parque Balneário para ver a representação do “João Minhoca”.

Como a sociedade daquele tempo era muito mais hierarquizada do que a atual, reservavam espontaneamente os primeiros lugares para os eventuais espectadores do Parque Balneário. Então, ficávamos sentados na primeira fila, acabando por dar a nota ao ambiente, cujas pessoas aplaudiam o que aplaudíamos e achavam graça naquilo em que também achássemos.

Um dos bonequinhos representava um engraxate que entrava no palco cantando, em português macarrônico, toda uma ária. Nós achávamos muita graça quando chegava a hora do engraxate, e aplaudíamos vigorosamente. Eu, naturalmente, era dos puxadores de palmas. Depois, em casa, eu cantava a “ária do engraxate”. E todo mundo tolerava de modo surpreendente.

Mas isso revelava uma tendência para súbitos cansaços da clave superior, meio subconscientes, e repentinos anseios de levar uma vida desengajada, não responsável e feita para meu próprio lazer. Mas eu não percebia, no começo, uma incompatibilidade absoluta entre uma coisa e outra; notava serem diferentes, mas julgava que podiam coexistir bem.

Com o tempo fui percebendo que não. Nesse período, os meus olhos foram se abrindo mais para esse problema, e quando me engajei no Movimento Mariano cortei com isso completamente.

Já moço, nas fotografias tiradas antes de me formar em Direito — na Linha de Tiro, nas Congregações Marianas e em outras ocasiões —, nota-se como esse lado desapareceu e o outro preponderou, graças a Nossa Senhora.

Esperança de encontrar pessoas mais contrarrevolucionárias

Ao mesmo tempo, a consciência de minha vocação se apresentava em termos tão altos, que eu podia dizer — sem me comparar, nem de longe, com Carlos Magno — que a missão tinha um porte carolíngio. E o futuro se apresentava a mim com lufadas de caráter profético, de uma grandeza enorme!

Nessa mesma época em que, de vez em quando, eu tinha esses acessos – um misto de infantilidade e de evasão dessa grandeza, que constituíam uma tentação —, ficava na dúvida sobre o real valor dessas previsões que sentia.

Que estava diante de mim a Revolução eu não tinha dúvida nenhuma. Que era preciso fazer a Contra-Revolução e eu teria de trabalhar muito para fazê-la, eu não tinha dúvida nenhuma.  Que ao longo de minha vida não encontrasse pessoas mais contrarrevolucionárias do que eu, tinha receio, mas uma esperança enorme que não fosse assim; pelo contrário, esperava encontrar tais pessoas, investidas de um verdadeiro direito ao mando nessa matéria, e das quais eu pudesse ser um campeão, mas nunca um diretor, um mentor.

Pensava eu: “Nas fileiras das classes sociais que a Revolução pretende destruir, devo encontrar os contrarrevolucionários perfeitos, com direito a mando, e junto aos quais eu possa exercer uma influência na linha do que está no meu espírito.”

Mas, às vezes, a esse pensamento seguia-se outro: “Coitada de Nossa Senhora! Desconfio que Ela terá que se contentar comigo. Porque vejo que fazer Ela fará, pega qualquer ‘dois de paus’ e o utiliza para realizar sua obra, se os naturalmente chamados não quiserem.”

Isso eu considerava sem ambição e, sobretudo, sem qualquer vaidade, sentindo bem minha desproporção. Aquela expressão de São Luís Maria Grignion de Montfort, “petit vermisseau et miserable pécheur”(3), entrou na minha alma até o fundo. Assim sou eu e assim é todo o mundo.

De outro lado, tinha até certo receio de que isso fosse verdade, pois exigiria de mim mais esforço para chegar ao píncaro de mim mesmo, e mais luta do que eu teria se seguisse um chefe. Mas, poderia ser eu, e deveria me preparar inclusive para isso.

Troca de vontades com a Igreja Católica

Depois de minha viagem a Europa, em 1950, a ideia de uma missão pessoal se vincou muito mais em meu espírito, dando-se uma espécie de união entre esta vocação e eu, no sentido de que, na Terra inteira, quem abriu o coração de par em par para isso, pelo menos naquela ocasião, fui eu. E mais ou menos como a pomba de Noé, que teve de voltar para a arca por não encontrar lugar onde pousar, eu sentia incidir sobre mim a vocação.

Com a convicção de que era preciso amar, mais do que nunca, todas as grandezas do passado. E não somente amá-las, mas de algum modo sê-las! De maneira tal que eu percebia tratar-se de uma tradição quase milenar que estava expirando, e que não morria inteiramente porque habitava em mim; e a partir de mim teria o seu renascimento.

Tenho até dificuldade em descrever a união de alma, a verdadeira troca de vontades com a Igreja Católica, enquanto oposta a tudo quanto a Revolução tinha feito, e trazendo em si todos os gérmens para realizar o contrário. E na Igreja Católica, ao pé da letra, com Aquele que era para mim a personificação, por superação, da Igreja Católica: o Sagrado Coração de Jesus.

Para ser bem positivo, essa espécie de troca de vontades começou em menino. E com a minha compenetração, com o exercício progressivo do papel que eu devia realizar, foi-se estabelecendo em minha alma, cada vez mais, uma união com aquilo que em determinado momento se tornou completa.

Tudo isso num processo interior do qual estou marcando algumas etapas, sem cronologia muito definida, porque não me lembro. Recordo-me apenas de que uma etapa sucedeu a outra.

Comecei a frequentar a igreja desde não sei quando. Mamãe me levava à Missa aos domingos no Coração de Jesus, e o edifício material da igreja exercia sobre mim um efeito sobrenatural da graça, que naquele tempo eu não sabia discernir. Eu pensava que decorria do aspecto do templo — de uma majestade doce, suave, acolhedora, embebida de uma tristeza compassiva, mas que ao mesmo tempo pedia compaixão —, de algo em que minha alma se sentia como diante do seu analogado primário4 do modelo perfeito que queria ter. Tudo me falava de seriedade, de bondade, até o extremo concebível! Eu via que isto se exprimia muito nas cerimônias do culto, nos paramentos, na liturgia, no órgão, etc.

O órgão me maravilhava! O que eu tinha de pendor pelo órgão, era impossível dizer. Mas eu fazia raciocínios assim: “Este órgão parece a imitação de uma voz humana. E dir-se-ia ter havido uma vez na História um homem que falou de tal maneira, que todas as sílabas pronunciadas por ele tiveram o timbre de um órgão. Quem teria sido esse homem? Como é que o espírito dele chegou até quem compôs esse instrumento?”

A imagem do Sagrado Coração de Jesus e o Santo Sudário

Não custei a perceber que a imagem do Sagrado Coração de Jesus ali presente representava isso, ou seja, a Pessoa da qual emanavam todas essas coisas. Era Ele, especificamente enquanto fazendo ver seu Coração aos homens, com todas as perfeições, todas as maravilhas de alma possíveis, tudo quanto pode haver de bom realizado de um modo que eu não podia ter imaginado.

Por não possuir ainda suficiente formação catequética, supunha discernir tudo isso n’Ele pela análise psicológica da imagem. Hoje, quando a observo, vejo como ela está distante, na realidade, daquilo que a graça me fazia ver. É uma imagem digna de respeito, não tem dúvida, a qual quero muito, mas não diz o que eu via nela.

Era uma graça obtida por Nossa Senhora para mim. Eu arquetipizava corretamente a imagem. De maneira que, por exemplo, quando vi o Santo Sudário, eu disse: “É Ele!”

Mas hoje posso afirmar que isso que eu via, por ação da graça, na imagem era ainda mais fielmente Ele do que o Santo Sudário. O que se compreende, porque o Santo Sudário é a posição d’Ele como morto e como vítima. E a imagem do Sagrado Coração de Jesus representa-O vivo, acolhedor, afável…

Donde eu deduzia o seguinte: Jesus merece adoração, e eu O adoro inteiramente. É preciso querer até o fim, ter esta mentalidade completamente, assim se deve ser, isto é o meu ideal. Eu só sou congênere com quem é congênere com Ele. E quem não é congênere com Ele não o é comigo. Eu tenho parte com Ele, e quem não tem parte com Ele, não a tem comigo também.

Por conveniências sociais, educação, necessidade de apostolado, posso conduzir um convívio cordial. Mas ter parte com minha alma, querer bem, só quem for como Nosso Senhor.

Ele é Deus, porque ninguém tem inteligência nem virtude para inventar esta figura, a começar por mim. Se eu não tivesse visto isto na Igreja, não seria capaz de ter esta ideia que tenho d’Ele.

De onde longas orações ao pé da imagem, Ladainha do Coração de Jesus, etc.

E isso era o ponto de partida da Contra-Revolução na minha alma. Porque eu via o mundo “hollywoodizado” como o contrário daquilo tudo. E o mundo que a Revolução Francesa destruiu, e que eu também arquetipizava, eu o via como realizando em grande parte aquilo que Ele era. E percebia que quando se destruiu aquilo, quis se destruir a Ele, e não se desejou o que era conforme a Ele.

Donde a medula da Contra-Revolução, em mim, ser a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

Alguém poderia perguntar: “Mas por que o Sagrado Coração de Jesus, e não Jesus expirando na Cruz, por exemplo?”

A graça chama a cada um para certo tipo de devoção. É legítimo. Deus me livre de negar as outras mil formas magníficas de devoção, com que a Igreja Católica não cessa de louvar a Nosso Senhor Jesus Cristo durante a História. Mas sinto que fui chamado para adorá-Lo especialmente assim.

Dona Lucilia e o Sagrado Coração de Jesus

Meu afeto para com mamãe era por isto. Em geral, eu me sentava ao lado dela na igreja, e a olhava rezar e pensava: “É curioso, isto tudo vive nela.”

Eu a via rezar em casa para a imagem do Coração de Jesus que ela possuía em seu quarto, naquele oratório, a qual é muito anterior à imagem de alabastro do salão, e pensava: “Há uma atração entre Ele e ela. Mamãe é assim porque reza para Ele.” De onde o benquerer derivado. Eu a queria enormemente bem, mas por isto.

Para mim, a Igreja Católica é santa porque é como Ele. A influência e a presença d’Ele estão totalmente nela. A própria auréola que nimba a cabeça de Nosso Senhor é a Igreja Católica. É por isto que a amo.

A primeira coisa que me chama a atenção n’Ele é a presença de algo — que eu sei ser a divindade, mas estou procurando descrever o que vejo e não o que conheço pela Fé — de excelso, altíssimo, e que leva todas as qualidades que Ele tem a um grau inimaginável. Por mais que eu tente imaginar, qualquer qualidade d’Ele é de uma elevação, uma altitude, uma plenitude que não chego a compreender, mas vagamente entrevejo.

Por exemplo, Jesus ensinando os doutores no Templo. Aquele grupo de imagens, na Igreja do Coração de Jesus, é interessante, exprime mais ou menos isso. A crítica de homem maduro àquilo tudo eu fiz de modo completo, mas guardei com o máximo cuidado o que interessava.

Ali está Ele difundindo em torno de Si um halo de virtude divina, por onde todas as virtudes de um adolescente eram conduzidas a um elevado grau e procediam de uma fonte altíssima, insondável; por onde tudo o que no adolescente existe, por exemplo, de irrupção de vida, n’Ele era uma vida que irrompia tão cheia de elevação, de grandeza, de nobreza, que nem se sabe o que dizer. E também tão repleta de bondade, de misericórdia, de sabedoria, que galopava muito além da idade; mas que se exprimia com o timbre de voz e num vocabulário que não era inadequado para a idade. Entretanto, dizia muito mais do que todos aqueles doutores juntos.

O píncaro dos píncaros o qual nunca sonhei que existisse, a minha alma entreviu!

É mais ou menos como um monte altíssimo, no cume do qual vejo nascer um fio de água, que pode chegar até mim; mas tenho presente, durante todo o tempo em que bebo a água, que ela vem do alto daquela montanha, que eu vi nascer, a bem dizer, dentro do azul do céu.

A obra-prima de Maria Santíssima

Isto para mim é a primeira impressão, diante da qual a tendência imediata é, ao mesmo tempo, de aproximar-me de Jesus, ajoelhar-me e, se Ele tolerasse, segurar seus pés para tê-Lo junto comigo, para ver se Ele me impregna mais.

Daí eu gostar tanto do “Anima Christi, sanctifica me”(5). Porque, se eu O visse, a primeira coisa que Lhe diria é: “Santifica-me!” Porque quero ser parecido com Ele. Depois desta elevação, vem tudo quanto uma alma inocente, habitada pela graça, pode imaginar no Menino Deus adolescente: o modo de Ele responder uma pergunta audaciosa, de ser afável com outro, de liquidar uma questão com três palavras simples que os deixavam boquiabertos. Mas com a despretensão e a naturalidade de quem diz: “Olhai os lírios do campo, não tecem nem fiam…”(6). Uma coisa superior, mas de tal superioridade, que junto a ela minha alma respira. Sinto falta de ar em tudo o que não é isto.

Tudo quanto é virtude, que vejo reluzir na Igreja, brilha daquela maneira porque tem n’Ele a fonte, e que em Jesus é de um modo a perder de vista!

Por exemplo, uma procissão nos bons tempos, que sai da Basílica de São Pedro com o Santíssimo Sacramento, o Papa levado numa espécie de estrado e ajoelhado diante da Hóstia; e a longa fileira dos Cardeais, dos Arcebispos, dos Bispos, dos Superiores Gerais das Ordens religiosas, etc., que dão a volta na Colunata de Bernini e entram na Basílica pelo outro lado; os sinos que tocam, o incenso que enche o ar, as pombas que esvoaçam e a multidão genuflexa que pede perdão. Tudo isso é reflexo d’Ele.

Compreende-se como é, no fundo, a Igreja reportando todas essas coisas a Nosso Senhor e, imaginado n’Ele, tudo isto fica tão alto… Mas, nos momentos em que se tem a experiência do “petit vermisseau et miserable pécheur”, vem à nossa mente, de vez em quando, a noção aflitiva da desproporção. Porque, enquanto a afinidade é empolgante, a desproporção é acabrunhadora.

Então, Jesus mesmo preencheu essa distância com a bondade d’Ele. A obra-prima do Coração d’Ele é Aquela de quem Ele é a obra-prima. Nosso Senhor é a obra-prima de Maria, mas antes de todos os séculos Maria foi ideada como a obra-prima da misericórdia d’Ele para preencher essa desproporção. Sem Ela, eu me sentiria ao mesmo tempo atraído indizivelmente, mas apavorado e aniquilado, pensando diante d’Ele: “Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit?”(7). A Mãe d’Ele me sustenta.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/11/1985 e 12/12/1985)
Revista Dr Plinio 197 (Agosto de 2014)

 

 

1) Ver Revista Dr. Plinio, n. 122, p. 18-23.

2) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 32, p. 27.

3) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

4) Termo utilizado em Filosofia, significando matriz, padrão.

5) Do latim: Alma de Cristo, santifica-me.

6) Cf. Mt 6, 28.

7) Do latim: Se consideras as culpas, Senhor, quem poderá se sustentar? (Sl 130, 3).

A severidade de São Corbiniano

Precisamos ter uma visão global da Doutrina Católica e, portanto, timbrar em conhecer as verdades esquecidas. Uma delas é a que os santos de nossos dias devem ser como São Corbiniano, em  muitas ocasiões de suas vidas. Pois nossa época é de extraordinária obstinação no pecado, sobretudo o de heresia, e a pior delas é a Revolução. Para vencer essa obstinação, em muitas  circunstâncias, o remédio é a severidade.

 

Segundo o Martirológio, em 8 de setembro se comemora São Corbiniano, Bispo de Freising, na Baviera, falecido nesse dia, em 730(1).

Recriminações a um príncipe

Regressando de Roma, onde se entrevistara  com o Papa Gregório II, São Corbiniano, ao chegar à fronteira dos Estados pertencentes a Grimoaldo, foi detido por guardas que este duque ali postara, com ordem de não permitir a passagem do bispo, se ele não aceitasse em fazer-lhe uma visita.

O Santo consentiu. Mas, ao dirigir-se ao castelo do príncipe, declarou que lá só entraria se Grimoaldo deixasse Piltrude, a viúva de seu irmão, com quem se casara. Como o príncipe não  obedecesse, perseverou na recusa, admoestando-o incessantemente com suas recriminações a fim de conduzi-lo à penitência.

Ao cabo de quarenta dias, Grimoaldo e Piltrude prometeram separar- se e o santo bispo mandou-os vir à sua presença. Absolveu-os, depois de terem pedido perdão de joelhos e lhe beijado os pés,  impôs-lhes penitências de esmolas, jejuns e orações. Depois entrou no palácio.

Jantando certo dia em companhia desse mesmo príncipe, São Corbiniano abençoou os alimentos servidos à mesa. O príncipe, que se distraíra, atirou um bocado ao seu cão favorito.

Imediatamente o santo homem derruba a mesa com um pontapé, dizendo que quem atirava a um cão semelhante bênção não era digno dela, e que desse dia em diante não comeria mais em sua  companhia.

Profundamente ferida pelo fato de São Corbiniano tê-la separado do príncipe, com suas admoestações, Piltrude aproveitou a ocasião para acusá-lo de crime lesa-majestade, merecedor de morte.

O príncipe, entretanto, que o tinha em grande e alta estima, mandou fechar as portas da cidade, temeroso de que o homem de Deus, em sua cólera, dela se retirasse. Acompanhado maiorais de sua corte, foi pedir–lhe perdão.

Noutra ocasião, quando se dirigia ao ofício da noite na Igreja de Santa Maria, o santo bispo encontrou no caminho uma camponesa, que se retirava carregada de ricos presentes. Já fora apontada como dada à prática de sortilégios. Interrogou-a sobre a razão dos presentes. Respondeu ela que curara o filho do príncipe, que estava atormentado por demônios, e que por causa disso fora  presenteada. Horrorizado, o bispo desceu do cavalo, espancou a mulher com suas próprias mãos, arrancou-lhe tudo quanto carregava e distribuiu entre os pobres à entrada da cidade. Mais do que tudo, lamentava a infidelidade do príncipe.

Para vencer a obstinação no pecado, em muitas circunstâncias o remédio é a dureza

Toda virtude concebida de maneira unilateral não é autêntica virtude. Se fôssemos imaginar um santo apenas muito suave, bondoso, invariavelmente amável em todas as circunstâncias de sua  vida, não estaríamos em presença de um verdadeiro santo, mas sim de um arremedo de santo. Como também se imaginássemos um santo que procedesse durante toda a sua vida explosivamente  como São Corbiniano agiu nesses episódios, nós estaríamos diante de um santo muito singular, porque não se pode conceber que um bispo, mesmo na era constantiniana, para remédio de todas as situações jogue as mesas no chão, etc. Mas há situações em que o dever consiste em agir assim, como existem ocasiões em que o dever se cifra em ter um procedimento diverso.

O que explica nossa insistência nesse exemplo de São Corbiniano? É que temos muitos exemplos em sentido contrário, e as virtudes “corbinianas” são extraordinariamente raras. De maneira que  encontramos aí uma razão muito boa para pôr em realce essa ficha.

Mas há uma razão mais profunda, evidentemente. Precisamos ter uma visão global da Doutrina Católica e, portanto, devemos timbrar em conhecer as verdades esquecidas.

Uma delas é que os santos devem ser assim, como São Corbiniano, em muitas ocasiões de suas vidas, sobretudo quando se trata de santos de nossa época. Época de uma dureza, de uma obstinação no pecado – e o pior deles que é o de heresia, e a pior das heresias é a Revolução, com o laicismo a ela inerente –, uma obstinação tão extraordinária que realmente não se sabe o que dizer. É claro que, para vencer a obstinação, em muitas circunstâncias, o remédio é a dureza.

Hoje, a prova de coragem consiste em enfrentar aqueles que promovem a Revolução

O primeiro exemplo do procedimento de São Corbiniano com o príncipe se explica pelo fato de que este era casado com uma mulher, a qual tinha com ele um grau de parentesco por ser viúva do  seu irmão e, portanto, precisava de uma dispensa da Santa Sé para contrair matrimônio com ela. Eventualmente, o príncipe não tinha pedido essa dispensa e vivia maritalmente com ela, e casou-se mesmo com ela, mas de um modo ilícito, sem a licença da  Santa Sé. Ele estava, portanto, numa situação que São Corbiniano não poderia tolerar.

Vimos com que extremos de severidade ele censurou a atitude do príncipe, e que humildade o Santo exigiu dele, como pedido de perdão.

Quem seria um personagem equivalente ao príncipe nos dias de hoje para um santo humilhar assim? Como poderíamos imaginar um confronto entre a fortaleza da autoridade espiritual e os  poderes temporais atualmente?

A Revolução deslocou das mãos dos príncipes, ou ao menos da maior parte deles, o poder e a riqueza. Enfrentá-los já não é grande prova de coragem. Mas é prova de coragem enfrentar aqueles  que hoje têm muito poder, ou muitos meios de subornar, de comprar. Entre esses nós temos em primeiro lugar, evidentemente, os ricos. Mas não só eles; também a imprensa, o rádio, a televisão, os instrumentos que manipulam a opinião pública, os demagogos, os chefes de correntes revolucionárias; a todos esses, se favorecem o mal, é preciso que um bispo saiba enfrentar.

O exemplo do Cardeal Mindszenty

Como é bonito, por exemplo, vermos um bispo proceder por essa forma, enfrentando o comunismo, a demagogia, a desordem e a Revolução! Nós temos hoje em dia um exemplo que vem a  propósito lembrar porque, ao menos pelo que se conhece, não é menos belo do que o exemplo de São Corbiniano. É o Cardeal Mindszenty(2), que está preso na Hungria, e a respeito do qual baixou  um tal silêncio que quase nos esquecemos de que ele existe. Pois bem, temos aí um exemplo de fortaleza extraordinária, que lembra a fortaleza de São Corbiniano.

A ficha narra outros dois episódios: um é do Santo que joga a mesa no chão porque o príncipe deu de comer alimentos abençoados a um cachorro. Alguém perguntará: “Mas ele não podia fazer de modo diferente? Por exemplo, dizer: ‘Príncipe, eu me levanto.’ Ou simplesmente manter silêncio sentido, em relação ao príncipe”. Uma pessoa mais moderada indagaria: “Ele poderia  simplesmente dizer: ‘Príncipe, para seu cachorrinho não seria demais um pão bento?’

Assim, São Corbiniano não captaria mais a simpatia e a benevolência do príncipe?”

Seriedade, respeito, confiança

É preciso sempre lembrar que a arte de tratar com as almas não consiste principalmente em incutir-lhes simpatia, mas sim, antes de tudo, em lhes granjear o respeito. E o respeito se granjeia pela seriedade. E a seriedade se documenta muitas vezes pela severidade. É tomando as coisas até as últimas consequências e punindo de acordo com a gravidade, que se mostra ser sério. E, mostrando-se sério por essa forma, impõe-se respeito, inspira-se confiança e  desse modo se dirigem as almas.

Um erro da propaganda hollywoodiana, e que o ambiente de hoje incute nas almas de um modo terrível, é a ideia de que o perpétuo “smiling”, o sorrir para todo mundo, arrasta as pessoas. Arrasta  coisa nenhuma. Os norte-americanos têm distribuído dólares e sorrisos à farta. Se houve uma potência no mundo que garganteou pouco o seu poderio foi a norte-americana. O grande poder  temporal mundial, anterior ao norte-americano, foi o da Inglaterra.

Como a Inglaterra levava a coisa de outro jeito! Antes da Inglaterra foi Napoleão. Os Estados Unidos exercem uma dominação velada, por detrás dos bastidores, com dólares, e garantindo a  independência desses países, pelo menos a independência política, e amenizando o conjunto com sorrisos. Contudo, eles estão sendo gradualmente abandonados pelo mundo inteiro. Por quê? Porque os Estados Unidos não incutem admiração. E não incutem admiração pelo fato de que não são sérios. Eles depositam toda a sua confiança no sorriso. O sorriso tem um certo papel na vida do homem, não tem dúvida. Não estou dizendo que nunca se deva sorrir. Mas que essa seja a guia régia, é um engano.

O sorriso precisa ser temperado, consertado com atos de grande valor, de grande energia. Quem não é capaz de meter um pouco de medo não é verdadeiramente santo. E por isso nós temos um  Santo de requintada bondade, mas que sabe impor medo, e consegue fazer o príncipe ficar quieto.

Na Idade Média, a virtude e a contrição dos pecadores são encantadoras

Por outro lado, é uma maravilha a atitude do príncipe. Na Idade Média, muitas coisas encantam. A virtude encanta, mas também a contrição dos pecadores é encantadora. O príncipe andou mal  porque, afinal, ele devia ter prestado atenção. À sua mesa estava um Santo que ele venerava como tal; o varão de Deus dá uma bênção nos alimentos, mas ele está pensando no cão. Contudo, em comparação com as coisas que fazemos hoje, quão ingênuo, quase se diria quão gracioso!

O príncipe leva uma admoestação tremenda, e sua primeira ideia é: “Segura o Santo porque eu quero pedir perdão para ele!” E como o Santo vai embora, manda fechar as portas da cidade. Depois pede perdão, ajoelha-se, o Santo se reconcilia e volta tudo à bonança. Nota-se que contrição entra nisso, que cordura, que brandura de alma, que inocência há numa atitude como essa. Não é verdade que, mesmo nessa penitência, há uma inocência mais profunda do que a falta cometida e que nos deixa maravilhados?

Finalmente, a sova na mulher que era uma espécie de bruxa e feiticeira e havia usado algum feitiço para curar o filho desse homem. Qual foi a atitude do Santo com ela? Eu pergunto: há casos semelhantes atualmente? Ainda hoje eu estava lendo a seguinte notícia: Houve a inauguração de um parque municipal em São Paulo, durante a qual foi realizada uma sessão ecumênica. Falou um padre, um bispo católico, logo em seguida um espírita e depois um rabino. Numa mesma sessão, em comum com o bispo. Onde está o exemplo de nosso Santo? Como estão mudadas as coisas…

Plinio  Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1969)

1) Cf. ROHRBACHER, René-François. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas, 1959. v. XVI, p. 106-107.

2) Cardeal József Mindszenty (*1892 – †1975). Opôs-se tenazmente ao regime comunista, particularmente em seu país, Hungria. Foi perseguido, preso e morreu no exílio. Seu corpo, exumado em  1991, foi encontrado incorrupto, e em 1996 foi apresentada à Santa Sé a documentação para o processo de sua beatificação.

 

“Saint-simonianismo”: destreza na arte de conversar

Ao tratar uma vez mais desse tema que lhe era muito caro — a arte de conversar, como meio de apostolado — Dr. Plinio evoca a figura do Duque de Saint-Simon, contemporâneo de Luís XIV, que possuía como poucos a qualidade de dizer as verdades mais pontiagudas, com elegância e nobreza. A exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo, modelo infinitamente mais nobre e elegante de cortesia e doçura no trato humano.

 

A propósito do tema de que anteriormente tratamos, envolvendo a cortesia cristã e o que chamamos de “saint-simoniamismo”, poder-se-ia perguntar se o principal papel do trato a la “Saint-Simon” é o de não ferir o respeito humano das pessoas.

A questão comporta certa precisão de termos.

Não para acobertar, mas censurar o defeito alheio

De fato, segundo os moralistas, costuma-se chamar “respeito humano” a atitude de alma de quem, por motivos meramente humanos — a linguagem é um tanto anacrônica — envergonha-se de praticar a virtude e de manifestar sua fidelidade a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ora, o “saint-simonianismo” não é um recurso para poupar o respeito humano, pois não deve acobertar os defeitos de ninguém. Pelo contrário, visa censurar o indivíduo atingido pelo respeito humano, sem que ele possa dizer que se lhe faltou com a educação. Portanto, não é um recuo, uma pirueta ou ladeamento perpétuos, mas, muitas vezes, consiste numa ofensiva “de esporas nos pés e lança na mão”, feita com elegância e nobreza correspondentes à vida de salão, sobretudo a dos ambientes frequentados por Saint-Simon.

Quando, porém, uma imperiosa razão nos leva a não combater o respeito humano de outro, sendo conveniente ladeá-lo, então o “saint-simonianismo” se verifica muito apropriado para fazê-lo de modo lícito. Trata-se de uma arte, uma destreza.

Exemplo augusto de “saint-simonianismo”

Numa civilização cristã autêntica, os homens deveriam manifestar menos susceptibilidades, menos assomos de amor próprio ferido e, por causa disso, as verdades poderiam ser ditas com mais franqueza do que em nossos dias. Entretanto, cumpre fazer uma distinção.

Das narrações evangélicas se infere que Nosso Senhor, a todo momento, criticava de frente e sem matizações os defeitos das pessoas?

Não. Mostra-nos o Evangelho que o Redentor muitas vezes dizia aos fariseus coisas desagradáveis, frontalmente e com rudeza (se se pode falar em rudeza, pois n’Ele tudo é adorável). Em outras ocasiões, porém, Jesus o fazia com uma inefável delicadeza. Por exemplo, como parece, ao escrever no chão os pecados dos acusadores da mulher adúltera, os quais, à medida que os liam, se retiravam da cena. Nosso Senhor não os delatou publicamente, pois na situação em que estavam lhes faria mais bem sentir sua doçura do que sua energia; sua delicadeza do que sua fortaleza divinas.

Recurso que eleva o convívio humano

Creio que no Reino de Maria, essa época de renovado esplendor que esperamos para a Cristandade, haverá nas pessoas uma fortaleza ao lado de uma delicadeza de alma superlativas, pelas quais terão discernimento para saber quando convém serem fortes, quando delicadas.

Na hora da suavidade, o “saint-simonianismo” nos ajudará a dizer palavras amenas, sutis; sem ele, feriríamos a sensibilidade do próximo. E no momento da severidade, o “saint-simonianismo” contribuirá para falarmos com elevação e nobreza, sem degenerar em xingatório. A conversa, então, ganhará tal brilho que se poderá dizer: “Saint-Simon? Que homem pouco educado!”

Ao se ler as “Memórias” de Saint-Simon é interessante notar as descomposturas, os argumentos irretorquíveis e fogosos que ele empregava. Eram altos vôos de espírito, plenos de lógica e com garras polidas…

“Saint-simonianismo” e a perfeição evangélica

Outro aspecto desse tema que envolve particular interesse se liga à abnegação e à humildade cristãs.

Sabe-se que em certos mosteiros existe o costume de proceder ao “capítulo de culpas”: os monges apontam claramente as faltas e defeitos reparados num confrade, o qual permanece prosternado no centro da sala em que se reúnem, por isso mesmo chamada “sala capitular”. Ou, então, qualquer um deles se adianta e se apresenta voluntariamente para se auto-acusar. Poder-se-ia perguntar como esse belo costume monástico se coaduna com o “saint-simonianismo”.

Acontece que na trajetória de santificação das almas existem a via normal e a especial. Na primeira há coisas que esta última — não por deficiência, mas por requinte — não comporta. Assim, numa comunidade constituída por pessoas escolhidas, abnegadas e desapegadas das coisas terrenas, é belo que as almas renunciem a qualquer forma de susceptibilidade, ou mesmo de sensibilidade legítima, para ouvirem humildemente todas as acusações que lhes são feitas. Porém, isso não se aplica à maior parte dos homens.

Do mesmo modo que, por exemplo, o burel franciscano é próprio a um gênero de almas chamadas para a prática da pobreza evangélica, mas não se pode pretendê-lo como traje para o comum das pessoas. A via dos escolhidos para uma vocação particular não convém à regra geral. O mesmo se pode dizer do silêncio trapista, e assim por diante.

O “saint-simonianismo”, pois, é mais adequado para o comum da sociedade humana, e é essa forma de destreza que muito contribui para elevar a arte da conversa.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/5/1970)
Revista Dr Plinio 113 (Agosto de 2007)

 

O início da vitória!

Bendito o dia em que Nossa Senhora nasceu; benditas as estrelas que a viram pequenina; bendito o momento em que seus pais constataram o nascimento d’Aquela que, permanecendo sempre virgem, fora chamada a ser a Mãe do Salvador!

 

Por que se festeja o aniversário de alguém? A razão é muito simples: o aniversário de uma pessoa representa o momento em que esta entrou no cenário da vida, o momento em que a sociedade humana se enriqueceu com mais uma presença.

Cada nascimento constitui um favor, uma graça de Deus, porque todo homem — por mais que seja concebido em pecado original ou traga alguma deficiência de família — é uma criatura de grande valor. E essa criatura representa um enriquecimento altamente ponderável para a humanidade.

Concebida sem pecado e repleta de dons sobrenaturais e naturais

Nestas condições, a festa da Natividade de Nossa Senhora leva‑nos a perguntar qual o enriquecimento que Ela trouxe para a humanidade, e a que título especial o gênero humano deve festejar seu aniversário.

Colocando-nos nessa perspectiva, ficamos sem saber o que dizer… Pois Nossa Senhora foi concebida sem pecado original.

Sendo Ela livre de qualquer mancha, um lírio de incomparável formosura, seu nascimento deve alegrar não só o gênero humano, mas também todos os coros angélicos!

Além disso, Nossa Senhora possuía todos os dons naturais que uma mulher possa ter. Nosso Senhor deu a Ela, segundo a ordem da natureza, uma personalidade riquíssima, preciosíssima, valiosíssima e, a esse título, a presença d’Ela entre os homens representava um tesouro de valor verdadeiramente incalculável.

Além disso, com sua presença entre os homens, ganhamos os tesouros de graças que A acompanhavam e que são as maiores graças concedidas por Deus a alguém, graças verdadeiramente incomensuráveis.

Compreendemos, então, o que representa a entrada de Nossa Senhora no mundo.

O mais belo nascer do Sol é pálido em relação à beleza da entrada de Nossa Senhora no mundo; a mais solene entrada de um rei no seu reino nada é em comparação com isso.

A ação de Nossa Senhora nos períodos de provação

A Natividade de Nossa Senhora nos inspira também outro pensamento.

O mundo estava prostrado no paganismo; os vícios imperavam; a idolatria dominava a Terra; o mal e o demônio venciam inteiramente.

Mas, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, tudo mudou! Nasceu Nossa Senhora, a raiz bendita da qual nasceria o Salvador da humanidade. Começava assim a derrocada do demônio.

Quantas vezes não se passa algo semelhante em nossa vida espiritual! Há ocasiões em que nossa alma está em luta, com problemas, contorcendo e revolvendo dificuldades! Sequer temos ideia de quando virá o dia bendito onde uma graça extraordinária, um grande favor acabará com nossos tormentos, proporcionando-nos um amplo progresso na vida espiritual. E, de repente, há um nascimento no sentido especial da palavra: Nossa Senhora aparece qual aurora em nossa vida espiritual.

Isso deve nos dar muita alegria e esperança, com a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas ocasiões mais difíceis Ela nos visita, resolve nossos problemas, cura nossas dores, dá‑nos a combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que seja.

Desde o nascimento, influenciando o destino da humanidade

Assim como no Natal celebramos o momento bendito em que Nosso Senhor veio ao mundo e começou a fazer visivelmente parte da sociedade humana, a festa da Natividade de Maria exalta a ocasião em que Ela enriqueceu a humanidade com a sua presença.

Alguém dirá: “Mas o que um bebê, sem o uso da razão, pode acrescentar a uma sociedade?”

Ora, sendo concebida sem pecado original e possuindo o uso da razão desde o primeiro instante de seu ser, já no ventre materno Nossa Senhora tinha pensamentos elevadíssimos e sublimíssimos.

Se São João Batista, o qual não foi isento da culpa original, mas libertado dela antes de nascer, ao ouvir a voz de Maria saudando Santa Isabel estremeceu no seio materno(1), não poderia a Mãe do Redentor já em sua infância ter conhecimento do que se passava?

Nossa Senhora, desde o claustro materno, devido à altíssima ciência que lhe foi concedida pela graça de Deus, pedia pela vinda do Messias e pela derrota do pecado. Desta forma Ela influenciava os destinos da humanidade.

Diz-nos o Evangelho que da túnica de Nosso Senhor saía uma virtude capaz de curar(2). Se assim o era, também sua Mãe, o Vaso de Eleição, deveria ser uma fonte de graças a jorrar para todos que d’Ela se aproximavam.

E isto desde a sua mais tenra infância! Embora Ela fosse apenas uma criancinha, já em seu natal, graças enormes começaram a raiar para a humanidade. Seu nascimento constituiu o esmagamento do demônio e a vitória da Contra‑Revolução.

Compreende‑se, então, como a vinda de Nossa Senhora à Terra foi uma graça para todos os homens.

Qual “aurora” do luar…

Para concluir lembremo-nos da noite de Natal. Há séculos essa festa se repete, e nela temos a sensação de que uma bênção se renova, descendo do Céu sobre a Terra de maneira mais intensa. E, de algum modo, renova também as energias espirituais de todos os homens.

Nosso Senhor é o Sol que nasce para a humanidade, e seu Natal nos faz lembrar a aurora.

Assim sendo, sua Mãe Santíssima pode bem ser comparada à Lua. O nascer da Lua não tem a glória do nascer do Sol, mas quanto tem de análogo! Como ele é benfazejo, como ele alegra, como ele estimula, como ele consola!

O que pedir nesse dia?

Sendo filhos de Nossa Senhora — não por méritos, mas por vontade de Deus —, ao festejar seu nascimento podemos pedir a Ela uma graça especial. Peçamos, então, que a Santíssima Virgem estabeleça com cada um de nós uma aliança especial, um vínculo de filiação todo especial em nosso relacionamento com Ela, de maneira a tomar-nos sob seu amparo de modo todo particular.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

 

1) Cfr. Lc 1,41

2) Cfr. Lc 8,43-48

Um nascimento todo especial…

Quando Nossa Senhora nasceu, o mundo estava prostrado no paganismo; os vícios imperavam; a idolatria dominava a Terra; o mal e o demônio venciam inteiramente.

Mas, no momento decretado por Deus em sua misericórdia, tudo mudou! Nasceu Maria Santíssima, a raiz bendita da qual nasceria o Salvador da humanidade. Começava assim a derrocada do demônio.

Quantas vezes não se passa algo semelhante em nossa vida espiritual! Há ocasiões em que nossa alma está em luta, com problemas, contorcendo e revolvendo dificuldades! Sequer temos ideia de quando virá o dia bendito onde uma graça extraordinária, um grande favor acabará com nossos tormentos, proporcionando-nos um amplo progresso na vida espiritual. E, de repente, há um nascimento no sentido especial da palavra: Nossa Senhora aparece qual aurora em nossa vida espiritual.

Isso deve nos dar muita alegria e esperança, com a certeza de que Nossa Senhora nunca nos abandona. Nas ocasiões mais difíceis Ela nos visita, resolve nossos problemas, cura nossas dores, dá‑nos a combatividade e a coragem necessárias para cumprirmos nosso dever até o fim, por mais árduo que seja.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/9/1963)

A alegria do mundo inteiro

Por que a Santa Igreja Católica comemora de modo particular a natividade de Nossa Senhora? A razão é simples. O nascimento da Virgem Maria marcou o início de uma nova era na História, pois foi através d’Ela que o Sol da Redenção brilhou para a humanidade.

Até então, o mundo estivera prostrado no paganismo, gemendo sob o ímpeto dos vícios e da idolatria. Durante séculos, enquanto o mal e o demônio venciam inteiramente, almas santas haviam rogado a Deus pela vinda do Redentor, porém, a hora designada por Deus ainda não havia chegado…

A partir do momento bendito em que Maria iniciou sua trajetória entre os homens, as relações de Deus com humanidade se modificaram: através das portas do céu, até então trancadas, começaram a como que filtrar luzes de esperança no sentido de que seriam abertas em breve, de par em par.

Desde a mais tenra idade, Ela começou a pedir o advento do Messias e o fim daquela ordem de coisas estabelecida pelo pecado. A ação de presença d’Ela era o prenúncio da salvação que seu Filho viria trazer.

***

Em outras épocas, Nossa Senhora opera uma repetição daquilo que então se passou, e podemos dizer que, na época presente, há uma nova interferência d’Ela na história do mundo. Prova disso é o fato de haver almas que anseiam pelo Reino de Maria, trabalham e rezam para que ele venha.

Dr. Plinio, durante toda a sua vida, não quis ser senão um arauto do Reino de Maria, e viver na perspectiva dele. Quem assim atende ao apelo marial faz o papel de Nossa Senhora no Antigo Testamento: ainda não veio a Luz, a libertação, a vitória; mas algo que é prenúncio da vitória já está presente, começa a espalhar as suas graças e a determinar movimentos entusiásticos de adesão.

Atitudes como estas são como que natividades, que preparam o dia pleno de alegria em que Nossa Senhora reinará no mundo.

***

Que Ela nos dê graças abundantes para que, também nós — assim como foi Dr. Plinio — vivamos no desejo ardente da vinda do Reino d’Ela, pedindo que cesse o quanto antes o domínio do pecado e do demônio sobre a terra.

Plinio Corrêa de Oliveira

Olhos postos em Maria

A natividade de Nossa Senhora, celebrada em 8 de setembro, representa a aurora da redenção do gênero humano, posto que, com o nascimento de Maria, inicia-se a realização das promessas divinas de enviar ao mundo o seu Salvador”, comentava Dr. Plinio. “No momento decretado por Deus em sua misericórdia”, acrescentava, “Ele faz surgir Nossa Senhora, raiz bendita da qual brotaria Nosso Senhor Jesus Cristo, começando assim a obra de destruição do reino do demônio — no exterior, bem como no interior dos homens.

“De fato, na vida espiritual de quantas almas não se verifica situação semelhante à do mundo em que surgiu Nossa Senhora, imerso no império dos vícios e do pecado! A pobre alma está em luta com seus defeitos, se contorce em dificuldades, sem vislumbrar o dia bendito em que uma grande graça, um grande favor celestial porá fim aos seus tormentos e lhe franqueará o progresso na piedade. Pois na história dessas almas há como que irrupções de Nossa Senhora. Na noite das maiores trevas e aflições, Ela aparece e começa a solucionar todos os problemas. Maria surge então como uma radiante aurora em nossa existência, incutindo-nos um alento que não conhecíamos.

“Nesse sentido, vem muito a propósito a conhecida exortação de São Bernardo, aplicando a Nossa Senhora o simbolismo da Estrela do Mar: Ó tu que nesta vida andas flutuando entre borrascas e tempestades, antes que vagando por terra, não tires os teus olhos do fulgor desta estrela, se não quiseres que te arrastem os vagalhões. Quando te vires arremessado aos escolhos da tribulação, se te surgirem os ventos das tentações, olha a estrela e invoca Maria. Quando te vires perecer nas ondas da soberba e da ambição, da detração e da luxúria, olha para a estrela, invoca Maria.

“Contrárias às ilusões de que esta vida é um constante jardim de rosas onde tudo nos sorri, as palavras de São Bernardo — conformes ao ensinamento da Igreja — nos falam do vale de lágrimas no qual expiamos o pecado original e nossos pecados atuais. Segundo o conselho do santo, o quotidiano terreno é permeado de borrascas e tempestades, de rochedos que insidiosamente aguardam o navegante durante seu trajeto, e dos ventos das tentações que podem soprar e nos solicitar para o mal.

“Ora, sob essas condições adversas, não devemos nunca deixar de pôr os olhos em Maria Santíssima, senão os vagalhões nos arrastam. A exemplo dos antigos navegantes que se orientavam pela estrela polar a fim de alcançar o porto seguro, cumpre seguirmos as maternais coruscações da Estrela do Mar. Na incerteza das ondas, no singrar atribulado, jamais percamos de vista essa luz que nos orienta para a salvação; jamais nos esqueçamos de invocar Maria Santíssima.”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências em 8/9/63 e 24/9/66)

Harmonia e felicidade no Céu entre anjos e santos

Baseando-se nas revelações de Santa Francisca Romana, Dr. Plinio nos propõe interessante paralelo entre a harmonia existente no Céu e a beleza de uma sinfonia, na qual cada nota, distinta uma da outra, contribui com sua beleza própria para formar um lindo e melodioso conjunto. Ali, anjos e bem-aventurados, unidos na diversidade de seus sons, entoam a Deus um magnífico hino de louvor.

 

Célebre por suas visões e revelações a respeito dos anjos e demônios, Santa Francisca Romana descreve de modo admirável o conhecimento que teve de toda a ordem celeste. O pressuposto desta revelação é o ensinamento da doutrina católica segundo o qual os lugares no Céu deixados vacantes pelos anjos apóstatas, serão preenchidos pelos homens que se salvarem.

Como notas de uma sinfonia

Não se trata, é claro, de lugares materiais, pois os anjos, sendo puros espíritos, não ocupam um espaço físico. Para se entender o significado de “lugar” aqui empregado, devemos pensar que cada coro angélico é como uma sinfonia de notas em que cada elemento — cada anjo — representa um papel. Digamos que algumas dessas notas se tenham revoltado e abandonado a partitura. As lacunas desse imenso concerto serão, graças à misericórdia divina, cobertas pelos bem-aventurados, os quais completarão assim a harmonia do conjunto celestial.

Imensa alegria no Paraíso pela chegada de um novo santo

Pelas descrições de Santa Francisca Romana somos levados a imaginar, por exemplo, a alma de um justo que ascende pelos vários coros angélicos até alcançar o lugar na mais elevada categoria de anjos a que foi destinada. E como os anjos situados num grau inferior, à medida que aquela alma sobe, manifestam uma extrema alegria pela glória por ela alcançada.

E a vidente nos mostra que, ao chegar a alma no lugar que lhe compete, o gáudio dos anjos ali presentes é incomparável, pois cada posição vaga ocupada é mais uma parte da beleza daquele imenso conjunto que se completa. Diz a santa:

São enormes demonstrações de alegrias e de amizade, de cânticos de louvores e bênçãos para dar graças a Deus por sua felicidade. E este júbilo dura mais longo tempo nuns coros do que noutros. Na ordem dos serafins,  uns penetram mais do que os outros na compreensão divina. Há entre eles uma gradação de inteligência que  existe igualmente em todos os coros.

Ou seja, até mesmo entre os serafins, que são os mais altos, há distinções de inteligência e de capacidade de compreender a infinita perfeição de Deus. Essa desigualdade, segundo a narração de Santa Francisca Romana, existe em todos os demais coros angélicos.

Quanto maior a sutileza de entendimento, maior a saciedade na visão beatífica

E continua:

O que digo dos anjos, digo igualmente dos espíritos humanos que lhes estão associados. Todos os espíritos de um mesmo coro não estão igualmente próximos de Deus. Ora, quanto mais de perto uma inteligência vê a Deus, melhor n’Ele penetra e, portanto, mais feliz é.

Todos os espíritos humanos colocados na glória não a  possuem no mesmo grau. Alguns, quando viviam em sua carne mortal, receberam uma inteligência mais sutil e, segundo suas operações intelectuais e capacidade, penetram mais no abismo da divindade. Eles levaram ao Céu um espírito mais arguto e penetrante.

Assim, quanto mais uma alma tem capacidade e sutileza de entendimento, mais é saciada da visão beatífica. É verdade que no Céu todas as almas são plenamente saciadas, mas cada uma o é segundo a medida de sua capacidade.

Quando os Apóstolos receberam o Espírito Santo, não obtiveram todos a mesma medida de graça. Aqueles que tinham mais capacidade e sutileza em seu entendimento as receberam em mais alto grau. Ora, o que se dispõe a uma maior graça, dispõe-se igualmente a uma maior glória.

Ela, então, nos dá a compreender que os bem-aventurados, ao ocuparem os lugares vagos no Céu neste ou naquele coro angélico, obedecem também a essa espécie de regra pela qual os mais inteligentes e perspicazes vêem e compreendem mais da perfeição divina. Além disso, a saciedade que terão pela visão beatífica será determinada pelo grau de correspondência que deram às graças recebidas por eles na Terra.

Cântico harmonioso entre anjos e bem-aventurados

Temos, pois, dois interessantes aspectos a considerar nessas descrições de Santa Francisca Romana.

Primeiro: todos os anjos e santos no Céu gozam de plena felicidade. As almas dos homens se encaixam ao longo da hierarquia angélica, ocupando as lacunas deixadas pelos anjos rebeldes. A felicidade maior de uns não ofende a menor de outros, pois todos são inteiramente felizes de acordo com a capacidade de inteligência e de percepção que lhes foi dada por Deus.

Segundo: embora sendo superiores aos homens por sua natureza, os anjos manifestam extremo contentamento ao verem uma alma bem-aventurada galgar os maiores escalões da hierarquia celeste, sobrepujando aos próprios anjos de coros inferiores.

Há nisso uma esplêndida lição de harmonia e de humildade. No Paraíso celestial, onde impera a mais perfeita ordem das coisas, os anjos e os santos são desiguais, e nenhum deles sofre com as diferenças que os distinguem. Pelo contrário, todos se unem num cântico perpétuo e inexcedível de louvor a Deus, como notas desiguais que compõem uma maravilhosa sinfonia.

Comprazer-se com a superioridade do próximo

Essas considerações devem nos levar a um propósito concreto de nos examinarmos quanto às nossas disposições de alma nesta vida. Em que sentido?

Se as coisas bem ordenadas e belas da Terra são reflexos da ordenação celeste, cumpre sê-lo também as atitudes que tomamos em relação ao nosso próximo no que diz respeito às desigualdades que nos distinguem. Noutros termos, sentimos, como sentem os anjos e os bem-aventurados, alegria em constatarmos a superioridade de um semelhante sobre nós? Manifestamos nosso júbilo ao vê-lo crescer, igualar-se a nós e, mais, tornar-se maior, sobrepujando nossas próprias qualidades? Entoamos um Magnificat em louvor de Nossa Senhora, em agradecimento a Deus por essa desigualdade?

As respostas a essas perguntas nos dirão até que ponto estamos preparados para a insondável e maravilhosa harmonia de grandezas distintas existentes no Céu.

Roguemos a todos os anjos e santos que, pela intercessão de Maria Santíssima, nos alcancem a graça de sermos como eles, isto é, de desejarmos o bem maior para o próximo, e de termos alegria pela superioridade alheia.

Lembro, a esse propósito, das preces redigidas pelo Cardeal Rafael Merry del Val em sua Ladainha da Humildade, entre as quais, esta: “que os outros sejam mais santos do que eu, embora me torne santo o quanto me for possível, Jesus dai-me a graça de desejá-lo”.

Portanto, é levar ao auge o desapego de si e a alegria pela glória do seu semelhante. É desejar, de fato, que os mais inteligentes e capazes brilhem mais do que eu nas vias do serviço de Deus. Sobretudo, é querer, segundo dos desígnios da Providência, que os outros sejam mais santos do que eu, porque me alegro com todas as superioridades que estão acima de mim. Esse é o timbre de voz da alma autenticamente católica quando reza. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 1/11/1965)
Revista Dr Plinio 125 (Agosto de 2008)