O SANTO ROSÁRIO: inapreciável tesouro de graças

Como uma doce melodia que, superando a agressiva cacofonia hodierna, chama todos a se voltarem com confiança para a Mãe de Deus, assim ressoou nos corações católicos a Carta Apostólica “O  Rosário da Virgem Maria”, na qual o Papa João Paulo II proclama o “Ano do Rosário”  e acrescenta-lhe os “Mistérios Luminosos”. Desejosos de fazer eco à voz do Sumo Pontífice, oferecemos a nossos  leitores alguns comentários de Dr. Plinio sobre essa devoção.

 

Sempre me foi motivo de sumo agrado tratar das excelências do santo Rosário, na medida em que para isso auxiliem minha adesão a essa insigne prática, além das recordações que conservo dos fatos históricos que a concernem. Nelas me apoio, portanto, para traçar aqui mais algumas considerações sobre essa devoção de inestimável valor para a piedade católica.

A revelação a São Domingos

Como se sabe, o Rosário foi revelado por Nossa Senhora a São Domingos de Gusmão, o grande fundador da Ordem Dominicana, numa época em que a Cristandade se via ameaçada pelo alastramento da heresia albigense por quase toda a Europa. Para detê-la, Deus suscitou aquele santo varão, que se empenhou de modo ardorosíssimo na conversão dos hereges, cujo foco de proselitismo se assentava na cidade de Albi, no sul da França.

Depois de muitos e baldados esforços, São Domingos se recolheu e passou três dias jejuando e rezando continuamente, a fim de obter do Céu o socorro de que tanto necessitava. Porém, como último resultado de preces tão fervorosas, não obteve senão o minguamento de suas forças. Ele, vigoroso, pugnaz e piedoso, acabou desfalecido.

E é tocante imaginá-lo nessa hora de esmorecimento, em que ele se volta a Nossa Senhora, e Lhe dirige uma derradeira súplica: “Minha Mãe, não tenho mais forças, mas em Vós eu confio. E continuo a rezar, a rezar e a rezar, enquanto meus lábios puderem articular alguma palavra. Vós sabereis o que fazer de minhas pobres orações”.

Depois de uma tão longa espera, diante de uma impetração tão meritória, o Céu afinal se manifestou. A Santíssima Virgem aparece e revela a São Domingos a devoção do Rosário, a suprema arma com a qual ele venceria a heresia. Mais ainda, entrega-lhe a prática piedosa que prolongaria por séculos a duração da Civilização Cristã, além e incutir alento a uma das maiores ordens religiosas da Igreja, em cujo seio floresceria São Tomás de Aquino e tantos outros heróis da Fé.

Torrentes de graças sobre a Igreja

E como se não bastassem esses benefícios, a recitação do Rosário se dilatou de tal maneira que, durante muito tempo, identificou-se com a piedade católica: uma e outra eram a mesma coisa. Fosse nos atos cotidianos da vida espiritual, fosse nas festas e celebrações de maior significado,  o Rosário — ou o terço — sempre esteve presente como expressão do fervor das almas devotas. São Domingos recebeu da Rainha do Céu este mesmo Rosário cuja forma hoje conhecemos: começando pelo Crucifixo, que devemos oscular pedindo à Mãe de Deus que seja nossa intermediária e apresente a seu Filho nossas orações; em seguida, um Padre-Nosso, três Ave-Maria, um Glória, e depois as cinco dezenas em que meditamos nos principais Mistérios da vida de Jesus e de Maria Santíssima — Gozosos, Dolorosos e Gloriosos.

É simplesmente incalculável a torrente de graças que se efundiu sobre a Igreja Católica com a prática de recitar assim o Rosário, de onde o número também imenso de papas e autoridades  eclesiásticas elogiando essa devoção. Louvores estes coroados pelas diversas aparições de Nossa Senhora, nas quais Ela se apresenta com o Rosário em suas mãos virginais, especialmente nas visões de Fátima, em Portugal, quando recomendou aos homens, com tocante insistência, a recitação diária do terço. Além disso, a Igreja enriqueceu o Rosário com muitos privilégios e indulgências, inclusive plenárias, de maneira a fazer dele um verdadeiro tesouros de bênçãos inapreciáveis.

A beleza material e simbólica do Rosário

Entretanto, a meu ver a beleza do Rosário não se restringe apenas a essas excelências de ordem espiritual que ele proporciona às almas. A sua maravilhosa eficácia impetratória, o quanto ele é  agradável a Deus e a Nossa Senhora, externam-se também na forma material do terço, cercada de imponderáveis que nos fazem sentir a pulcritude dessa devoção, e com algo de bonito e de  indizível que me parece superiormente adequado e insubstituível.

Recordo-me de quando eu era ainda aluno no Colégio São Luís, no início da década de 20, e percebi que começavam a difundir um tipo novo de terço, “mais discreto”, como pretendiam seus idealizadores. Tratava-se de um objeto parecido com certas máquinas calculadoras de então, com duas fileiras de contas superpostas, umas maiores em que se rezavam as Ave-Maria e Padre-Nosso, e outras menores que marcavam os Mistérios meditados.

Era um objeto pequeno, para tomar o mínimo de espaço no bolso e se fazer ver o menos possível pelos outros.  Tinha tudo a seu favor: prático, barato, portátil e “escondível” (o que representava uma grande vantagem para os católicos com respeito humano). Não vingou…Nada podia substituir o velho Rosário, o maravilhoso Rosário de sempre, nas suas mais variadas modalidades!

Rosários pequenos, rosários graciosos, elegantes, delicados, para crianças de trato. Rosários modestos, rosários de operários, de trabalhadores manuais, pesadões e rústicos como é tantas vezes o trabalho manual, mas rosários fortes, dedilhados por mãos fortes que vão por cima daquelas contas. Rosário sério, rosário varonil, de guerreiro. Rosários de princesas, de rainhas, lavorados como verdadeiras jóias, assim como os rosários preciosos que pendem das mãos das imagens de Nossa Senhora.

Quantas formas de Rosário! Algumas falam de graça, de charme, fazem-nos ver algo da suavidade e da bondade régias de Maria. Outras nos fazem vê-La como protetora das crianças; outras, enquanto auxiliadora do homem pobre e trabalhador como foi o principesco esposo d’Ela, São José, descendente de David e carpinteiro. Outras, ainda, nos falam da piedade do varão guerreiro, do  batalhador pelos ideais católicos, como foi o próprio São Domingos, enfrentando e vencendo com o Rosário a heresia albigense.

Aliás, esse atributo do Rosário como verdadeira arma do católico toda a vida me atraiu de maneira muito particular, razão pela qual sempre me pareceu que o terço ao lado de uma espada formava um conjunto de extrema beleza.

Estando uma vez em Buenos Aires, fui convidado à casa de um senhor que possuía uma das mais lindas coleções particulares de armas que tenho visto. Dispostas primorosamente em vitrines e  estantes, eram de todos os tipos, sobretudo diversas formas de espadas e gládios. Ao contemplá-las me ocorreu  este pensamento: “Se eu tivesse liberdade com este homem, recomendar-lhe-ia que  constituísse uma coleção de rosários tão rica quanto esta de espadas. E que a cada dia, no centro desta sala, sobre uma bonita mesa coberta de um forro prestigioso, ele renovasse a espada e o rosário em honra de uma imagem de Nossa Senhora que presidiria a coleção inteira”. Creio que o seu museu particular tomaria outra vida e outra riqueza, de tal modo o rosário e a espada se  conjugam bem.

Nunca nos separemos do Rosário

E não será mesmo demasiado insistir nesta verdade: o Rosário é, para o católico, uma magnífica arma de guerra, dessa guerra mais importante e superior que é a batalha espiritual presente na vida de todo homem. Essa guerra que travamos diariamente contra as tentações e as ciladas do demônio que procura perder nossas almas. Dessa guerra, portanto, em que lutamos para resistir às investidos do inimigo de nossa salvação, para expulsá-lo, para vencê-lo, e para deixar nossos corações dispostos a receberem as graças de Deus.

Como já tive ocasião de comentar, o demônio tem ódio e horror ao Rosário, pois se este o põe em fuga é porque vem a ser um elo poderosíssimo que liga o homem a Nossa Senhora. E, portanto, se alguém se sente tentado, lembre- se de pegar logo o seu terço, e de pegá-lo fisicamente. Melhor e mais recomendável: nunca, nunca, nunca nos separemos dele. De tal maneira que o tragamos conosco quando dormimos, quando descansamos; quando estivermos lendo ou fazendo toda e qualquer coisa, que o Rosário esteja sempre junto a nós. Mais ainda: durante o sono da noite, procuremos ter o Rosário nas mãos. E se recearmos que ele caia — e ele deve ser tratado com muita reverência — penduremo-lo ao pescoço ou no braço, ou arranjemos um outro modo de o conservar ligado ao nosso corpo. Jamais larguemos o Rosário. É mesmo um conselho que se diria supérfluo para os autênticos devotos de Nossa Senhora.

E quando nossas mãos não puderem mais nem se abrir nem se fechar, mas forem fechadas por outros para a nossa última atitude de oração, que o Rosário esteja enleado no meio de nossos dedos. De maneira que, chegado o momento da grandiosa ressurreição dos mortos, e dentro do caixão em que fomos sepultados o nosso corpo recobrar vida, entre nossos dedos revivificados esteja o santo Rosário. Assim, com este anseio e esta esperança, concluo: eu quisera que, no augusto momento em que todos os católicos forem chamados à ressurreição, e eu também ressurgir, o meu primeiro ósculo fosse dado ao Rosário que eu encontrasse cingido às minhas mãos…

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Majestade infinita

Ao celebrar a Solenidade de Cristo Rei, a liturgia deste ano oferece à meditação dos fiéis a passagem do Evangelho em que São Lucas descreve os padecimentos de Jesus pregado na Cruz entre dois ladrões, sendo alvo do escárnio, blasfêmias e maus tratos por parte dos circunstantes.

Pode haver conjuntura mais adversa do que esta, de completa desolação, para proclamar a realeza de alguém? Entretanto, ao insinuar esse aparente paradoxo, o texto sagrado nos introduz num profundo e adorável mistério.

Precisamente por ser Homem-Deus, Jesus é o Rei da História, e todos os acontecimentos se passam segundo sua santíssima e onipotente vontade.

Assim, ao sorver até a última gota a taça de todas as dores e humilhações possíveis, o Redentor sabia que cada um desses tormentos seria objeto da adoração de multidões ao longo dos séculos; e viria um dia em que os maiores monarcas da Terra disputariam a honra de ter incrustado no respectivo cetro um minúsculo fragmento da cana de irrisão usada na Paixão para ridicularizar a divina realeza; e a coroa de espinhos seria de tal maneira venerada, que um dos maiores reis da Cristandade, São Luís IX, haveria de mandar construir a Sainte-Chapelle de Paris para acolher essa inapreciável relíquia.

Por isso, do fundo de sua dor e abandono, possuía Jesus a majestade da certeza da vitória que haveria de vir.

Misteriosa majestade que Dr. Plinio admirou desde tenra infância, ao contemplá-la numa imagem do Sagrado Coração de Jesus, conforme sua própria descrição:
“Jesus me parecia tão majestoso e, ao mesmo tempo, tão bom; tão infinitamente superior a mim, e tão misericordioso, que eu dizia: ‘Mas, isso é majestade! Como eu gosto dessa majestade!’

“Quando me deparei na ladainha do Coração de Jesus com a invocação “Cor Jesu, majestatis infinitae, miserere nobis”, eu a adotei e a inscrevi entre as minhas invocações prediletas, desde logo, porque é uma coisa magnífica!

“Esse equilíbrio entre a majestade e a bondade me encantava, dando-me a ideia de que o mais alto e pleno padrão da majestade era Jesus Cristo. E sendo Ele “Rex regum et Dominus dominantium” — Rei dos reis e Senhor de todos os que dominam — era natural que se concebesse n’Ele uma majestade dessa elevação.”

Esta majestade infinita, sem dúvida, transluziu no alto da Cruz, aos olhos do Bom Ladrão que disse: “Senhor, lembra-Te de mim, quando entrares no teu Reino”. Ato de amor e de fé que mereceu, comenta Dr. Plinio, “esta promessa de Quem é, de fato, o Rei do Céu e da Terra: ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’. Que realeza!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Revista Dr Plinio 188 – Novembro de 2013)

Variedades do modo de ser de Nosso Senhor

Em menino, Dr. Plinio analisava atentamente uma imagem de Nosso Senhor que havia no quarto de Dona Lucilia, bem como as existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Contemplando-as ele foi discernindo a mentalidade do Divino Salvador, discernimento que depois seria confirmado ao conhecer os episódios narrados nos Evangelhos.

 

Percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham o convívio com Nosso Senhor — exceto naturalmente Nossa Senhora — não O haviam entendido bem. Parece que com o curso do tempo, depois de equívocos primeiros, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito d’Ele, mas vê-se que eles não tinham formado uma ideia inteira a respeito de Jesus, exatamente como era a Pessoa d’Ele. E isso era de uma importância transcendental para eles amarem a Nosso Senhor como deviam ter amado.

Amar e compreender

Quer dizer, se eles tivessem amado como deviam, teriam compreendido como podiam; se tivessem compreendido como podiam, teriam amado como deviam.

Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor assim. O resultado é que custou para reconhecerem a Nosso Senhor como Deus.

Consideremos que n’Ele há duas naturezas — a humana e a divina —, unidas na Pessoa do Verbo. Portanto, não existem duas pessoas, mas uma única Pessoa divina. Há, pois, n’Ele uma verdadeira alma e um verdadeiro corpo ligados entre si como em todos os seres humanos, mas essa alma e esse corpo estão unidos hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Por isso, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus Quem falava. Cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus Quem olhava. Cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era o reflexo mais perfeito que se possa imaginar da natureza divina na humana.

Portanto, manifestava uma santidade, uma perfeição, uma superioridade, da qual nós não podemos ter uma ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus. Se fizéssemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, então teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

Fisionomia e ação de presença de Nosso Senhor

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… Que espelho da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco disso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver o equívoco de O amarmos como Ele não foi, com todo o perigo que isso traz consigo.

Esse é um trabalho muito delicado que, se não fosse a ajuda da graça, não se faria na alma de nenhum homem. Porque, primeiro, é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Em segundo lugar, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo do outro mundo para recompor.

Por exemplo, no que diz respeito à fisionomia de Nosso Senhor, um dia em que sentimos certo tipo de consolação sensível ao estar perto do Santíssimo Sacramento, isso produz um determinado efeito que nos deve levar a pensar sobre como era a fisionomia de Quem está causando sobre nós esse efeito. E como era, portanto, o divino rosto d’Ele e — coisa altamente própria ao Santíssimo Sacramento — sua ação de presença.

Então, devemos procurar analisar e entender o que Ele está comunicando. E, tomando os episódios do Evangelho, imaginando-O exercendo sobre nós — se presenciássemos um deles — um efeito daqueles relacionados com o fato, compreenderíamos um tanto o que foi o trato com Nosso Senhor.

Relacionando a fisionomia d’Ele com episódios de sua vida

Tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma certa primeira noção d’Ele, que vai se formando e aprimorando dentro de nós. Por exemplo, posso me lembrar de como isso foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, eu tomei como ponto de partida que a fisionomia apresentada habitualmente pelas imagens de Nosso Senhor era fiel, e que aquele era o semblante que Ele tivera em sua vida terrena.

Sempre dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava por longo tempo a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus, presente no oratório do quarto de mamãe.

Longamente, atentamente, meditadamente — quanto possa caber numa criança — eu a analisava. E ela condizia com a imagem que há num altar lateral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, também com a existente no teto dessa igreja, e formava assim uma resultante, uma espécie de figura central, que era o essencial dessas várias imagens, e como eu imaginava mais ou menos a Ele.

Então vinham os episódios da vida de Nosso Senhor, e eu procurava me perguntar se aqueles fatos estavam de acordo com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas que os episódios tomavam um realce extraordinário, imaginando-os praticados por aquele Varão, com aquele rosto e aquela atitude. Aquela fisionomia explicava o episódio, e o episódio explicava a fisionomia. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Harmonia extraordinária entre as virtudes opostas

Depois, eu procurava também ver o reflexo disso na Igreja. Dado que Nosso Senhor tinha tal fisionomia e, portanto, devia ter tal personalidade, se Ele precisasse fazer uma obra como a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E chegava à conclusão que sim, que era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde, então, uma confirmação da Fé originária que, pela bondade de Nossa Senhora, recebi no Batismo.

Como O imagino?

Antes de tudo, contemplar a Humanidade santíssima de Nosso Senhor causa-me a impressão de cogitações enormemente superiores a tudo que se possa imaginar. Pensamentos de uma elevação, de uma altura, sem proporção com nada. Entretanto, sem podermos chegar nem de longe até onde Ele atingia, alguma luz desses pensamentos brilhavam em Jesus, e como que se via sua Alma inundada dessas luzes das quais Ele estava cheio.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas nota pelo lado de fora que as luzes estão acesas dentro. Ele vê, portanto, a coloração dos vitrais iluminados; aproxima-se e ouve a música; avizinha-se ainda mais, o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde não entrou. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza.

Assim se passava comigo em relação a Nosso Senhor. Percebia qualquer coisa de uma elevação prodigiosa, mas desde o primeiro momento, desde o ponto mais profundo onde eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão harmoniosa, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

De maneira que, por exemplo, uma força incomparável, mas de uma bondade incomparável também. Uma severidade inquebrantável, mas ao mesmo tempo um perdão de uma doçura sem fim. Um poder incomparável de tranquilizar, mas, de outro lado, também de mover para a luta e para a batalha. Uma superioridade divina, porém ao mesmo tempo uma possibilidade de descer, já não digo à última pessoa, mas a um cachorrinho, e fazer-lhe um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele se alegraria com isso.

Seu sono e seus silêncios

Isso tudo indica a superioridade maravilhosa d’Ele, mas também sua imensidade, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau tão alto, possam caber em Jesus com tanta harmonia, na qual estaria exatamente o que melhor o meu olhar pudesse pegar na sua natureza humana, como transparência da Divindade, da graça n’Ele.

E por isso, muita gravidade, uma seriedade enorme! Impossível é não só vê-Lo dizer algo que não seja muito elevado, mas falar algo atrás do qual não haja uma elevação infinita, uma coisa infinitamente perfeita.

Realmente, se tomarmos no Evangelho tudo quanto Nosso Senhor disse, já nas primeiras palavras adquire um tamanho que não se sabe o que pensar!

E mesmo quando Ele dormia, seu sono era um arqui-sono, de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, um poder de manifestação, uma santidade tal que se uma pessoa, que entendesse Quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Os silêncios d’Ele! Há silêncios que cantam, outros feitos para a poesia, outros ainda para a prosa, para dizer, com afabilidade e intimidade, determinadas coisas que só o silêncio fala.

Por exemplo, o Santo Sudário tem um silêncio eminentemente eloquente. Jesus está ali morto e nada n’Ele pressagia uma palavra. Entretanto, o que Ele diz sem falar é uma enormidade!

Nosso Senhor, independentemente de falar, tinha uma imensidade de coisas dessas que explica porque os discípulos ficavam tão intrigados sobre Quem era Ele.

Construir uma catedral para abrigar uma varinha utilizada por Ele

Suponhamos que nesse silêncio Ele faça as coisas mais simples: colhe uma florzinha e a contempla, ou com uma varinha que tenha na mão risca um pouco o chão. Tem-se vontade de dizer:

— Não mexam nesse riscado, porque Ele riscou!

Alguém retrucará:

— Isso não quer dizer nada!

— Não mexam! As mãos de Nosso Senhor tocaram aqui e ficou alguma coisa que é sacrossanta, na qual não se deve mexer. Se você não entende vá embora, mas isto não sai daqui, ficará para sempre! Voltarei aqui todos os dias e me ajoelharei diante disto, e só não vou oscular o chão para não estragar o desenho que Ele fez.

Para abrigar aquela varinha mandaríamos construir uma catedral! Entretanto essas coisas são apenas símbolos de uma realidade muito superior: o chão riscado por Ele representa a alma de cada um de nós, e a varinha, nosso livre-arbítrio que Ele tentou inclinar de um lado para o outro.

Tenho a impressão de que a tintura-mãe do pensamento de Nosso Senhor era uma síntese harmônica, mas também frequentemente contrastante, entre o que Ele é, o que estava fazendo e aqueles para quem Ele estava agindo. Quer dizer, Jesus conhecia a imensidade de dons prodigalizados por Ele, via a indiferença com que esses dons eram recebidos, por vulgaridade de espírito, falta de senso metafísico, de senso sobrenatural, em uma palavra, falta de amor das pessoas beneficiadas. Contudo, Ele não se afastava daquelas almas, continuava a perceber o que tinham de bom e procurava ainda elevá-las, mas pensava a fundo sobre essa ingratidão e Se entristecia.

Ele, olhando para cada um de nós, conhece inteiramente como somos. Com o olhar Ele saberia tratar a cada indivíduo, de tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentiria vista até o fundo da alma nos lados ruins, ou nos lados bons. Naqueles, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado; nestes, com uma atração tal que a pessoa teria vontade de multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de saída!

Mas, por uma bondosa condescendência para com os homens, Nosso Senhor não olharia inteiramente de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida d’Ele são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este ou aquele fato, quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Jesus chora pela morte de Lázaro e depois o ressuscita

Sempre me impressionou a cena diante do sepulcro de Lázaro. Primeiro, a bondade com a qual Jesus chora junto ao sepulcro, porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!”, com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura! E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Maria Madalena: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.(1) É, portanto, uma censura. Parecia estar insinuando que, pela relação de amizade existente entre os dois, Ele tinha obrigação de ter salvado Lázaro da morte. E, naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Maria Madalena ligeiramente tisnado de culpa.

E como Jesus se portou nessa ocasião em que Ele não lhe deu nenhuma justificação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura, chorando. Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Ela disse que Ele poderia tê-lo salvo! Ele chora a morte que poderia ter evitado? Que pranto é este?!

Nosso Senhor deu algo melhor do que salvá-lo da morte: foi tirá-lo da morte! Ele fez Lázaro ressuscitar! Não há o que dizer…

Podemos imaginá-Lo vendo Maria Madalena, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Tu deverias ter compreendido que Eu não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.”

Depois, sabendo que a partir daquele milagre os fariseus tomariam a deliberação de matá-Lo, passar perto deles e fitá-los… Que olhar!

Pensemos na sucessão de atitudes de Jesus, por exemplo, indo a Betânia descansar. Pode-se imaginar alguém mais adorável do que Ele, repousando no convívio afável com Marta, Maria, Lázaro e os Apóstolos? Ou com Nossa Senhora, certamente na vida cotidiana, ou na residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade, etc.?

Como Nosso Senhor Se sentiria consolado de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude! É uma coisa maravilhosa!

Tudo isso junto, as várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, me deixam especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/9/1984 e 11/7/1991)

 

1) Jo 11, 32.

 

Como jóia no seu escrínio…

A Festa da Apresentação de Nossa Senhora no Templo, que transcorre no dia 21 deste mês, foi instituída ao ser consagrada a igreja de Santa Maria a Nova, em Jerusalém, no ano 543. Assim, a liturgia confirmava como fato histórico o que se lê no texto apócrifo conhecido como Protoevangelho de Tiago: a Santíssima Virgem foi levada pelos seus pais, São Joaquim e Sant’Ana, ao Templo de Jerusalém, com tenra idade, para viver uma vida de recolhimento e oração nesse sagrado lugar.

Para Dr. Plinio, o momento do ingresso da santa Menina no Templo provavelmente foi o mais belo espetáculo até então contemplado pelos Anjos do Céu. E ao comentar uma passagem de São Francisco de Sales a esse propósito, acrescentava:

“Não sei se São Joaquim e Sant’Ana tinham plena noção de que Nossa Senhora estava destinada a ser a Mãe do Verbo Encarnado. Porém, certamente sabiam que sua filha fora escolhida por Deus para altíssimas coisas com vistas ao advento do Messias.  É-nos dado supor, aliás, que essa menina,  concebida sem pecado original e, portanto, sem as limitações inerentes a este, sem deixar as atitudes próprias de uma criança, possuía em sua alma um dom de contemplação maior que o dos maiores santos da Igreja.

“Quer dizer, n’Ela se harmonizavam a extrema afabilidade e meiguice da criança com uma grandeza da qual os homens mais excelentes da Terra não são senão minúscula figura. Esse terá sido o desejo de Nossa Senhora, em que sendo Ela a Rainha incomparável do universo, aparecesse aos olhos de todos como uma simples menina. Contraste de beleza insondável, diante do qual permanecemos emudecidos de admiração!

Pois foi essa maravilhosa menina que seus pais levaram ao Templo. Segundo São Francisco de Sales, durante essas peregrinações à Cidade Santa, os judeus iam pelas estradas entoando cânticos, de modo particular os salmos compostos por David para essa finalidade. Podemos imaginar as lindas cenas que tais romarias proporcionavam: chegado o mês da visita ao Templo, judeus das mais variadas regiões se punham a palmilhar os caminhos de Israel, envolvendo-os com seus cantos religiosos.

“Entre eles, certa feita, encontravam-se São Joaquim, Sant’Ana e Nossa Senhora. Imaginemos, então, se pudermos, o cântico da Menina, elevado com uma voz inefável, repetindo as palavras que seu régio ancestral escrevera por inspiração do Espírito Santo para aquela circunstância!

“Pensemos em Maria cantando pelas estradas judaicas, e os anjos acompanhando seus passos e seu cântico, extasiando-se eles, sobretudo, com as harmonias de alma que a pequena Virgem manifestava a cada instante.

“Ainda segundo São Francisco de Sales, do alto dos terraços da Jerusalém Celeste, os querubins e os serafins, e toda a corte angélica, debruçavam-se para contemplar Nossa Senhora a caminho de Jerusalém, e esse espetáculo, ignorado pelos homens, incutia-lhes um gáudio inexprimível.

“De fato, cena mais bela e mais eloquente do que essa, só poderia ser aquela em que esses mesmos anjos viriam Nossa Senhora ingressar no Templo, como a rainha que toma posse daquilo que lhe é próprio; como a joia que se instala no escrínio onde deve ser guardada…”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 21/11/1965)

Cristo Rei

Nosso Senhor Jesus Cristo é Rei, a quem devemos obedecer, conhecendo a sua vontade e executando o que Ele nos manda com amorosa e pormenorizada exatidão. Para isto, devemos pedir a graça de Deus pela oração, pela prática dos Sacramentos, por nossas boas obras, pela vida interior.

Em outros termos, sejamos bons católicos; sendo-o, seremos necessariamente apóstolos; e sendo apóstolos, seremos necessariamente soldados de Cristo Rei.

A arte de subir e descer escadas

Sem exagero poder-se-ia dizer que em Dr. Plinio a observação do mais profundo, expresso na realidade dos edifícios, ambientes e atitudes humanas, enquanto reflexo de qualidades ou carências da alma, era uma segunda natureza. Assim, numa exposição verbal, discorreu ele sobre o papel das escadas e das formas pelas quais, ao subir e descê-las, o homem manifesta sua dignidade de filho de Deus.

 

Em ocasião anterior consideramos como o subir e também o descer escadas constitui, no seu gênero, uma arte. De fato, tanto quanto as circunstâncias permitirem, o homem deve ter o pudor de suas próprias misérias, velá-las, por respeito a si mesmo e aos outros.

Demonstração de apreço pela virtude

Emprego a palavra “pudor”, não no sentido da castidade preceituada pelos sexto e nono Mandamentos, e sim no de frisar que tais misérias são castigo de um pecado cometido por nossos ancestrais no Paraíso terrestre e todos nós carregamos o ferrete daquela queda. As debilidades são, portanto, reflexos da mancha original à qual o homem acrescentou suas próprias faltas.

Assim, o homem procura disfarçar suas lacunas como homenagem prestada à virtude. E o “maintien”(1), exigindo um esforço dele sobre si, é um preito de seus lados fracos àquilo que ele teria sido se não fosse o pecado. De sua parte, essa é uma atitude bela e nobre.

Cenário para o exercício de uma arte

Então, a escada precisa ser construída de maneira a servir de cenário digno, distinto, mesmo numa habitação modesta, para que o homem possa exercer a arte de subir ou descer. Se falarmos não de uma casa comum, mas de um palácio, neste deve haver uma glorificação dessa arte, pois muito mais do que a moradia do conforto, ele é a residência do esplendor, cuja definição adequada é esta: habitação proporcionada com a glória. Assim, com sua escadaria, o palácio deve dar às pessoas a possibilidade de descê-la e subi-la brilhantemente.

E aqui caberia perguntar o que é mais glorioso: subir ou descer?

Em tese, é o subir. Por exemplo, à medida que se eleva até o zênite, o sol patenteia de modo crescente a sua glória. Pelo contrário, passa a velá-la, conforme se põe e se deixa envolver paulatinamente nos crepes da noite.

Porém, nossas operações são feitas na presença de Deus e dos homens. Diante do Criador, o mais glorioso, de si, é subir uma escada. Entretanto, aos olhos dos homens, é o descer.

Explico. A pessoa que sobe é vista de cima para baixo por quem está no andar superior; e aquele que desce é observado de baixo para cima por quem se encontra no plano inferior. E, portanto, mostra-se melhor a própria glória a quem está embaixo do que àquele situado no alto.

Diversos modos de se descer uma escada

Como se deve descer com honra uma escada?

Antes de tudo, não se pode ser “mega”(2). Quer dizer, a pessoa precisa descê-la com glória, quando a esta tem direito; com distinção, quando se encontra numa situação ou é pessoa distinta; com correção, pelo simples fato de ser uma criatura humana, porque todo homem tem obrigação de ser correto.

Sumamente incorreto é dar a impressão de que perdeu o auto-controle e cairá. Portanto, se alguém tiver agilidade de descer uma escada depressa, saltando de dois em dois degraus, não deve fazê-lo, pois dará impressão de uma avalanche desmoronando.

Como a lei da gravidade nos atrai para baixo, o homem precipitando-se desenfreadamente nessa direção transmite a ideia de alguém vencido por aquela lei, entregue, derrotado, como um destroço que rola. Por isso, se houver necessidade de ele descer uma escada com rapidez, deve procurar manter a correção, portando-se de maneira a demonstrar claramente que, apesar da pressa, conserva inteiro domínio de si. Portanto, sua cabeça e seu tronco têm de estar tesos e eretos. Se não observar essa postura, descerá de modo vil.

Ora, nenhum homem tem o direito de fazer uma coisa de forma desprezível. Pelo fato de ser criatura racional, está obrigado a agir com correção, é uma exigência da dignidade humana.

Quando uma pessoa se acha numa situação de distinção, pela sua idade, pelo seu cargo ou outras circunstâncias, deve descer a escada, não muito devagar, mas compassadamente, a fim de permitir aos que estão embaixo perceberem todas as fases da operação: o avançar dos pés, a posição do tronco, da cabeça, etc. Além disso, precisa fazê-lo de modo desembaraçado, dando a ideia de estar posto em cogitações elevadas, sem prestar atenção nos degraus como se receasse cair.

Um acontecimento…

Assumindo essa postura, à medida que vai descendo, a pessoa faz sentir cada vez mais sua ação de presença. Esta se torna plena quando ela atinge os últimos degraus, e se percebe que não chegou apenas um corpo — como um pacote de carne e ossos — mas também uma alma.

Os antigos, tendo melhor noção desses aspectos da vida, faziam com que os grandes personagens, conforme a indumentária própria ao homem ou à mulher, usassem cauda. Por exemplo, os bispos e altos dignitários de Estado (como reis e príncipes) tinham capa magna, a qual era levada por pessoas distintas ou simples pajens, de acordo com a situação.

Ao descer uma escada, a cauda formava-lhe um fundo de quadro, e à medida que baixava, o tecido ia se desdobrando; ao tocar o solo, estava todo estendido. Aquela descida de escada tinha sido um acontecimento…

No subir, afabilidade e deferência

Por seu lado, o subir uma escada de maneira correta requer igualmente determinadas disposições de corpo e espírito.

Assim, o que sobe precisa fitar quem se acha em cima, de um modo afável, atencioso, conforme o caso respeitoso, como se já estivesse perto dele. De certa forma, sua alma tem de anteceder seu corpo, impressão esta que ele transmitirá se, ao pisar o primeiro degrau, depositar desde logo o olhar naquele que o aguarda no alto.

Em seguida, empreender a ascensão sem precipitações, evitando qualquer manifestação de cansaço, de peso, às vezes esboçando um sorriso. Ao atingir os últimos degraus e se aproximar de quem o espera, deve dirigir-lhe a palavra, de tal maneira que o outro não perceba a distância entre os dois, e em todo momento se sinta igualado ou até mesmo superado.

São estas algumas atitudes e posturas pelas quais o homem, observando-as no ato de subir e descer escadas, é capaz de conservar sua dignidade de ente racional, criado à imagem e semelhança de Deus.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Postura correta

2) A partir do termo “megalomania” Dr. Plinio criou a palavra “megalice”, a fim de designar o vício de quem atribui a si mesmo qualidades que não possui ou então as exagera. E empregava o vocábulo “mega” para significar o indivíduo que se deixa arrastar por esse defeito.

O sacerdócio, uma honra sublime

Imbuída de laivos de anti-clericalismo do século XIX, a alta sociedade dos anos 30, embora não faltassem nela vocações, afastava seus filhos do caminho do sacerdócio, procurando para eles um futuro mais rendoso e mais valorizado pelos conceitos mundanos. Porém, como nos mostra Dr. Plinio no presente artigo, a elevada missão sacerdotal deve ser abraçada por membros de todas as camadas sociais, e sempre será motivo de honra para uma família.

 

Na admirável e promissora multiplicidade das obras de apostolado que florescem na Arquidiocese de São Paulo, é muito possível que se oblitere a noção indispensável, de que a obra fundamental, o eixo necessário, o centro único de gravidade de todo o trabalho que atualmente se realiza, é a Obra das Vocações.

Fonte dos mais alvissareiros frutos para a sociedade

O assunto tem sido objeto de tantas e tão autorizadas dissertações, que seria temerário ou até impossível pretender dizer‑se qualquer coisa de novo a este respeito. Entretanto, a função da imprensa comporta uma larga tarefa vulgarizadora. Por isto, e porque me parece que nosso público nunca estará suficientemente cônscio da grandeza da Obra das Vocações, aproveito as solenes comemorações que se desenrolaram nesta Capital na semana passada, para dizer algo a este respeito.

Jornal feito por enquanto exclusivamente para católicos — por enquanto, note‑se — o Legionário não tem necessidades de demonstrar que o Clero, sendo indispensável para toda a vida religiosa do País, deve ser numeroso, para que sua função primordial, que é o de promover a salvação das almas, seja convenientemente exercida; tanto mais que o exercício dessa função espiritual e sobrenatural tem como conseqüência, na ordem material e concreta, os frutos mais promissores e substanciais.

Florão do patrimônio moral de qualquer linhagem

O que sobretudo quero provar, é que todas as classes sociais têm obrigação de concorrer com um contingente apreciável, para o recrutamento das fileiras sacerdotais, e que o sacerdócio, em lugar de ser um encargo oneroso do qual fogem as famílias, deve ser considerado uma honra sublime, um florão do patrimônio moral da família, sem o qual não estarão completas as glórias de qualquer linhagem, por mais antiga e ilustre que seja.

Esta observação tem sua importância. O Revmo. Pe. Garrigou-Lagrange lhe deu um forte relevo, na conferência que pronunciou em nossa Cúria Metropolitana, a propósito das vocações ao sacerdócio. Realmente, não é justo que se esquivem as famílias mais abastadas e mais ilustres, a dar seus filhos à Santa Igreja, entregando‑os à vida religiosa ou sacerdotal. Não se compreende que, entre nós, este estado de coisas perdure por mais tempo. Ele gera inconvenientes graves para a própria tarefa apostólica e constitui um sintoma irrefutável de uma crise moral séria.

Os inconvenientes decorrentes do fato de quase não se recrutarem sacerdotes em certas camadas sociais são evidentes. A Santa Sé, hoje mais do que nunca, insiste para que o apostolado seja, de preferência, desenvolvido por pessoas do próprio meio social. Em relação à Ação Católica, é esta uma norma essencial. Evidentemente, perde ela muito de seu vigor quando se trata, não mais do apostolado de leigos, mas das atividades da própria Hierarquia Eclesiástica. Sem embargo disto, ainda neste terreno, ela conserva uma oportunidade que os espíritos previdentes não poderão contestar.

A classe alta, ambiente mais refratário ao sacerdócio

Não convém que cheguemos a generalizações falsas e temerárias. Seria errôneo sustentar‑se que não se encontram no Brasil, entre as famílias mais ilustres, sacerdotes. Entretanto, é incontestável que esse é o ambiente mais refratário ao recrutamento sacerdotal. A Igreja não precisa, evidentemente, de sacerdotes desta ou daquela classe, para realizar sua tarefa. Tanto pode um sacerdote de família operária fazer seu apostolado nas mais altas classes sociais, quanto pode outro sacerdote, filho de ilustre família, dedicar‑se ao apostolado entre proletários. Sem embargo disto, é certo que o apostolado feito por uma pessoa do próprio meio tem vantagens que ninguém pode ignorar, e que devem ser tomadas na devida consideração.

Quanto à crise moral que essa abstenção revela, é muito séria.

Em última análise, significa isto que o espírito de abnegação, de devotamento, de renúncia, escasseia em nossas classes dirigentes. Efetivamente, se há retraimento em relação ao sacerdócio, deve‑se isto não raras vezes ao fato de parecer a vida de um sacerdote — e esta impressão é verdadeira — muito pouco vantajosa sob o ponto de vista das honrarias e dos lucros. De sorte que as famílias desviam intencional e até pertinazmente seus filhos, da vocação que Deus lhes dá.

Se, em um país, é este o espírito das classes dirigentes, que catástrofes, que abismos, que nuvens, não se podem antever em seu caminho?

Uma obra providencial

O fato não se demonstra apenas quanto à vocação sacerdotal. Também outras carreiras, que oferecem inconvenientes, são cuidadosamente afastadas por muitas famílias.

Um exemplo disto está nas carreiras do Exército e da Marinha, das quais, por egoísmo, e mediante violência, são afastadas muitas vocações autênticas.

Por quê? Porque, evidentemente, é mais rendoso ser banqueiro do que sacerdote ou militar. E, por isto, todos querem ser bacharéis e banqueiros. E poucos se obstinam em envergar a batina ou a farda.

Cabe à Obra das Vocações remover este e outros obstáculos. E ela o tem feito magnificamente. (…) Por isto, as Autoridades Eclesiásticas lhe deram o seu mais inteiro apoio. E o Legionário, que é, por natureza, um servidor de todas as causas santas, não poderia deixar de chamar, sobre ela, a atenção de seus leitores(1).  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira

1) Transcrito do Legionário de 13/11/1938. Título e subtítulos da redação.

 

Medianeira de todas as graças

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças. Portanto, todas as súplicas que vão a Deus passam por Ela. De tal maneira que se todos os Santos do Céu pedirem algo em união com Maria Santíssima, são atendidos; mas se Nossa Senhora não suplicasse com eles, não seriam acolhidos. Entretanto, a Santíssima Virgem pedindo sozinha é atendida.

É pela intercessão d’Ela que todas as preces chegam e se tornam agradáveis a Deus, como também todas as graças concedidas pelo Criador chegam até nós por meio d’Ela.

Maria é, pois, o canal por onde todas as preces sobem a Deus e todas as graças descem para os homens.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/10/1971)

A “Carta circular aos Amigos da Cruz” – V Nossas obrigações para com a Cruz

Na seqüência de seus comentários ao opúsculo escrito por São Luís Maria Grignion de Montfort, Dr. Plinio ressalta esta grave advertência do santo: quem quiser ser um autêntico Amigo da Cruz, deve fugir do mundanismo que o conduzirá por um caminho de perdição, oposto ao da perfeição e santidade para o qual foi chamado.

 

São Luís Grignion de Montfort assim continua a sua Carta:

Sois por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que o vosso grande nome significa? Ou pelo menos tendes vontade e desejo autênticos de assim vos tornardes com a graça de Deus, à sombra da Cruz do calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (Pr 6, 23; 10, 17; Jr 21, 8) , que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem pensar nisso, no caminho largo do mundo, que é a via da perdição? Sabeis que existe um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte (Pr 14, 12)?

Justificadas apreensões de um Santo

Nestas perguntas transparece intensamente o espírito de São Luís Grignion. Quer dizer, de um lado ele toma em consideração os Amigos da Cruz como pessoas eleitas por Deus para um alto chamado. De outro lado, porém, ergue-se diante delas a malícia do século, e à vista das condições em que estas pessoas vivem, São Luís manifesta suas  apreensões. Donde formular questões como esta: “sois verdadeiros Amigos da Cruz?”

Ou seja, fácil é alguém tomar o nome de Amigo da Cruz, mas igual facilidade há para deixar de sê-lo. Portanto, trata-se de uma preocupação cujo fundamento é evidente. Então, insiste: “Pelo menos tendes verdadeiro desejo e vontade de assim vos tornardes com a graça de Deus”, etc.?

A formulação empregada por ele é muito apropriada e fina, porque um verdadeiro Amigo da Cruz é alguém que, em primeiro lugar, está em ordem com seus deveres para com a Santa Cruz. Mas também é aquele que possui ao menos um desejo autêntico de estar em ordem a esses deveres. Poderá ter suas faltas, suas fraquezas, mas almeja atingir a plenitude de entrega própria ao seu chamado. Este será considerado igualmente um verdadeiro Amigo da Cruz.

Dois graus de amor à Cruz

Percebe-se aqui dois graus de amor à Cruz, assim como pode haver dois graus de perfeição religiosa no cumprimento de uma vocação.

Antes de tudo, tal perfeição é a inteira conformidade do membro de uma ordem com sua respectiva regra. Contudo, pode dar-se o caso de que algum religioso, ainda neófito, não tenha alcançado essa conformidade; ou, por desventura, terá retrocedido na sua trajetória rumo àquela perfeição. Mas, se ele demonstrar o desejo de se tornar um verdadeiro religioso e de adquirir um elevado grau de observância, ele ainda se achará no seu lugar próprio dentro da ordem. Quer dizer, há para com ele, da parte de Deus e dos seus superiores, uma atitude de misericórdia, de compaixão, e até de compreensão, a par das graves exigências que a regra lhe impõe.

O mesmo se aplica ao Amigo da Cruz. Há aquele que se entregou por completo ao amor e ao serviço da Cruz para com ela se identificar; e há aquele que, por lacunas espirituais, ainda não alcançou essa plenitude de devoção, mas a deseja atingir. Então, olhando para estes últimos, São Luís Grignion escreve: “Não estareis, sem pensar, no caminho largo do mundo, o caminho da perdição? Sabeis bem que existe uma via que parece reta e segura, e na realidade conduz à morte?”

A expressão “sem pensar”  é curiosa,  e insinua bem o que poderia ser uma culpa inconsciente do Amigo da Cruz. Ora, o caminho do mundo é tão agradável, e o homem de tal maneira se habitua ao que lhe compraz, que ele por irreflexão acaba cometendo uma falta. Esta, embora não seja inteiramente consciente — e, portanto, não reúna as condições próprias ao pecado mortal — é um passo em falso. E a sucessão de faltas e concessões inconscientes, acabam desviando a pessoa para longe do caminho verdadeiro. Daí a nota da prudência pastoral, da vigilância de São Luís de Montfort em relação a esses Amigos da Cruz.

Censura aos que cedem à concupiscência do mundo

Continua ele:

Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça, da voz do mundo e da natureza? Escutais a voz de Deus, nosso Pai, que depois de ter dado a sua tríplice maldição a todos que seguem as concupiscências do mundo: Ai, ai, ai dos habitantes da Terra (Ap 8, 13), grita‑vos amorosamente, estendendo‑vos os braços: separai‑vos, meu povo (Nb 16, 21). Separai‑vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho, separai‑vos dos mundanos, malditos por minha majestade, excomungados por meu Filho (Jo 17, 9), e condenados por meu Espírito Santo (Jo 16, 8-11).

Importa compreender bem a razão dessas fortes censuras, dessa maldição tão pesada sobre o mundanismo.

Lembremo-nos de que, na linguagem da vida espiritual, o apego e o amor desregrado às coisas do mundo é, ao lado do demônio e da carne, uma das concupiscências que inclinam o homem para o pecado e o afastam de Deus. Portanto, o mundanismo assim entendido sempre foi algo ruim, ao qual o católico desejoso de alcançar a santidade deve combater.

No tempo de São Luís Grignion, o mundanismo ainda se revestia de uma aparência elevada e nobre, característica do “Ancien Régime” prévio à Revolução Francesa, mas que preparou largamente a irrupção desta no cenário europeu. Se tomarmos gravuras que representam burgueses dos séculos XVI e XVII, veremos que são ainda pessoas sérias, compassadas, dignas. Não era uma burguesia mundana, e tinha conservado toda aquela circunspeção dos antigos tempos. Pelo contrário, considere-se um burguês das vésperas da Revolução Francesa, e já não se o distingue mais do nobre, não só porque os trajes se igualaram, mas também por causa da atitude. Nivelaram-se. E o mundanismo revolucionário que impregnava as cortes, irradiou-se para as outras camadas da sociedade, putrefazendo-a por completo.

Em nossos dias, podemos dizer que o mundanismo se multiplicou pelo mundanismo, e as suas seduções, atiçadas por obra do demônio, são ainda mais perniciosas. Donde as censuras de São Luís Grignion conservarem toda a sua atualidade, e são perfeitamente aplicáveis aos que se entregam ao mundo, pois estes romperam com as amarras que os uniam a Deus Nosso Senhor.

Se desejamos ser autênticos Amigos da Cruz, devemos limpar nossas almas de qualquer laivo de mundanismo, de qualquer apego ao que há de frívolo, de laicista e de fundamentalmente contrário à sabedoria, nos costumes do mundo.

Contagiabilidade da virtude contra o vício

Continua São Luís Grignion:

Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (Sl 1, 1).

Essa cadeira toda empestada de que fala São Luís é uma referência ao Salmo 1, onde o salmista exclama: “Feliz o homem que (…) não se assenta entre os escarnecedores”, ou, segundo outras traduções, “que não toma assento na cátedra de corrupção dos pecadores”. Esta última expressão me parece ainda mais vigorosa. Quer dizer, trata-se da cadeira de onde o pecador ensina o pecado e, de certa forma, é a própria sede do pecado, na qual este se instala e aí faz luzir sua “glória”.

Fugi da grande e infame Babilônia (Is 48, 20; Jr 50, 8), não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas senão as de meu Filho bem-amado, que vos dei por vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (Jo 14, 6), e vosso modelo (Mt 17, 5).

Vemos aqui uma espécie de demolição ardente, levada a cabo por São Luís Grignion, contra toda a sedução exercida pela sociedade frívola do seu tempo. Ele queria os Amigos da Cruz afastados desse mundanismo.

Por outro lado, é também interessante notar que no meio dessa sociedade frívola surgiram outros movimentos de autêntica piedade católica, que reagiram a seu modo contra a decadência generalizada do ambiente em que viviam. Creio que tal reação se deve ao princípio da contagiabilidade da virtude, considerado por nós em exposição anterior. Ou seja, na ordem sobrenatural há reversibilidades, reciprocidades, interações pelas quais uma virtude séria e profunda praticada de um lado repercute no outro. Assim, havendo na Vandeia ou na Bretanha daquela época, muitos genuínos Amigos da Cruz, efetivamente separados do mundo, ainda que não conhecessem os Amigos da Cruz de Versailles, aqueles reforçavam a possibilidade de perseverança, de santificação e de vitória destes últimos no meio dos deleites e das delícias da corte mundana.

O exemplo de Maria Teresa d’Áustria

Recordo-me, a esse propósito, da figura da grande imperatriz Maria Teresa d’Áustria. Não se tratava de uma santa, mas era uma boa senhora católica, com o padrão mínimo de algo do qual a santidade é a expressão mais elevada. E ao considerar muitos aspectos de sua rica personalidade, poderemos ver quanta retidão, compostura, destreza, e quanta dignidade assentada sobre o trono, em meio a uma corte que, se não era a primeira, era das mais importantes do mundo, a do Sacro Império Romano Alemão.

Creio que essa situação só se tornava possível por esse trabalho de subestrutura da virtude que se contagiava entre os bons de lugares diferentes. E em seguida notava-se a recíproca: a Cruz levantada no mais alto degrau da corte, repercutia sobre todo o país e nas camadas profundas da população, gerando novos Amigos da Cruz. Esses são os grandes mecanismos por onde o amor de Deus se afirma, se multiplica e conquista as almas.

Abraçar a Cruz em união com o Divino Redentor

Prossegue São Luís Grignion:

Não escutais esse amável Jesus que, carregando sua cruz, vos conclama: vinde após Mim (Mt 4, 19), o que me segue não anda nas trevas (Jo 8, 12); tende confiança, Eu venci o mundo (Jo, 16, 33)?

Conforme o ensinamento de todos os grandes autores, São Luís Grignion acrescenta que a Cruz só é suportável quando carregada em união com Nosso Senhor. A Cruz concebida esquematicamente, apenas de modo teórico, aterroriza o homem e este foge dela. O único modo de a Cruz ser atraente, é considerar Aquele que nela se acha pregado e d’Ele receber as forças necessárias para aceitá‑la.

É palavra do próprio Jesus: “Quando Eu for elevado, atrairei a mim todas as criaturas”. Ou seja, o Divino Crucificado é o verdadeiro encanto da Cruz, o que realmente atrai as almas para ela. E não apenas atrai, como lhes concede as graças e o vigor indispensáveis para carregá-la. Com os olhos fitos n’Ele, pensando no seu Sagrado Coração e no precioso Sangue que por nós derramou, na sua agonia e morte, é que adquirimos forças para segui-Lo.

E não nos esqueçamos de que essas graças e essas forças nos são concedidas por intermédio de Maria Santíssima, a Medianeira Universal, que se encontrava aos pés da Cruz, com seu Coração Imaculado transpassado e coroado de espinhos.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/6/1967)
Revista Dr Plinio 116 (Novembro de 2007)

 

O ideal de Cavalaria, plenitude do espírito católico – II

O que diferencia o cavaleiro das outras vocações existentes na Igreja? Missionários dos bons tempos se expunham à morte pelo contágio de doenças ou se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. São pessoas admiráveis, dentre as quais muitas morreram mártires e foram canonizadas. Entretanto, o cavaleiro representa a Deus a um título especial ao lutar por Ele e pela Santa Igreja, caminhando com entusiasmo de encontro à morte.

 

Há também outra beleza que devemos considerar: a da luta. Morrer é belo. Os mártires, as vítimas da Revolução Francesa morreram. Oferecer-se, portanto, como vítima é lindo! Um doente na cama pode oferecer-se; Santa Teresinha do Menino Jesus ofereceu-se como vítima expiatória. Contudo, lutar tem uma beleza especial.

Dois modos pelos quais Deus associa o homem à sua obra criadora

Deus associa o homem à sua obra criadora de dois modos: um é pela paternidade espiritual ou física. O que é paternidade física todos sabem, não é necessário explicar. A paternidade espiritual se dá quando se gera alguém para a vida eterna; uma pessoa traz outra pelo apostolado para ela pertencer a Nossa Senhora e assim preparar-se para o Céu.

Há, entretanto, outro modo pelo qual Deus nos associa à sua obra criadora. Cabe a Deus tirar a vida de alguém. Porém, quem legitimamente mata outrem que, segundo o plano de Deus, deve ser morto, exerce uma prerrogativa divina.

Por exemplo, um homem é um assassino e deve ser morto num ato de legítima defesa ou porque a lei mandou que fosse executado. O Estado tem o direito de mandar matar, nas ocasiões em que é justo, bem como qualquer pessoa possui o direito de matar na sua própria defesa ou de terceiros. Assim, tem-se o direito de matar na defesa da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, nos casos em que a Moral católica permite(1). Portanto, quando se combate em nome da ira de Deus e movido por uma cólera inspirada pela graça, há uma beleza especial no exercício dessa justiça. Então, o cavaleiro que vai à guerra não só disposto a morrer, mas a matar para que a vida espiritual, sobrenatural se espalhe sobre a Terra, também representa a Deus a um título especial, e exerce uma missão divina.

Compreende-se por que os nossos antepassados julgavam uma tal maravilha um cavaleiro entrar, por exemplo, num lugar onde havia cinquenta maometanos e, com várias espadagadas, decapitar a todos. Por que era uma beleza? Porque os maometanos estavam atacando terras católicas ou impedindo a pregação do Evangelho.

Há certos trovões que se propagam por várias séries de explosões até uma plenitude final. O trovão é lindo porque dá a impressão de uma divina vontade de arrasar o que não deve existir, e que vai derrubando obstáculo por obstáculo até destruir tudo. É uma sinfonia! Para mim, mais bonito do que o trovão, só o órgão. São as duas supremas belezas em matéria de sons. Sou um entusiasta da trovoada. Qualquer trovãozinho que eu ouça, acompanho com gosto sua harmonia cheia de estampidos.

Esta é a alma do guerreiro quando ele, movido por uma cólera santa, mata um, outro e, ao fim do dia, matou muitos. Ele está como uma trovoada que descarregou toda a sua eletricidade, e repousa plácido depois porque a sua ira santa foi preenchida. É o repouso de um guerreiro depois de ter combatido, ter raspado pela morte, na véspera de outra batalha onde ele poderá morrer. Ele está continuamente com esta familiaridade com a morte que faz a beleza da vida do guerreiro, porque é a familiaridade com Deus.

Então, o que diferencia o cavaleiro das outras vocações que há na Igreja? Tomem, por exemplo, padres, freiras dos bons tempos que se expunham à morte com contágio de doenças; outros que, fazendo as missões, se arriscavam a serem comidos pelos selvagens. Todas essas pessoas são admiráveis, dentre as quais muitas morrem mártires e são canonizadas. Que o sangue delas se levante e peça ao Céu perdão e graças para nós.

Desponsório com o risco, o esforço e a morte

Entretanto, o cavaleiro não é o que se resigna à morte, mas aquele que caminha de encontro a ela com entusiasmo; não se resigna com o perigo, mas tem fome dele; não se resigna à luta, anseia por ela. Esse é o cavaleiro, aquele que, na hora do risco e da batalha, como que sente a ebriedade santa do contato com Deus e se lança.

Em certo sentido, o cavaleiro pode ser considerado o artista da luta, pois gosta da pugna bela, nobre, elevada. Por isso ele se orna para o combate, segue belas regras para lutar e morre sentindo ter feito uma obra de arte. Na canção de gesta, Roland, morrendo, sabe que no horror de sua morte está realizando algo que despertará uma página de literatura para todos os tempos. E, antes de ele morrer, aparece São Miguel Arcanjo a quem o cavaleiro moribundo estende a sua luva em sinal de vassalagem, porque São Miguel é o chefe do que eles chamavam a Cavalaria Celeste, composta pelos Anjos que expulsaram os demônios, lançando-os no Inferno. Roland se sente um com os espíritos celestes, seus irmãos. Ele é, na Terra, o grande exterminador e ordenador, como foi São Miguel Arcanjo no Céu. Esta alegria, este entusiasmo, esta espécie de senso artístico da luta, do risco e da morte caracteriza o verdadeiro cavaleiro.

Compreende-se, então, porque o cavaleiro era alçado, habitualmente, à condição de nobre, pois é incomparavelmente mais elevado e digno quem possui esse espírito do que quem se entrega a outras atividades lícitas, necessárias, mas que não têm esse contato com o Divino, como, por exemplo, o comércio. Vender cebolas ou tamancos é uma coisa indispensável para a boa ordenação do mundo; fabricar vassouras ou esparadrapos é muito bom, sobretudo, pode ser muito lucrativo, não contesto. Mas contabilizar grandes lucros, embora seja bom e honesto, não é o mais alto modo de se unir a Deus. Essa espécie de desponsório com o risco, com o esforço extremo e com a morte é o que mais une a Deus. Isto é a Cavalaria.

Se ultrajado pelo inimigo, o cavaleiro mantém a cabeça alta, revida e continua a luta

Em nossa época, a luta não se dá só nem principalmente no campo físico. O principal da guerra não é o esforço material, mas o intelectual. Atualmente se conquistam mais povos pela guerra psicológica do que pela guerra militar. As maiores conquistas que o comunismo fez não foram pelas armas, mas pela velhacaria. Por exemplo, como o comunismo se introduziu em toda a Europa Oriental? Foi mediante concessões vergonhosas de Roosevelt, no Tratado de Yalta. Como o comunismo conseguiu conquistar a China e depois o Vietnã? Foram concessões que Marshall fez aos comunistas chineses, entregando a China numa bandeja. Como o comunismo vai se difundindo pelo mundo? Através da conquista das almas por meio do processo revolucionário descrito em meu livro Revolução e Contra-Revolução.

Contra essas formas de conquistas psicológicas, ou há uma conquista também psicológica ou não adianta nada. Então, nós somos contra o comunismo que brande ideias, como eram os cruzados contra os maometanos que brandiam sabres. Os maometanos não usavam sabres e lanças? Nossos antepassados também. O comunismo usa ideias, nós usamos ideias. Ele faz a Revolução, nós fazemos a Contra-Revolução.

Digo agora uma palavra sobre o risco. Há uma coisa que é para o homem como a morte, e às vezes ele enfrenta a morte para evitar isso: é o descrédito no meio dos seus. Deixar de ser considerado, benquisto, admirado, ser odiado, perseguido, desprezado exige muitas vezes mais coragem do que a luta armada. Quando há uma guerra, muitos vão para frente combater de medo que, se recuarem, na retaguarda riam deles e digam que são covardes. Isso quer dizer que o sujeito enfrenta a bomba por medo do riso. Portanto, em última análise, a risada dá mais medo ao homem do que a bomba.

De nós é exigida esta coragem, bela como a de quem enfrenta a morte. Se o homem tem mais medo do ridículo do que da morte, enfrentando o ridículo ele faz uma imolação a Deus mais preciosa do que entregando a vida. Estar, portanto, continuamente raspando-se no ridículo, não se incomodando com a opinião dos outros, isto é ser cavaleiro. Quando o homem faz isto e compreende que se une a Deus extraordinariamente por esta forma, e tem o gosto de ser vilipendiado, ultrajado, de manter a cabeça alta, de revidar e de lutar, ele é um perfeito cavaleiro.

Nosso Senhor não recuou um instante, mas caminhou para a frente continuamente

Comecei esta luta em condições muito desfavoráveis, porque só vim a compreender que ela era bela mais tarde. Era menino e percebi que, nos ambientes dos outros meninos, o que eu tinha de qualidade era objeto de sarcasmos, e que bastava assumir certos defeitos que seria causa de admiração. Mas resolvi seguir a mim mesmo, fiel às qualidades que eu tinha; não compreendia a beleza que havia nisto. Até me lembro de ter pensado o seguinte: “Todo mundo acha isto feio, quem sabe se é mesmo. Nesse caso, faço uma coisa feia, mas enfrento todo mundo e vou para a frente, porque ser de outra maneira eu não quero”.

No praticar uma coisa que talvez fosse feia por amor a um ideal, eu o fazia do modo mais belo possível. Eu me lembro de que pensava com meus botões: “Mas que coisa horrível ser desconsiderado assim! Veja tal menino de boca porca, de maus costumes que empolga a aula dizendo palavrões, e como eu faço um papel apagado, mole, bobo, com a minha perpétua observância da pureza, das boas maneiras, da distinção”. Mas eu refletia: “A pureza, as boas maneiras, a distinção valem isto; assim eu quero ser, ainda que me rachem.” Eu era, assim, uma espécie de bichinho se agarrando à tábua de salvação a todo custo. Ainda não percebia que essa tábua de salvação tinha um nome, era a Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando mais tarde percebi, fiquei maravilhado, mas o passo estava dado, eu tinha entrado na luta.

Nosso Senhor Jesus Cristo nos é apresentado sempre enquanto padecendo, suando Sangue no Horto das Oliveiras, caminhando para a morte com uma tristeza enorme; e assim deve ser, porque devemos ter consciência, tomar na devida conta os sofrimentos infinitos que Ele padeceu por nós.

Mas, de fato, há outro aspecto da atitude de alma de Nosso Senhor Jesus Cristo durante a Paixão, que é o seguinte: Ele não recuou um momento, caminhou para a frente continuamente. Mesmo quando caiu sob o peso da Cruz, foi para levantar de novo e poder chegar até o alto do Calvário; não teve uma hesitação.

Eu tenho a impressão de que se devêssemos olhar, numa Via Sacra, as pegadas sangrentas de Nosso Senhor no chão, um dos aspectos por onde Ele poderia ser visto era cambaleante, fazendo um zigue-zague, quase caindo ao peso da Cruz, mas não largando. Outro seria, pelo contrário, em linha reta: “Eu vou para a frente porque quero!” Uma vontade serena, majestosa, mas inteiramente inquebrantável, até quando encontrou Nossa Senhora e viu tudo quanto Ela estava sofrendo pela resolução d’Ele de morrer. Por fim, no alto da Cruz, aquela palavra de energia suprema: “Consummatum est”: foi feito tudo o que era preciso fazer.

Quando foram prendê-Lo, no Horto das Oliveiras, Ele perguntou:

— A quem buscais?

— A Jesus Nazareno – responderam os algozes.

— Sou Eu – afirmou Jesus. E todos caíram no chão.

Seu poder e sua majestade eram tais que Nosso Senhor dissera pouco antes a São Pedro que, se quisesse, mandava vir legiões de Anjos para libertá-Lo (cf. Mt 26, 53), mas Ele não queria. Portanto, tudo aquilo o Divino Redentor estava sofrendo porque Ele queria. Eis o Cavaleiro!

O mais belo de todos os martírios

Terminada esta exposição, poderia surgir a pergunta: “Tudo isso é bonito, mas como me portar quando chegarem para mim o risco e a morte? Não posso fazer uma espécie de injeção de tudo quanto ouvi e meter dentro de mim para sair um herói. O que vou fazer para ser fiel a essas ideias?”

Aqui vem a doutrina da verdadeira vida espiritual. Se eu, no meu ideal, sinto-me chamado para isso, mas na realidade não tenho forças, devo pedi-las para estar à altura do meu ideal. Para isto temos a oração, os Sacramentos, a meditação que nos elevam até esse ponto. Pode ser que alguns cheguem entusiasmados à hora do sacrifício, outros com medo, mas vencendo o próprio medo e compreendendo a beleza de vencê-lo para lutar.

Cito um personagem que foi, sem dúvida, muito corajoso, mas não era nem de longe um cavaleiro. Basta dizer que era um protestante. Protestantismo e Cavalaria são coisas que se excluem, pois esta é um predicado exclusivo da Religião Católica. Do nosso lado há Cavalaria, do lado deles há assassinatos. Todas essas luzes são da Igreja Católica e de mais nada no mundo. Mas, enfim, o Rei da França, Henrique IV, entrou numa batalha com muito medo e sentia até seu esqueleto tremer. Então de espada na mão ele gritou: “Treme velha carcaça…”, mas ele não queria ceder e lutou durante a batalha inteira. Quiçá na hora do medo tenhamos que dizer “treme velha carcaça”, mas nós vamos para a frente. É preciso confiar em que a graça nos ajude nesse momento.

O martírio mais belo que conheço – depois de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é super-excelso e não comparável com nada – foi o de Santo Inácio de Antioquia. Ancião, carregado de ferros, entrou na arena e, diante dos leões que rugiam, ele disse: “Leões, vinde a mim! Triturai-me como se tritura o trigo para ser como a Hóstia de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu serei triturado e serei um com Ele”. Os leões vieram e ele foi estraçalhado e morreu. Isto, para mim, é a última palavra, o auge da beleza!

Cavaleiros conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo

Entretanto, havia duas espécies de mártires. Estive no Coliseu, em Roma, onde me mostraram o lugar do cárcere no qual ficavam os católicos a noite inteira, perto de outro compartimento onde estavam as feras rugindo. Os cristãos sabiam que, quando amanhecesse, tinham raiado para eles as últimas horas, e seriam levados para a arena onde aquelas feras iam devorá-los.

Imaginem, às três horas da manhã, solidão no Coliseu, aquele mármore muito branco, resplandecente, de uma alvura que para quem vai morrer tem quase o aspecto de um esqueleto ressequido, sobre o qual o trágico luar derramava uma tênue luminosidade; a sós, numa gaiola, os futuros mártires se preparam para morrer e têm pânico de apostatar na hora, porque era só fazer um sinal nesse sentido para serem salvos.

De repente, uma hiena uiva e a pessoa pensa: ela está com fome de mim, esse bicho amanhã vai devorar as minhas entranhas. Quando chega a manhãzinha, as feras vão acordando e uivando mais. O circo vai se enchendo de gente, muitos passam perto dos católicos, cospem neles, atiram pedras, dão risadas dizendo: “Vocês vão morrer mesmo…”

A certa hora, o Sol já está todo levantado e entram os barulhos familiares da cidade de Roma: os vendedores que oferecem suas mercadorias, carros que passam, é a vidinha de todos os dias que está ao alcance deles. É só dizer “eu quero apostatar” para terem tudo aquilo que eles estão prestes a deixar para entrar na arena e morrer.

Alguns soluçavam de medo, iam para a arena tremendo. Jogavam-se e as feras caíam em cima deles. Eram heróis tanto quanto Santo Inácio de Antioquia, talvez merecendo menos admiração.

Eram cavaleiros verdadeiramente, porque sentiam a beleza do seu ato e queriam consumá-lo, conscientes de todo o esplendor que o martírio trazia consigo. Evidentemente, para isto é preciso receber uma graça especial. Sem essa graça a pessoa não enfrenta. Mas é preciso pedi-la desde já. Por isso, em todas as Ave-Marias há esse pedido final: “Rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”. Quem vai ter coragem nessa hora? Sem uma graça especial não se tem.

Papel extraordinário da virtude da confiança

Há graças especiais de luta e de morte também, mas peçamos essa graça, tenhamos a intenção de dar à nossa vida e à nossa morte esse sentido de beleza, e nós obteremos. Porque quem pede alcança.

Conto-lhes um fato extremamente gracioso. Havia uma jovem romana que foi condenada à morte por ser cristã. Mas ela tinha especial pavor de não sei de que bicho – digamos que fosse hiena –, tinha pânico. Então, ela disse a Deus o seguinte: “Eu consinto em ser morta, mas fazei com que não seja por uma hiena”. Os outros cristãos, católicos, que estavam assistindo ao martírio nos bancos do Coliseu, viram entrarem também hienas no circo, mas nenhuma delas atacou a jovem, que foi morta por um tigre ou um leão. Quer dizer, foi uma condescendência da Providência.

Termino com um caso para verem como esse conceito de luta e de martírio é complexo. São João Evangelista não foi mártir. Levado para ser morto num caldeirão de azeite em ebulição – uma morte tremenda! –, entrou no caldeirão e saiu do outro lado ileso, e por vontade de Deus o deixaram ir para casa.

Imaginemos que São João tenha ido para o caldeirão com algo da graça que dizia dentro dele: “Tu não vais morrer”. E ele pensasse: “Mas não tenho coragem de morrer agora”. E a graça responderia dentro da alma dele: “Tu não tens coragem porque não chegou a hora de morrer. Tu deves ter confiança de que não morrerás”. Então, ele mete o pé dentro do caldeirão, depois o corpo inteiro, certo de que não será queimado. Contra o paradoxo, atravessa o caldeirão, apoia-se do outro lado e sai.

Manter esta confiança dentro do caldeirão não é uma força de alma talvez maior do que a do martírio? Em nossa vida a virtude da confiança tem um papel extraordinário. Muitas vezes nós estamos como que derrotados e liquidados e temos que fazer como São João: confiar que sairemos do outro lado do caldeirão sem nos acontecer nada. Este é um outro lado do heroísmo e de coragem terrível. Às vezes, confiar é mais duro do que se entregar. Mas não temos o direito de ceder, e é preciso confiar.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 3/8/1974)
Revista Dr Plinio 260 (Novembro de 2019)

 

1) Cf. Suma Teológica, II-II q. 40, a. 1; q. 64 a. 2-3. Catecismo da Igreja Católica, n. 2264-2265.