ABSOLUTA MISERICÓRDIA

Em sua justiça infinita, Deus tem razão de queixa de todos os homens.

Apesar disso, deixou-nos sua Mãe como nossa própria Mãe, e Maria tem para conosco todas as ternuras, bondades, afagos, perdões, as suaves adaptações de que o amor materno é capaz. Sabendo que o afeto de Nossa Senhora por nós é maior que o de todas as mães terrenas juntas em relação a um filho único, podemos estar certos de que Ela nos obterá de Deus o perdão ao qual não temos  direito, a generosidade que não merecemos, a complacência à qual não fazemos jus por causa de nossas misérias.

Por piores e inúmeros que tenham sido nossos defeitos, se confiarmos e esperarmos na Virgem Santíssima, à nossa claudicante fidelidade corresponder á da parte d’Ela uma absoluta misericórdia.

Pelos méritos de seu imaculado sorriso junto a Jesus, Maria nos alcançará a bem-aventurança eterna.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 47 (Fevereiro de 2002)

A Cátedra de Pedro: coluna do mundo

Fervoroso devoto da Cátedra de Pedro, Dr. Plinio não dispensava a ocasião — como atestam suas palavras aqui transcritas — de fazer reluzir aos olhos de seus discípulos a magnitude e a santidade com as quais a instituição pontifícia paira acima de todos os valores humanos, em sua divina missão de governar a Igreja e conduzir as almas à eterna bem-aventurança.

 

Como se sabe, no primeiro período de seu pontificado, o Papa [Beato] Pio IX tomou certas atitudes conciliadoras que alguns revolucionários chegaram a elogiar. Razão pela qual o brado de “Viva Pio IX!” passou a ecoar pelas ruas entre aqueles que não aceitavam a autoridade do Sumo Pontífice.

Distinção entre a pessoa do Papa e o papado

Nessa delicada conjuntura em que a figura de um Papa era assim vinculada aos ideais dos anarquistas italianos, vivia outro grande santo, São João Bosco. Este, quando ouvia algum de seus alunos ou conhecidos repetir aclamações a Pio IX, censurava-o, dizendo: “Não brade Viva Pio IX!; grite Viva o Papa!”

Eis a solução soberanamente inteligente. Porque “Viva o Papa!” pode-se bradar sempre. “Viva Pio IX!” ou outro pontífice, saúda-se conforme as circunstâncias.

Esse episódio consta no processo de canonização de São João Bosco, e tal atitude não impediu que fossem reconhecidas suas virtudes heroicas — e, portanto, sua inteira obediência ao Vigário de Cristo — nem que sua obra fosse abençoada pela Providência de todos os modos, ao longo dos tempos.

Devemos considerar que na raiz dessa posição de Dom Bosco encontra-se a importante distinção entre o Papa e o papado. Quer dizer, entre a pessoa do sucessor de Pedro, sujeita às misérias humanas e também a erros, em toda medida que não é garantida pela infalibilidade; e, de outro lado, a instituição pontifícia, inteiramente distinta da pessoa.

A festa da ortodoxia infalível

Por causa dessa distinção, a festa da Cátedra de Pedro, celebrada em 22 de fevereiro, é extremamente oportuna, pois celebra o Papa como mestre infalível, e o papado como a rocha inabalável do alto da qual o Soberano Pontífice se dirige ao mundo inteiro revestido da infalibilidade que Deus lhe outorgou. É, portanto, a comemoração da ortodoxia inerrante, dessa infalibilidade que nunca claudica.

Consta que da cadeira de São Pedro conservou-se quase toda a estrutura, a qual é guardada na Basílica do Vaticano, em Roma. Há ali um relicário de bronze, cujo interior abriga um banco de madeira, considerado a cadeira original do primeiro Papa.

Claro está, mais do que esse objeto venerável, a festa da Cátedra de São Pedro tem em vista o fato de Nosso Senhor Jesus Cristo ter confiado ao Príncipe dos Apóstolos as chaves dos Céus e da Terra, dando-lhe poder sobre tudo e sobre todos, a fim de governar a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e conduzir as almas à eterna bem-aventurança.

Oscular em espírito os pés da imagem de Pedro

Também no interior da Basílica do Vaticano, em sua nave central, encontra-se uma imagem de São Pedro sentado numa cátedra, as chaves pontifícias na mão esquerda e a direita erguida, na atitude de quem abençoa os fiéis. O pé direito do Apóstolo se projeta à frente, e sobre ele os devotos de todas as partes do mundo vêm depositar seu ósculo de amor e veneração. Em virtude desse preito mil e mil vezes repetido, os pés da imagem se desgastaram. Talvez seja o único exemplo da História em que a delicadeza do beijo alquebrou a força do bronze…

Em determinados dias do calendário litúrgico, essa imagem é revestida com os solenes ornamentos pontificais, como se fora um Papa vivo, para indicar a magnífica e evidente continuidade da instituição do Papado, desde São Pedro até nossos dias.

Creio que uma bela forma de nos unirmos a essa importante celebração seria oscularmos em espírito os pés dessa imagem. Quer dizer, em espírito oscular o Papado, esse princípio de sabedoria ou de infalibilidade da autoridade que governa a Igreja Católica. E por meio de Nossa Senhora, agradecer a Nosso Senhor Jesus Cristo a instituição desta infalibilidade, dessa cátedra que é propriamente a coluna do mundo, porque se ela não existisse, a Igreja não sobreviveria e o mundo estaria completamente perdido.

Como também — já o frisamos acima — estaria obstruído para nós o caminho que nos leva ao Céu, pois os homens não o encontrariam sozinhos, sem o socorro de uma autoridade infalível que os governasse e para lá os dirigisse.

Fidelidade concreta ao Romano Pontífice

Dessas breves considerações um aspecto me parece deve ser ressaltado. Falamos da distinção entre a pessoa do Papa e o papado, mas devemos considerar que o catedrático é o Romano Pontífice, e os poderes da cátedra nele residem. À Cátedra de Pedro estaremos unidos até morrer, notando sempre que ela nunca estará alheia ao catedrático. Este poderá sair da cátedra; esta, porém, jamais o abandona.

Portanto, não se pode ter uma fidelidade ao papado sem que seja fidelidade concreta ao Papa atual, na medida em que ele é infalível e detém o poder de governar e reger a Esposa Mística de Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 22/2/1964)

Catedra de São Pedro – “Ubi Petrus, ibi Ecclesia”

Em diversos números desta revista tivemos oportunidade de acompanhar as calorosas palavras com as quais Dr. Plinio reiterava suas manifestações de amor e devoção à Cátedra de Pedro. No ensejo da festa litúrgica do dia 22 de fevereiro, recordemos novamente uma dessas suas filiais expansões de entusiasmo pelo Papado, ao comentar nas páginas do “Legionário” a imposição do chapéu cardinalício a dois prelados brasileiros.

Em toda a longa e gloriosa história do Vaticano, durante a qual tantas cerimônias brilhantes se desenrolaram sob o teto de Pedro, em nenhuma, talvez, a universalidade da Igreja se patenteará de modo mais evidente [do que no próximo consistório]. Aos pés do Trono da Verdade, estarão os embaixadores de quase todas as nações do mundo. E, nos lugares reservados ao Sacro Colégio, figurarão lado a lado Cardeais europeus, americanos, asiáticos e africanos.

De mar a mar, dos Alpes ao Himalaia

Nunca se viu na História da Igreja, que a Púrpura cardinalícia cobrisse uma tão grande porção da Terra. Dir‑se‑ia que a sombra do báculo de Pedro cresceu, que entre suas extremidades que vão de mar a mar, de monte a monte, dos Alpes ao Himalaia, fica o mundo inteiro. O quadro é de uma grandeza apocalíptica. É impossível não pensar nas lágrimas, no suor e no sangue, nas mortificações, nas preces, na paciência e no heroísmo por meio do qual a Igreja, ajudada por Deus, chegou a tamanha glória. Quando se pensa nos primórdios do Catolicismo, comparado por seu Divino Fundador com o pequenino grão de mostarda, e se vê hoje que a copa da árvore é maior que os mais extensos desertos e as mais vastas nações, são todas as fibras católicas que vibram e se dilatam nos nossos corações.

Não prevaleceram!

Do esplendor desta magnífica realidade se desprende uma voz, porque os fatos falam. E esta voz, eco de outra Voz, nos diz com firmeza mais do que nunca: “non praevalebunt”. Do que adiantou a Nero, a Lutero, ao “Comité de Salut Public”, aos comunistas, investir contra a Igreja com uma fúria desabrida e ferina? Do que adiantou a Juliano o Apóstata, aos jansenistas, aos modernistas, aos nazistas, procurar infiltrar‑se como um cupim silencioso e cheio de lepra, nas próprias fileiras dos católicos? “Non praevalebunt”. Não prevaleceram. (…)

Frutuoso porvir para o Brasil católico

O Brasil se apresenta hoje, no concerto das nações, como uma força que nasce. Nossos recursos começam a pesar decisivamente na economia mundial. Nosso potencial humano já é tomado em consideração por todos que fazem estatísticas de guerra. Nossa posição geográfica começa a fazer de nós uma potência de primeira classe, neste “mare nostrum” dos povos civilizados, que é o Oceano Atlântico. Nossa vida intelectual se vai firmando, e, em todos os sentidos, começam a aparecer entre nós valores que marcam uma ascensão nas atividades do espírito. Hoje já somos alguma coisa. E, sobretudo, não há quem não veja que amanhã poderemos ser quase tudo.

Este Brasil tão rico em tudo, é sobretudo rico da maior das riquezas. É católico, profundamente católico, e o Batismo de Anchieta, que o consagrou a Deus em seus primeiros passos, até hoje não foi repudiado. Aos missionários sucederam os organizadores de nossa vida religiosa já irrevogavelmente firmada no solo agreste do novo mundo. A Hierarquia Eclesiástica se desdobrou aos poucos, e é hoje em nossa terra uma grande falange de pastores, cujos rebanhos crescem dia a dia. Cinco séculos em que Bispos, Clero, Religiosos, fiéis, trabalharam e lutaram para confirmar a graça recebida nas primeiras missões [que] frutificam nos dias de hoje. E tudo isto promete frutificar ainda mais amanhã.

É fácil imaginar com que carinho, com que predileção toda especial a Santa Sé vê hoje em dia este quinhão inapreciável de seu império espiritual. E é fácil imaginar com que atenção, com que simpatia, com que respeito todos os olhos se voltarão para os dois Prelados que o Sumo Pontífice encarregou da honra incomparável de velar pelos interesses mais delicados, pelos assuntos mais altos e mais nobres, que se referirem ao Reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo nas terras iluminadas pelo Cruzeiro do Sul(1).

Não fosse um deles o nosso próprio Metropolita, a quem nos prendem os laços de uma filiação espiritual selada com o próprio Sangue de Cristo, e ainda assim, como católicos e como brasileiros, não poderíamos deixar de nos associar a seu júbilo, em situação tão privilegiada em que se aproximarão do Trono de São Pedro.

Onde está Pedro, está a Igreja de Deus

Como de direito, porém, o máximo de nosso filial afeto voa aos pés do Santo Padre. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclesia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia”. Só nos unimos a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Homem e verdadeiro Deus. Só nos unimos a Jesus Cristo na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana que é o próprio Corpo Místico do Senhor. E só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, ai está a Igreja de Deus. (…)

Não há melhor meio de testemunhar amor ao Papa, senão obedecendo‑lhe. E obedecer significa fazer aquilo com que estamos de acordo, e aquilo que por nossa própria vontade faríamos. Significa aceitar como verdadeiro o que ele ensina e nós vemos que é verdadeiro.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído do “Legionário”, de 17/2/1946)

 

1) Os dois prelados eram Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Mota, este último, então Arcebispo de São Paulo.

Santa Isabel de França Junto ao trono, a glória da santidade

A dois passos do trono de um rei santo vive uma princesa, sua irmã, igualmente ornada das mais altas virtudes. A santidade levada na existência da corte e no claustro, orvalhada pelo perfume do ambiente medieval, é a moldura da vida desta princesa francesa do século XIII, naqueles idos da “doce primavera da fé”. Aos olhos de Dr. Plinio, trata-se de um lindo exemplo de como Deus glorifica seus eleitos.

 

Eis um fato pouco conhecido: São Luís, Rei de França, teve uma irmã igualmente santa, canonizada, cuja memória é celebrada em 22 de fevereiro.

No palácio, uma existência monacal

Em sua Vida dos Santos, o Pe. Rohrbacher nos fornece alguns dados biográficos a respeito dela:

Filha de Luís VIII e Branca de Castela, Isabel de França nasceu em 1225. Com menos de 2 anos de idade perdeu o pai, mas a mãe deu-lhe uma educação completa, auxiliada pela senhora de Buisemont, mulher culta e virtuosa.

Desde criança, Isabel mostrou aversão por tudo quanto pudesse afastá-la de Deus, decidindo mais tarde consagrar-se a seu serviço. Assim, quando Luís IX e Branca de Castela insistiram para que se casasse com Conrado, filho de Frederico II [imperador germânico], pois essa união era vantajosa para a França, Isabel recusou-se terminantemente. Uma carta de Inocêncio IV, então no trono pontifício, veio pôr fim a qualquer dúvida sobre o problema: felicitou a jovem por sua resolução e aconselhou-a a perseverar.

Desde então, no próprio palácio, Isabel passou a levar uma vida em tudo semelhante à do claustro, dedicando-se principalmente aos pobres e doentes. Deus enviou à sua serva muitas provas: enfermidades longas e graves; a morte da rainha-mãe, que muito a abalou; o insucesso do irmão na Terra Santa. Quando este voltou, liberto, Isabel deixou o castelo real e fundou em Longchamp uma casa para jovens, da Ordem de São Francisco, depois Convento da humildade de Nossa Senhora, do qual mais tarde foi superiora.

Como abadessa, sempre doente, foi favorecida por graças e êxtases, chegando, antes de falecer, a saber a hora e o dia exatos em que deixaria o mundo.

Santa Isabel de França faleceu em 1270. Revestida com o hábito de Santa Clara, foi sepultada no mesmo convento que fundou, conforme seu desejo. Dizem que seus funerais foram muito solenes. Depois de nove dias seu corpo foi exumado, e não apresentava sinal algum de decomposição.

A 3 de janeiro de 1521, o Papa Leão X permitiu que a Abadia de Longchamp celebrasse sua festa com um ofício próprio.

Em vez de prazeres e orgulhos, oração e cuidado dos pobres

Cumpre assinalar, antes de tudo, que esses dados constituem mais um exemplo para desmentir a lenda contrária às cortes, apresentando-as sempre como lugar de prazeres desregrados, sensualidade, exaltação do orgulho, onde a virtude não floresce.

Vemos aqui dois santos: um deles sentado no trono, e sua irmã nos degraus do sólio régio, ambos tributando a Deus toda a glória de que eram capazes. E não distante deles, brilhava a pessoa de Branca de Castela que, embora não fosse santa, era entretanto insigne por sua austeridade e por vários predicados morais.

Quanto à vida de Santa Isabel, percebe-se que o modo pelo qual a Providência trata seus santos é bem diversos do “happy end”(1). Conforme esse estado de espírito, as pessoas consagradas levam existência aprazível, sem dificuldades e provações.

Ora, trata-se aqui de uma princesa que abandona tudo para se dedicar à oração e a servir os pobres. Nota-se, de forma mais ou menos clara, que Isabel carrega uma parte do fardo de São Luís: ela sofre, geme, reza pelo êxito do Rei Cristianíssimo no governo, em sua cruzada e outros empreendimentos. Padece agudamente com o insucesso da expedição militar comandada por ele para libertar Jerusalém e pelo fato de São Luís ter sido preso.

Doente, santificou-se de modo mais rápido

Ela reside no castelo real, onde leva vida de monja. E quando o rei volta, deixa o local e funda um convento. Sua formação religiosa está completa.

Durante esse período, porém, é atormentada por graves doenças que constituem, evidentemente, contratempos às suas obras de caridade e até à suas práticas piedosas. Muitas vezes ela terá tido dificuldade em rezar por causa das enfermidades. Foi doente a vida inteira. Entretanto, ao longo de seus anos adquiriu abundantes méritos e se santificou.

Quis a Providência que Isabel enfrentasse um grande obstáculo o qual, na realidade, foi um meio para atingir a perfeição. Tornando-se doente, ela se santificou mais rapidamente e melhor do que se tivesse desfrutado de boa saúde. Esse é o fato concreto.

Convento da humildade de Nossa Senhora

Assim, verifica-se quão errado é pensar que todas as obras de apostolado devem correr de forma fácil, atingindo sempre bom resultado, sem encontrar dificuldades internas nem externas. Tal pensamento é equivocado e denota espírito naturalista, dado à mania do “happy end” exaltado pelo cinema.

Isso nos serve de lição. Às vezes, alguns de nossos empreendimentos apostólicos não logram o êxito que desejávamos, ou até fracassam. Devemos compreender que essas vicissitudes fazem parte de nossa existência neste mundo, são o “pão nosso de cada dia”; diria mesmo que é o modo normal com que a Providência age em relação aos que A servem. Desconfiemos: quando uma obra segue seu caminho sem topar com nenhum contratempo, não é obra de Deus.

Chamo a atenção para o lindo nome do mosteiro que Santa Isabel fundou e escolheu para lugar de seu recolhimento: Convento da humildade de Nossa Senhora.

Esse título nos dá a impressão de que naqueles corredores, nos claustros, nas celas e, sobretudo, na capela, pairava como que um manto da humildade de Nossa Senhora, agasalhando as religiosas na aniquilação de todas suas vaidades, de todo seu orgulho. E, ao mesmo tempo, protegendo-as, propiciando-lhes as alegrias que são um antegozo do Céu.

A notícia da morte, um prêmio recebido de Deus

Por outro lado, é belo considerar como Deus sempre glorifica seus santos. Nesse sentido, há uma impressionante oração de Nosso Senhor, na qual Jesus pede a Deus Pai que O glorifique, porque Ele já dera glória ao Pai Celeste(2).

Todos os santos são glorificados pelo Altíssimo, ainda que isto suceda no último minuto de sua existência. Santa Isabel soube exatamente em que ano e hora haveria de morrer, e permanecia serena. Atitude bem diversa de certas pessoas que se tomariam de medo se alguém lhes informasse a data de sua morte. Se não o medo, o cálculo otimista: “Que bom se me disser que morrerei com 93 anos de idade. E quando o dia chegar, ficarei um tanto aborrecido, pois saberei que morrerei mesmo, e não atingirei os 100… Ao menos passarei 90 anos sossegados; nos últimos três anos começarei a me preocupar. Mesmo assim, vale a pena!”

Mas, se lhe declaram que vai morrer dentro de 15 dias? Como se arranja?

Infelizmente, a maioria das pessoas demonstram medo em saber quando irão falecer. Não era esta, porém, a atitude de Santa Isabel de França. Ela considerava a morte uma libertação. Soube da data de seu passamento como se fosse um prêmio de Deus, e preparou-se para ir ao Céu como uma esposa se atavia a fim de encontrar-se com seu esposo. Percebe-se, assim, a extrema beleza de que se reveste essa maneira de morrer.

Diz a Escritura que a morte dos justos é preciosa aos olhos de Deus (Cf. Sl 115, 15). Realmente, nota-se que Santa Isabel teve uma morte tranquila, serena, porque sabia quando Deus iria chegar.
Imaginemos o que se passa no quarto de um moribundo, no exato momento em que exala o último suspiro. Ele é julgado por Deus e naquele dia mesmo pode estar contemplando o Senhor face a face, libertado de tanta miséria e tristeza, tanto infortúnio e risco de salvação eterna!

Assim deve ter sido a morte de Santa Isabel de França. Que ela interceda por nós, peregrinos neste vale de lágrimas, a fim de que alcancemos, nós também, um fim sereno e a eterna bem-aventurança.

 

1 ) Mentalidade incutida pelos filmes de Hollywood — espalhados no mundo inteiro, após a II Guerra Mundial — segundo a qual a vida não deve ser encarada com seriedade, pois tudo tem um “final feliz”.
2) Cf. Jo 17, 1-5.

As cruzes bem aceitas diminuem as penas do Purgatório

A pessoa que compreende que o natural desta vida é sofrer tem suas paixões mais ordenadas, facilitando assim a prática da virtude. Contudo, se é avessa a todo e qualquer sofrimento ela se torna orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa; enfim, desatam-se nela todos os desregramentos

As considerações externadas a seguir(1) desenvolvem a ideia de que uma das razões pelas quais devemos aceitar a cruz nesta Terra, é por ela nos abreviar as penas do Purgatório.

Expiar nesta vida as próprias faltas é um grande benefício

Mas se o castigo necessário dos pecados que cometemos for no tempo reservado para o outro mundo, a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue!

Castigo espantoso, inefável, incompreensível: “Quis novit potestatem iræ tuæ?”(2) Castigo sem misericórdia, “judicium sine misericordia”(3), sem piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim. Sim, sem fim: esse pecado mortal de um momento, que cometestes; esse pensamento mau e voluntário, essa palavra que o vento levou; essa açãozinha contra a Lei de Deus, que durou tão pouco, será punida eternamente, enquanto Deus for Deus, com os demônios no Inferno, sem que o Deus das vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem  misericórdia e sem fim!

Será que pensamos nisto, queridos Irmãos e Irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos felizes de poder trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por outra, passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência! Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves demais!

Ah, paguemos neste mundo de forma amigável, levando bem nossa cruz! Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último centavo, mesmo uma palavra ociosa (Mt 12, 36). Se   pudéssemos arrebatar ao demônio o livro da morte, onde anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande débito verificaríamos e como nos sentiríamos encantados de sofrer, durante anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!

Verdade que poucos tomam em consideração

São Luís Grignion desenvolve o pensamento em algumas considerações pormenorizadas, as quais merecem ser comentadas, tanto mais que fazem parte de um tesouro que todo mundo conhece, ou ao menos deveria conhecer, para conseguir a vida eterna.

Ele afirma que muitas pessoas, quando sofrem, não costumam pensar a respeito da vantagem que o sofrimento traz para elas em relação  ao Purgatório. Esta verdade é mais corrente do que se imagina. Entretanto, pouquíssimas são as pessoas que, ao sofrer alguma coisa, fazem o seguinte comentário: “Ainda bem, as minhas penas do Purgatório vão se tomar mais leves!” Embora esta verdade seja conhecida por todo mundo, quase ninguém a toma em consideração.

Porque há verdades tão surradas que nem nos lembramos delas. Entretanto, quando ouvimos serem  mencionadas, voltam ao espírito com enfaramento de nossa parte, tão conhecidas elas são. E quando alguém quer insistir sobre elas, vem a resposta: “Nós já sabíamos disso…”

Este é o último ponto de decadência em que uma verdade pode estar no espírito de alguém.

Infelizmente, esta verdade encontra-se neste estágio, até mesmo em muitos ambientes católicos. Por isso, julgo importante desenvolver este tema para refrescá-lo em nosso espírito.

Os sofrimentos desta Terra e os do Purgatório

O primeiro argumento dado por São Luís é de se tratar de um alto negócio trocar as penas do Purgatório pelos sofrimentos desta Terra. Porque estes são frutíferos, enquanto a pena do Purgatório não tem mais mérito. Nesta Terra, os padecimentos bem recebidos nos obtêm um lugar mais alto no Céu;   os do Purgatório, não. Portanto, tendo em vista a eternidade, é vantagem sofrermos nesta vida.

A maior parte das pessoas, ao receber uma adversidade, fica inconformada, revoltada, aborrecida, e este pensamento pode nos ajudar a carregar não sei quantas provações pelas quais temos de passar: “Estou sofrendo isto, mas, afinal de contas, o justo peca sete vezes ao dia; e na hipótese favorável de que eu seja justo, peco pelo menos sete vezes ao dia. Logo, estou expiando meus pecados aqui, mas conquistando méritos para o Céu, enquanto que no Purgatório eu não vou expiar com mérito”.

Outra consideração feita por São Luís é de que a pena nesta vida é rápida, passageira, enquanto no Purgatório pode ser longuíssima. Por exemplo, dez minutos sofridos aqui com paciência podem expiar um pecado que levaria dez ou cem anos para ser expiado no Purgatório. Lamentavelmente, há por vezes uma espécie de recuo da Fé, por onde esses pensamentos pesam pouco e não temos suficiente energia de Fé para transformá-los em convicção, em elemento dinâmico dentro da alma. Porém,  é um raciocínio de grande valor.

O fogo do Purgatório queima misteriosamente a alma Continua São Luís Grignion: Quantas dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no Purgatório durante séculos inteiros…

Aqui está uma ideia a respeito da severidade das penas do Purgatório muito pouco usual para nossos dias. Na realidade, se tomarmos em consideração qual é o alcance de um pecado, mesmo venial, compreenderemos que podemos sofrer muito tempo no Purgatório por causa de pecados bem confessados.

Consideremos que, segundo certos teólogos, o fogo do Purgatório é o mesmo do Inferno, e queima misteriosamente a alma. E isso pode levar séculos! Que tremendo se tivéssemos que passar dez minutos com o dedo queimando na chama de uma vela, sem anestésico e depois sem os mil cuidados da cirurgia moderna! Seria para nós um delírio, uma tragédia.

Imaginem o que seria passar dez anos com o dedo queimando no fogo de uma vela! É uma coisa inconcebível. Pois bem, no Purgatório está a alma posta inteira dentro do fogo, e às vezes durante um século! De 1867 para cá, quanta coisa aconteceu? Em 1867, Napoleão III ainda era imperador; Dom Pedro II, com sua barba loura, ainda reinava no Brasil… Durante esses cem anos, uma alma expiando um pecado no Purgatório!

Há revelações privadas que nos falam de pessoas que terão de ficar no Purgatório até o fim do mundo. Podemos nós saber o que nos espera?

Então, como devemos receber de boa vontade, com alegria uma penitência nesta Terra!

É preciso preparar-se para o sofrimento nesta Terra

Mais adiante ele diz: E como nos sentiríamos encantados  por sofrermos anos inteiros neste mundo para não sofrer um dia só no outro. Querem ver a repercussão sociológica desse pensamento?

Imaginem que a maior parte das pessoas estivesse compenetrada dessa ideia, da qual resulta a seguinte convicção: esta existência, de si, é uma existência de sofrimento. O homem é feito para sofrer enquanto ele não chegar ao Céu.

Logo, a primeira coisa que se deve ensinar a uma pessoa, para ela tomar atitude perante a vida e, em última análise, para sofrer pouco, é conformá-la à ideia de que ela vai sofrer muito.

Porque todos os homens que existem sofrem muito. Portanto, é preciso preparar-se para isso. E, segunda ideia, se não sofrer aqui, sofrerá no Purgatório. Com isso as pessoas perderiam muito de seu orgulho e de sua sensualidade. Sem dúvida, é uma consideração que humilha o homem, mas a alma fica apta a toda espécie de virtude. E quando lhe acontece algum revés, em vez de tomar a posição de alguém que está diante de um absurdo, já vai compreendendo que é o normal e estava previsto, pois o natural é sofrer.

Quantas centenas de milhões de pessoas estão postas na ideia de que é perfeitamente possível levar a vida sofrendo muito pouco, colhendo os frutos  da diversão e do bem-estar que esperam encontrar na realização de sua vontade!

Para essas pessoas qualquer pequeno tropeço é algo que não se compreende como tenha acontecido, um verdadeiro azar. Logo, é preciso lutar de faca na mão para evitar que essas coisas  aconteçam.

Resultado: a caverna onde habitam todos os pecados se abre. Porque com essa ideia a pessoa fica orgulhosa, pretensiosa, sensual, preguiçosa, enfim, todos os vícios se manifestam. O indivíduo fica entregue ao pecado e desatam-se nele todas as desordens, todos os desregramentos.

Por quê? Porque não se é amigo da cruz e não se quer compreender que o natural desta vida é sofrer.

É normal acontecerem reveses na vida

Noto muito essa mentalidade errada na concepção com que certas pessoas tomam as próprias atividades. Por exemplo, lançam um negócio que tarda um pouco a se resolver. Então começa a aflição: “Não viu o que está acontecendo?! Esse meu negócio está tardando a se concretizar. E agora, o que será?” Passam, então, a lançar previsões insensatas: “Se esse negócio arrebentar agora, vou ter que vender tal coisa… Não. Vendo tal outra, faço isso e aquilo…”  Ora, admitida a ideia de que é normal acontecerem reveses na vida, ficamos com a alma preparada para sofrer, sabendo que a qualquer momento podem vir coisas desagradáveis em cima de nós.

Assim adquirimos outra sensibilidade, outro bom senso, outro estímulo para a virtude e — coisa curiosa — sofremos menos. Porque, por mais que se sofra nesta vida, o medo do sofrimento que vem creio ser o maior de todos os sofrimentos. E esse medo vem dessa falta de profundidade.

Do ponto de vista sociológico, isso é de uma importância fundamental. Não se pode ter o Reino de Maria e uma Civilização Cristã se a grande maioria das pessoas não estiver compenetrada de que é normal sofrer. Mais ainda: de que o verdadeiro sentido da vida do homem nesta Terra é aceitar bem os seus padecimentos e conduzi-los corretamente.

Isso é carregar a Cruz de Jesus Cristo. O homem, com os olhos postos em Deus, deve estar satisfeito consigo e grato, não quando logra evitar os sofrimentos, mas quando consegue carregar bem a cruz. Esta doutrina aplica-se também ao apostolado.

Toda ação apostólica é acompanhada de sofrimento e é próprio a ela enfrentar os mais graves reveses, passar pelas dores mais cruciantes, suportando isso com resignação para de fato impulsionar quem deve ser impulsionado.

Creio não haver apóstolo que possa ser tomado a sério se não for um varão das dores. Ele tem que sofrer, mas não como os outros; ele deve ser um ponto de atração e de concentração das dores. Os sofrimentos precisam confluir no apóstolo, e ele deve recebê-los, abraçá-los como Nosso Senhor abraçou a sua Cruz ou como,  por exemplo, o Profeta Jeremias abraçou todo o imenso  sofrimento que ele suportou para, de fato, realizar os desígnios da Providência sobre ele.

Almas irradiantes para o apostolado

Devemos, pois, ter uma conformidade enorme com o fato de estarmos continuamente provados. E não só em nossas pessoas — por doenças, cruzes interiores —, como também em nosso apostolado, em nossos negócios, etc.

Para correspondermos inteiramente à nossa missão, devemos ser, ao mesmo tempo, escravos de Nossa Senhora, apóstolos dos últimos tempos e amigos da cruz. Não se pode ser uma das três  coisas sem ser também as duas outras; isto é indissolúvel.

É próprio da escravidão a Nossa Senhora, quando é bem vivida, dar  valor à cruz. O amor à cruz consiste em considerar normal sofrer reveses, e conduzir isso com serenidade, equilíbrio, força de alma, sem estar a toda hora procurando evadir-se do sofrimento para o reino da frivolidade,  da dissipação, da bagatela; mas, pelo contrário, recolhendo essas cruzes e cultivando-as no interior da alma.

Um bom exame de consciência seria perguntar-se: Eu estou crucificado por tal ponto; como estou carregando minha cruz? Levo-a com toda a conformidade, com todo o amor?

Estou alegre de poder servir a Santa Igreja Católica Apostólica Romana e de sofrer por ela? Se isto for assim, então sou um varão das dores. E neste caso, poderei ser um apóstolo dos últimos tempos e um verdadeiro escravo de Maria.

Isto se dá, em nossa vida espiritual, até em relação às nossas faltas. Temos pecados, imperfeições. Ficamos com o nosso amor-próprio espicaçado? Ou temos paciência em suportá-los e fazemos esta consideração: “É verdade, este mundo, além de ser um vale de lágrimas, é um vale de pecados. Eu pequei, infelizmente, mas vou conduzir a minha pobre e miserável condição de pecador com paciência.

Vou aceitar a humilhação que assim recai sobre mim, vou procurar me reerguer mais uma, duas, cinco vezes, tratando-me a mim mesmo com a paciência com que Nossa Senhora me trata. Não perderei a tranquilidade, mesmo na maior miséria e na maior tristeza. Aceitarei a humilhação como quem aceita a  cruz, e continuarei a andar calma e alegremente, com um sorriso até o fim da vida”.

Isso é propriamente o que torna as almas irradiantes para o apostolado.

Um dos traços dominantes de nossa vida

Conta-se que, estando Napoleão prestes a fazer aclamar-se imperador — naquele período que, segundo alguns autores, foi o verdadeiro apogeu dele — um daqueles bajuladores perguntou-lhe por que ele não se proclamava deus. E ele teria respondido: “Não dá certo, porque depois de Jesus Cristo só existe um jeito de ser tomado a sério como um deus: subir no alto do Calvário e se fazer crucificar. E isso eu não quero”.

Ele apanhou muito bem esta verdade: só é tomado a sério para as coisas divinas aquele que sofre. Não é pelos sucessos que se arrastam aqueles a quem se quer conquistar, e sim pela dor, por algo   de inexprimível existente no contágio de uma alma abnegada e que não  se procura a si mesma. E isso só se sente em quem sofre e aceita o sofrimento. Eis o que verdadeiramente atrai e faz apostolado.

A meu ver seria temerário pedir sofrimentos a Nossa Senhora. Mas trata-se de ter uma atitude de alma pela qual digamos a Ela que gostaríamos de estar preparados para sermos assim. E embora não tenhamos coragem de sê-lo,  se Ela quiser nos dar esta coragem, nós aceitaremos. Porque entendemos não ser inteiramente consagrado à Santíssima Virgem quem não compreendeu que deve  estar consagrado à dor.

De maneira a considerarmos como normal, como o pão nosso de cada dia nesta vida, a dor carregada  com resignação, espírito sobrenatural e paciência; a dor prevista e a imprevista; a dor explicada, e a dor inexplicável. Temos que fazer dessa aceitação da dor um dos traços dominantes de nossa vida, pois cada um de nós deve tornar-se um “vir dolorum” — um varão das dores.

Assim adquiriremos aquela flexibilidade de alma, aquela bondade, aquela generosidade, aquele desapego,  aquela submissão, aquela aniquilação que caracteriza o verdadeiro apóstolo dos últimos tempos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1967)

1) SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Carta Circular aos Amigos da Cruz, n. 22 e 23.
2) Do latim: Quem conhece o poder de tua cólera? (Sl 89, 11).
3) Do latim: julgamento sem misericórdia (Tg 2, 13).

A mesma Mãe

Entre o Verbo encarnado e nós há algo em comum, algo insondavelmente precioso: temos a mesma Mãe! Mãe perfeita desde o primeiro instante de seu ser concebido sem mácula. Mãe santíssima de tal maneira que, em cada momento de sua existência, não cessou de corresponder à graça; apenas cresceu, cresceu e cresceu até alcançar inimaginável elevação de virtude.

Essa Mãe, d’Ele e nossa, tem misericórdia do filho mais esfarrapado, torto, desarranjado; e quanto mais desarranjado, torto e esfarrapado, maior sua compaixão materna.

Minha Mãe: aqui estou eu. Tende pena de mim hoje, agora, como sempre tivestes e, espero, sempre tereis. Purificai-me, ordenai-me, tornai minha alma cada vez mais semelhante à vossa e à d’Aquele que, como a mim, é dada a indizível felicidade de vos ter por Mãe!

Plinio Corrêa de Oliveira

No Senhor há copiosa redenção – Salmo 129

Concluindo seus comentários ao Salmo 129 — o De Profundis — Dr. Plinio ressalta a beleza da alma arrependida que se sentiu objeto da amplitude do perdão divino. Transbordante de reconhecimento, o Salmista recomenda aos que trilham o caminho da vida: do início da manhã até a noite, confiai na bondade de Deus, pois o Salvador se encarnou no seio de Maria para trazer a todos a sua “copiosa redenção”.

Como já tivemos ocasião de observar em relação aos outros Salmos Penitenciais, também no De Profundis encontraremos uma preocupação com a beleza poética do texto que não o abandona um só instante. Não de uma poesia trivial, mas imbuída de algo encantador.

A contrição fez nascer a alegria

Podemos imaginar cidades daquele tempo pastoril, a maior parte delas pequenas, dominadas pela vida bucólica que as circundava, nas quais os habitantes se sentiam no campo. Fez-se noite. Enquanto quase todos dormiam, um pecador arrependido de suas quedas chorava, elevando ao Céu sua prece entre lágrimas, implorando a misericórdia divina.

Quando os primeiros raios do sol tingem o horizonte e a claridade da manhã principia a entrar pelas frestas da porta e da janela, o pranto dele toma certa nota de alegria. Poder-se-ia dizer que, assim como a noite gerou o dia, a contrição fez nascer a felicidade e trouxe o perdão.

“Confiai na misericórdia e sereis atendidos”

Afirma a seguir o Salmista:
Desde a vigília da manhã até a noite, espere Israel no Senhor.

Desde o despertar até a hora de dormir — em que a luta pela vida de certa forma se interrompe, os olhos se fecham e o sono toma conta do homem — deve ele esperar em Deus, mesmo sobrevindo as coisas mais indesejáveis. Pode até cair sobre um justo a série de infortúnios desencadeados pelo demônio contra Jó, fazendo com que todo o edifício de sua grandeza e felicidade terrena desabe em cima dele. Segundo o texto sagrado (cf. Jó 2, 9), aquele só não perdeu a esposa, que o acompanhou para criticá-lo na miséria. Leproso, Jó sentou-se num monturo de cacos, transformado na cátedra de sua dor. Ainda assim, confiou e esperou no Senhor.

Insisto na preocupação do Salmista de exprimir com pulcritude seus pensamentos, a fim de nos fazer sentir melhor o sabor da realidade.

Infelizmente, a vida moderna não favorece muito o hábito de nos determos a considerar essas belezas e com elas nos deleitarmos. Como essa é uma atitude equivocada! Se Deus realizou tantas coisas magníficas, sublimes, é seu desejo que nos aquietemos para nelas meditar e refletir.

Então o Salmista, como homem que teve a experiência da misericórdia de Deus, oferece este conselho: “Vejam como eu não merecia o perdão, mas chorei, pranteei e o obtive. Vós todos que andais pelo caminho, confiai na clemência divina desde a manhã até a noite e também a alcançareis!” É o sentido deste Salmo.

Abundância do perdão divino

Porque no Senhor está a misericórdia, e há n’Ele copiosa redenção.

A primeira frase desse versículo — “no Senhor está a misericórdia” —, pode parecer um tanto vaga, porém encerra profundo sentido.

Na verdade, a misericórdia existente no mundo é um desdobramento e um efeito do amor do Altíssimo para com os homens. Porque Ele é misericordioso, há homens misericordiosos sobre a Terra. E as pessoas concebidas no pecado original, esquecendo-se de Deus, podem se tornar hostis umas em relação às outras. Assim, quanto mais uma sociedade tende para o ateísmo, mais se transforma num conjunto de animais selvagens. …e há n’Ele copiosa redenção.

Isto é, o Deus Filho, encarnado, sofreu e morreu por nós, como nosso Redentor. Os méritos infinitos de seu sacrifício obtiveram do Pai Eterno o perdão de nossas culpas. Então, por sua misericórdia, Ele limpa os pecados dos homens, e o faz copiosamente, com abundância e largueza.

E Ele mesmo redimirá Israel de todas as suas iniquidades.

Meditando nessas palavras finais do Salmo, é difícil não pensar, uma vez mais, em Nosso Senhor Jesus Cristo como Salvador do mundo. Nesse sentido, revestem-se elas de um caráter profético, pois não apenas uma nação — no caso, Israel — nem estes ou aqueles indivíduos, mas a humanidade inteira necessitou de redenção. E o Redentor veio, gerado pelo Espírito Santo no seio puríssimo de Maria, padeceu e se imolou por nós, abrindo novamente para os homens as portas do Céu.

Pode-se dizer que Jesus verteu torrentes de sangue; ou seja, o sangue por Ele derramado era de certo modo dor liquefeita, sofrimentos indizíveis, amargados de todas as formas possíveis. Porém, a redenção operada por Ele é também copiosa, jorra aos borbotões.

Clemência paradigmática: a conversão do bom ladrão

Uma das mais tocantes provas dessa misericórdia infinita deu-se no último lance da Paixão, quando Ele, parecendo derrotado, ergueu um louro de vitória: a conversão de Dimas.

Três estavam crucificados no alto do Calvário: o Santo dos Santos, o bom ladrão e o mau. Este último, facínora como era, sentindo que sua vida terminava, inconformado blasfemava contra Nosso Senhor. O outro, ao ver Jesus pregado no madeiro, deixou-se tocar pela santidade do Verbo Encarnado. Dimas compreendeu que sua vida criminosa o tornava merecedor da punição recebida.

Porém, havendo em Cristo “copiosa redenção”, sentiu a ação da graça sobre ele, infundindo-lhe a esperança de receber o perdão daquele Homem, não só extraordinário, mas superior a toda cogitação.

Quiçá, antes de morrer, o bom ladrão pensou: “Ele não é um simples ser humano, mas é o Homem-Deus”. Abraçou, então, a fé que por assim dizer emanava de Jesus crucificado, de quem é abundante a clemência, e deve ter dito ao Salvador que O reconhecia e O adorava como Deus. E se Dimas não o declarou com palavras, explicitou essa verdade no seu coração, e Nosso Senhor, sem dúvida, conheceu os desejos e intenções dele.

Por isso Jesus lhe fez uma promessa que era a confirmação de tudo quanto ele sentia no seu íntimo: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Ou seja, o Redentor Divino perdoou todos os pecados do bom ladrão e, pouco depois, levava a alma dele para o Céu. Cabe considerar que, enquanto não se operou a Redenção pela morte de Jesus, nenhum homem entrou na bem-aventurança eterna. Nem mesmo São José, pai adotivo de Nosso Senhor, esposo legítimo de Maria Santíssima. E a esse ladrão, ex-miserável, gloriosamente redimido, o Salvador afirmou:

“Hoje estarás comigo no Paraíso”.

As almas de incontáveis justos presumivelmente esperavam há dezenas, centenas e milhares anos que o Messias morresse por elas na cruz e lhes franqueasse os umbrais do Céu. Ora, pouco antes do “consummatum est”, Nosso Senhor quis manifestar esse prodígio: tomou um bandido, transformou-o em santo e proclamou sua santidade ante os homens, dizendo-lhe: “Venha comigo!” A conversão do bom ladrão se insere, pois, nos fatos que estes versículos finais do Salmo 129, tocantes e proféticos, nos fazem entrever.

Plinio Corrêa de Oliveira

Unido à Cátedra de Pedro até a morte

Quando de sua primeira visita a Paris na idade adulta, logo após se instalar no hotel, Dr. Plinio se dirigiu a Notre Dame. Era noite, a cidade luz cintilava. Aproximando-se pela “rive gauche”, encantou-se com a vista da face lateral da catedral junto ao Sena, e mandou parar o automóvel para ficar um tempo contemplando aquela maravilha. Desejava glorificar a Deus refletido tão belamente no célebre edifício sagrado visto desse ângulo.

Essa atitude de admiração enlevada era manifestação de um amor pela Igreja que quase tocava nos limites da adoração, conforme declarou ele certa feita. Se São Francisco desposou a Dama Pobreza, aspirava Dr. Plinio com todo o coração fazer um desposório místico com a Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana enquanto instituição.

E, como de direito, o máximo de seu afeto filial se dirigia ao Santo Padre, o Doce Cristo na terra. “Ubi Christus ibi Deus; ubi Ecclesia ibi Christus; ubi Petrus ibi Ecclesia”. “Só estaremos unidos a Nosso Senhor Jesus Cristo, mediante uma união sobrenaturalmente forte, união de vida e de morte, à Cátedra de São Pedro. Onde está Pedro, aí está a Igreja de Deus”, escreveu ele no Legionário (17/2/1946).

Devotadíssimo filho da Santa Sé, em outro artigo para o Legionário, fazia Dr. Plinio esta eloquente apologia de seu filial e entusiasmado amor pelo Papado: “De tal maneira a Igreja Católica está vincada à Cátedra de São Pedro que onde não há a aprovação do Papa não há Catolicismo. O verdadeiro fiel sabe que o Papa resume e compendia em si toda a Igreja Católica […]. Porque tudo quanto há na Igreja de santidade, de autoridade, de virtude sobrenatural, tudo isto, mas absolutamente tudo sem exceção, nem condição, nem restrição está subordinado, condicionado, dependente da união à Cátedra de São Pedro. As instituições mais sagradas, as obras mais veneráveis, as tradições mais santas, as pessoas mais conspícuas, tudo enfim que mais genuína e altamente possa exprimir o Catolicismo e ornar a Igreja de Deus, tudo isto se torna nulo, maldito, estéril, digno do fogo eterno, e da ira de Deus, se separado do Romano Pontífice. […] para nós, entre o Papa e Jesus Cristo não há diferença. Tudo que diga respeito ao Papa diz respeito direta, íntima, indissoluvelmente, a Jesus Cristo”(16/4/1944).

Fiel até o fim ao carisma recebido, desejou Dr. Plinio morrer tendo nas mãos o crucifixo e uma vela benta pelo Papa, como derradeira e suprema manifestação desse incondicional afeto e devotamento à Cátedra de São Pedro de que sua alma transbordava.

Foi Dr. Plinio, sem dúvida, em toda integridade um autêntico “vir catholicus, totus apostolicus, plene romanus”!

Sem amor a Deus, não se alcança a paz

A ordem internacional tem de se basear necessariamente no amor ao próximo. Enquanto os povos não se amarem, não souberem pôr um freio a suas ambições ilegítimas e suas vaidades nacionais, não haverá ordem internacional.

E como o amor ao próximo [é] uma realidade vivaz e profunda, que brota do amor de Deus; como não é possível ter verdadeiro amor de Deus quem não ama a Nosso Senhor Jesus Cristo; e como não pode amar verdadeiramente a Nosso Senhor Jesus Cristo quem não está na Igreja Católica, enquanto a Igreja  não for reconhecida como a base do edifício internacional, a alma das relações entre os povos e a guardiã de toda a moral, não poderá haver na esfera internacional, para os povos, paz verdadeira.

Em outros termos, ou o mundo se converte e reproduz fielmente a visão agostiniana da “Civitas Dei”, em que cada povo leva o amor de Deus a ponto de renunciar a tudo quanto lese aos outros povos; ou pelo contrário, o mundo será aquela cidade do demônio, em que todos levam o amor de si mesmos a ponto de se esquecer de Deus, de calcar aos pés a moral, e de fazer da violação dos direitos dos povos fracos a norma habitual de sua conduta.

De todas as fases em que se divide a história, foi sem dúvida a Idade Média aquela que mais se aproximou da realização perfeita de uma civilização católica. Na esfera internacional, o conceito dominante era de “Cristandade ”. Esse conceito político tem os mais sólidos fundamentos teológicos, e se baseia na doutrina do Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, no qual nos inserimos por meio do santo Batismo.

Toda a tendência dos melhores doutrinadores consistia em reconhecer ao todo homogêneo formado pelos povos católicos, um só chefe espiritual, o Papa. Assim, obedientes a uma só doutrina, a um só pensamento, aos preceitos de uma só civilização — a católica — esses povos estavam sujeitos ao “veredictum” paternalmente imparcial de um só juiz, o Papa.

A pseudo-reforma protestante rompeu essa maravilhosa unidade, e retirou da alçada do tribunal internacional que era o Papado, numerosos povos. Rompido o elo de subordinação entre o Pai comum e tantos filhos rebeldes, evaporou-se das relações internacionais, de modo completo, o ambiente de família. E, à ordem cristã baseada no amor fraterno, se substituiu uma ordem baseada na desconfiança e no ódio. Nascer do ódio, significa nascer do mal, nascer do pecado, nascer do fracasso.

E, de fato, o pecado, o fracasso e o mal foram as três raízes mais profundas e mais ativas da nova ordem de coisas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Excertos de artigo publicado no “Legionário”, nº 491, 8/2/1942. Título nosso.

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

Sonhando com a Idade Média..

Incrustado nas montanhas da Baviera, famoso no mundo inteiro, o castelo de Neuschwanstein foi construído no século XIX pelo Rei Luís II, um homem apaixonado pelas coisas da Idade Média.

Seu entusiasmo por aquela época de fé e de grandezas cristãs o levou a idealizar um edifício que exprimisse todo o espírito medieval, e, mais ainda, chegasse a transcender em algo o estilo gótico.  Surgiu Neuschwanstein. O castelo se situa num panorama ultra favorável. Posto numa espécie de píncaro em relação a todas as circunjacências imediatas, servem-lhe de fundo de quadro três lindos aspectos da natureza. Primeiro, um longo movimento de montanhas que parecem convergir para ele, extinguindo-se aos seus pés. Depois, dois lagos cujas águas límpidas e cristalinas assemelham-se a espelhos, como são em geral as que se represam nos altos dos montes. Em terceiro lugar, uma floresta plantada, tão densa e tão vigorosa que parece uma mata virgem.

No meio de tudo, o castelo sobranceiro, dando a impressão de receber sua dignidade e sua força de todas as montanhas que nele desembocam. Domina de modo soberano tudo o que lhe fica  abaixo, como quem agarra a natureza em nome da majestade dos montes que o antecedem.

Como um rei procedente de uma genealogia fabulosa e de um passado grandioso, que no presente governa seus povos de forma altaneira. Assim temos esse castelo colocado no seu lugar. É uma  verdadeira garra subjugando a montanha, é um autêntico herói que olha do alto os panoramas, sentindo-se superior a todo o cenário que considera.

A primeira coisa que se nota no castelo é o jogo das torres. Sobretudo a mais elevada, que parece desafiar os montes às suas costas, como quem diz: “Não me contento em jugular o que está abaixo; eu discuto e rivalizo com aquilo que, acima de mim, quer contestar que me encontro, sozinha, no píncaro do orbe!”

Singularmente esguia, essa torre se divide em motivos ornamentais, culminando num telhado cônico que acentua a sensação de se tratar mesmo de um pináculo do universo. Terraços erguidos  sobre ameias, além de várias janelas, indicam uma torre própria para ser habitada.

E quando pensamos no que significa morar numa construção dessas, figuramos logo um quarto de paredes de pedra, com uma grande lareira onde o fogo aquece no inverno, projetando reflexos de labaredas num bonito vitral, enquanto se ouvem os ventos uivantes lá fora.

Ou então, na proximidade da primavera e do estio, sentindo que a natureza toda estremece e a torre continua firme. Compreende-se que é alguma coisa viver num local como esse! Bem diferente da existência num edifício de apartamentos…

Há depois o prédio principal do castelo, constituído de vários andares e que se prolonga em dois corpos laterais, mais baixos, entrecortados e finalizados por torres de diferentes feitios. Dir-se-ia que a grandeza de Neuschwanstein segue um ziguezague de torre a torre, sendo  rematada pelo pátio interno, como se este fosse uma taça que recolhe  em si toda a atmosfera de magnitude ali contemplada.

Existe ainda outra fachada do castelo, edificada em pedra (ou tijolo) de cor avermelhada, aberta por um portal magnífico e dando para um terraço de onde se domina a natureza.  Ali se ergue a última torre, reminiscência de todas as outras, que reproduz em ponto menor a grandiosidade da construção. Fosse esta última composta apenas por tal torre, dotada de uma vida própria, e já  teríamos um lindo castelo. Mas, por trás disso sobe uma verdadeira sinfonia de torres, ameias e tetos cônicos, até a suprema ponta que desafia as montanhas.

Todo esse conjunto nos transmite a ideia de uma grandeza sumamente hierárquica, que se desdobra nos seus respectivos degraus até se abrir para o que lhe é inferior, ter um afago para quem deseja ultrapassar seus portões com boa intenção, ou ter uma ameaça para quem se aproxima imbuído de maus sentimentos.

Porque este castelo tem qualquer coisa de fortaleza; e esta fortaleza, algo de cárcere. Para aquele que entra de acordo com a vontade do dono, não há maravilhas que não lhe sejam aí desvendadas. Para o inimigo e o criminoso, porém, reservam-se castigos e punições. Eis o Neuschwanstein, um castelo altamente simbólico do senso de batalha, de combate e de dignidade afidalgada do homem medieval.

Castelo tão belo de se ver, esplêndido sonho de um rei que poderia ter sido grande e não o foi, mas que deixou à humanidade uma extraordinária figura de tudo quanto estava destinado a realizar…

Plinio Corrêa de Oliveira