A Cruz permanece de pé

O obelisco encimado por uma cruz, colocado na Praça de São Pedro, nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

 

Na Criação existem seres de uma grande durabilidade que nos falam da eternidade de Deus, o único Ser absoluto, perfeito e eterno, em função do qual e para Quem tudo existe. Essas criaturas muito duráveis falam-nos do Criador pela sua imutabilidade e aparente ou relativa indestrutibilidade.

Símbolo da eternidade de Deus

Por sua natureza pétrea e sua integridade, o obelisco é um exemplo adequado das coisas duráveis, que nada destrói.

Nesse sentido, pareceu-me de muito bom gosto terem colocado no centro da Praça de São Pedro um obelisco encimado por uma cruz, que nos evoca o lema dos cartuxos: “Stat Crux dum volvitur orbis” – Enquanto o mundo gira, a Cruz permanece de pé. Quer dizer, não há quem mude, quem derrube, quem abata a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ela é sempre a mesma, contra ventos e tempestades.

Esse monumento monolítico enorme, com forma de agulha, encontrava-se originariamente no Egito, onde os faraós mandavam erigir grandes pedras com inscrições, contando fatos do reinado deles ou coisas do gênero, que eles queriam comunicar à posteridade.

O pagão que mandou esculpir aquele obelisco não imaginava estar esculpindo um símbolo da eternidade de um Deus que ele não conhecia, e da indestrutibilidade de uma Igreja que ainda não tinha nascido.

Uma “desobediência” heroica

Na época em que esse obelisco foi transladado ao seu atual lugar, no século XVI, não havia os meios mecânicos que temos hoje, e a suspensão era feita através de um sistema de cordas, complicadíssimo, amarrando a pedra de vários lados, de maneira a ser puxada ao mesmo tempo por várias forças.

Para não haver desordem e evitar acidentes existia uma ordem do Papa, que era o Rei de Roma naquele tempo, condenando à morte quem falasse. Era preciso que tudo fosse feito no maior silêncio, de maneira a só se ouvir, na imensidade da praça, a voz dos mestres e contramestres.

Os homens foram levantando a pedra e, em certo momento, um dos operários, o qual era um experiente marinheiro, percebeu que a corda segurada por ele estava tão quente, pela pressão exercida, que iria se incendiar. Se o fogo se ateasse, o obelisco cairia e mataria muitos dos circunstantes.

Esse homem, com o risco da própria vida, resolveu atrair sobre si a pena de morte, pedindo para trazerem água. Então ele gritou: “Acqua alle funi!”(1)

Trouxeram depressa água para o operário e, tendo ele apontado o lugar, este foi regado, salvando-se com isso a pirâmide de cordas, e o obelisco pôde ser erguido.

Terminado o trabalho, houve um decreto do Papa Sisto V recompensando com honrarias o Capitão Benedetto Bresca, contratado para a ereção daquele obelisco, pelo ato de heroísmo praticado: enfrentou a morte, desobedecendo à ordem papal. Evidentemente, aquela ordem deveria ser desobedecida, caso contrário seria a ruína da obra.

A obra onde está autenticamente a Cruz é inatingível

Com que olhos deve-se olhar para esse obelisco egípcio, no centro da Praça de São Pedro?

A meu ver, com aplauso, porque de si é uma coisa bonita. Em primeiro lugar, um monólito como aquele é uma obra-prima da natureza e do engenho humano. Mas também o símbolo que está posto ali é muito bonito.

O Egito foi a mais gloriosa das nações antigas. Colocar o obelisco no centro da praça, encimado por uma cruz simbolizando o triunfo da Igreja sobre toda a sabedoria pagã antiga, evidentemente é belo e bom, pois indica a perenidade da Esposa de Cristo no movediço de todas as circunstâncias humanas.

O universo inteiro pode ser sacolejado, porém nada destruirá a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Ela tem a promessa da indefectibilidade, da indestrutibilidade.

É também a presença da verdadeira Cruz em uma obra que assegura a sua inatingibilidade. O cosmo inteiro pode abalar-se de todas as formas; onde, de modo autêntico, está a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora, ninguém e nada atingem.

 

Plini0 Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 1/9/1973 e 8/8/1979)

 

1) Do italiano: Água para as cordas!

 

Nossa Senhora das Dores

Nossa Senhora das Dores, Vós sofrestes por mim. Que o mérito de vossas lágrimas afaste tanta dor que ameaça cair, a justo e a lindo título, sobre mim, porque não me sinto capaz de carregá-la. Sei que em algo a afastareis, mas compreendo que vossa oração pode encontrar a barreira que vosso Divino Filho encontrou, quando Ele disse: “Si fieri potest…” Então, se em algo não puder ser, dai-me forças! Tanto quanto possível, me refugio da merecida cólera de Deus junto aos vossos braços de Mãe. Contudo, se esses braços tiverem que me entregar, e eu sofrer esse holocausto por outros ou por mim, adoro essa cólera! Dai-me forças, e a suportarei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/9/1981)

Levar a cruz com ufania

Os infortúnios, nossas limitações e defeitos constituem cruzes, por vezes muito pesadas, que devemos saber carregar. Certas pessoas, sem compreenderem a beleza e a necessidade do sofrimento, procuram fugir dele por meio de um blefe. Dr. Plinio nos aponta a atitude, ao mesmo tempo ufana e equilibrada, de um verdadeiro católico face à dor.

 

“Tollat”, leve-a! E não a arraste, nem sacuda, nem reduza e, ainda menos, a esconda! Isto é: leve-a bem alto na mão, sem impaciência nem pesar, sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e sem alívio natural, sem envergonhar-se, e sem respeito humano. “Tollat”, que a coloque sobre a fronte, dizendo com São Paulo: “Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coisa que não a Cruz de meu Senhor Jesus Cristo!” (cf. Gl 6, 14). Leve-a aos ombros a exemplo de Jesus Cristo, a fim de que essa cruz se torne para ele a arma de suas conquistas e o cetro de seu império: “(imperium) principatus (ejus) super humerum ejus” (cf. Is 9, 6). Enfim, coloque-a, pelo amor, em seu coração, para torná-la numa sarça ardente que, sem consumir-se queime, noite e dia, de puro amor de Deus(1).

Sofrimentos que devemos aceitar para salvar nossas almas

Neste trecho da “Carta Circular aos Amigos da Cruz”, vem enunciado o princípio de que, em relação à cruz, ou seja, ao sofrimento que Nossa Senhora nos manda, não nos cabe o levarmos resignada e arrastadamente, mas conduzi-lo alto, com alegria e ufania.

Dizia o Duque de Saint-Simon que o mundo deveria ser conduzido “à la croix haute”, tomando a cruz na mão e, com ela bem alta, fazer tocar todas as coisas. Porque se nos reportarmos ao que se entende por cruz, então compreenderemos bem o que diz esse texto de São Luís.

A cruz é o conjunto dos sofrimentos que devemos aceitar para salvar as nossas almas. Em primeiro lugar, os esforços que nossa santificação exige, abrangendo o enorme domínio da ascese. Em segundo lugar, os infortúnios que nos acontecem. E em terceiro lugar, as limitações e restrições em nós mesmos, com as quais devemos nos conformar. Todo homem tem uma série de limitações, e não deve apenas arrastá-las penosamente, tristemente, tomando-as como um fato consumado, mas, ao ver outros que têm mais virtude, mais inteligência, ou qualquer coisa a mais do que ele, precisa ter satisfação, dar graças a Deus, a Nossa Senhora, e por esta forma manifestar a aceitação das próprias limitações.

Como levamos nossa cruz em matéria de ascese? Se algo me custa muito, é de bom aviso pedir graças a Nossa Senhora para entregar não apenas o que me foi pedido, mas dar mais. Porque, assim, faço uma renúncia mais completa àquele apego que me levava a sentir dores em conceder aquilo, e vou muito mais longe no caminho da cruz e da santidade, do que um outro que não segue esse princípio.

Devemos cortar as raízes de nossos defeitos

Por exemplo, uma pessoa que seja colérica e se põe como norma: “Nunca darei o meu consentimento em encolerizar-me com alguém, sem razão”. Se o defeito preponderante dela é a cólera, ela nunca ficará nesse limite. Porque, com a preocupação de ficar no mínimo, ou seja, apenas no limite da correção nos assuntos em que temos uma tendência contrária muito forte, não extirpamos a raiz, mas apenas cortamos os maus frutos que estão em nós. Resultado: esses frutos surgirão com tanta abundância, que todo nosso tempo e energia não bastarão para cortá-los continuamente.

Então, como se leva a cruz nesse caso? Dizendo: “Tenho uma tendência para estar continuamente me irritando com os outros. Portanto, não vou me limitar a não me irritar, mas serei um modelo de correção no trato com os demais. Mesmo nos casos em que fosse meu direito me encolerizar, não me encolerizarei. Só por esta forma eu mato a raiz de minha cólera. É o meu mau gênio que me leva continuamente a estar implicado e irritado com os outros. Então, tenho que descer aos porões de minha alma e fazer uma poda dolorosa”.

Devemos pedir a Nossa Senhora as graças para fazermos essa poda generosamente e com ânimo forte, isto é, fixar uma resolução e traçar um programa: “Eu chegarei, de uma vez só ou por progressivos cortes, a eliminar dentro de mim aquilo que constitui essa raiz da qual brotam os meus pecados”. Isso será com a cólera ou com um defeito oposto à cólera, que é a apatia e a falta de sensibilidade para com as ofensas profundas; será em relação a qualquer defeito preponderante. Leva-se a cruz alta, como recomenda São Luís Grignion de Montfort, quando temos a graça de operar por esta forma.

Todos os homens passam por infortúnios

O que é a aceitação dos infortúnios que nos acontecem?

Não há pessoa que não receba, de vez em quando, uma bombarda de algo que não quereria e acontece de um modo inteiramente imprevisto. Ora é a morte inopinada de alguém a quem estimávamos muito; ora é uma campanha de calúnias, ou uma amizade que desejávamos muito e não a obtivemos, ou um dinheiro, a saúde; seja o que for, mas ninguém deixa de receber o impacto de vários infortúnios.

Como levar a cruz até o fim, em relação a esses infortúnios? Preparando a alma no período de tranquilidade para que, no tempo da adversidade e das desventuras, ela seja forte.

Se logo depois de me acontecer uma coisa desagradável, de ter me aclimatado e posteriormente saído dela, eu esfrego as mãos e penso: “Graças a Deus, saí de dentro disso, e nunca mais vai me acontecer novamente!” Quando me acontecer, apanha-me fraco e desprevenido, e tenho outro drama.

Devo pensar o contrário: “Esta vida é um vale de lágrimas. Aconteceu-me isso agora e pode me suceder outra desventura daqui a dez minutos. E isto é normal, porque são as regras do jogo, não posso estranhar. Por pouco que eu olhe em torno de mim, desde que não o faça como um ingênuo, mas procure ver como é a vida dos outros, percebo que cada um tem infortúnios sérios, grandes e, portanto, é natural que eu os tenha também. Pela bondade divina, no momento não tenho, mas tê-los-ei daqui a pouco. Se vier o sofrimento, Nossa Senhora o estará mandando para o bem de minha alma, e devo estar preparado. Assim, habituo um pouco a minha imaginação de maneira a não ficar tão surpreso e não ser colhido de improviso se me acontecer alguma desventura”.

O oposto a isso é o defeito moral de muita gente que começa a imaginar situações otimistas. Isso amolece a alma, tira completamente a coragem para a luta.

O que se deve fazer? Prever o mal, não exagerando a possibilidade de ele acontecer, mas acostumando os olhos a considerá-lo de frente. E, durante o infortúnio, rezar para Nossa Senhora afastá-lo, se for a santíssima vontade d’Ela;  pedir até que seja a santíssima vontade d’Ela afastá-lo, se Ela não nos dá a sede de cruz. Rezar filialmente, pedindo isso à Virgem Maria, mas compreendendo que Ela pode não conceder, porque, por mais altos desígnios, quer que eu tenha uma cruz a carregar nesta vida.

Cada criatura tem um belo e digno lugar nos planos de Deus

No tocante às limitações que temos, deveríamos partir da ideia de que cada criatura, por menor, mais apagada e mais defeituosa que seja — e falo, sobretudo, da criatura racional —, tem um lugar nos planos de Deus. E um lugar de formosura, de dignidade. Portanto ela deve aceitar, com enlevo, e dentro de todas as suas limitações, esse destino.

Não me refiro apenas a limitações físicas, mas a defeitos nativos, por exemplo, de inteligência, de temperamento e até morais.

A pessoa deve fazer este raciocínio: Se Deus compôs para Si um universo como um diadema, no qual há pedras centrais enormes e, à medida que se distanciam do centro, as pedras vão diminuindo, até o diadema fechar-se em pedras bem pequenas; e se, para a beleza desta joia, deve haver pedrinhas e eu sou uma delas, então vou me alegrar por isso, dar graças a Nossa Senhora e aceitar de bom humor, porque componho a beleza desse conjunto.

Portanto, não vou morrer de tristeza, por haver pedras maiores do que eu. Pelo contrário, fico alegre de compor o cortejo das pedras e ser um lampejo pequeno dentro dos lampejos maiores. Uma vez que a beleza do conjunto precisa de mim, tenho um papel, uma razão de ser, e não sou uma excrescência, desde que saiba realizar o meu destino.

Um ponto fundamental nesta questão é que não se deve ter vergonha de ninguém. Por menor que eu seja, tenho uma razão para existir e, por isso, não há motivo para me desprezarem. Estou desempenhando meu papel.

Por mais rico que seja um palácio, é necessário que nele haja vassouras. O dono da residência não pode desprezar, quebrar e jogar fora a vassoura, pois ela tem uma função a exercer.

Logo, se tenho a minha razão de ser, não terei complexo ou vergonha por não ser os outros. Quererei ser eu mesmo. E se os outros quiserem pisar em mim, eu rio deles, porque a boa razão e o bom direito estão de meu lado. O próprio Deus está de meu lado. E vou ser, com toda a paz da alma, o que sou, com os meus defeitos e limitações.

Se sou pouco inteligente ou sem graça, ou tenho má memória, ou sou pequenininho; que importa? Não tenho minha razão de ser? Então eu me afirmo: sou como sou, sou o que sou, aqui estou! Desde que eu seja de acordo com a regra com a qual devo ser, não tenho vergonha de nada e me afirmo com toda a dignidade e toda a minha finalidade.

Um blefe existente hoje mais do que em qualquer outra época histórica

Como esse senso da cruz importa ao senso contrarrevolucionário! O oposto disso é o blefe, por onde o mundo de hoje está continuamente elaborando atitudes pelas quais as pessoas procuram dar a entender que são mais do que são.

Por exemplo, bancar ser mais inteligente do que é, ou então mais fino, de melhor posição social, ou ter mais dinheiro, mais importância, mais prestígio, e outros mil recursos para blefar. Acho que hoje em dia o blefe é de uma frequência maior do que em qualquer outra época histórica. Isso significa não querer carregar a cruz.

Certa vez, uma pessoa, estando em minha residência, disse-me:

— Sua casa é bonita, e tenho muito gosto em vir até aqui. Mas não teria coragem de morar nela.

— Mas por quê? — indaguei.

— Porque, neste gênero de casas, há objetos muito mais ricos e distintos do que os existentes aqui, e eu não teria coragem de habitar num ambiente que não fosse o mais bonito no gênero. Como também, na sua posição, não teria coragem de ir até a esquina e ficar “pescando” um táxi, como o senhor “pesca”. Um homem de sua idade e condição tem automóvel. E eu teria vergonha de não possuir automóvel. Jamais iria para uma esquina, por onde passa muita gente conhecida, e estar ali “pescando” um táxi. Cada um que passa dentro de um automóvel próprio e vê o senhor ali, pensa: “Está vendo? Este chegou a essa idade e não tem automóvel!”

Eu disse:

— Meu caro, isso não me causa a menor emoção. Moro nesta casa e julgo que ela me serve de boa moldura, porque não sou, nem pretendo ser, mais do que isso. Acho, inclusive, que está de acordo com meu nível de educação e com minha posição tomar um táxi na esquina e, portanto, não me incomodo. E se eu tivesse que pegar ônibus ou bonde, também não teria vergonha, porque, se não possuo dinheiro, não adianta pensar que tenho. Se eu possuir um automóvel, darei graças a Deus; se não o tiver, estarei com a mesma fisionomia ao sol, com a mesmíssima apresentação. Aqui estou, Plinio Corrêa de Oliveira, pronto a aguentar qualquer desprezo e revidar, mantendo-me normal, sem me amargurar.

Entretanto, muitas pessoas procuram blefar até mesmo aos seus próprios olhos, quando o melhor é ver a verdade, pois a humildade é a verdade. Isso é carregar a cruz. E carregando-a, devo considerar também que posso vir a perder um pouco do que tenho e ser menos do que sou. Se isso acontecer, Deus seja bendito!

Essas são verdades conhecidas e cuja lembrança faz bem à vida espiritual.

Martírio de São Théophane Vénard

Contudo, parece-me que haveria restrições a fazer, de ordem prática, ao que eu disse. Porque, pelo nervosismo, pela debilidade de vontade, por algo de desengonçado existente nas gerações mais recentes, compreendo que esse quadro traçado assim, embora se preste a ser admirado, sua simples explicitação pode causar, em certos momentos, tremor.

Alguém me contou, outro dia, como foi o martírio do Bem-aventurado Théophane Vénard(2). Ele estava sendo preparado para ser decapitado, diante do mandarim. E o carrasco, vendo um pequeno objeto de ouro que ele possuía, disse-lhe: “Se você me der isso, eu tiro a sua cabeça de um golpe só, você nem vai sentir”. Não lembro se ele deu ou não o objeto, mas respondeu ao verdugo: “É melhor que você demore, porque quanto maior o número de pancadas, mais ocasião terei de sofrer”.

Admiro isso profundamente, mas uma coisa como essa me enregela. Se eu fosse morrer decapitado, não me passaria pela cabeça fazer isso. Eu julgaria ter cumprido inteiramente o meu dever, simplesmente deixando-me decepar. De maneira que se eu tivesse que ser martirizado, eu “tout bêtement”(3) teria que pensar em outra coisa e me entregar nas mãos da Providência. Se Nossa Senhora quiser permitir que me cortem a cabeça com vários golpes, e Ela me der forças para isso, ficarei encantado. Mas se Ela não me der forças, não há remédio, tem que ser de um golpe só, porque do contrário não aguento mesmo. O que equivale a dizer que, se for de sua vontade, Ela me dará as graças.

Esse estado de alma é um pouco o da santa mártir que tinha disposição para ser comida por qualquer fera, exceto por um leopardo. E a Providência arranjou um jeito de que não fosse um leopardo que a devorasse.

O problema da cruz e a pequena via

Esses são exemplos de uma debilidade de alma que não se pode considerar propriamente como um defeito, mas uma estrutura com sua fragilidade própria. E diante do dever descrito em toda a sua austeridade, pergunto-me se não há almas que experimentam uma constrição, uma incapacidade de realizar o sacrifício até o fim, com todas as aparências de falta de generosidade que, entretanto, não o é; trata-se apenas do indicativo de uma outra via de dentro da qual o homem pede a Nossa Senhora:

“Minha Mãe, sou fraco demais para enfrentar esses pavores. A simples perspectiva de suportá-los me faz tremer. Se quiserdes isso de mim, dai-me uma graça especial, operai na minha alma com uma rapidez, uma sublimidade, uma eficácia especial, para que ela seja capaz daquilo de que eu, pelo simples jogo da graça ordinária, não sou. E então, eu Vos peço enlevos, entusiasmos, favores e auxílios, por onde, em determinado momento, minha pobre alma se torne capaz.”

Creio ser esta uma das diferenças mais frisantes entre a grande e a pequena via; esta última conta com auxílios desses. Nossa Senhora toma a alma débil e a carrega aos ombros para fazê-la atravessar as dificuldades mais tremendas. De maneira tal que a alma faz, com toda facilidade e suavidade, coisas enormes que nunca se imaginaria capaz de realizar.

Ou, então, não faz essas coisas, porque são afastadas de seu caminho. E a Santíssima Virgem obtém para a pessoa auxílios a fim de realizar as coisas pequenas, frágeis, comuns, com tanto amor que as engrandece por esta forma.

Eis como devemos considerar esse problema da cruz na pequena via.

Muitos caminham, ora pela grande via, ora pela pequena via

O Bem-aventurado Teóphane Vénard, levado por uma grande graça no último momento de sua vida, realizou um ato da grandeza de um dos Macabeus, desses martírios mais terríveis. Mas não o fez pela ascese inaciana, com propósitos, e prevendo ponto por ponto, mas meio impelido por um vendaval da graça que o suspendeu.

A mesma coisa se deu, depois, com Santa Teresinha, grande devota dele. Ela morreu com um heroísmo que o herói da Chanson de Roland poderia invejar, ou considerar que emulou com ele. Mas ela chegou a isso pela pequena via.

Tudo quanto acima foi dito sobre a aceitação do sofrimento deve ser profundamente admirado. Mas cada alma, conforme seu caminho, toma em relação a isso alguma distância; e muitas almas, em relação a alguns pontos, ora andarão à grande via, ora à pequena via, de acordo com o feitio de cada uma e o tipo de perfeição moral que Nossa Senhora quis suscitar.

Quantas vezes, ao desvendar panoramas muito sérios e grandiosos em matéria de vida espiritual, há almas que podem se sentir alquebradas ou desanimadas e, ao mesmo tempo, empolgadas. O que fazer diante de panoramas como esses?

Devemos não só amar e admirar, mas conhecer e compreender esta outra via. Rezando bem, entenderemos como aplicá-la aos nossos próprios problemas, para transpor — suavemente, no ritmo da nossa personalidade e sem nos alquebrarmos — obstáculos para os quais de outra maneira não teríamos coragem.

Por uma via ou por outra, portanto, seguimos a Nosso Senhor Jesus Cristo com a cruz, e a levamos alto. E, guiados pelo Divino Espírito Santo, com o auxílio das graças obtidas por Nossa Senhora, seremos levados a praticar a virtude de carregar a cruz, com aquela plenitude que São Luís Maria Grignion de Montfort deseja.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/8/1967)

 

1) Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 19.

2) Jean-Théophane Vénard, presbítero e mártir (*1829 – †1861). Beatificado por São Pio X e canonizado pelo Beato João Paulo II.

3) Do francês: ingenuamente, inocentemente.

Inigualável papel da cruz na vida humana

Festa da Exaltação da Santa Cruz, celebrada pela Igreja no dia 14 de setembro, sempre despertou em Dr. Plinio profundos sentimentos de adoração ao Santíssimo Redentor que, ao se deixar imolar no alto do madeiro, resgatou o gênero humano e nos legou para sempre seu consolador exemplo de perfeita aceitação do sofrimento.

 

Certa feita, assim se expandiu Dr. Plinio, ao considerar a sublime importância do holocausto de Nosso Senhor no alto da Cruz: “O Evangelho nos faz ver com a maior evidência quanto a misericórdia de nosso Divino Salvador se compadece de nossas dores da alma e do corpo. Basta atentar para os milagres assombrosos de sua onipotência, praticados tantas vezes para as mitigar.

Entretanto, não imaginemos que esse combate à dor tenha sido o maior benefício por Ele feito aos homens, nesta vida terrena. Não compreenderia a missão de Cristo ante os homens quem fechasse os olhos para o fato central de que Ele é nosso Redentor, e de que quis padecer dores crudelíssimas para nos remir. Até na culminância de sua Paixão, Nosso Senhor poderia ter feito cessar instantaneamente todas essas dores, por um mero ato de sua vontade divina. Desde o primeiro instante de sua Paixão até o último, Ele poderia ter ordenado que suas chagas se fechassem, seu sangue precioso deixasse de correr, os golpes por Ele recebidos deixassem de manter cicatrizes no seu corpo divino e, por fim, uma vitória brilhante e jubilosa cortasse o passo, bruscamente, à perseguição que O ia arrastando até a morte.

Porém, Ele não o quis. Pelo contrário, Ele quis deixar-se arrastar pela via dolorosa até o alto do Gólgota, quis ver sua Mãe Santíssima entregue ao auge da dor e, por fim, quis bradar, de maneira a que O ouvissem até o fim dos séculos, as palavras lancinantes: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’ (Mt 27,46). Nesses fatos compreendemos que, dando-nos a graça de sermos chamados com Ele para padecermos cada qual um quinhão da sua Paixão, Ele tornava claro o papel inigualável da cruz na vida dos homens, na História do mundo e na sua glorificação. Não pensemos que, convidando-nos a padecer as dores da vida presente, Ele tenha querido dispensar-nos de pronunciar, cada qual, no transe da morte, o seu ‘consummatum est’ (cfr. Jo 19,30).

Sem a compreensão da cruz, sem o amor à cruz, sem ter passado cada qual por sua “via crucis”, não teremos cumprido a nosso respeito os desígnios da Providência. (…) Com tal amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo tudo conseguiremos, ainda que nos pese o fardo sagrado da pureza e de outras virtudes, os ataques e os escárnios incessantes dos inimigos da Fé, as traições dos falsos amigos.

O grande alicerce, o máximo alicerce da Civilização Cristã está em que todos os homens exercitem generosamente o amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Que a tanto nos ajude Maria, e teremos reconquistado para o Divino Filho d’Ela o Reino de Deus, hoje tão bruxuleante no coração dos homens.”

  • * *

Há 10 anos, precisamente no dia 1º de setembro de 1995, Dr. Plinio era internado no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. Ao longo daquele mês, esse insigne varão católico provaria o seu edificante amor à Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, encetando com resignação — e inteira confiança na misericórdia da Santíssima Virgem — os derradeiros passos de sua própria “via crucis”.

Façamos nossa, a prece que Dr. Plinio costumava recitar diante de um Crucifixo:

“Nós vos adoramos, ó Cristo, e vos bendizemos, porque por vossa santa Cruz redimistes o mundo. Mãe Dolorosa, rogai por nós. Vós, que tivestes pena de vosso Filho no alto da Cruz, tende compaixão de cada um de nós, nos fundos vales de nossa existência cotidiana. Amém.”

 

Plinio Corrêa de Oliveira

A beleza da luta – I

Os contrarrevolucionários, que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, precisam compreender a beleza da luta.

 

Devemos fazer algumas considerações à vista de ilustrações representando cenas de batalhas medievais, desenhadas pelo famoso desenhista francês do século XIX, Gustavo Doré.

Porém, antes de fazer o comentário, eu queria apontar bem do que se trata, para podermos apreciar adequadamente o assunto.

A paz é a tranquilidade da ordem

Gustavo Doré é um dos maiores desenhistas do século XIX. Ele fez desenhos extraordinários, por exemplo, ilustrando a “Divina Comédia”. Quer dizer, a passagem de Dante, guiado por Virgilio, pelo Inferno, depois pelo Purgatório e até pelo Céu. E seus desenhos ficaram famosos.

São desenhos da escola romântica, com os defeitos desta escola, mas também com algumas qualidades que existem nela. Os defeitos consistem em que ele apela demais para o sentimento. Doré procura impressionar a fundo — porque, afinal, causar impressão é próprio de uma obra de arte —, mas a impressão é tão viva que chega a apagar um pouco o papel da razão. A pessoa se deixa levar apenas pela impressão.

De outro lado, entretanto, ele tem uma grande seriedade em seus desenhos e, como tal, é capaz de inspirar, elevar as cogitações dos homens a um plano superior. É o que acontece com as batalhas medievais.

Os combatentes medievais ele sabe exprimir, manifestando aquilo em que o homem da Idade Média era muito sensível, que era o “pulchrum” do combate. Como o combate é belo, como em sua beleza se sente a nobreza e o valor moral da luta e, portanto, o combate como um dos estados de alma do católico, em que a virtude católica se faz sentir de um modo excelente.

Nisso tudo há um contraste com a mentalidade contemporânea, essencialmente pacifista, mas pacifista de um modo exagerado e, sobretudo, em obediência a um conceito errado de paz.

Com efeito, Santo Agostinho definiu prodigiosamente bem a paz, e São Tomás retoma essa definição: a paz é a tranquilidade da ordem. Quando as coisas estão em ordem, reina então entre elas uma harmonia. Essa harmonia é a paz.

Não é, portanto, qualquer tranquilidade que é paz, mas a tranquilidade da ordem. Se entrarmos, por exemplo, numa sala onde se fuma maconha, e há quinze, vinte pessoas inebriadas e largadas em sofás, ninguém dirá: “Que paz!”, porque aquilo é uma desordem. E aquela desordem não proporciona a verdadeira paz.

A tranquilidade da desordem é o contrário da verdadeira paz

Deve-se ser pacifista? Sim, se se quer esta paz, isto é, a ordem, e se se tem a alegria na tranquilidade da ordem. Mas a desordem também tem tranquilidade. E a tranquilidade da desordem é nojenta, porque é o contrário da paz verdadeira e incute desprezo.

Por exemplo, o que se passou no Vietnam, em 1975. Na véspera da chegada dos comunistas a Saigon, os bares dos grandes hotéis dessa cidade estavam cheios de gente bebericando, conversando, se divertindo. Houve festas. Um repórter notou que numa loja, no dia anterior à invasão comunista, ainda um pintor estava pintando os batentes das portas do estabelecimento, para atrair mais os clientes no dia seguinte. A “paz” inteira reinava em Saigon.

Quando os comunistas entraram, por volta das 10, 11 horas da manhã, tiveram a sagacidade de mandar alguns caminhões com o que havia de mais jovem no exército comunista. Eram meninotes. Os caminhões ficaram parados em alguns pontos da cidade de Saigon, esperando ordens superiores.

Os vietnamitas do Sul passavam por lá e davam risada: “Olha aqui o que vai ser essa ocupação! Ocupação de meninos! Isso é uma tirania de brincadeira. Nossa vida vai continuar na mesma.”

Num clube de luxo, um sujeito tranquilo numa piscina gritou para o “barman”: “Traga-me uma “champagne!” O “garçon” trouxe, ofereceu, e um jornalista perguntou a quem bebia a “champagne”:

— Mas o senhor está festejando o quê?

Ele respondeu:

— Eu estou festejando minha última “champagne”. Os comunistas vão entrar, não vou ter mais “champagne”. Não sei o que vai ser feito de mim. Deixe-me, pelo menos, beber minha última “champagne” na paz!

Essa é a tranquilidade da desordem, e causa nojo.

Nós devemos distinguir no mundo de hoje o pacifismo que visa a tranquilidade da ordem. Busca a ordem por amor de Deus, porque ela é a semelhança com o Criador e, por isso, tem a paz de tudo quanto é de Deus. Mas a paz não é o fim supremo; é um fruto aprazível da ordem que amamos, porque amamos o Altíssimo.

Dou outro exemplo. Num prédio de apartamentos, mora-se embaixo do apartamento de um casal e nunca se ouve barulhos de uma briga. Como não há encrenca, chega-se à conclusão de que existe paz. De fato, marido e mulher estão brigados e nunca se dirigem a palavra. Então não há discussões; mas isso não é paz! É uma caricatura nojenta da paz, é a cristalização, a fixação, a consolidação de uma desordem: marido e mulher estão brigados, quando deveriam estar unidos.

O verdadeiro heroísmo é um dos garbos da Idade Média

Há situações em que a luta, por mais que seja perigosa e traga frutos tristes, é preferível à falsa paz. E às vezes luta-se de modo terrível para conseguir a paz!

Por exemplo, se está entrando um ladrão numa casa, que pode quebrar objetos, meter fogo na residência, matar os chefes da família, o filho já moço avança e se atraca com o ladrão; isso é uma briga na casa, mas em favor da ordem. Essa luta é meritória. A isso se chama heroísmo!

Os medievais tinham alta ideia disso. E, portanto, eles celebravam a beleza da luta. Às vezes combates entre cavaleiros em que cada um dos lados luta de boa-fé, embora um esteja errado e outro não.

Por exemplo, questão de limites entre um feudo e outro depende da interpretação de tratados que, por vezes, são muito complicados. Pode ser que nos dois lados haja boa-fé. Mas um julga que tem direito a uma terra, e o outro não está de acordo. Então se combatem.

Há um modo nobre de combater de ambos os lados que torna essa luta nobre em si, em que toda a beleza do combate é realçada pelo mútuo respeito daqueles que lutam. Aquele que combate admite que o outro esteja de boa-fé, mas nem por isso permitirá que roube uma terra que ele considera sua. Se o invasor avança é preciso contê-lo, mas com respeito, porque ele está de boa-fé.

Portanto, não é como quem avança em cima de um bandido. É um cavaleiro que investe contra outro cavaleiro, ambos aguerridos. Não raras vezes se saudavam antes da luta, reconhecendo a boa-fé do outro lado. Mas não tem remédio: vão para a guerra!

E na luta conduzida nesse espírito para a defesa de um ideal, da Religião Católica, o homem desdobra qualidades de heroísmo, de força de corpo e de alma em que, no fundo, é a varonilidade de um que se choca com a do outro.

Mas como do choque de duas pedras muito duras parte uma centelha, assim, do choque de dois homens muito duros, pode partir uma chama, uma labareda que é a manifestação do heroísmo de ambos. Esse heroísmo desinteressado, nobre é um dos garbos da Idade Média.

Gustavo Doré soube representar a beleza do heroísmo

Os desenhos de Gustavo Doré representam a beleza da luta, a beleza da guerra, a beleza do heroísmo.

É muito importante que os contrarrevolucionários, os que travam a guerra de Nossa Senhora contra o demônio, compreendam seriamente a beleza da luta.

Nessa perspectiva, então, vamos examinar alguns desenhos de Gustavo Doré.

Vemos numa ilustração um exército pronto para a batalha. Na primeira fileira se discernem mais facilmente os soldados de infantaria revestidos de couraças, capacetes, espadas, escudos contendo, em geral, emblemas religiosos que mostrassem por que eles lutavam.

Embaixo, estão os homens jogados por terra, mostrando bem a que está sujeito quem trava uma batalha. Tem-se a impressão de que o guerreiro que está na primeira fila, com um escudo quase inteiramente redondo e com uma espada na mão, acabou de prostrar por terra aquele combatente; e que esse exército deu um primeiro choque, reduzindo a primeira linha do adversário a trapos, e está avançando sobre cadáveres.

O campo de batalha é representando num dia bonito e de aspecto até risonho. Num campo de batalha assim, uma grande tragédia se desenvolve. Mas uma tragédia que é, sobretudo, um lance de dedicação e de coragem. Daí não resulta choradeira, e sim a glória.

A batalha, na Idade Media, tinha dois estágios: o primeiro é o da “bataille rangée”, e depois, da “bataille mellée”. A “bataille rangée” era em filas. Antes de começar a luta, os dois lados se mantinham em filas e, muitas vezes, um arauto ia para a frente e cantava as razões pelas quais eles combatiam, julgando que estavam com o direito. Depois o opositor mandava outro arauto refutar. E quando os arautos se retiravam, iniciava, com todo o furor, o ataque de cavalaria de lado a lado.

Episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados

Em outra ilustração, observamos um ataque de cavalaria e um cavalo que se ergue com grandeza, num belo movimento. Ali está um homem que quis atentar contra o cavaleiro e está sendo jogado no chão. Outros homens já estão caídos no solo, e os cavalos avançam. O cavaleiro, com a espada na mão, mata na defesa de seu ideal.

Tem-se pena de quem está no chão, mas não é o aspecto principal do quadro. O aspecto principal da cena é a admiração, portanto a coragem, a glória.

Nesta gravura veem-se nuvens de fumaça de todos os lados. Trata-se de um episódio culminante da tomada de Jerusalém pelos cruzados. Os guerreiros cristãos aproximaram dos muros de Jerusalém torres de madeira sobre estrados com rodas, que eles deslocavam de um lado para outro e, em certo momento, encostavam na muralha e saltavam para dentro da fortaleza. Algumas dessas torres estão pegando fogo, e um cruzado, na primeira fila, de espada na mão, está lutando e descendo magnificamente.

No lance aqui representado, os maometanos que dominavam Jerusalém tinham ateado fogo na torre de Godofredo de Bouillon, e a fumaça sufocava os cruzados. Mas houve um determinado momento onde, por disposição da Providência, o vento soprou de outro lado, e a fumaça passou a sufocar os maometanos. Então, imediatamente, os cruzados aproveitaram a ocasião e avançaram. Este que vemos descer numa atitude magnífica é Godofredo de Bouillon, chefiando o ataque, avançando em primeiro lugar.

Na guerra moderna, os generais não avançam. Eles ficam na retaguarda, jogando xadrez com a vida dos outros. Quer dizer, vai tal corpo para cá, aquele corpo para lá, e eles ficam sentados, numa tenda.

Aqui não. Eles se expunham em primeiro lugar. E o resultado é esse: a Santa Sé ofereceu a Godofredo de Bouillon o título de Rei de Jerusalém. E ele declarou que não queria cingir a coroa de rei no lugar onde Nosso Senhor Jesus Cristo tinha cingido uma coroa de espinhos. E que a ele bastava ter o título de Barão do Santo Sepulcro. Ele usava, então, uma coroa de espinhos feita de ouro.

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/3/1988)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)

Misericórdia que chega aos extremos de nossa fraqueza

A sensualidade é, com o orgulho, uma das molas propulsoras da Revolução. Em sentido oposto, Nossa Senhora, Rainha e arquétipo dos contrarrevolucionários, praticou as virtudes da humildade e da castidade em grau inimaginável.

O que dizer da pureza d’Aquela que foi imaculada desde o primeiro instante de seu ser? D’Ela brota para toda a humanidade, como de uma fonte inexaurível, a virtude da castidade. E porque incomparavelmente pura, Maria é, mais do que ninguém, a protetora dos fracos, o socorro dos que se debatem nas tentações da carne.

Engano seria pensar que, por ser castíssima, Nossa Senhora tem invencível horror aos impuros. Ela possui, sem dúvida, aversão ao pecado de impureza, mas Se compadece daquele que o comete, e deseja a emenda e a salvação desse infeliz.

A Santíssima Virgem está pronta a Se inclinar sobre o mais miserável dos homens e lhe dizer: “Meu filho, em que pântano caíste?! Entretanto, continuo sendo tua Mãe, e por isso Me curvo até ti, por mais baixo que tenhas caído. Até aos extremos de tua fraqueza chega minha misericórdia, disposta a te salvar”.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 26/5/1972, 25/9/1990 e 12/7/1991)
Revista Dr Plinio 258 (Setembro de 2019)

Um grande ato de Fé

Ao comentar a cerimônia de coroação do Imperador do Sacro Império Romano Alemão, realizada na Basílica de São Pedro e narrada em tom declamatório, Dr. Plinio faz reviver um passado tão amado por ele.

 

Diz-se que o tempo irreparável foge, e é verdade. Mas nas páginas da História, debaixo de certo ponto de vista, ele para.

O passado não morre

Embora, na aparência, o passado seja objeto dos esquecimentos mais monumentais, ainda que ele possa parecer morto, enterrado e sepultado completamente pela avalanche dos fatos novos que vêm, há em certos aspectos do passado qualquer coisa que lhe assegura a perenidade e faz com que, por exemplo, no tempo em que a cerimônia aqui descrita se realizava, neste lugar onde nos encontramos — talvez sede de uma taba de índios ou um matagal, não se sabe que espécies de onças, tatus, insetos, serpentes rondavam e rastejavam por aqui —, ninguém haveria de imaginar que, passados tantos episódios, ocorridas tantas revoluções, de tal maneira convulsionado o curso da História, no ano de 1984 a cerimônia renasceria lindamente declamada para uma juventude que ouve entusiasmada!

Passou o tempo para esta cerimônia? Sim e não. Ela não se realiza mais, está nos arquivos e, de algum modo, misturada com a poeira do passado. Sobre ela poder-se-ia dizer, meneando a cabeça: “fugit irreparabile tempus…” Mas, de outro lado, “non fugit”! Ficou uma nostalgia, uma saudade, a afirmação de algo de perene que existe nesta cerimônia.

Assim, quando ouvi, narrado há pouco, o cerimonial da coroação do Imperador do Sacro Império, e evocadas, com uma saudade cheia de apetência, as cerimônias das repúblicas aristocráticas ou burguesas e corporativas da Idade Média, pensei: “O passado não dorme, não morre! Ele é como um rio que, às vezes, afunda na terra, como se desaparecesse, mas renasce mais adiante!”

Todas essas recordações reaparecem, não é possível estancá-las, pela graça de Deus. Uma das riquezas do passado está nisto: a declamação. Paulo VI disse que estávamos na civilização da imagem, e para tal civilização esta declamação poderia parecer uma coisa envelhecida, pois todo mundo quer ver, ninguém deseja ouvir.

Entretanto, é feita aqui a declamação segundo os cânones antigos, para descrever uma cerimônia antiga, e todos prestam mais atenção do que se presenciassem um espetáculo de televisão. Quem ousa dizer que todo o passado morre, que para tudo foge o tempo, e que não há valores perenes na História dos homens? Ó ilusão! “Non fugit irreparabile tempus!”

Feitas essas considerações, passo ao comentário que me pediram.

Vivacidade do povo italiano

Roma, a cidade dos Papas, gozava de certa autonomia municipal em relação ao Sumo Pontífice. Por isso, sob certo ponto de vista, poderia ser comparada a uma república municipal. Iam, portanto, de encontro ao Imperador do Sacro Império os dignatários do que poderíamos chamar, para simplificar, de república municipal romana.

Consideremos os pormenores do cerimonial.

“Em breve, o longo e lento cortejo cruzará as muralhas da cidade de Roma. Cerca de duas ou três horas antes do momento marcado para o encontro com o Imperador, já o cortejo está organizado dentro da cidade.”

A Itália sempre vivaz, alegre e cheia de meninos dispostos a exclamar, a bater palmas, a vaiar, enfim, a se manifestar. No meu modo de sentir, as velhas loquazes e os meninos manifestativos marcam especialmente a vivacidade italiana.

E enquanto tudo se organiza dentro da seriedade, com as pessoas vestidas em trajes próprios às suas funções, perfilando-se e alinhando-se, podemos imaginar no meio disso o pitoresco da vivacidade romana:

Uma menina que grita para o pai:

— Não deixe de pedir ao Papa tal coisa!

Ele, solene, faz um sinal para não perturbar a cerimônia…

Ela, correndo, leva uma florinha a um senhor e diz:

— Leve para o Imperador de minha parte.

O homem sorri, e guarda a flor no bolso.

Mais adiante, um indivíduo cobra uma dívida de outro que está montado a cavalo. Pouco mais à frente, antes de iniciar-se o cortejo, está um, por via das dúvidas, acabando de comer um pedaço de pão com queijo.

Afinal, os sinos começam a tocar e o cortejo lentamente se põe em marcha através da cidade. As velhas portas se abrem — sérias, solenes, veneráveis — e o cortejo penetra no campo.

Juramentos prestados pelo Imperador

“Do Monte Mário partiu o Imperador, acompanhado dos seus guerreiros germanos, bem como seus prelados, abades e bispos. Os dois cortejos se encontram a certa altura do trajeto. Do lado da municipalidade de Roma, todos apeiam. O próprio Imperador desce do cavalo para saudar o povo romano que veio a seu encontro.”

São gentilezas: o Imperador não apeia do cavalo para saudar algumas pessoas, mas para saudar o povo romano que vai hospedá-lo!

Os representantes da cidade de Roma tiram seus grandes chapéus de veludo, bordados a ouro, com pedras preciosas e fazem uma profunda reverência. O Imperador os recebe com uma bondade monumental!

Na continuação da cerimônia, o Imperador deverá entrar com suas tropas na cidade de Roma. Ora, nem sempre a recordação das tropas imperiais é muito pacífica… A nação alemã é valente, intrépida e muito empreendedora. Tropas armadas, numa cidade desarmada, podem levantar interrogações…

“A municipalidade, na pessoa de seus representantes, avança com uma linda almofada sobre a qual está um belo ritual, contendo um juramento que o Imperador deve prestar antes de transpor os umbrais das portas de Roma.”

É o juramento de respeitar as liberdades da cidade de Roma, ou seja, não empregar a força e permitir que Roma continue a se reger de acordo com os seus privilégios.

O Imperador sabe que isso é uma formalidade, pois ele entra em Roma sem qualquer intenção de atacá-la. Durante séculos seus antecessores foram obrigados a prestar este juramento, no tempo em que ele era indispensável. Criou-se, assim, um hábito, e pela força do costume, com o passar do tempo, os imperadores já não podiam sequer pensar em violar esses privilégios. A tradição amarrava o braço forte do maior monarca da Terra!

Vamos supor que ele não jurasse. O cortejo voltaria e as portas de Roma se fechariam. E era preciso começar a guerra. Mas, se houvesse guerra, não haveria coroação. E, se não houvesse coroação, os seus vassalos não lhe prestariam obediência. Ele tinha, portanto, interesse fundamental em prestar o juramento.

O Imperador transpunha aquelas portas e provavelmente a cidade inteira o recebia cantando “viva o Imperador!” etc., até chegarem à ponte do Castelo de Sant’Angelo, antigo sepulcro do Imperador Adriano. Atrás daquela fortaleza, o Papa recebia o Imperador que, de joelhos, prestava outro juramento de fidelidade.

O Imperador é elevado à condição de subdiácono

Depois, o cortejo seguia para a Basílica de São Pedro e começava a cerimônia, que tinha por eixo o Santo Sacrifício da Missa. Nada é mais razoável, nada está mais de acordo com a Doutrina Católica do que isto. Por ocasião da posse, da investidura do Imperador, como em todas as grandes ocasiões da vida, uma Missa.

Daí o costume de, por exemplo, celebrar-se o Matrimônio durante uma Missa; Missa para Bodas de Prata, Bodas de Ouro, para solenidades, como uma formatura, e outras semelhantes. Algo desta tradição permanece até hoje: alguma coisa é grande, liga-se à Missa. Porque a Missa, sendo a renovação incruenta do Santo Sacrifício do Calvário, tem papel central, é o ato mais importante em todo o culto católico.

Então, a Missa é celebrada, mas não sem algumas cerimônias iniciais. Em certo momento dá-se um fato muito importante: O Imperador é elevado à condição de clérigo.

Quer dizer, tinha-se em tão alta consideração o clero que, para honrar o Imperador e lhe assegurar a invulnerabilidade, ele — o maior hierarca da sociedade temporal — era honrado ao receber um lugarzinho nos degraus da hierarquia eclesiástica, ocupando o posto de subdiácono. É uma pequena participação, mas honra o Imperador. Vestido de clérigo, ele entra na Basílica para, então, ser coroado Imperador. Vemos como o clero é colocado num píncaro que indica bem o caráter sacral dessa civilização.

Solenidade e grandeza

Um indivíduo “modernizado” poderia objetar: “Por que isso não se fez depressa? Por que não se ganhou tempo? Não se poderia fazer com que ele, ao mesmo tempo em que recebesse a condição de clérigo, fosse coroado ato contínuo? Dispensasse os cânticos, a entrada lenta em cortejo, a capela onde ele punha aquela roupa pomposíssima?”

A resposta é muito simples. Essas diversas fases da cerimônia devem se realizar em atos separados, lentamente e com solenidade.

A solenidade é um modo de fazer as coisas, por onde a grandeza delas aparece por inteiro. Por exemplo, uma Missa solene é um modo de cantar ou de rezá-la pelo qual a grandeza intrínseca dela transparece de modo sensível. A posse solene de um chefe de Estado, a coroação de um rei ou de um imperador é solene porque faz aparecer, aos olhos do povo, a grandeza da condição que aquele homem vai assumir naquele momento.

Poderia nascer outra pergunta: Para que revelar a grandeza intrínseca das coisas?

A resposta, ainda mais uma vez, é muito simples. Deus quis que sua glória fosse revelada aos homens de inúmeros modos sensíveis. “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos”, diz a Escritura(1). Portanto, o Criador quer que suas criaturas conheçam a grandeza d’Ele; e para que esta grandeza seja conhecida, é preciso que ela se manifeste.

A solenidade, por sua vez, tem que ser séria, compenetrada, vivida por almas ávidas de grandeza e contentes por ver a grandeza reluzir em quem é mais do que elas e vê-la reluzir, participativamente, nos menores.

Não há o que não tenha grandeza, em grau maior ou menor. Um lixeiro, um sapateiro: suas tarefas têm grandeza. E é preciso que essa grandeza reluza aos olhos dos homens. Então, daí a solenidade.

Por que a lentidão? Porque nada que se faça com grandeza pode ser executado depressa. A pressa é inimiga da grandeza.

Assim, é preciso que os vários atos de que consta a coroação sejam separados uns dos outros, e que se sinta, se manifeste a grandeza própria do fato de o Imperador tornar-se clérigo. O império cresce e a Igreja manifesta o seu esplendor. Por isso é mister haver uma cerimônia específica para esse ato.

União entre a Fé e o poder

É necessária outra cerimônia para o momento em que o Imperador se reveste das suas insígnias, quando se manifesta a beleza da ordem temporal e não mais a da ordem espiritual. Pulcritude menor em relação à beleza espiritual, mas uma grande beleza, pois Deus é Autor também da ordem temporal.

Depois, o hierarca temporal, em solene cortejo dentro da Basílica, vai até o trono do Papa. A grandeza das grandezas está lá: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; e as portas do Inferno não prevalecerão contra ela”(2). Magnífico!

Assim, o povo vai olhando e compreendendo cerimônia por cerimônia. O canto, o órgão espalham suas harmonias pela Basílica, as velas brilham, o incenso se faz sentir, os sinos tocam; é um mundo de harmonias dentro do qual o povo contempla a grandeza do Papado, a grandeza da Igreja, a grandeza do Império.

O Imperador avança e chega junto ao trono do Papa. Primeira coisa: ajoelha-se. Aquele César, cercado de tropas, se curva reverente!

O Papa lhe dá um anel, símbolo da Fé e do poder. Que linda conjugação: a Fé e o poder! Como fica bonito o poder a serviço da Fé! Como fica faltando alguma coisa a todo o bem-estar da Fé, quando o poder não está a serviço dela! Que coisa bruta e ameaçadora o poder nas mãos do homem que não tem Fé! A Fé e o poder se unem; começa a Missa…

O Rei da França canta a Epístola, o Rei da Alemanha canta o Evangelho. França e Alemanha junto ao altar de São Pedro, unidas pela participação comum dos respectivos chefes de Estado numa cerimônia incomparável!

Esta cerimônia, ápice de todas as cerimônias, é a Santa Missa. Se esse símbolo tivesse sido tomado a sério, e se os dois monarcas depois se amassem como deveriam se amar; se ao longo da História a França tivesse sabido ser sempre a irmã da Alemanha, e a Alemanha a irmã da França, como o curso da História teria sido diferente! E como a civilização humana estaria mais alta!

Magnífica afirmação da solidariedade, da complementaridade destas duas nações, que em determinado momento histórico representavam o verso e o reverso da medalha, o lado direito e o lado esquerdo da fisionomia humana.

Eloquente sinal de unidade

Mas algo de muito mais augusto estava para se passar ainda nessa cerimônia. Era a união entre a Igreja e o Estado, que é simbolizada deste modo estupendo: o Santo Padre fragmenta a Hóstia em duas partes iguais. Comunga uma, e dá a outra ao Imperador para comungar. Eu não conheço um sinal mais tocante de unidade do que este.

A cerimônia chegou ao auge; e tudo quanto chega ao auge, termina. É a tristeza das coisas desta vida. Os sinos da Cidade Eterna começam a tocar, o Papa retira-se antes, carregado na sua Sede Gestatória porque ele vale mais do que o Imperador, acompanhado pelo amor de todos os que ali se encontram, deixando no meio do povo os maiores potentados da Terra: o Rei da França e o Imperador do Sacro Império; fecha-se com Deus em seus aposentos e se entrega a seus trabalhos e a suas cogitações, para governar a Santa Igreja.

Os séquitos dos dois monarcas, por sua vez, saem da Basílica, separam-se e se dirigem pomposamente para as residências deles na cidade de Roma. Aos poucos o povo escoa. Na Basílica fica apenas uma ou outra luz acesa, uma ou outra pessoa rezando — alguma mãe de família, algum oficial, algum clérigo, alguma freira —, com a alma cheia daquilo que viu.

Aos poucos esses também saem, e se fecham as portas da Basílica. É noite sobre a cidade de Roma… Nos conventos de oração perpétua ainda se reza; nos outros, todos dormem. Sobre a urbe vela apenas o Anjo de Roma.

Mas nas almas de todos reluzem mil policromias, cantam mil polifonias, mil harmonias, sobretudo canta um grande ato de Fé! Está coroado o Imperador do Sacro Império Romano Alemão! v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 24/11/1984)
Revista Dr Plinio 210 (Setembro de 2015)

 

1) Sl 19, 1.

2) Mt 16, 18.

Senhorio, patriarcado e profetismo

Muitos afirmam que o quarto Mandamento se aplica tão somente aos filhos em relação aos pais. Entretanto, ele se refere também a toda autoridade legítima, a qual deve ter algo de paterno e precisa ser honrada; a tintura-mãe de todas as autoridades é o patriarcado.

 

Pediram-me que falasse sobre o senhorio do ponto de vista sobrenatural, e depois profético.

A ser dada uma definição filosófica do senhorio, provavelmente se diria o seguinte:

Senhorio e tendência para o mais elevado

Todo ser, para sustentar-se na própria existência, tende à consideração de um outro ser mais elevado, que é mais plenamente ele, e representa aquilo que ele deveria ser.

E na constatação de que encontrou um mais pleno, o indivíduo que está abaixo recebe uma espécie de corroboração de todo o seu ser e, melhor dizendo, de todas as suas profundidades. Ele, por assim dizer, floresce e frutifica com mais riqueza, mais abundância, etc., por causa desse contato. E, com isso, é levado naturalmente ao respeito e à obediência. Porque o menos que encontra a plenitude é levado ao respeito desta. Respeito se define como sendo a atitude, a disposição de alma daquele que é menos em relação àquele que é mais.

E aquilo que quem é mais possui não ficou amaldiçoadamente ingurgitado dentro de si, mas ele soube dar de acordo com a ordem que é interna nele, como ele de outrem recebeu. Aquilo que recebeu, ele entende que deve dar, que, na ordem do ser, ele deve fazer isto.

De maneira que, falando de um modo inteiramente teórico, isso chega até ao trabalho manual, onde o homem, que é senhor da natureza, acaba fazendo a esta o bem que recebeu de um que, na ordem das relações humanas, é superior a ele. E, no tapete da natureza, podemos deixar essas relações paradas; de fato, elas não morrem, mas, para nossa análise no momento, como que morrem.

O patriarca e a primogenitura

Consideremos o patriarca, que deve ser em tese o ponto de partida genealógico da tribo. Aí ele é patriarca no sentido pleno da palavra. E num sentido menos pleno, mas real, digno, autêntico, quando ele é primogênito de uma série de primogênitos.

Qual é a razão pela qual o patriarca deve ser a plenitude dos que dele descendem? Pelo fato de ele ser a origem genealógica. Além de outras superioridades, ele deu a transmissão da vida, a qual é uma ação que tem semelhança com a criação e, portanto, enquanto tal, é análoga, semelhante a Deus de um modo esplêndido.

Naturalmente, o patriarca tem por isso uma plenitude a um título especial. Mas, acho que há um carisma ou uma graça especial no patriarca, por onde ele fica com uma plenitude maior do que todos os outros, pelo fato de ser fundador daquela família. Há algo que parte dele e se distribui aos outros pelos desígnios da Providência, e que não é apenas na hereditariedade física, mas também nas relações das almas, por onde ele é a pessoa por excelência da raça que ele fundou. E na qual os outros se miram como na sua plenitude, ainda na ordem natural, mas de um matiz vivo muito especial.

Sente-se bem isso considerando a questão dos primogênitos.

O primogênito é o elemento mais nobre da família porque, com a primogenitura, entra uma participação mais nobre no patriarca, e há uma espécie de herança patriarcal que, de fato, é uma fonte de plenitude e de nobreza maiores por essa razão.

No episódio narrado no “Êxodo”, aquilo que o Egito tinha de mais nobre, inclusive os primogênitos dos escravos, foi dizimado. E para mostrar como existe algo de físico nisso, até os primogênitos dos animais foram exterminados. Quer dizer, há uma certa excelência na primogenitura até enquanto animal, que coexiste no homem com outras excelências. Isso torna o patriarca especialmente sagrado, do sagrado natural.

Toda autoridade deve ter algo de paterno

A autoridade do patriarca não encontra na autoridade do rei senão a plena expressão de si própria, como o Estado e a sociedade humana são expressões inteiras da tribo primitiva. Mas, todas as autoridades têm alguma coisa de paterno. A autoridade que não tenha algo de paterno não é verdadeira autoridade.

Neste sentido é que honrar pai e mãe significa honrar toda autoridade. Segundo o que corre por aí, honrar pai e mãe só se aplica aos pais, de maneira que quem tratar, por exemplo, o prefeito, o delegado ou o diretor do colégio como se trata um colega, não pecou contra o quarto Mandamento. Essa é a interpretação miserável, a versão simplista que se propaga.

Mas de tal maneira o princípio “princeps” está no patriarcado, que a tintura-mãe de todas as autoridades está no patriarcado. E toda autoridade é, por si, paterna.

O sobrenatural é um reflexo do esplendor de Deus

Podemos agora passar para o plano sobrenatural.

O sobrenatural é uma participação na vida divina, que nos foi obtida mediante a Redenção feita por Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta participação eleva o homem a um grau de vida que ele não tem, mais ou menos como se um animal tivesse participação na inteligência do homem.

Não é um grau de vida a mais, como a participação da condição angélica, mas é participação na vida de Deus, que tem uma perfeição maior do que qualquer outra; é a suma perfeição. Nosso Senhor disse: “Eu vim para que tenham a vida, e para que a tenham abundantemente”(1). Então, o sobrenatural confere ao homem um esplendor de vida, uma irradiação, uma força que o comum não tem, e que é um reflexo do esplendor de Deus.

Originariamente falando, o patriarcado teria dois sentidos: o patriarcado de Pedro, o qual, por razões óbvias, tem o poder das chaves e está na regulação de toda economia que diz respeito à salvação dos homens, através da Igreja. Depois o do bispo, do vigário, da Hierarquia Eclesiástica.

Assim como a ordem sobrenatural é lesada por qualquer violação da ordem natural, ela é propícia a toda observância da lei natural. E as obrigações naturais entre o patriarca católico e o membro de sua grei, também católico, passam, portanto, a ter um caráter sobrenatural porque são operações que a graça favorece; a má ordenação dessas operações pode determinar a cessação do estado de graça, e sua boa ordenação pode ocasionar o incremento da graça. E, portanto, isso se envolve completamente com a graça e tem algo de participativo na graça, como toda ação moral do homem é um elemento de sua moralidade. E isso transparece nas relações.

O patriarca católico de uma tribo católica

Então, tomando, por exemplo, um patriarca antigo que, em virtude dos meros princípios da revelação primitiva e da lei natural, é um patriarca, ele pode ser muito venerável, mas não é um patriarca naquela plenitude em que o é um patriarca católico de uma tribo católica. É completamente diferente.

Esse poder patriarcal como que deixa transluzir, aparecer, a graça em tudo, mais ou menos como muitas vezes se nota numa igreja a presença do Santíssimo. Assim também é essa graça nas relações patriarcais.

Depois, por transposição, tudo isso se diz de todas as outras autoridades. Daí a unção do rei — a qual é um sacramental ­­— ou de quem governa o Estado em outras formas de governo; este último não é ungido, mas poderia ser se ele fosse pelo menos vitalício. Aliás, certos sacramentais não são vitalícios. Daí o caráter patriarcal e nobre de todas as relações superior-súdito dentro da Cristandade.

O Fundador de uma família de almas

O que é Cristandade?

É uma sociedade na qual as relações sociais têm essa infusão do sobrenatural e reluzem com esse esplendor sobrenatural a um título especial. Aqui entra a questão da chave de prata, e tudo que consta do livro sobre a Cristandade(2). E a um outro título é patriarca quem funda uma família de almas. É até mais nobre do que ser patriarca, no sentido genealógico da palavra.

Eu acabo de fazer os maiores elogios do patriarcado, no sentido genealógico. Mas ser ocasião para que se forme uma família de almas e atrair essas almas para esta família, é muito superior. Basta ver as cartas dos jesuítas do tempo de Santo Inácio — São Francisco Xavier, por exemplo —, a seu Fundador, para se compreender bem o que representava e o que representa o patriarca de uma família espiritual.

A respeitabilidade suma de São Bento…

Qual é o papel do senhorio dentro disso? É o mesmo sobre o qual falei no começo; a irradiação dessa plenitude, desse vínculo patriarcal, leva ao respeito e à obediência. É por excelência o senhorio.

Profetismo

Profeta não é apenas, nem principalmente, aquele que prevê o futuro, mas quem abre uma via pela qual os povos devem seguir, porque ele recebe de Deus uma missão para isso. Neste sentido, ele prevê o futuro, quer dizer, intui, discerne, ainda que passo a passo, o que tem que ser feito no momento em que cada parcela do futuro vai se tornando presente; ele sabe qual é o passo que deve ser dado.

Profetismo, no que diz respeito à salvação, é um carisma sobrenatural. É, digamos, a plenitude do patriarcado espiritual quando o patriarca é profeta também. Porque nesse caso ele abre as vias, na ordem espiritual, muito mais do que o simples patriarca. E o profetismo tem, evidentemente, a tal título, um senhorio ainda maior do que a paternidade espiritual, quando ela não é acompanhada do profetismo.

No profeta, ainda que seja um homem não bom, mas se tem o carisma profético, nele, enquanto profeta, reluz algo especial de Deus. Portanto, daquela plenitude venerável, que é senhorial e ocasiona o senhorio.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/2/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)

 

 

1) Jo 10, 10.

2) Cristandade, a chave de prata. Obra cuja redação foi iniciada por Dr. Plinio em 1950. Ver Revista “Dr. Plinio” n. 18, p. 18-21; n. 32, p. 5; n. 45, p. 23-26; n. 46, p. 19-24.

Oração para pedir o sofrimento restaurador

Ó Mãe do Bom Conselho, tende compaixão de mim nos desacertos e nas perplexidades em que minha alma culpada se encontra. No meio de todas as minhas misérias, vossa graça me dá a convicção de que é melhor qualquer sofrimento a continuar como estou. E se, portanto, a condição para deixar este infeliz estado é me fazerdes sofrer, com os joelhos dobrados em terra e com as mãos postas, de toda a alma, ó minha Mãe, peço-Vos que me deis o sofrimento que seja necessário para eu ser inteiramente vosso e, ao mesmo tempo, a força para suportá-lo.

Nesse sentido suplico-Vos que, se for possível, eu me una inteiramente a Vós sem ser necessário esse sofrimento, e que afasteis de mim esse cálice. Mas se não for possível, a exemplo de vosso Divino Filho, digo: Faça-se em mim a vossa vontade e não a minha. A “vossa vontade”, Mãe de misericórdia, pois Vós sois o canal necessário, por desígnio de Deus, para subirmos a Ele e para que as graças venham até nós.

Mãe do Bom Conselho, mais uma vez eu Vos peço: tende piedade de mim!

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Si fieri potest…

Nossa Senhora das Dores, Vós sofrestes por mim. Que o mérito de vossas lágrimas afaste tanta dor que ameaça cair, a justo e a lindo título, sobre mim, porque não me sinto capaz de carregá-la. Sei que em algo a afastareis, mas compreendo que vossa oração pode encontrar a barreira que vosso Divino Filho encontrou, quando Ele disse: “Si fieri potest…” Então, se em algo não puder ser, dai-me forças! Tanto quanto possível, me refugio da merecida cólera de Deus junto aos vossos braços de Mãe. Contudo, se esses braços tiverem que me entregar, e eu sofrer esse holocausto por outros ou por mim, adoro essa cólera! Dai-me forças, e a suportarei.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/9/1981)
Revista Dr Plinio 186 (Setembro de 2013)