Sacrifício e Heroísmo: frutos da Civilização Cristã

Na província de Albacete (Espanha) está situada a fortaleza de Almanza, uma das mais características dessa terra de castelos. Ao comentar fotografias de tal baluarte, Dr. Plinio correlaciona o espírito dos homens que o construíram com as mentalidades contemporâneas.

 

Vou descrever como imagino a grandeza contida nesta fotografia. Em primeiro lugar é necessário fazer uma distinção entre dois campos visuais, admiravelmente harmônicos, entretanto perfeitamente distintos: o castelo propriamente dito, com a montanha que lhe serve de fundamento, e o conjunto de nuvens que emolduram extraordinariamente o castelo e completam sua beleza.

O castelo, conjugado às nuvens, faz centrar toda a atenção de quem o observa em sua torre. A torre, por sua vez, causa uma impressão de altaneria, dignidade e majestade extraordinária. Tem-se a impressão de que ela enfrenta, do alto do monte, o inimigo que vem ao longe. Enfrenta com galhardia, olhando como quem ameaça e diz: “Chega que eu te abato! Não te temo!”

Não é jactância da torre, pois a fotografia é tirada com tanta arte que se percebe atrás outras muralhas do castelo, que mostram como ele é profundo e quanta fortificação contém, quanta tropa possui e quantos outros elementos a torre apresenta para vencer. O atrevimento da torre, fidalgo atrevimento, tem a sua razão de ser: o castelo é poderoso e a torre nada teme!

Colocando-se na posição de um comandante do castelo, postado no alto da torre, vendo de longe o inimigo que avança, tem-se a impressão de que a torre personifica tudo quanto há de heroico na defesa da fortificação. Entretanto, esse comandante desafia dois adversários: um que vem de longe, caminhando na terra, em tropel de cavalaria —cavaleiros armados, espadas, lanças, olifantes —, ameaçando chegar, escalar a muralha que muito se assemelha com a torre. Mas há também outro adversário: são as nuvens do céu.

Estas nuvens se acumulam densas, majestosas, grossas, um tanto luminosas, de um lado e de outro, escuras, carregadas, expressando possibilidades de glória na parte luminosa, mas de certo ar de ameaça e de luta, expressa na parte sombria. Poder-se-ia dizer que essas nuvens simbolizam a tremenda batalha que deve dar-se.

Seria como que a voz da História dizendo ao comandante do castelo: “As ameaças da vida pairam sobre ti; chegou a tua hora de lutar! Sê herói ou serás esmagado!”

Voltando os olhos novamente para o castelo, é possível notar algo curioso: a impressão de o castelo estar dominando a rocha que está debaixo dele. É uma “garra” que domina a rocha. Tal domínio dá-se de tal forma que é possível notar, na muralha frontal, a rocha que “escalou” a muralha e subiu quase até em cima. O castelo está em luta com a rocha e diz com desdém: “Tu não me alcançaste.”

No tempo das guerras de arma branca, tempo este em que tais construções tiveram seu significado, havia um inconveniente em que essas rochas estivessem tão próximas da fortaleza, porque davam ao adversário a esperança de escalá-las e saltar a muralha. Entretanto, era tão trabalhoso e difícil que certamente os inimigos preferiam contemporizar por sentirem a impossibilidade de abater tão imponentes muralhas. Certamente, por detrás das pulcras e nobres ameias, havia um elemento de defesa com o qual o adversário deveria tomar consideração, dando-lhe muito receio de subir. É o fato de que provavelmente na parte alta do muro houvesse instalações para fazer fogo e com ele ferver água e derreter chumbo. De maneira que bastava o adversário iniciar a escalada das rochas, para sobre ele virem torrentes de água fervente que lhe entravam armadura adentro queimando todo o corpo.

Pior do que a água fervente era o chumbo derretido, pois produziam espantosas queimaduras. Secavam na armadura e nas junções desta, imobilizando o combatente, deixando-o com os braços e as pernas hirtos. Sem armadura, o guerreiro era um boneco à mercê de qualquer espada. Desta maneira, a pedra era até certo ponto uma cilada para o adversário. Se fosse ignorada a existência de recursos como este, estava liquidado. Era ao mesmo tempo a rocha da cilada e a rocha da vitória.

Nota-se uma luminosa abertura, que certamente foi feita quando cessaram as guerras contra os mouros, em Espanha, e os castelos perderam sua significação militar. Os castelos deixaram de ser fortalezas, passando a residências de senhores feudais, proprietários de extensos territórios, que lá levavam uma cômoda e despreocupada vida no interior de suas muralhas.

Iniciou-se então o período em que os castelos tornaram-se ornamentados de móveis preciosos, tecidos importados, quadros valiosos. O castelo destinava-se ao esplendor da vida, após ter sido dedicado ao heroísmo.

Algo que provavelmente não existia no tempo em que os castelos tinham o seu significado militar, é a vegetação que o circunda. Certamente, no tempo das batalhas, estes prados estavam arrasados. Eles não permitiam que crescesse vegetação, por ser um lugar onde o inimigo poderia se dissimular, nas cercanias do castelo. Era necessário haver uma planície para o inimigo não se ocultar das flechas que, do alto do castelo, lançassem contra ele.

Seus muros e suas paredes receberam os raios calcinantes do sol de Espanha, como também as gélidas chuvas dessa terra. Quando maltratada pelo tempo, a pedra adquire uma beleza fora do comum. Considerando a cor dessa pedra, dir-se-ia que é de âmbar ou de porcelana, e não pedra corrente.

Qual seria a adequada missão de um castelo desses?

Recordar à alma egoísta do homem contemporâneo algo que deve envergonhá-lo: a perda do senso de sacrifício. O homem hodierno perdeu o anseio da luta, não sabendo mais o que é ser herói. Para as civilizações acorcovadas dos dias atuais, o castelo é uma lição de moral proclamando a grandeza de alma dos espanhóis da Reconquista, que por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Nossa Senhora e à Santa Igreja Católica foram “povoando” a península ibérica de fortalezas, à medida que iam reconquistando a Espanha, a fim de que os mouros não pensassem em voltar jamais. Caso quisessem retornar, encontrariam essa rede de castelos opondo-se a eles. A realidade é que uma vez expulsos, nunca mais voltaram!

Heroísmo cristão! Heroísmo nascido no momento em que Nosso Senhor Jesus Cristo expirou na Cruz e redimiu o gênero humano. De seu costado transpassado por uma lança nasceu a Santa Igreja Católica que produziria depois frutos como este.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/51984)
Revista Dr Plinio 138 (Setembro de 2009)

 

O Juízo Final e a trama da História – II

Ao tecer comentários sobre o Juízo Final, Dr. Plinio põe diante de nossos olhos o momento grandioso no qual Jesus Cristo, Pontífice, Profeta e Rei, receberá das criaturas toda a glória que Lhe é devida.

 

Ao longo de todo o Juízo Final, Nosso Senhor Jesus Cristo estará oferecendo e recebendo glória enquanto Pontífice, cujo sacrifício foi aceito; como Rei, cujo governo foi bem sucedido, cuja guerra foi levada ao fim; enquanto Profeta, que previu tudo quanto foi realizado. De maneira que tudo quanto for narrado no Juízo será a glorificação do Pontífice, do Rei e do Profeta. A obra da Criação estará concluída e começará o grande domingo da História.

Pontífice da Humanidade

É Nosso Senhor, enquanto Pontífice, que no Juízo Final oferecerá ao Padre Eterno tudo quanto aconteceu na História; pois, no fundo, é o seu plano que foi executado. Ele tem o direito de oferecer os sofrimentos de toda a humanidade, porque nos tornamos capazes de sofrer por causa d’Ele. O padecimento de Nosso Senhor, de Nossa Senhora, a Corredentora, comprou-nos a capacidade de padecer.

Ofereço, então, meu sofrimento por meio d’Ele, porque é o Pontífice que oferece todas as coisas ao Pai Eterno. Se eu oferecer sem ser por meio d’Ele, minha oferta não será aceita.

Então há um contínuo evolar de tormento, de dor, de infelicidade da Terra, um contínuo gemido que caminha para o Céu e vai se transformando num brado de vitória e de glória. Mais ou menos como soldados que estão lutando numa trincheira, isolados, abandonados; é um sofrimento medonho! Mas tudo isso se torna glorioso quando se dá a vitória.

Assim, as provações tremendas, as incompreensões, tudo deve ser oferecido nessa perspectiva.

E vai se fazendo a trama da História.

Rei da História

A realeza de Nosso Senhor mostra-se já na distribuição dos méritos, os quais são o fluxo vital da História. Ele, como Pontífice, conquista e, ao distribuir, reina.

Analisando uma fotografia da Sagrada Face, no Santo Sudário, nota-se que há algo de extraordinariamente luminoso no alto da fronte, como se fosse um brilhante; algo que de fato Lhe dá majestade e poder de decisão.

Pois bem, é o diadema de Nosso Senhor, o único rei que reinou com a cabeça coroada de sangue, após serem tirados os espinhos. Esse sangue tornou-se o brilhante, o divino Koh-I-Noor(1) d’Ele.

Na consideração dessa luminosidade, percebe-se como do pontificado se passa para a realeza. Quer dizer, Ele tem a realeza “par droit de naissance”(2) e por direito de conquista. Nosso Senhor sofreu tudo que era preciso para resgatar o gênero humano, e tornou-Se dono daquilo que Ele resgatou. A humanidade era de Satanás e Ele a comprou por esse preço; portanto, Jesus possui também a realeza por direito de conquista.

Como Homem-Deus, Nosso Senhor é Rei de todas as coisas. Rei por ser da descendência de Davi, não só sobre o povo eleito, pois Salomão era chamado a uma realeza de hegemonia moral sobre toda a Terra, a mais gloriosa das realezas. E essa realeza Jesus Cristo deveria ter sobre o mundo inteiro, se não fossem os pecados dos homens. Se Nosso Senhor se encarnasse no Paraíso terrestre, Ele a teria.

Na Sagrada Face há uma decisão de Quem, na sua inteligência, vontade, sensibilidade, é o Rei de tudo e dirige a História. Aquela é Fisionomia de Rei. Nada se compara a Ele; o próprio Carlos Magno torna-se uma figura fátua. Nosso Senhor manda e os outros têm que obedecer, custe o que custar. No meu modo de interpretar, nota-se que Ele está morto, mas com tanta vida nessa morte!

Profetismo e História

Percebe-se que há n’Ele algo de profundamente pensativo, quer dizer, uma sapiencialidade, um desígnio que está feito “in radice” e vai se realizar nos seus pormenores, de acordo com um alto plano. E nisso Ele se afirma Profeta.

É o plano que, na sua sabedoria, Ele concebeu enquanto Redentor. Como Rei, Nosso Senhor manda aos anjos que intervenham, movimenta toda a Igreja. E executa aquilo que seu profetismo previu.

E todos os homens serão julgados, premiados ou castigados, em função da afirmação, da proclamação da glória de Nosso Senhor, como Pontífice, Rei e Profeta. A nossa glória consistirá em ter participado da glória d’Ele.

Colocados esses elementos na cena, o Juízo chega a ser uma espécie de imenso ofertório, caminhando para a Consagração. Tudo isso pode ser comparado com uma imensa Missa.

No momento em que termina o julgamento, há a glorificação suma de Cristo, porque cada coisa que Jesus fez é boa e o conjunto ainda é melhor.

Não se pode imaginar — seria de certo modo uma apresentação pictórica — o julgamento dos homens numa espécie de “monoclave”, do início ao fim. Não. Trata-se de um drama que vai crescendo e termina num auge.

Várias nações poderiam ser salvas, se sempre considerassem esse fundo de quadro.

Mensagem de Fátima e “Grand Retour”

À vista desse panorama, compreendem-se melhor os castigos previstos por Nossa Senhora em Fátima, porque eles são prefigura do fim do mundo. Não devemos imaginá-los sem o significado que continuamente apresentarão, ou seja, de Nosso Senhor que resgatou, governa e é Profeta; e que vai sendo desagravado no curso dos acontecimentos pelo castigo dos maus, pela virtude de que dão prova os bons, e depois pela glorificação de Jesus Cristo e dos bons, na entrada do Reino de Maria.

Assim é que se compreende o “Grand Retour”(3). Creio que sem a aptidão de considerar as coisas dessa maneira, não temos propriamente formação para o “Grand Retour”.

Isso suprime visualizações insuportavelmente mesquinhas a este respeito, como considerações puramente individuais.

Compreendemos, assim, o papel de nossa vida nesse conjunto de fatos. Cada um de nós não é o mero indivíduo, apto a realizar um destino apenas individual. Mas tem um papel a representar nesta outra dimensão da História; esse papel está à nossa espera e devemos crescer até ele.

Nossa vida individual pode ter aspecto bonito, mas que se conecta com o outro; do contrário ela não tem sentido.

Cada um de nós, na medida em que se eleva, entra nesse papel histórico, e os outros de algum modo percebem quando nos identificamos com nosso próprio papel.

O homem que, a meu ver, mais facilmente se percebe ter se identificado com seu próprio papel foi Carlos Magno. Não digo que ele foi quem melhor se identificou, mas quem mais facilmente se percebe.

Vislumbramos aqui o assunto arquetipização. Cada homem é único e, nesta ordem superior de coisas, pode vir a ser arquétipo de possíveis.

Exceção que confirma a regra

Tratarei agora a respeito de Nossa Senhora. Deus confirmou n’Ela todas as regras da ordem, bem como as exceções que confirmam as regras.

Deus constituiu propriamente a seguinte exceção: criou todo o universo, e o homem à sua imagem e semelhança, mas deixou sempre muito claro quanto Ele o transcendia. Entretanto, para mostrar até que ponto Ele é análogo, criou Nossa Senhora, ornou-A de tal maneira e tornou-A tão excelente, que, para O entendermos bem, de preferência devemos olhar para Ela.

Alguns, inclusive, afirmam que é “Cristocêntrico” voltar-se para Nossa Senhora, de tal maneira Jesus está mais presente n’Ela do que em todas as outras criaturas.

Pode‑se dizer que Nossa Senhora é, de certo modo, uma concentração de tudo quanto expusemos? Parece-me que sim, no seguinte sentido:

A glória de Nosso Senhor, como Pontífice, Rei e Profeta, é tão grande, que no Juízo Final Ele coroa sua Mãe — com esplendores que não se poderiam imaginar ser possíveis a uma mera criatura — como Corredentora, Co-reinante e de algum modo Co-profetiza.

Seria preciso depois aprofundar, à luz da Mariologia, essas três funções d’Ela em tudo que acabo de descrever. Pois tudo seria menos belo, menos esplêndido, menos glorioso, menos magnífico, se a como que imaginação de Deus não estivesse presente.

Imaginemos um general que vence uma guerra, e um rei não sabe como glorificá‑lo. O general diz então ao monarca:

“Se vós quiserdes me glorificar de fato, nomeai Condestável do exército a minha própria mãe, e dai‑me o bastão para eu pôr nas mãos dela. Nesta hora eu estarei glorificado, porque ela lutou comigo, fez isso e aquilo com toda a perfeição.”

No momento em que o general entregasse o bastão para sua mãe, haveria a máxima glorificação dele.

Assim também, o epílogo é a grande glorificação de Nossa Senhora, no dia do Juízo. Com isto de especial: até Nosso Senhor cantaria a glória d’Ela. Poderíamos imaginá-Lo — se se pode falar em cronologia —, ao encerrar-se tudo isso, cantando o Magnificat, sozinho, e depois acompanhado pela Criação inteira.

Como seria sua voz e resplendores, cantando o Magnificat, olhando para Ela? Não sei se haverá Eucaristia então, mas, se houver, Ele estará presente n’Ela. E outros mistérios a respeito de relações de Nosso Senhor Jesus Cristo — em sua divindade e humanidade — com Ela serão revelados. E constituirão gáudios maiores do que todos os outros, os quais ficarão, digamos, em nexo íntimo com a visão beatífica.

Tudo quanto eu disse a respeito de Nossa Senhora é uma insignificância.

Considerem o Sacro Volto [a Sagrada Face]. Cada dor que Nosso Senhor sofria repercutia n’Ela. E quando o Redentor levou em sua cabeça sagrada a pancada, que está expressa por aquela efusão de sangue no alto da fronte, Nossa Senhora sentiu-a na alma, com toda a intensidade do amor de Deus a Ela e do amor d’Ela ao seu Filho. E assim a fronte d’Ela cobriu-se de uma glória parecida com a de Nosso Senhor.

Por mistérios de Deus, de algum modo os homens veem melhor essa glória na fronte d’Ela do que na de Jesus, de tal maneira Ele quer glorificá-La. E para sabermos como n’Ele a glória é maior, devemos olhar para Nossa Senhora. Ela só pode ser bem vista n’Ele, e Ele, n’Ela.

Há aqui coisas inefáveis, porque a dupla relação da divindade com a humanidade em Jesus e, depois, d’Ele com Maria Santíssima, contém todo o “pulchrum, o verum, o bonum” do universo, a grandeza etc. É uma coisa tão extraordinária e maravilhosa, que é muito difícil termos ideia disso.

Toda essa História é de ouro, e o ponto final tem que ser preto, mas é um brilhante negro.

Porque amou a vulgaridade, Satanás não queria que nada disso fosse assim e, ao mesmo tempo, conhecendo de algum modo a grandeza de tudo isso, percebe o achatamento dele e de todos os que o seguiram. E um achatamento que é eterno, definitivo, e o castiga para todo o sempre. Mas o que mais o tortura é que essa grandeza venceu sua vulgaridade, e ele geme inteiro.

Ele está ligado à vulgaridade de maneira infame, torpe, enquanto nós devemos estar unidos à grandeza.

Há pessoas que têm inveja de nós, em razão de nossas qualidades. Se viesse agora o Reino de Maria e fôssemos postos no pináculo, esses que nos invejam por causa do que temos de terreno, mais sofreriam vendo o bem glorificado em nós.

Por exemplo, duas irmãs: uma ficou virgem e é glorificada; a outra se perdeu e foi lançada no inferno. Esta última sofre mais pela glorificação da virgindade, do que vendo a irmã que ela odiava, da qual tinha inveja.

Mais especialmente o inferno rangerá quando Nossa Senhora for coroada, porque ficará mais visível a vitória de Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/12/1982)
Revista Dr Plinio 150 (Setembro de 2010)

 

1) Célebre diamante que pertenceu a soberanos indianos, oferecido à Rainha Vitória

2) Por direito de nascimento.

3) Grand Retour (Grande Retorno): palavras usadas por Dr. Plinio para designar o surto de graças que prepararão as almas para o Reino de Maria.

A honra!

Dirigindo-se a um auditório composto por jovens, em sua maioria, Dr. Plinio, de forma lógica e atraente, explica a diferença entre os conceitos de honra e glória. Busca ele apresentar, a par dos princípios, exemplos concretos para, desta forma, além de iluminar a inteligência, mover também a vontade.

 

Há um pequeno episódio, célebre na História francesa — eu diria até, na História do mundo.

Napoleão estava derrotado, pois, em Waterloo(1), Wellington destroçara seus últimos exércitos. A França estava desgovernada, e perto da fronteira francesa se encontrava um irmão de Luís XVI, o Conde d’Artois.

Luiz XVI, o rei que fora decapitado pela Revolução Francesa, não deixara herdeiro direto(2). Tinha ele dois irmãos: o Conde de Provence e, outro mais moço, o Conde d’Artois. Se o Conde de Provence morresse sem filhos, o Conde d’Artois herdaria o trono(3).

O Conde d’Artois estava aguardando o momento de entrar em seu país. Mas, dado que a França acabava de sofrer uma derrota espetacular, e as forças nacionais tinham sido drenadas por Napoleão nesta última resistência contra o adversário, o Conde d’Artois não queria tomar o trono às custas de uma convulsão social e política que pudesse exaurir ainda mais seu país. Ele preferia usar um meio jeitoso, político, para que, sem derramamento de sangue, fosse atendido seu ancestral direito ao trono.

Havia na França uma “velha raposa”, um homem que foi o mais hábil de seu século em matéria de diplomacia: Talleyrand, bispo apóstata de Autun, pertencente a uma família quase principesca.

Entre as suas inúmeras habilidades, estava a de manusear incomparavelmente bem as mil finuras da língua francesa. Possuía também muito prestígio político.

Certo dia, alguém veio à sua presença e lhe disse: “O Conde d’Artois está na fronteira, mas declarou que não entrará no país sem um chamado de alguém com influência na França. Estou aqui para saber se o senhor mandaria um cartão, convidando-o a entrar na França.”

Talleyrand — muito indolente na hora do descanso, mas uma águia no momento da ação — tomou um papel e escreveu com uma letra negligente o seguinte bilhete, que ficou célebre: “Monseigneur, nós estamos fartos de glória; traga-nos de volta a honra.”

O homem levou o bilhete para o Conde d’Artois, o qual afirmou: “Isto é um apelo.” E entrou na França.

Honra e glória

Qual a diferença entre honra e glória?

Houve tempo em que o homem prezava acima de tudo o fato de ser honrado. A honra valia mais do que a fortuna, a inteligência, ou qualquer qualidade natural.

Mas, além da honra, existe a glória. Por que a França estava farta de glória e não tinha honra? O que vale a glória sem honra? E a honra sem a glória? Uma pessoa possuidora de ambas, o que mais deve prezar: sua honra ou sua glória? O que vêm a ser esses dois valores?

A análise disto nos remonta a uma cogitação mais profunda. A mente humana é formada de um modo singular. Não há quem não tenha ouvido falar de honra e de glória. Porém, creio que a imensa maioria das pessoas não sabe qual a diferença existente entre honra e glória. E não tenho vexame de dizer que eu, às vezes, tinha curiosidade de conhecer no que os dois conceitos se diferenciavam…

Com a minha perpétua falta de tempo, embora tivesse certa curiosidade de saber, nunca consultei isto num dicionário. Hoje, sabendo que deveria tratar da honra e da glória, procurei os dois conceitos. Mas são eles apresentados de tal modo, que apenas consegue verdadeiramente entender os significados de cada um desses conceitos quem já tenha pensado sobre o assunto. Quando não se refletiu anteriormente sobre algo, muitas vezes não se entende a explicação do dicionário.

Menção honrosa

Dizia o dicionário: “Honra é a consideração e homenagem à virtude, ao talento, à coragem, às boas ações ou qualidades morais de alguém”.

Façamos algumas aplicações para bem compreender o sentido da palavra “honra”. Por exemplo, no meu remoto tempo de aluno do Colégio São Luiz, a cada seis meses davam-se prêmios para os melhores alunos. Havia uma conferição de medalhas: a de ouro para o aluno que tivera um desempenho excelente; a de prata para quem conseguira nota muito boa.

Àquele que estava acima do comum, dava-se “menção honrosa”, quer dizer, seu nome era mencionado com honra, mas não recebia medalha. Tratava-se de um diploma escrito: “Menção honrosa em tal matéria.”

A honra, no caso concreto, era a avaliação de um talento ou de um esforço que o aluno fez para estudar.

Casamento honrado

Outro exemplo. Hoje estive na Igreja do Coração de Jesus(4), a qual estava toda enfeitada para um casamento. Imaginemos a cerimônia: entra o pai da noiva, levando-a pelo braço. Ele se sente honrado em levar a sua filha ao altar. E a noiva se sente honrada em ser conduzida pelo braço do pai. Qual a razão?

Quando a filha tem uma virtude real e seu pai é um homem que se mostrou respeitável, por uma capacidade ou uma qualidade especial, ela lhe dá o braço contente: “Aqui está meu pai.” E o pai também fica satisfeito: “Esta é minha filha, que vai virgem às núpcias”, e a entrega ao noivo no altar, com cabeça alta: “Íntegra ela sai das minhas mãos para as suas”.

Nisso há honra porque está presente um talento ou uma qualidade moral especial. O ideal é estarem juntas ambas as coisas. É muito apreciável que um homem ou uma senhora tenha um talento marcante e, ao mesmo tempo, uma capacidade, uma virtude especial.

Família honrada

Suponhamos que, no entardecer da vida dos progenitores, uma família está reunida. Casa confortável, filhos numerosos em torno de uma mesa, alegres. É um jantar opulento, comemorativo das bodas de prata ou de ouro, quer dizer, os pais casaram-se há 25 ou 50 anos; felicidade de todos.

Estão honrando os pais. Por quê?

O pai, digamos, era um homem pobre e que fez alguma fortuna à força de negócios honestos, tendo revelado capacidade e, ao mesmo tempo, caráter, e todo o mundo na cidade diz dele: “Homem honesto é o Sr. fulano de tal”.

A mãe, muito dedicada — qualidade moral —, hábil dona de casa, conseguiu arranjar a casa de modo primoroso, sendo o jantar muito bem servido.

Têm honra por ambas as razões juntas: qualidade moral e talento, cada um a seu modo. O homem como chefe de família, ela como esposa fiel, cada um tem seus talentos e qualidades. Isto dá realce à festa das bodas, e torna saborosos os alimentos distribuídos que, sem isto, não teriam graça.

O prêmio Nobel

Alfred Nobel, inventor da dinamite, deixou uma fortuna enorme para premiar todos os anos quem se assinalasse por seu talento, ou por sua virtude, em alguma coisa especial.

Uma comissão internacional indica os nomes daqueles que devem receber o prêmio — uma boa fortuna em dinheiro —, o qual é conferido na Suécia pelo rei, havendo depois um banquete com homenagens, no palácio real.

Vemos aqui aparecer uma noção que vai para além da honra: é o conceito de glória. No que a glória difere da honra?

Glória

É fácil compreender o que é glória quando se apanham os conceitos essenciais. Diz o dicionário: “Glória é a fama adquirida por ações extraordinárias, feitos heroicos, grandes serviços prestados à humanidade, às letras, às ciências, etc.”

Não se refere, portanto, apenas ao bom chefe de família ou à boa senhora que se distingue.

Um homem erudito merece honra, mas não glória, porque não empreendeu uma ação extraordinária. Ele demonstra uma capacidade distinta; porém, distinção não é celebridade. Célebre é o distinto visto através de uma forte lente de aumento. E o Prêmio Nobel existe para premiar apenas as celebridades.

Imaginemos um homem inteligentíssimo, mas que nunca produziu nada, porque, por exemplo, tem muito má saúde. Ou então porque precisa trabalhar para manter a família, o que lhe impede de fazer uma grande produção intelectual da qual seria capaz. Eu poderia perceber que é um gênio. Para mim ele mereceria glória e eu o trataria com muita distinção. Mas é desconhecido pelo público. Para ter glória é preciso ser conhecido. Para ser conhecido é necessário fazer alguma coisa.

A glorificação de um santo

Então, além de possuir qualidades eminentes, ele precisa ser conhecido. Dou um exemplo característico: São José, o qual teve uma existência inteiramente apagada, porque foi desígnio de Deus que vivesse na humildade.

Ele merecia todas as glorificações possíveis: fez ações extraordinárias, foi verdadeiramente o pai legal do Menino Jesus porque, embora Nossa Senhora fosse virgem antes, durante e depois do parto, São José tinha um direito, como esposo de Maria Santíssima, ao fruto das entranhas d’Ela. Porém, poucas pessoas souberam disso, enquanto ele estava vivo. Resultado: glória São José não teve.

Mas quando a Igreja começou a se expandir, e a reflexão sobre o Evangelho passou a ganhar corpo, os católicos se deram conta de quem foi ele. São José já possuía tudo para ser célebre, porém suas grandes ações não eram conhecidas. Quando o foram, ele se tornou célebre.

O que distingue a honra da glória?

A honra é o brilho distinto, digno de nota, da virtude ou do talento. A glória é o fulgor de um talento extraordinário ou de uma grande virtude.

Voltemos ao texto escrito por Talleyrand. Napoleão possuiu glória, pois revelou um talento militar extraordinário e alcançou vitórias de que todo o mundo fala até hoje.

Mas não teve honra, porque foi desprovido de virtude. Se houvesse feito em favor de um poder legítimo aquilo que realizou em favor de si mesmo, ele teria tido honra. Mas ele não exercia um poder legítimo, era um usurpador, e isso não traz honra.

Graus de honra

Se o respeito, o apreço que se deve à virtude, merece ser chamado honra, todo homem que pratica a virtude de modo suficiente, e vive habitualmente na graça de Deus, é honrado. E “homem honrado” está muito bem qualificado, porque ele merece essa honra de quem cumpriu a Lei de Deus, e uma coroa o espera no Céu.

Porém, há dois graus de honra: uma é esta honra comum que todo homem deve ter, porque cada um precisa viver conforme a Lei de Deus.

Existe, entretanto, uma honra mais distinta, maior, que faz com que o homem seja admirado pelos que estão na graça de Deus. Estes dizem: “Ele realiza o que nós fazemos, mas vai mais longe. Não chega a praticar ações célebres, mas é bem mais virtuoso do que a média”. Então, entre os honrados, esse é um homem que tem uma honorificência especial. Isso supõe um esforço especial, porque toda virtude é difícil. Não há virtude fácil. Nas nossas condições, ela não teria beleza se não fosse difícil.

Mas não é só isto. Há também qualidades naturais, as quais Deus concede para quem quer, e que podem merecer honra. Por exemplo, o talento musical.

Alguns músicos nasceram com tal dom que, desde pequenos, fizeram obras-primas. O exemplo mais célebre foi Mozart, o famoso músico do século XVIII que, aos sete anos de idade, realizava concertos em público! Era um gênio! Essa qualidade musical decorreu de um conjunto de circunstâncias naturais, atavismos etc., bem como, provavelmente, de algum desígnio da Providência.

Ainda que Mozart fosse um homem de uma virtude comum, ele mereceria honra pelo fato de ter talento. E recebeu glória porque levou, pelo esforço, esse talento a um grau eminente.

Se ele tivesse sido um inconsequente e, por isso, não se dedicasse ao estudo da música, poderia, na idade madura, se apresentar num teatro, ocasião em que se diria: “Aqui está Mozart, um homem que aos 10 anos de idade compunha música. Ele agora tem 30 anos e vai tocar para nós.” Ele, então, dedilharia no piano uma música sem graça… O fato de se saber que ele nasceu com talento, mas não fez nenhum esforço, foi um “bicho preguiça”, provocaria desprezo.

Glória sem honra

Pode acontecer que uma pessoa seja de tal maneira dotada, do ponto de vista natural, que, sem esforço, brilhe de modo insigne. Pergunta-se: ela merece glória?

Merece. E se ela for preguiçosa? Terá uma glória sem honra.

Poder-se-ia perguntar o que é bom para um país: ter grandes gênios com glória, mas sem honra, ou possuir muitas pessoas com talento mediano com honra, embora sem glória.

Respondo: o homem com grandes qualidades e sem virtude, na maior parte dos casos, é um malfeitor. Exemplo, Talleyrand, que era dotado de qualidades políticas únicas. Ele praticou algum bem, mas, de fato, a soma de males que fez na vida foi enorme, porque usou mal seu talento, conforme convinha a seus interesses.

Um homem que tenha um talento oratório ou jornalístico muito grande será um benefício para seu país se ele usar bem o dom que recebeu para servir a Causa de Deus, de Nossa Senhora, da Igreja. Se não fizer isso, escreverá artigos de jornal, livros, fará conferências, orientando as pessoas para o mal. Nessas condições, será um malfeitor. É melhor para um país ter muita gente honrada, embora não gloriosa, do que muitas pessoas gloriosas, mas sem honra.

Peçamos a Nossa Senhora a graça de nunca buscarmos a glória, pois, na maior parte dos casos, compromete-se a glória quando a pessoa a procura para si. É preciso procurar a honra, a qual muitas vezes custa o sacrifício de qualquer possibilidade de glória. O caminho da honra nos espera. Se Ela quiser, será também a via da glória.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/3/1986)
Revista Dr Plinio 150 (Setembro de 2010)

 

1) Localidade da Bélgica onde, em 1815, ocorreu a batalha na qual Wellington derrotou as tropas de Napoleão.

2) Deixou o Delfim, que seria Luís XVII, que em sua infância, em consequência da Revolução Francesa, teve destino até hoje ignorado. Talvez tenha sido assassinado, após a execução de seus pais.

3) Ambos se tornaram reis da França: o Conde de Provence, com o título de Luís XVIII, e o Conde d’Artois, de Carlos X.

4) Situada em São Paulo, no bairro dos Campos Elíseos.

Obediência e Contra-Revolução

A propósito de alguns pensamentos de Santo Inácio de Loyola relacionados com a obediência, Dr. Plinio tece substanciosos comentários a este tema que marca profundamente a diferença entre o revolucionário e o contrarrevolucionário.

 

Como todos sabem, Santo Inácio de Loyola concebeu a Ordem Religiosa que ele fundou, à maneira de um exército; por isso, deu-lhe o nome de Companhia de Jesus. Companhia naquele tempo queria dizer batalhão, regimento ou exército. Era, portanto, Exército de Jesus. E para que os sacerdotes da Companhia de Jesus tivessem toda a eficácia na sua luta contra os restos do Renascimento e a explosão protestante, ele quis que fossem marcados com todas as notas do espírito militar, entre as quais um eminente espírito de obediência.

A condição militar supõe a obediência, e um exército sem obediência é um exército aniquilado. De maneira que faz parte da honra militar a disciplina. Portanto, uma das notas de esplendor da condição militar, aos olhos de todo mundo, é a compenetração e a varonilidade com que o militar obedece.

Para o revolucionário a obediência é uma vergonha

Falo de compenetração e varonilidade e já temos aqui um dos pontos de atrito entre o espírito da Revolução e o da Contra-Revolução. De acordo com o espírito revolucionário, obedecer é uma vergonha, mandar também não é uma beleza. O bonito é não obedecer nem mandar, mas ser igual a todo mundo. Isto porque o revolucionário procede da ideia de que todo homem é inteiramente capaz de conhecer todas as verdades de que seu espírito precisa para se orientar; e de governar as suas paixões desordenadas, de maneira a praticar o bem e evitar o mal. Em consequência, todos os homens são perfeitamente iguais. Não há nenhuma razão para um homem dar conselho ou uma ordem a outro, nem sofrer a vigilância, a fiscalização de outro. Portanto, não há motivo para haver disciplina.

Então, o revolucionário interpreta a obediência como uma atitude de alma vergonhosa do indivíduo indolente e mole, que tem preguiça de escolher o seu próprio caminho, de encontrar as verdades necessárias para se orientar na vida. É, então, por moleza que um homem defere essa atribuição a outros e se deixa guiar.

Seria mais ou menos como um indivíduo que, por preguiça de abrir os olhos e olhar em torno de si, os fecha, dá a mão para um outro e diz: “Guie-me, porque ao menos assim eu vou babando pelo caminho.” Se um homem tem olhos e meios de caminhar, ele vai se conduzir por si.

Então, para o espírito revolucionário a obediência é uma vergonha.

Para o contrarrevolucionário é um ato de bom senso, de fidelidade e de força

O militar considera o contrário. Ele sabe que a unidade de ação só pode resultar de uma unidade de mando; e para que uma grande ação de conjunto se desenvolva é preciso uma grande capacidade. Ora, os homens não têm a mesma capacidade, e um exército bem constituído deve destilar os seus valores. De maneira que os de mais altas qualidades cheguem à cúpula e sejam capazes de encontrar e de indicar o caminho para aqueles que estão numa categoria intermediária; e estes por sua vez orientem os menos graduados. Dessa forma, no topo da hierarquia militar há aqueles que são mais competentes, ou se presume que o sejam, pelos estudos que fizeram. Nos países que realizam operações militares, existe uma hierarquia de competências, de idades, de experiência, que vai distribuindo os conhecimentos e a capacidade de impulso da cúpula, sucessivamente, aos vários graus da escala militar até a base. E com isso se forma a ordenação de um exército.

Conforme essa interpretação, a obediência é uma virtude. Ela é antes de tudo um grande ato de lucidez pelo qual uma pessoa reconhece que pode não ter tanta capacidade quanto uma outra; e algo que mais comprova ser cretino um indivíduo, se este imagina que ninguém possa ser mais capaz do que ele. Porque isto indica que ele não vê dois dedos diante do nariz; é incapaz de olhar para cima. Ora, a mais nobre das posições da cabeça do homem é olhar para cima.

É um ato de bom senso, de lucidez, reconhecer que outros, por serem mais inteligentes, terem mais competência ou mais experiência, são mais capazes do que nós para encontrar o caminho.

Fazer o que o outro quer é um ato de ascese. Porque somos sempre tendentes a conceder demais para nós mesmos, a arranjarmos pequenos confortos, pequenas regalias, pequenas exceções, pequenos prazos, pequenas traições por onde não cumprimos o nosso dever. E cumprir a vontade de um outro é muitas vezes dolorido, porque temos a impressão de que uma coisa é de um jeito, e o outro nos diz que é de um jeito diferente. Dolorido porque renunciamos a uma porção de vantagens pessoais para fazer o que o outro está mandando. Então, é preciso ter varonilidade, decisão, capacidade de enfrentar o sofrimento, a dor, de fazer o que deve ser feito; isto caracteriza o verdadeiro espírito militar.

Exatamente ao contrário do que pensa a Revolução, para a Contra-Revolução a obediência é um ato de bom senso, de fidelidade e de força. Portanto é uma honra.

Nosso Senhor Jesus Cristo, paradigma da virtude da obediência

Entre as Ordens Religiosas, aquela que, por sua analogia com o espírito militar, mais ensina a grande virtude da obediência é a Companhia de Jesus. Virtude essa cujo paradigma foi Nosso Senhor Jesus Cristo, a respeito do Qual diz a Escritura: “Ele se fez obediente até a morte, e morte de cruz”(1). É belo vermos como Ele não se deixou vergar por nenhum poder da Terra, falou com a cabeça erguida e com divina e vigorosa altaneria contra todos os grandes da sinagoga e os grandes que representavam o Império Romano em Israel. É pulcro contemplar Jesus falando Àquele que era verdadeiramente superior a Ele, o Padre Eterno, nas orações que fazia.

A meu ver — naturalmente é uma impressão pessoal —, os mais belos trechos do Evangelho são as orações de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando Ele se dirige ao Padre Eterno. Sendo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, perfeitissimamente igual ao Padre Eterno — inferior, é verdade, na sua natureza humana —, Ele se dirige a Deus Pai com um respeito, um afeto, uma submissão, uma naturalidade, uma união, que, segundo me parece, constituem as páginas mais sublimes do Evangelho. O que não é dizer pouco, porque no Evangelho tudo é sublimíssimo; o Evangelho é uma concatenação de sublimidades, umas depois das outras. Tais orações mostram Nosso Senhor Jesus Cristo obedecendo, no ato de prestar a reverência à autoridade devida.

Ninguém poderá jamais exprimir o que foi o modo pelo qual Nosso Senhor obedeceu a Nossa Senhora e a São José. Não se tem ideia do respeito, da exatidão, da prontidão com que Ele fazia esses atos de obediência. Tocamos aqui em mistérios divinos da Alma de Nosso Senhor Jesus Cristo, e percebemos a fímbria de uma obediência transcendente, glorificando e santificando todas as obediências que depois d’Ele se prestariam, ao longo dos séculos, a todas as autoridades legítimas das quais o Redentor era a mais alta expressão e ao mesmo tempo o fundamento.

Obedecer sempre, exceto se a ordem colidir com a Doutrina Católica

Na obediência há uma coisa particularmente dura. Em princípio, aquele que obedece pratica o ato de obediência porque reconhece em quem manda maior inteligência e capacidade; paradoxalmente, o resultado desse princípio é obedecer a quem tem menos inteligência e menos capacidade. Porque nesta Terra nem sempre a relação se faz de maneira que os mais inteligentes, os mais capazes, nem mesmo os melhores subam mais. Embora seja o normal, nem sempre isso ocorre.

Mas, em atenção ao princípio de que o homem não deve discutir os seus superiores, a não ser quando se trata de uma colisão contra a Doutrina Católica e a Lei de Deus — neste caso é preciso não obedecer, porque a Doutrina Católica e a Lei de Deus estão acima de tudo —, ele precisa submeter-se e obedecer, mesmo vendo que aquele que manda é menos, sabe menos. Porque se cada um começar a discutir o superior, tudo se desagrega. Ao menos atendendo ao superior, ainda que menos capaz, uma obra comum se realiza.

É uma espécie de requinte, uma sublimidade da obediência. E até lá, em inúmeros episódios, os jesuítas da época áurea manifestaram o seu espírito de obediência.

Maravilhoso fato ocorrido com Santa Teresa de Ávila

Compreende-se assim que membros de nosso Movimento, especialmente filhos da obediência — a expressão é de Santa Teresa de Jesus, que era filha da obediência —, gostem de um trecho de Santo Inácio de Loyola que passarei a comentar. São as normas que ele deixou para um jesuíta e que estão no testamento do Santo.

Desde que um jesuíta entra na Ordem, seu primeiro cuidado será abandonar-se plenamente ao governo de seu superior.

Quer dizer, não discutir, não analisar, seguir inteiramente o que o superior mandar. O superior é uma necessidade; pela ordem natural das coisas ele ali está representando Deus. A única coisa aonde a obediência não chega é aceitar a heterodoxia ou o mal.

Segundo: se um jesuíta caísse nas mãos de um superior que dominasse seu juízo, seria desejável que ele estivesse inteiramente disposto a isso.

Quer dizer, se um jesuíta estiver nas mãos de um superior menos competente, o qual lhe fizesse pensar uma determinada coisa, ele deve obedecer.

Conhecemos esse fato maravilhoso, na vida de Santa Teresa de Jesus: inverno rigoroso, nada se planta; sua superiora lhe diz: “Irmã Teresa, vá ao jardim e plante esses aspargos de cabeça para baixo.”

Era uma asnice, mas não um pecado. Tratava-se de uma ação de si indiferente. Ela vai ao jardim e planta os aspargos de modo errado, e no prazo adequado, apesar do inverno, os aspargos vicejam maravilhosamente. A bênção de Deus tinha caído sobre a obediência. E houve um milagre para provar quanto Deus gosta daqueles que sacrificam sua opinião ao modo de pensar dos superiores.

É o oposto do durão que tem quinze objeções e, depois de vencidas essas objeções, vem com mais três ou quatro ininteligíveis, as quais são o último recurso que ele emprega para recalcitrar de todo jeito. E quando obedece resmunga, e executa o serviço ordenado de modo malfeito.

Aqui é o contrário. Deve haver inteira placidez nas mãos do superior, que manda aquilo que o jesuíta deve fazer.

Terceiro ponto: em todas as coisas onde não há pecado, é preciso que eu siga o juízo do superior e não o meu.

É o mesmo princípio.

Três modos de obedecer

Quarto ponto: há três maneiras de obedecer. A primeira quando fazemos o que nos é mandado em virtude da obediência. E essa maneira é boa. A segunda, que é melhor, quando obedecemos a simples ordens. A terceira e a mais perfeita de todas, quando não esperamos a ordem do superior, mas a prevemos e adivinhamos a sua vontade.

Numa Ordem Religiosa, na era clássica, quando um superior, em nome da santa obediência, mandava um religioso fazer alguma coisa dizia-lhe: “Ajoelhe-se porque o senhor vai receber uma ordem em nome da santa obediência.” Parece que na Companhia de Jesus a fórmula, lindíssima, era esta: “Pela graça e pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo.” Isso significava que o inferior ia receber uma ordem em nome da santa obediência. Ajoelhava-se e o superior dava uma ordem. Se esta fosse negligenciada, cometia um pecado mortal. Portanto tinha que ser cumprida, custasse o que custasse. Esse tipo de ordem se fazia de modo relativamente raro, somente quando o inferior se encontrava em estado de revolta.

Mas há um outro modo mais corrente, conforme o qual o superior simplesmente afirma: “Padre Fulano, o senhor agora vai fazer tal coisa.” A violação de uma ordem assim não implica em pecado mortal, mas em pecado venial, às vezes em simples falta, mas era uma atitude contra a obediência.

Existe um terceiro modo de obediência, pelo qual o súdito adivinha o que o superior quer e vai fazer antes de ser mandado. Então, conforme Santo Inácio de Loyola, é bom obedecer acuado entre a espada e a parede; melhor é obedecer apenas com uma ordem que não é tão imperativa; mas o ideal é ter o espírito feito de tal maneira que, antes mesmo de o superior dizer o que quer, o religioso obedece.

Santa Teresinha obedecia a uma superiora cheia de caprichos

Para entendermos o pleno sentido de tudo isso, devemos imaginar a época de Santo Inácio, São Francisco Xavier, São Francisco de Borja, o qual foi Geral da Companhia de Jesus.

Suponhamos Santo Inácio, em seu convento, rezando, pensando, dando ordens, tudo em virtude de uma doutrina altíssima, sublimíssima, bem como de visões e revelações que ele recebia de Deus Nosso Senhor. É sabido que os “Exercícios Espirituais” lhe foram ditados por Nossa Senhora, na gruta de Manresa. Ele era um homem que difundia em torno de si o sobrenatural. O que devia fazer o bom súdito? Compreender o espírito, a mentalidade, a doutrina de Santo Inácio, de maneira que antes mesmo de este falar já entendia o que ele queria, e executava a vontade do Santo. O súdito se tornava, assim, um outro Santo Inácio. E o espírito de Santo Inácio se transmitia para ele, mais ou menos como o espírito de Elias passou para Eliseu.

Consideremos, por exemplo, Santa Teresinha tendo que prestar obediência a uma superiora que deixava muito a desejar, como era a sua.

São duas situações em que se obedece em condições completamente diferentes. Qual é a obediência mais bonita? A de um súdito de Santo Inácio que, olhando enlevado para o Santo e procurando haurir seu espírito, ser outro ele mesmo, procura adivinhar o que Santo Inácio quer? Ou a de uma Santa Teresinha do Menino Jesus diante da superiora, como Nosso Senhor Jesus Cristo no Pretório de Pilatos, e carregando de forma invisível, por cima do véu de religiosa, uma verdadeira coroa de espinhos?

Realmente não sabemos, mas vemos a beleza dos dois estilos, dos dois modos de obediência, e como em todas as circunstâncias a obediência é uma verdadeira maravilha.

Obedecer não apenas ao superior, mas aos que ocupam escalões intermediários

São maravilhas da obediência que o mundo revolucionário não conhece, e sobre as quais é construído o mundo contrarrevolucionário. Isto arrepia um revolucionário e ao mesmo tempo o acachapa, porque com sua independenciazinha, sua liberdadezinha, ele fica tão pequeno como uma pulga insignificante e suja. E nós, diante da grandeza dessas duas situações extremas, compreendemos bem o esplendor da Contra-Revolução.

Quinto ponto: deve obedecer indiferentemente a toda espécie de superiores, sem distinguir o primeiro do segundo, nem do último, mas considerar em todos igualmente a Nosso Senhor, de que eles ocupam o lugar, e lembrar-se de que a autoridade se comunica ao último por aqueles que estão acima dele.

O pensamento contido nesse princípio é o seguinte: no alto da pirâmide está Santo Inácio de Loyola; numa porção de escalões inferiores há menos santos e menos Inácios. É fatal. E no nível mais baixo estaria aquele que corresponderia ao sargento dentro de uma instituição militar. Mas é preciso obedecer, porque, diz ele, a autoridade que está acima se comunica pelos inferiores. Nada de querer obedecer somente àquele que está no mais alto, mas, pelo contrário, sempre fazer tudo de acordo com as demais autoridades que estão abaixo. O único modo de fazer a vontade dos superiores é obedecer aos que estão em baixo.

São Charbel Mackhluf e o caso da lamparina

Lembro-me de um fato que faz parte da obediência, no sentido de que o súdito não somente deve cumprir o que manda o superior, mas também receber sem protesto as punições por ele impostas, mesmo quando essas punições são injustas ou pitos insultantes que, em tese, o inferior não tem a obrigação de aceitar. É uma das formas de obediência: a paz e a serenidade diante da repreensão injusta.

Li a biografia, que é uma verdadeira maravilha, de São Charbel Mackhluf, monge oriental do rito maronita. Ele vivia em um convento situado num dos montes do Líbano, cujos religiosos se dedicavam à oração e a algum trabalho manual, como fazer cestinhas e objetos análogos, no silêncio mais completo.

Ele era um homem tão obediente que pedia licença para tudo. E nessa tebaida santíssima seu superior tinha raiva de São Charbel. Às vezes, este ia pedir uma ordem para o superior, que lhe dizia o seguinte: “Será possível que o senhor seja tão imbecil que não saiba resolver isso por si? E precisa vir me pedir uma ordem?”

Imaginemos São Charbel de capuz, alto, de barba grande, fisionomia tranquila e recolhida, e com a cabeça baixa. Depois de receber uma descompostura, ele olhava para o superior, à espera da ordem, porque o regulamento assim o exigia. O superior afinal dava uma ordem, e São Charbel saía para cumpri-la.

Era um homem indomável. Pois homens que sabem obedecer são indomáveis. No primeiro convento onde ele havia ingressado, nunca era permitido a entrada de mulher. Certo dia, por uma razão qualquer, entraram algumas mulheres lá. O fato se repetiu duas ou três vezes. Sem dar satisfação a ninguém, São Charbel mudou-se para outro convento. Era um direito natural que ele exercia: “Eu vim aqui para me santificar; a regra foi infringida e minha salvação eterna está comprometida com esse fato. Aqui está meu direito: saio deste convento e vou para outro.”

Indomável! Mas de outro lado, era o mais domável dos homens. Depois de passar anos debaixo das descomposturas desse superior, uma noite ele se lembrou de que lhe faltava uma parte do Breviário para rezar. Evidentemente não era meia-noite ainda.

Ele se dirigiu à capela para rezar e depois foi à sua cela para terminar as orações, levando um pouco de fogo. Chegando lá, viu que não tinha azeite na lamparina, mas apesar disso acendeu-a e continuou a rezar.

Era tarde da noite, todos já recolhidos, e o superior, vendo a luz acesa na cela de São Charbel, foi para lá rugindo de raiva. Porque pessoas assim são a favor de todas as liberdades, exceto da liberdade de alguém rezar mais ou fazer mais penitência. Bateu na porta e entrou.

— Que é isto? Luz acesa a esta hora, onde é que se viu?

O Santo quieto.

— Explique-me qual a razão, porque nesta hora todos já devem estar recolhidos.

— Padre, eu vos peço desculpas, mas o dia inteiro, pela ordem de Vossa Paternidade, eu estive trabalhando e só agora encontrei tempo para rezar o Breviário.

— Rezar o Breviário?! E como conseguiu azeite para a sua lamparina? De onde o retirou?

Respondeu São Charbel:

— Padre, a lamparina não tem azeite, está cheia de água.

O superior viu a mecha da lamparina ardendo na água e apenas disse o seguinte: “Reze por mim.” Saiu e fechou a porta.

Aquela era a chama da obediência, ardendo até na água. São os milagres da obediência.

Temos assim a explicação profunda a respeito desta obediência que nós, como contrarrevolucionários, devemos amar tanto.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 13/11/1971)
Revista Dr Plinio 162 (Setembro de 2012)

 

1) Fl 2,8.

 

São Roberto Belarmino – Santidade acima de tudo

São Roberto Belarmino, dotado de qualidades intelectuais extraordinárias, de tal modo causou grandes devastações à heresia protestante, que se poderia afirmar ser a luta contra o protestantismo o sentido fundamental de sua vida.

Chamado a Roma por Gregório XIII, passou a formar alunos de colégios ingleses e alemães, preparando-os para as lutas espirituais que teriam de travar contra a heresia ao regressar para seus países. Esta ação de São Roberto Belarmino, unida a de outros santos, teve uma repercussão fabulosa no futuro da Igreja.

Além de desempenhar singular papel na direção da Companhia de Jesus, São Roberto foi exímio diretor de consciências. Entre as almas por ele dirigidas está a de São Luiz Gonzaga.

Entretanto, de nada lhe teriam servido todos os seus dons e obras se ele não tivesse sido santo. O que seria deste varão se não correspondesse à graça?

Acima de tudo, o grande mérito de Roberto Belarmino é o da santidade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 12/5/1967)

Carinho purificador

Não raras vezes, quando nos aproximamos de uma imagem da Santíssima Virgem, temos a impressão de se abrir para nós uma janela no céu da misericórdia d’Ela, através da qual nos inundam os fulgores maternos da compaixão, da bondade, da disposição de perdoar mais uma vez, e outra, e outra.

Algo indefinido e sublime, de um carinho purificador de todas as nossas fraquezas, como se Nossa Senhora nos tocasse, não com seus dedos virginais, mas com seu olhar imaculado: Ela nos viu, nos fitou, e só de sentirmos os seus olhos pousando sobre nós, qualquer coisa muda em nossa alma, para melhor…

Porque foi santo…

A vida de São Roberto Belarmino é uma obra-prima de serenidade abacial, dentro do auge da luta. Cardeal ocupadíssimo, entretanto ele sabia de tal maneira administrar bem o uso de seu tempo, que encontrava momentos de calma e de lazer para pensar e escrever obras tão profundas, a ponto de ser proclamado Doutor da Igreja.

Portanto, horas e horas de serenidade, de meditação e de estudo, enquanto rugia a batalha contra o protestantismo.

Pensador, polemista, homem de ação, diretor espiritual exímio, ele foi uma fortaleza que combateu pela Santa Igreja Católica em todas as direções. Mas por que ele foi tudo isso? Porque foi santo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/5/1966 e 12/5/1967)

Gemendo e chorando neste vale de lágrimas…

A propósito de episódios ocorridos em sua infância, Dr. Plinio pondera como esta vida é um vale de lágrimas, onde os sofrimentos, dramas e problemas são inúmeros e muitas vezes procuram nos abater.

 

Na Salve Rainha, esta vida recebe o título de “vale de lágrimas”. Quando eu era jovem, ouvia na recitação da “Salve Regina” as palavras “in hac lacrimarum valle — neste vale de lágrimas”, e imaginava os vales que eu via frequentemente na serra existente no caminho de São Paulo a Santos, que naquele tempo se percorria de trem e não de automóvel.

São serranias altíssimas e, às vezes, se via no cimo de um morro brotar uma mina de água de dentro de uma pedra, a qual percorria a superfície da pedra vagarosamente, sem pressa, formando pela espuma como que uns babados de cortina. Tinha-se a impressão de uma cortina de prata com uns bordados de renda, que descia do alto do morro até embaixo.

Eu me lembrava do vale de lágrimas, e pensava: “Então essa vida é como a considera o autor da Salve Rainha(1)? Mas afinal de contas, se eu conseguir coisas desejáveis desta vida: ficar rico, ir à Europa para ver os monumentos do passado da Cristandade, a nobreza do presente, tomar contato com pessoas inteligentes e interessantes, que levam um tipo de existência toda especial, contemplar e oscular o caixão onde está sepultado Carlos Magno, ir à Place de la Concorde, em Paris, onde um amigo me mostrará qual o lugar exato onde estava a guilhotina em que Luís XVI e Maria Antonieta foram decapitados, rezar por eles, fazer um ato de execração contra o crime que então se cometeu, e de desagravo a Deus pelo horror desse crime, e depois continuar o passeio, isso não proporciona felicidade? É um vale de lágrimas ir a Paris, a Roma ou a Madri? Ou, pelo contrário, a afirmação que se faz na Salve Rainha, é equivocada?”

Quando fiquei um pouco mais velho, compreendi.

Tudo na Terra é efêmero e passageiro

Não é que a todo o momento esteja acontecendo uma coisa que nos arranque lágrimas; isso evidentemente não é verdade, graças a Deus. Mas quando ficamos um pouco mais velhos, começamos a pensar no passado e percebemos as ciladas pelas quais passamos já quando éramos meninos. Quantas ilusões, quantas desilusões, quantos “bluffs”, quantas esperanças rachadas!

Mais tarde conhecemos pessoas — será um colega, um parente, um vizinho — que nos parecem pessoas perfeitas, e pensamos: “Se ficar amigo deste, eu terei a minha alma completamente satisfeita.” Aproximamo-nos dele e começamos uma amizade. De repente vemos que tudo é ilusão.

Por quê? Como? Ele, de quem sou tão amigo, é de fato meu amigo? Ou, pelo contrário, quando vê qualquer coisa em mim um pouquinho superior a ele, fica ácido comigo? Se fosse meu amigo, se contentaria, se alegraria em ver-me superior a ele em algum ponto. Mas não: ele começa a querer mesquinhar o que estou fazendo ou dizendo, a caçoar, debicar e, sob pretexto de brincadeira, saem coisas amargas. Esse não é meu amigo, vou procurar outro; e constatamos que tudo é ilusão.

O tempo passa e nos lembramos da expressão francesa: “Tout passe, tout casse, tout lasse… et tout se remplace — Tudo passa, tudo se quebra, tudo enfastia… e tudo se substitui”. Quer dizer, tudo é efêmero. A previsão do futuro aliada à lembrança das desilusões do passado constitui um vale de lágrimas.

Uma desilusão nos tempos de infância

Lembro-me de um episódio de meu tempo de menino de colégio, e que me marcou profundamente. Eu vinha do Colégio São Luís, situado na Avenida Paulista, descendo a pé pela Avenida Angélica até minha casa nos Campos Elíseos, conversando com um colega de minha idade que me parecia um bom rapaz.

Por uma razão da qual não me recordo, nós tínhamos sido os primeiros a sair do colégio, de maneira que íamos na frente; depois outros grupos de alunos vinham descendo por aquela avenida. De repente ouço, bem atrás de nós, um menino que chamava por aquele que estava ao meu lado:

— Fulano! Fulano!

Olhei com o canto dos olhos para o que vinha ao meu lado, para ver o que ele fazia. Ele não respondia e fingia que não estava ouvindo. Mas o outro corria, enquanto nós dois não estávamos correndo, porque nunca gostei de andar muito depressa; eu caminhava devagar, e ele acertava o passo pelo meu.

Resultado: a voz do menino chamando pelo meu companheiro era cada vez mais insistente. Percebia-se que se tratava de um amigo que gostava muito dele e queria estar com ele para conversar. Poderíamos perfeitamente descer conversando os três, é uma coisa banal. Eu nem tinha notado aquele menino no Colégio São Luís, no meio daquela multidão de alunos, mas pouco me incomodava; e pensava: “Deixa entrar um outro na conversa, não tem importância nenhuma”.

O meu amigo, afinal, quando notou que a voz estava se tornando mais próxima, parou, voltou-se de costas e disse num tom amargurado:

— Hum! Mas que pressa e que mania de falar comigo, que coisa cacete! O que quer comigo esse tipo?

Pensei: “Mas ele retribui uma simpatia desta maneira? Amanhã vai chegar minha vez. Ele de repente fica saturado da minha companhia como se saturou daquele menino. Isso é um amigo?”

E o que se deu foi o contrário: antes dele se saturar da minha companhia, eu me saturei da dele e rompi as relações com ele como se arranca uma folha morta de uma árvore.

Quando se vai ficando moço compreende-se como as dificuldades, as incompreensões e as incompatibilidades pelas quais passam os adultos são ainda mais difíceis. Mesmo no seio de uma família feliz aparecem problemas que preocupam o esposo ou a esposa.

Tudo isso se dá porque a vida é um vale de lágrimas. Lágrimas ora pelo que está acontecendo, ora na previsão do que pode vir a suceder.

O tormento trazido por uma doença

Por exemplo, as doenças. Às vezes ouvimos falar de alguém que contraiu um horrível mal, que o faz sofrer muito. São verdadeiros fantasmas. Precisamos entender que de um momento para outro uma doença dessas nos agride.

Algo assim se passou comigo quando eu era pequeno. Acordei fraquíssimo pela manhã. Isso não acontecia comigo; como todo menino, eu acordava alegre, me levantava, ia dizer bom-dia a papai, mamãe, aprontava-me e começava a vida. Nesse dia eu não conseguia nem sentar-me na cama.

Sendo meu quarto contíguo ao dos meus pais, pus-me a chamar:

— Mamãe, mamãe — e ela veio.

Eu disse a ela:

— Estou me sentindo muito mal. Não sei o que eu tenho.

— O que você sente?

— Uma dor de garganta horrorosa.

Ela mandou-me abrir a boca, viu que eu estava com uma inflamação medonha na garganta e chamou o médico. Este era homeopata. Tratava-se de um homem alto, teso, saudável, rubicundo, vermelho, tendo num dos dedos um anel com uma esmeralda linda. A esmeralda era o distintivo dos médicos. Eu, que gosto muito de pedras, quando estava com ele nunca perdia oportunidade de olhar para a esmeralda.

Ele entrou no meu quarto, examinou-me e saiu com mamãe.

Eu não fiquei sabendo o que eu tinha, e estava piorando cada vez mais.

Logo depois, ela veio e me contou que o médico disse a ela o seguinte: “A senhora dê para o Plinio tais remédios de hora em hora. Pouco antes das três da tarde, esteja próxima a ele com uma toalha no colo, pois nesta hora ele deve expelir da garganta uma membrana infeccionada. Ele está com uma doença chamada crupe ou angina diftérica. Se ele expelir a membrana, está curado. Quando ele a expelir, feche a toalha porque a membrana está infeccionada; e mande queimar a toalha com a membrana e tudo o mais. Aí o Plinio está salvo. Se não for assim, terá que se fazer uma operação muito dolorida e perigosa”.

Quando chegou mais ou menos três horas, comecei a dar sinais de mal-estar, inquietação. Ela, que era muito previdente, tinha mandado abrir no quintal da casa uma espécie de tumulozinho para essa membrana. Os micróbios ficariam sepultados ali debaixo da terra.

Quando afinal de contas expeli a membrana, ela mandou uma criada ir correndo jogar nesse lugar a toalha com a membrana e pôr terra em cima, o que foi feito rapidamente. Depois ela foi falar pelo telefone com o médico, para contar que estava tudo em ordem.

Quando o médico atendeu desde o seu consultório, mamãe disse a ele:

— Dr. Murtinho…

— Não precisa me dizer o resto porque pela sua voz eu já vejo. A senhora está contente porque a membrana foi expelida.

— Muito obrigada, foi um alívio.

Pode-se imaginar o que ela sofreu durante essas horas. Sofreu muito mais do que eu —não tem comparação! —, na previsão do que podia acontecer. Essa previsão é um tormento, a vida é mesmo um vale de lágrimas.

Por isso, a única esperança verdadeira que o homem tem nesta vida é a de, no momento em que fechar os olhos com a consciência em paz, alcançar a felicidade eterna. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 24/9/1994)
Revista Dr Plinio 174 (Setembro de 2012)

 

1) A autoria da Salve Rainha é atribuída ao monge Germano Contracto que a teria escrito por volta de 1050, no mosteiro de Reichenan, na Alemanha.

 

Corpo humano e sistema feudal

Dr. Plinio não tinha uma mentalidade livresca, mas analisava detalhada e profundamente a realidade, para depois elevar-se à teoria. Comentando diversos aspectos de regiões da Espanha, ele tira luminosas conclusões a respeito da sociedade, a qual, assim como o corpo humano, deve ser organizada feudalmente.

 

Para considerarmos os diversos regionalismos espanhóis, tomemos como exemplo a Galícia. No meu modo de entender, existe uma forma de ser, uma espécie de alma galega, distinta da alma espanhola. Nessa espécie de espírito regional de um órgão da Espanha, chamada Galícia, existe uma mentalidade, uma peculiaridade própria feita para se desenvolver de um modo incompleto com vistas a se fundir num todo maior denominado Espanha.

Galícia, Catalunha, Guipúscoa

Qual o valor, o alcance ontológico da autonomia dessa região? É uma vida própria de um povo que deveria, normalmente, ter chegado a ser independente e autônomo, e sobre o qual a Espanha pesa como um manto de chumbo?

Ou, pelo contrário, a Espanha é um rio do qual a Galícia é um confluente? E esse confluente é feito para morrer no rio principal, fundir-se com ele? Então estes regionalismos não seriam feitos para ter todo o seu desenvolvimento, mas para possuírem uma vida meramente local, fundida numa vida geral?

Todo o problema das autonomias na Espanha tem sua raiz nesta questão. E quando isso não é devidamente considerado, nascem os mal-entendidos.

É possível que alguns desses regionalismos tivessem se desenvolvido quase a nível nacional, fazendo de certas regiões quase nações, e outras que realmente não tendiam a isso. Por exemplo, a Catalunha tem, mais do que a Galícia, ares de uma nação que não chegou a se realizar inteiramente.

Há, portanto, regiões da Espanha que dão a impressão de que talvez, no curso normal da História, deveriam ter tido um desenvolvimento para se tornarem quase completamente nações independentes, com cultura, vida, autonomia quase próprias. Quanto a outras regiões, entretanto, tem-se a impressão de que dariam para uma coisa menor, com formas ou graus de vitalidade diversos.

Por exemplo, Guipúscoa(1), uma região tão pequena, mas com autonomias próprias. Quem julgasse que isso não deve ser assim, faria o papel de alguém que achasse feio o miosótis. Esta é uma flor naturalmente pequena, o que é muito diferente de uma flor que por natureza deveria ser grande, mas nasceu doente. A saúde do miosótis consiste em ter aquele tamanho, com aquele azul forte por onde ele afirma sua presença na ordem do real, de um modo encantador.

Guipúscoa é um miosótis dentro do jardim que é a Espanha.

A alma de uma nação

Essas considerações nos colocam diante do seguinte problema:

Aquilo que nós chamamos a alma de uma nação, ligada à sua psicologia, constitui um todo. A língua e a cultura dessa nação são a expressão da existência real desse todo. Essa alma não existe no sentido pampsiquista ou panteísta da palavra, mas também não se trata de uma mera figura. Há algo próprio a todos os espanhóis no sentido físico, e até étnico da palavra, que constitui um traço comum, orgânico, formando uma psicologia comum.

Essa alma formaria uma cultura, uma civilização, e tem diante de Deus um quê de comum pelo qual ela é capaz de pecar ou praticar virtudes. E isso se deve ao fato, não de que há uma alma ontologicamente distinta das outras, mas é porque esse traço comum existente em toda a nação faz com que esta, às vezes, pratique solidariamente uma virtude ou um pecado. E haja então uma punição ou um prêmio para a nação nesta Terra, pois esse todo não vai ser premiado nem castigado na eternidade.

Temos, assim, a ideia de um certo modo de encaixe da vida. Seria muito útil, debaixo do ponto de vista didático, se pudéssemos mostrar que algo de análogo se dá entre as células e os órgãos, e entre estes e o organismo, porque convenceria muito mais as pessoas da realidade do quadro que acabo de traçar.

Creio que levaria até mesmo os cientistas a explicarem melhor as inter-relações existentes entre as células, órgãos e organismo, e chegaríamos a uma explicação melhor do feudalismo, e do que teve de errado o Estado unitário inaugurado pela monarquia absoluta no “Ancien Régime”(2).

Duas sinfonias

Existe um “principium vitæ”(3) próprio a cada célula. Este princípio corresponde a uma alma, não espiritual, mas biológica. Assim, um órgão seria uma “sinfonia” de milhões de princípios de vida menores, autônomos que, criados por Deus de um modo especial, fazem uma “sinfonia” correspondente ao tipo de vida próprio do órgão, que não é inteiramente o mesmo tipo de vida próprio ao organismo. Este, por sua vez, tem uma espécie de “principium vitæ” atuando em cada célula. De maneira que cada célula seria portadora de seu próprio princípio de vida e de algo do “principium vitæ” do organismo.

Aliás, a possibilidade de se fazerem transplantes de órgãos e de se conservar com vida um membro amputado, por algum tempo, fora do corpo, depõe a favor da existência desse outro “principium vitæ”, além da alma espiritual. Um princípio de uma qualidade tão inferior que o membro ou o órgão não resiste muito tempo fora do organismo, mas este princípio existe.

Isto serve para exemplificar como é o feudalismo e a sua necessidade, pois sendo a natureza tão bem constituída por Deus e havendo no corpo humano tantos elementos análogos à sociedade humana, é compreensível que esta peça para ser organizada feudalmente, por uma razão científica semelhante àquela pela qual o corpo humano constitui um sistema feudal.

Erraria quem visse o feudalismo apenas nobiliarquicamente. Sem dúvida, ele é um conjunto que possui a sua parte nobiliárquica como um componente muito importante, mas contém um mundo de outros corpos, mais ou menos autônomos, com vida própria. Por exemplo, as universidades.

A Igreja é a vida dos Estados

O grande organismo que permanece fora, acima e no fundo dessa estrutura, é a Igreja com sua influência. Ela é uma entidade tão soberana quanto o Estado, mas de uma soberania mais augusta, porque sobrenatural, enquanto a soberania do Estado vem de Deus, mas por ordem da natureza, e não da graça.

A Igreja vive dentro de todos os Estados ao mesmo tempo, e o Estado, enquanto tal, não vive dentro da Igreja, embora possa ser um Estado católico. Por exemplo, não posso dizer: a Espanha é membro da Santa Igreja Católica. Enquanto nação, não é. Os espanhóis, sim, são membros da Santa Igreja Católica.

Então, os Estados não vivem na Igreja, mas esta vive nos Estados e é a vida dos Estados. E a Igreja, que bem compreendida é inimiga da República Universal, é, entretanto, uma sociedade internacional sobrenatural imensa que realiza a mais radical e perfeita universalidade que se possa e se deva desejar. Daí o fato de toda a estrutura hierárquica da Igreja não estar sujeita às leis penais do Estado.

Contudo, isso é assim em certos pontos, em outros não. Por exemplo, numa igreja em torno da qual haja um jardim onde, de vez em quando, se faça uma festa beneficente e outros atos do gênero, o Estado tem o direito de exigir da Igreja que mantenha limpo, decoroso e belo esse jardim. Nesse pormenor, a Igreja não é independente. É uma das razões pelas quais o clero fazia parte dos Estados Gerais(4). É uma complexidade lindíssima, e que é preciso saber admirar. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1991)
Revista Dr Plinio 198 (Setembro de 2014)

 

1) Província do País Basco, localizada no Norte da Espanha.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do latim: princípio de vida.

4) Órgão político de caráter consultivo e deliberativo constituído por representantes do clero, da nobreza e do povo.

Nossa Senhora das dores e o amor à incomodidade

Apresentamos aos leitores um comentário de Dr. Plinio acerca de um trecho de D. Guéranger, abade beneditino de Solesmes, a propósito da festa das Sete Dores de Nossa Senhora. Assim se denominava então a comemoração do 15 de setembro, que hoje se chama “Nossa Senhora das Dores”.

D. Guéranger mostra como Deus envia sofrimentos àqueles a quem ama, e como entre todas as  almas, depois da de Jesus Cristo, a mais amada por Deus foi a de Maria Santíssima, sujeita aos mais indizíveis padecimentos. Referindo-se às Sete Dores de Nossa Senhora, explica D. Guéranger que a Igreja se deteve no número sete pelo fato de este exprimir sempre a ideia de totalidade e universalidade, ou seja, todas as dores.

 

Hoje é festa das Sete Dores de Nossa Senhora, colocada com muita propriedade logo depois da festa da Exaltação da Santa Cruz. Essa festa mariana foi estendida a toda a Igreja por Pio VIII, em agradecimento pela intercessão da Santíssima Virgem na libertação de Pio VII.

A principal prova do amor que Deus tem por nós são os sofrimentos que nos envia São tantos os pensamentos que nos vêm a propósito do texto de D. Guéranger, que seríamos tentados a desenvolver excessivamente estas palavras. Parece-me entretanto oportuno concentrarmo-nos somente em duas idéias.

A primeira delas é esta: que Deus, tendo amado com amor infinito ao seu Verbo Encarnado, a Nosso Senhor Jesus Cristo, e tendo amado com amor inferior a este, mas superior a todos os outros amores, a Nossa Senhora, deu-lhes tudo quanto há de bom. E por isso, deu-lhes também aquela imensidade de cruzes que, no caso de Nossa Senhora, é representada pelo número sete. Sete dores é também o símbolo de todas as dores. E Nossa Senhora poderia ser  chamada perfeitamente Nossa Senhora de Todas as Dores.

Por causa disso, se é verdade que todas as gerações a chamarão Bem-Aventurada, a um título menor, mas imensamente real, todas as gerações poderão também chamá-la “infeliz”.

Se isso é assim, nós deveríamos compreender melhor que quando a dor entra em nossa vida, estamos recebendo uma prova do amor que Deus tem por nós. E que enquanto a dor não penetrar em nossa existência, nós não temos todas as provas desse amor de Deus. E eu acrescentaria que não temos a principal prova do amor de Deus para conosco.

O que isto significa? Há membros de nossa família de almas para cujas fisionomias eu olho e, depois de analisá-las, sou levado a pensar: a este, falta-lhe ainda sofrer, falta no fundo uma nota de maturidade, uma nota de estabilidade, uma nota de racionalidade, uma elevação que só tem aquele que sofreu, e que sofreu muito. Quem leva uma vida sem sofrimentos, leva uma vida em que essas notas não transparecem na fisionomia. E o que é muito pior: não transparecem na alma.

Nós devemos nos convencer de que isso é assim, ou seja que sofrer é um dom de Deus. E que quando começam acontecer os contratempos — as dificuldades com o apostolado, os mal-entendidos  com os amigos ou com nossos superiores, a saúde que anda mal, os negócios que dão errado, as encrencas dentro de casa — não devemos tomar tudo isso como um bicho de sete cabeças. Nós não devemos, imitando a mentalidade holywoodiana, exclamar impacientes: “Como foi que uma coisa dessas pôde acontecer?”

Não, essa não deve ser nossa atitude! Quando não sofremos, aí então é que devemos nos perguntar perplexos: “Como é que está acontecendo isto: eu não estou sofrendo nada!?” Pois o normal é  sofrer. Aquele a quem Deus ama, aquele a quem Nossa Senhora ama, esse sofre! Deus não pode recusar a um filho a quem ama aquilo que Ele deu em abundância aos dois entes que mais amou, que são Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora.

Devemos pois nos imbuir bem da ideia de que o normal na vida é sofrer. Sem dúvida devemos pedir à Providência que nos livre das privações, das provações, das crises nervosas e de toda espécie  de coisas penosas, mas se estiver nos planos da Providência que sejamos submetidos à prova, devemos bendizer a Deus, bendizer a Nossa Senhora por estar sofrendo.

São Luís Grignion chega a dizer que quem não sofre deveria fazer peregrinações e orações pedindo o sofrimento, embora ele condicione tal pedido à aprovação de um diretor espiritual, porque se trata de uma súplica muito séria. Mas ele diz isso porque sabe que quem não sofre não vai indo tão bem na vida espiritual quanto poderia ir, e às vezes vai indo inteiramente mal.

Todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor são incômodos

Bossuet tem uma expressão estupenda a respeito de Nosso Senhor Menino: “Aquele Menino incômodo”, que se aplica a todos aqueles que querem seguir a Nosso Senhor: são incômodos eles também.. Às vezes, tenho a seguinte sensação experimental: começo a dar um conselho, a dar um exemplo, a pedir um sacrifício, e no semblante do interlocutor vai aparecendo algo que revela serem incômodas as minhas palavras para ele. Como seria mais fácil para mim contar uma piada, fazer uma brincadeira, acabar a conversa com um tapinha nas costas e dispensar o outro de uma  obrigação! Como o mando seria agradável se fosse isso!

Mas mandar é o contrário. Mandar é estar exigindo que o subordinado tome as coisas a sério, que as olhe pelo seu lado mais profundo, mais alto e mais sublime. Que veja de frente sua própria alma, que se examine a si mesmo detidamente, procure corrigir efetivamente e seriamente seus defeitos. Mas como isso é incômodo! Pois bem, o peso de sermos incômodos é um dos maiores pesos que existe e também este nós devemos carregar.

Nossa Senhora teve um filho que lhe trouxe tantos divinos incômodos. Quando meditamos sobre a dor d’Ela, sobre a seriedade e a sublimidade da existência d’Ela e de nossa própria existência, Nossa Senhora das Dores também se torna para nós maternal e estupendamente incômoda.

A resignação alegre diante dessa incomodidade, a coragem de sermos incômodos em todas as circunstâncias, o amar de preferência aos nossos amigos incômodos, que nos lembram oportuna ou importunamente o dever: essas são as virtudes que no dia das Sete Dores de Nossa Senhora devemos pedir a Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira