Admiração: doutrina e exemplos

Em Dr. Plinio a admiração surgia da conjugação dos princípios com os símbolos que os representavam. Este fenômeno atingia seu auge na consideração das coisas sagradas e da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Todos nos lembramos dos cursos de Catecismo que fizemos, os quais eram inteiramente padronizados. Se compararmos os manuais de Catecismo de diversas épocas, veremos haver entre eles apenas mudança de ortografia, o que, aliás, tem seu lado muito louvável: “És cristão? Sim, sou cristão pela graça de Deus. Ser cristão é ser batizado, crer e professar a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc.” É um escachoar de esplendores, mas apresentado sob a forma da estrita doutrina.

Parabolização

Aquilo causa admiração? Causa, e todos nós tivemos fugazes movimentos de admiração ao longo do curso de Catecismo, e depois, no decurso da vida, com aquilo que aprendemos na catequese. Quer dizer, de vez em quando, um ou outro aspecto vem à memória, achamos bonito, e aquilo fica depositado no espírito. Essa é uma admiração de caráter meramente doutrinário diante da qual o homem comum não se sustenta por muito tempo.

Minha posição admirativa perante esses princípios teve mais longevidade porque Nossa Senhora me deu, de um lado, certa profundidade de espírito e, de outro lado — coisa muito importante que, a meu ver, convém frisar —, uma facilidade de compreender estados de alma de pessoas que conheci, ou sobre as quais li ou ouvi falar, como também interiores de casas, aspectos de fachadas, paisagens, plantas, animais e uma série de coisas relacionadas com isso, o que me permitia fazer uma fabulação, isto é, transformação do princípio na fábula. Mas seria muito mais correto dizer “parabolização” daquilo que foi visto no Catecismo; é a aplicação dos princípios.

Princípios assimilados através de objetos

Dou um exemplo característico: enquanto, em toda a minha vida, tive desinteresse por calicezinhos de licor, pequenos, bonitinhos, mas que não me dizem nada, os cálices grandes, de um tipo que se deixou de usar já no século XIX, sempre me interessaram muito. Primeiro de tudo, os cálices usados na Missa sempre me falaram enormemente.

De outro lado, certas taças mais antigas que tinham a forma de cálice. Por exemplo, na Idade Média, cálices pesados, com cabos cheios de pedras preciosas, nos quais se punha um vinho generoso e abundante, e que eu, amigo do vermelho, gosto de imaginar o “Bourgogne”. Beber aquilo me parece que é nobre, dá alento ao homem, circulação à vida, a natureza se torna mais robusta. Sobretudo se o cálice é um pouco rústico, de um cristal grosso, quase uma rocha dentro da qual se cavou um cálice para ser usado por algum par de Carlos Magno… Parece-me muito convidativo.

Isso me fala muito da mentalidade humana enquanto realizando a síntese do pensamento. A forma do cálice me sugere um pensamento cuja conclusão e síntese estão no ponto onde o cálice encosta na haste.

No cálice da Missa está presente o holocausto por várias razões considerado, que se fecha efetivamente no propósito e na consumação do martírio. Levantar um cálice de ouro é de “toute beauté”!(1) A elevação do cálice sempre produz em mim muito efeito, porque a Fé me ensina que ali estão o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e também porque, para mim, o holocausto feito na Missa se simboliza muito no cálice.

Então, vemos a verdade de Fé muito relacionada com um objeto a serviço desta verdade. Assim, há uma facilidade muito grande de guardar o princípio, por causa exatamente de um objeto que fixa a parábola ao princípio, dando a este uma espécie de vida que, para o meu modo de ser — para um indivíduo mais intelectual talvez não seja assim —, é absolutamente indispensável.

Lamparina do Santíssimo Sacramento, mármores e incenso

Um objeto que tem algo a ver com o cálice e produz em meu espírito um efeito análogo é a lamparina. Lamparinas bonitas, bem arranjadas, havia muitas antigamente. As lamparinas nem sempre têm um valor extraordinário, mas possuem um elevado aspecto simbólico.

Eu tenho, graças a Nossa Senhora, uma facilidade por onde, numa vigília noturna, por exemplo, diante do Santíssimo Sacramento, olhando para a lamparina, as considerações doutrinárias que faço pousam sobre a lamparina, tomando-a como símbolo, conferindo uma proporção humana àquelas considerações teóricas.

Para meu uso pessoal, isso significa muito e dá, então, aos princípios do Catecismo um complemento que me facilita admirar.

Mármores muito bonitos empregados em igrejas me dizem muito também. Havia igrejinhas paroquiais na São Paulinho, que eu conheci no meu tempo de menino, e diante das quais me extasiei a justo título. A Igreja de Santa Cecília, por exemplo, é igrejinha paroquial. Mas tem uma capela do Santíssimo Sacramento com mármores de Carrara, representando desenhos geométricos.

Fiquei encantando com aquilo. E aqueles princípios geométricos se assimilaram em meu espírito a uma lógica, a um vigor, a uma coerência, que a força conferida pelo Santíssimo, pela Comunhão, dá à alma e exige dela.

E, assim, mil outras coisas!

Por exemplo, o incenso é uma coisa fenomenal! Simboliza a alma humana que se eleva na oração, mas a alma sacrificada, dolorida, que está queimando, e faz subir a Deus uma oração de agradável odor. Mas também a homenagem respeitosa, nobre, aristocrática, que sobe até o trono de Deus.

E, depois que o incenso se espalha bem na igreja e dá a impressão de que as nuvens vieram povoá-la, tornando-a meio conatural com o céu. Assim, há uma porção de coisas que a mim falam muito agudamente e que, em toda a minha vida, relacionei com os princípios, facilitando a admiração por eles.

Admiração: conjugação elevada de diversos princípios

Em nós a admiração não é uma operação de Anjos, mas de homens, em que os princípios precisam estar associados, conjugados, relacionados com símbolos, e daí subir — por assim dizer, explodir — à admiração.

Isso eu fazia com uma multidão de coisas da vida. Por exemplo, certa ocasião meus olhos caíram num quadrinho colocado na parede de uma sala, o qual representava uma caravela saindo da laguna de Veneza e demandando o mar. Não pretendo nem um pouco dizer que se tratava de um grande quadro, uma maravilha, mas era um bom quadro. A água era apresentada num colorido muito matinal, uma espécie de azul ligeiramente esverdeado, que parecia quase uma pedra preciosa.

Por detrás, em contraste com a serenidade matinal do mar, uma acumulação de nuvens ainda luminosas, mas que para mim falavam de um porvir borrascoso para a nau. O navio parecia sair da laguna com a tripulação inconsciente dessas nuvens e toda enlevada com a água. As velas enfunadas pareciam exprimir o desígnio humano de navegar, enfunado pela esperança da navegação bem sucedida e pela alegria da viagem, da mudança, do lucro e do risco.

Daí uma facilidade muito grande de admirar aquilo. Não estou analisando o quadro enquanto quadro, mas a paisagem. Teria mais valor ainda se eu a visse, não numa tela, mas na realidade.  O valor da cena representaria mil aspectos nobres da alma humana, que eu passo a definir.

Primeiro, uma mobilidade leve e decidida rumo ao desconhecido, que é o passo da coragem, do destemor. Depois, uma espécie de altura; o mastro central parecia desafiar o mar, com uma atitude ligeiramente de senhorio em relação ao mar, como quem diz: “Eu te vejo de cima, e tu não me engolirás!”

Mas, de outro lado, as saudades pesam em algo. O barco não dava a impressão de estar saindo muito depressa. Ele parecia dizer um discreto adeus à terra. E, por fim, a borrasca atrás parecia afirmar que os navegantes estavam com a alma decidida ao risco. A cena lembrava estados de alma muito bonitos.

Ou seja, por detrás disso estavam princípios que se tornam mais fáceis de serem amados quando se fazem essas correlações.

Daí nasce a admiração. Porque assim é fácil admirar. Imaginemos que colocassem em nossas mãos um tratadinho intitulado: “Das virtudes do navegante”. Pode ser muito verdadeiro, apreciável. Eu gostaria enormemente de ter esse tratadinho para ordenar, dar o sentido profundo das impressões que aquilo me causou. Mas no “éclat”(2) da admiração, a impressão tem seu papel.

Grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando

Gosto muito da imagem do Coração de Jesus que se encontra na sala de visitas de meu apartamento, venero-a muito. Mas ela é muito menos expressiva, como imagem, do que o quadro acima descrito.

Diferente é a impressão que me causa, não a imagem, mas o próprio Coração de Jesus. É, em seu aspecto afável e doce, a própria perfeição, de uma superioridade infinita em relação a qualquer pessoa que se achegue a Ele. Mas de uma dessas superioridades que nem sei como qualificar; é total! Os homens só não se surpreendem com o Sagrado Coração de Jesus porque são de pedra mais dura do que o alabastro com o qual foi feita aquela imagem.

É a grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando, e não enquanto pondo o indivíduo no lugar e dando uma lição de hierarquia. Entretanto, a lição de hierarquia está ali presente. Quer dizer, é impossível olhar para Nosso Senhor sem cair de joelhos. Em qualquer leitura do Evangelho, queiramos ou não, fazemos uma imagem mental de Nosso Senhor. E esta imagem mental sempre leva a pessoa a se ajoelhar. E com o Coração à mostra, ainda muito mais.

Nosso Senhor dormindo no barco

Consideremos as várias cenas do Evangelho, que estão na linha do Sagrado Coração de Jesus. Nosso Senhor dormindo no barco, durante a tempestade, por exemplo.

É a coisa mais comum que pode haver. Um marzinho, um barquinho ordinário e um homem com uma túnica pobre — mas, segundo uma bela tradição, esta túnica era inconsútil e crescia com Ele! —, deitado e dormindo. E o sono de Jesus, que harmonia! Que doçura, que perfeição! Quanta reflexão dentro deste sono! Que elevação a deste repouso! O mérito santíssimo daquele cansaço que assim se desprendia d’Ele e subia como holocausto até o Céu.

O contágio do repouso, da paz d’Ele, para quem O olhasse. Nunca seria possível aproximar-se d’Ele e vê-Lo dormindo, sem imediatamente se ajoelhar. No que diz respeito a mim, uma vontade enorme de tocar n’Ele, e uma falta de coragem! Como é possível tocar n’Ele? Nem em suas vestes, em que tocou aquela mulher, eu ousaria tocar. O lugar onde se soube que Ele pousou os pés, se não deixou marca, ali eu ousaria oscular; se deixou, não ousaria. Porque é Deus!

Podemos imaginar como os cabelos d’Ele, durante o sono, se dispunham em torno dos ombros… Não ornamentalmente, mas com certa naturalidade. Porém, que efeitos produziam! Sua respiração perfeitíssima, enquanto dormia, exalando amor àquele que de olhos fechados Ele via! O que se passava durante o sono d’Ele, o que significa seu sono? Incontestavelmente dormia. Mas, não é como o nosso sono… Não será que Ele rezava enquanto dormia, dirigindo-Se ao Padre Eterno? A natureza divina d’Ele certamente falava. E o que falava?

Será que não teria conhecimento de que nos encontrávamos ali perto? E não estava nos comunicando graças durante este tempo, enquanto dormia?

E nosso furor se alguém viesse dizer que, do lado de lá do lago, há gente que trama a morte d’Ele. “Acontecerá qualquer coisa, menos que toquem n’Ele. Bandidos!” Creio que a única coisa que poderia distrair um homem do fato de Ele estar lá seria a ideia de que os assassinos estivessem ali perto. Mas, ainda nisso, entrava uma admiração sem limite. Como é maravilhoso admirar! Aí sim, sentir-se pequeno, que coisa maravilhosa!

Nisso entraria toda uma teoria da admiração!

Porém, isto tem uma recíproca: a pessoa não ser capaz de ver uma coisa sem reportar até os princípios. E, portanto, certas admirações que eu tive, deixando-me “écrier”(3) de encantamento.

As correlações ajudam a alimentar a admiração…

A grande casa de modas em São Paulo era “La Saison de l’Année”, que fazia vestidos para senhoras de acordo com a estação do ano. A casa não era francesa, devia ser de uma Da. Francisquinha, que parecia entender do “métier”; sabia, sobretudo, ganhar dinheiro, fazia muita fortuna. E sabia muito bem agradar senhoras ricas. Ela era “francesosa”.

Mas, então, chegavam lá na Francisquinha, com um pimpolho chamado Plinio, conduzido pela mão e desolado de ter que entrar na casa de modas. Sentia uma caceteação sem nome, tanto mais que a cliente e a Da. Francisquinha esqueciam absolutamente que o pimpolho existia. E embarcavam nas suas elaborações infindas. Porque a Da. Francisquinha devia fazer a crítica, mas quão amável e respeitosa para não perder a freguesa.

E surgiam novas sugestões. Então, as vendedoras traziam pilhas de revistas que colocavam sobre a mesa, e debatiam. De maneira que uma sessão com a Da. Francisquinha, o mínimo que levava era meia hora. Mas para um menino, ficar meia hora sem ar… Devemos imaginar tudo isso na São Paulinho pequena, muito rica — sempre foi rica — e totalmente europeizada.

Havia uma casa de flores chamada, se não me engano, “La Rose de France”. Vemos em tudo a influência francesa, a qual eu hauri de todos os jeitos, a plenos pulmões e de todos os modos. Como nas outras casas de flores, havia uma vitrine. De repente, “La Rose de France” resolveu pôr um sistema de umectar continuamente a vitrine, de maneira a conservar melhor as flores. E, ao longo de toda a vitrine, pequenos arcos de água caíam formando filas. Tornava-se uma espécie de cortina de água transparente, constituindo como que um babadozinho, mas que era uma coisa linda!

Lembro-me de que, indo ao colégio de bonde, passei em frente dessa casa de flores e, de repente, notei aquela modificação na vitrine e pensei: “Ah, que maravilha! Se pudesse, eu descia para ir olhar lá em frente. Não posso descer. Mas que coisa estupenda!”

Encantei-me, ­admirei enormemente porque há uma porção de estados de espíritos no homem que cortinas desse gênero me sugerem, e que a água disposta assim sugere ainda mais. Donde uma admiração, porque tem uma relação com a alma humana, com situações históricas que foram assim, etc.

Esse relacionamento fácil ajuda enormemente a admiração.  E eu me pergunto se nós todos não poderíamos adquirir isso, se quiséssemos.

…e esta, por sua vez, torna-se uma evidente defesa da pureza

A expressão “Santa Igreja” diz que a Igreja é santa. Intelectivamente se compreende o que é a santidade, mas há uma beleza na expressão “Santa Igreja”, que faz reluzir esta verdade. A Santa Igreja é uma coisa celeste, divina! A Santa Igreja Católica Apostólica Romana… A própria cadência dos adjetivos é de uma beleza extraordinária!

Um simples tratado de Teologia, para quem é insensível a isto que nós estamos dizendo, deixa a alma com todos os elementos para a admiração? Eu não creio. Estou longe de menosprezar o tratado de Teologia. Eu penso que ele, como contém a verdade expressa, é muito mais importante do que isso. Mas não quero dizer que a alma humana deve estar dissociada disso.

Inclusive o vocabulário humano é criado para exprimir essas coisas. Não é criado só para isto, mas também para isto, numa função que a meu ver é altamente conveniente ou necessária.

São Paulo afirma que os romanos, por não terem o desejo de amar essas coisas, caíram na imoralidade. A meu ver, isto que estou explanando é uma defesa da pureza; é até uma evidente defesa da pureza.

Entretanto, no espírito dos homens contemporâneos, a Revolução pôs a ideia de que se devem estancar os surtos de alma que vão nesse sentido, porque formam um homem fantasioso, inútil e desviado nas suas elucubrações.

Unir-se é ver, admirar e inalar!

Lembro-me bem de como o carinho de mamãe ajudou-me a fazer correlações como essas.

Eu acordava durante a noite com insônias, ia até a cama dela e tinha a inconsciência de me sentar sobre o peito dela, e abrir seus olhos com as mãos. Eu percebia que mamãe estava com muito sono, mas ela abria os olhos, olhava-me com afeto e imediatamente dizia: “Meu filho!” E tirava o seu travesseiro e me punha sentado sobre ele — era uma criança de dois, três anos — e começava a brincar comigo.

Ela tinha me salvado daquele “naufrágio” de estar acordado sozinho num quarto escuro, onde apenas um pouco de luz entrava por uma bandeira de uma porta. Ela me havia salvado do desespero. Mas com que abundância de bondade!

Quando vinha o sono, ela me deitava, brincava ainda um pouquinho comigo, e eu dormia. Naquele tempo eu já pensava: “Querer bem é assim, e com ela eu me arranjo!” Mas não era um pensamento utilitário. O querer bem é assim… Minha ideia era: “Eu preciso querê-la assim, e já estou querendo”.

Ao chegar a velhice dela, eu a ajudei no “naufrágio”. Porque a solidão naquela idade seria um naufrágio, do qual a solidão da criança, no quarto durante a noite, era uma imagem. E creio ter feito com ela o que ela fez comigo.

Vendo-a querer-me bem daquele jeito, eu aprendi com ela, nela, a querê-la bem do mesmo modo. Quando se vê alguma coisa em alguém e ama de maneira a modelar seu espírito de acordo com aquilo, isto é união.

Subindo infinitamente de ponto, quem olhasse Nosso Senhor dormindo na barca, ou era de uma ingratidão soberana, ou sairia de lá com outra alma. Porque unir-se é isso. É ver, admirar e inalar! Receber, acolher e modelar-se. Isto é unir-se!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/10/1984)

 

 

1) Do francês: de toda beleza.

2) Do francês: brilho.

3) Do francês: gritar, proclamar fortemente.

São Francisco de Sales – Doutor da doçura e da suavidade

São Francisco de Sales foi o anti-calvinista, o anti-jansenista por excelência. Lutou contra aquela forma hirta de piedade protestante que nos queria apresentar um Deus justo, entretanto mau, e que está louco para dizer: “Agora te peguei! Você pecou e vai pagar, está compreendendo?!” Daí todos os rigores horrorosos do calvinismo, o qual fez um grande mal à Europa.

Doutor da doçura e da suavidade, São Francisco de Sales tinha um verdadeiro carisma para fazer sentir os aspectos doces da Religião Católica e levar as almas, através da doçura, a realizar verdadeiros sacrifícios, maiores e mais numerosas penitências do que os jansenistas impunham aos seus sequazes.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/2/1966)

Verdadeira cultura e tipo humano

Qual o verdadeiro conceito de cultura? Por que os “produtos” culturais destilados pela Civilização Cristã são tão superiores aos engendrados pelo paganismo? Durante uma reunião de trabalho, Dr.  linio fez algumas explicitações a respeito dessas questões. Oferecemo-las a nossos leitores tais quais ele as expôs.

 

Deus, organizando o universo, teve a intenção de Se fazer conhecer pelos homens enquanto causa de toda a criação, e conhecer-Se nos seus predicados divinos.

Portanto, fazendo conhecer as criaturas pelos homens, Ele faz conhecer não só cada uma em particular, mas faz conhecer a excelência do conjunto da criação, enquanto conjunto. Como diz o Gênesis, Deus, após ter criado tudo, repousou na consideração daquilo que Ele tinha feito e alegrou-se — é um modo de dizer — porque viu que o conjunto era ótimo.

Do conhecimento de todas as criaturas, para cada homem ficam as impressões e os conceitos. Mas fica uma impressão global do conjunto, que por sua vez dá um certo conhecimento, uma certa noção, leva a um certo conceito, que é mais alto do que o conceito dos seres tomados individualmente.

Cultura de uma região ou de um povo

Uma palavra cujo sentido é muito discutido hoje em dia é “cultura”. Na verdade, para quem tenha elevação de pensamento religioso, cultura é precisamente o conhecimento global que os homens têm do universo, acompanhado de um conceito e de uma sensação a respeito do universo que não é igual para todos, mas que tem uma certa acomodação dentro da objetividade, conforme cada pessoa, família, região, nação. Segundo cada qual, isso vai se matizando e tendo uma espécie de visão própria — sempre objetiva, embora diversa — do que é o universo, do que é Deus, do que são  os elementos componentes do universo e de que maneira refletem a Deus.

Isso caracteriza o espírito de um indivíduo, de uma família, de uma região, de um país ou de uma área de civilização. E quando caracteriza o espírito de uma área grande, pode-se dizer que tal visão é a cultura daquela zona.

A cultura vem a ser esse conjunto de conhecimentos e, portanto, também esse conjunto de mentalidades, fundamentalmente religioso, embora — e este ponto nos diversifica muito de certos modos de religiosidade — não exclusivamente eclesiástico ou não exclusivamente dado à oração, mas dado a um conhecimento religioso da coisa temporal.

Há, pois, um sentir das coisas afim com o pensamento, que enriquece a conceituação e é por ela enriquecido. Não se trata de algo meramente conceptual e doutrinário, como está no livro “Revolução e Contra-Revolução”, mas também de algo de sensível, que completa. A exposição que faço nesse livro não compreende o meu pensamento global.

Esse é meu pensamento sobre a matéria, o qual, como sempre, sujeito amorosamente, com alegria, à correção que o Magistério da Igreja julgue conveniente introduzir.

Deus opera dentro da chamada religião natural Há um pensador francês que chama essa visão de “lumière” [luz]. É mesmo uma “lumière”?

À primeira vista seríamos levados a negar, porque pensamos em “lumen” [luz] da graça, e a graça é sobrenatural.

Ora, o que acabo de expor se desenvolve na linha natural. Deus, quando faz ver o universo ao homem e, através do universo, faz ver que Ele existe e como Ele é, opera dentro da temática chamada religião natural. É a religião que não vem da Revelação, mas da razão humana. Tudo quanto expus até aqui vem da razão humana. Qual é o papel da fé e, portanto, também, qual é o papel da graça nesse conjunto? Qual é o papel da Igreja? O que é “lumière” aí?

Tratemos de esclarecer essas questões. Penso que a palavra luz poderia se aplicar aqui em dois sentidos. Um é o sentido da luz natural, a “lumen rationis”, pela qual o homem crê em Deus, crê na unidade de Deus, crê numa porção de dados da religião que lhe vêm da razão. Para dar adesão a esses dados naturais o homem não precisa da graça, embora esta possa ajudá-loe esclarecê-lo.

Para crer naquilo que é revelado é preciso a fé. Aí se faz necessário o dom específico da graça, um recurso sobrenatural pelo qual o homem se torna capaz de entender e de dar adesão ao que é revelado.

Devemos ainda levar em consideração que, quando Deus nos concede graças, estas se fazem conhecer por uma espécie de contato. Por uma sensibilidade proveniente da ação do sobrenatural em nós, sentimos algo que nos toca e nos eleva rumo às coisas divinas.

A experiência mística é uma das razões mais profundas da fé

Por exemplo, temos uma série de percepções do divino em nós, em várias ocasiões de nossa vida. Quando, às vezes, comungamos, temos uma certa percepção; às vezes quando entramos numa igreja onde está o Santíssimo, percebemos que Ele está lá. Ou quando visitamos, por exemplo, a Sainte Chapelle.

Não sou um homem emocional, até tendo ao contrário. Contudo, quando pela primeira vez entrei na Sainte Chapelle, já no pavimento térreo, achei-o, desse ponto de vista, tão sensibilizante de coisas sobrenaturais que tive uma verdadeira exclamação: “Ah!” Quer dizer: “Que beleza!” Por essa minha reação pode-se imaginar o que senti quando cheguei ao andar de cima, muito mais esplendoroso.

A expressão “que beleza!” exprime a percepção de um “pulchrum” [belo] sacral e sobrenatural. Não é uma consideração puramente estética como se pode ter, por exemplo, diante do Parthenon de Atenas, mas é algo que me toca favoravelmente, admiravelmente, ao ver, por exemplo, os vitrais da Sainte Chapelle.

Claro que a sensação do belo que está mesclada com isso pode ser estudada do ponto de vista natural e se podem encontrar aí as regras da estética.

Mas por cima há outra coisa que toca, e que a meu ver é uma das razões mais profundas da fé que tem o católico: é uma experiência mística, que é essa sensação do sobrenatural, e que completa —  na linha de conhecer a criação feita por Deus — a visão dessa criação, porque o ápice da criação é a graça. Isso faz com que o católico, nessa matéria, tenha um “acabamento” cultural — no sentido  da palavra cultural que expus atrás, de conhecimento do universo — em que ele percebe a presença da graça em coisas que às vezes nem são diretamente religiosas, mas nas quais ele percebe a raiz  religiosa. E sentindo a raiz religiosa, ele com a fé do carvoeiro brada: “Eu creio!”

Elogio à Torre de Belém é feito com emoção religiosa

Tantas vezes tenho elogiado a Torre de Belém, em Portugal. De cada vez faço-o com uma emoção religiosa. Não é como quem elogiasse, por exemplo, o Taj-Mahal, que é uma construção pagã. Olhando a Torre de Belém, a graça me toca a respeito de um monumento no qual se refletiu e se reflete a graça que levou os primeiros navegadores, primeiros missionários e primeiros conquistadores a empreenderem as epopeias deles, continuação da graça da reconquista do território português contra os mouros.

Tudo isso forma um sulco histórico só. Quando fui à França da última vez, fiquei longamente olhando o castelo de Chambord. Eu seria capaz de ficar ali indefinidamente fitando esse castelo, mesmo durante a noite. Não, porém, por causa de sua relação com Francisco I, mas por algo da França de Clóvis, da França de São Remígio, da França de Santa Clotilde, enfim, de todas as  Franças, da França da irmã de Luís XVI, que foi beatificada — é isso que me toca vendo coisas assim e que formam, portanto, o ápice da cultura.

Bem entendido, posso ver isso nas coisas temporais, mas sobretudo na Santa Igreja Católica Apostólica Romana tomada ela como um todo.

O tipo humano, o mais magnífico produto da cultura

E aqui se segue outra “lumière”, uma luz sobrenatural que se soma à luz natural na mesma linha e da qual nasce um dos mais magníficos produtos da cultura: o tipo humano. Cada civilização, cada cultura, cada graça para o estilo de civilização e de cultura que Deus quer para um país, ajuda a formar um tipo humano, e esse tipo humano é a obra-prima da Igreja e da sociedade temporal numa área de civilização.

A destilação de um tipo humano é a obra-prima de todo esse conjunto de causas e efeitos. Quando um povo, no seu conjunto, anda bem na vida espiritual, gera o tipo humano perfeito que Deus, quando criou o homem, queria que em certo momento da História fosse gerado.

Esse tipo humano não é só uma raça, não é só uma nação. É uma forma de perfeição espiritual que é o homem, a vida tomando o seu corpo como símbolo de sua alma e fazendo de seu olhar, de sua voz, de seus gestos, de todo o seu andar símbolos de sua alma. Manifestando uma alma que não é a de um santo que morreu e não ressuscitou, mas a alma de um santo que vive dentro da sua carne e dentro de seus ossos. Mas é um santo.

O tipo humano perfeito se exprime com aquilo que há de mais alto no homem, somado à graça e à cultura que atuam nele.

Esse tipo humano não deve ser considerado somente enquanto nacional, diferente em cada nação, como o chileno, o português e o francês. É mais do que isso. É que, dentro de um mesmo país, ou de uma mesma área de cultura, apresentam-se homens destinados por Deus a exercer funções diversas, e que, sendo portadores e retransmissores desse “lumen”, devem fazê-lo à maneira do seu país e à maneira do trabalho ou da função que exercem no seu país. De tal maneira que um homem que é pai de família, bom, santo, acaba tendo um certo modo de retransmitir esse “lumen” de modo próprio.

Por exemplo, próprio ao pai de família de tal século, de tal região da França, ou até de tal encosta de montanha. São tipos humanos que vão se destilando, aprimorando-se de acordo com as circunstâncias e a função na sociedade temporal, mas pela luz vivificante da natureza e da graça.

Exemplos de tipos humanos

Por exemplo, um professor. Ele seria um homem católico em tudo. É professor porque deve haver professores no mundo, deve haver pessoas que assumam a função de professor e, portanto, ele a  assumiu. Não se trata, portanto, de uma vocação divina, para a qual Deus o tenha chamado; mas Deus quis que houvesse professores, e que, por uma distribuição natural, alguns homens fossem professores.

Os que são, são-no por desígnio de Deus. Não é, pois, como a vocação sacerdotal, que é individualíssima. Mas é um chamado de Deus para uma certa categoria de pessoas que se distribuem naturalmente por aquela categoria. Ainda que ensinem apenas mineralogia ou cibernética, os professores têm a missão de ser um tipo humano diante dos alunos, e com certa riqueza de comunicação e de modelagem especial, quando são fiéis à sua própria vida espiritual e ao desígnio de Deus a respeito deles. Há uma função docente global da classe dos professores que é o “lumen” do professor, de maneira tal que a mente do aluno é particularmente tocada por isso.

Isso se dá em toda espécie de profissões. Por exemplo, nos vitrais e nas iluminuras da Idade Média vemos sapateiros, navegantes, calígrafos, com características que vão se superpondo [ao longo  da História] e elaborando tipos humanos.

Esses tipos têm densidades diferentes da ação da graça e da natureza, e deve haver um tipo que tem um requinte pelo qual a natureza e a graça nele fazem algo de mais “exquis” [requintado]: esse é o nobre. É propriamente um fruto da Civilização Cristã.

Comparemo-lo, por exemplo, com o marajá indiano. Fazemos deste uma imagem cristianizada, mas que não corresponde à realidade. Ele se traja com uma roupagem linda, mas não é capaz de usá-la com nobreza. Senta-se de modo deseducado. Porta um turbante lindo, no qual terá uma safira, um rubi, uma “aigrette” [penacho] magnífica, mas tem aquele olhar no qual não se notam as doçuras e as graças da civilização.

Tome-se, em contrapartida, um barãozinho das Ardennes, na Bélgica, ou um pequeno “squire”(*) inglês — são algo inteiramente superior. Foram destilados pela Civilização Cristã.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

* – Pequeno fidalgo que mora no campo.

Nossa Senhora e a luta entre a Revolução e a Contra-Revolução – II

Diante de uma humanidade em extremo pútrida, quase inidônea para praticar verdadeiramente a santidade, vislumbres de uma misericórdia nova assentada na devoção a Nossa Senhora se fazem sentir. Naqueles que procuram ser bons existe uma luta entre os vícios e uma graça persistente, inefavelmente obstinada, indicando uma enormidade de graça que verdadeiramente não tem  proporção com nada, uma espécie de sinal precursor do Reino de Maria.

 

Vislumbres de uma nova ação de Nossa Senhora nas almas

Há uma coisa curiosa nas revelações a Sóror Maria de Ágreda(1), nas quais ela diz que no Apocalipse há  muitos conceitos especiais contidos de um modo simbólico, que ainda não foram desvendados, a respeito das relações de Nossa Senhora com os Apóstolos, especialmente com São João Evangelista. E só quando chegar a época em que os teólogos de repente entenderem as cifras o Apocalipse a respeito disso, eles conhecerão todo o tesouro que a Revelação contém, e o Magistério da Igreja poderá se exercer na sua plenitude quanto a esse novo panorama.

Isso vai muito de acordo com o que diz São Luís Grignion de Montfort. Quer dizer, forma um todo.

Embora essa ideia de Maria de Ágreda não esteja provada pelo simples fato de ela dizer, não tem nada de heterodoxo.

Haverá, presumivelmente, um momento em que isso vai se desatar, e esse conhecimento vai se consumar.

Então, nós temos este outro dado que é o progresso desse mistério de graça. Houve uma devoção a Nossa Senhora ao longo dos tempos que, em certo momento, pelo desejo d’Ela, começou a tomar uma consistência maior, a qual vai desenvolvendo dentro das almas esse mistério, e é o triunfo dele que acaba com o reino do demônio e estabelece o verdadeiro Reino de Nossa Senhora.

Tenho impressão de que há alguns vislumbres, por onde se compreende algo a respeito dessa ação misteriosa de Nossa Senhora nas almas. E muito ortodoxos, sérios, sólidos, embora à maneira de vislumbres.

Realidade simbolizada no Coração sagrado de Jesus

Houve tempo em que estive lendo a respeito das devoções ao Sagrado Coração de Jesus e ao Coração Imaculado de Maria –  inclusive encíclicas a respeito disso –, para responder à seguinte pergunta: Em essência, o que é a devoção ao Sagrado Coração de Jesus? E depois, por conexão: O que é a devoção ao Coração Imaculado de Maria? Nós sabemos que o objeto dessa devoção é o Coração enquanto membro do corpo divino-humano d’Ele, ou do corpo sagrado e imaculado d’Ela, mas que são, sobretudo,  símbolos de algo de ordem espiritual.

Então, qual é essa realidade simbolizada através do coração? As encíclicas respondem bastante claramente a respeito de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não é difícil fazer a transposição ao Coração Imaculado de Maria. Resumindo: a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, como as encíclicas apresentam, é a devoção àquilo que nós podemos chamar o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, portanto, a doutrina d’Ele; não apenas a doutrina, porém aquilo que é a sabedoria, a santidade d’Ele, quer dizer, uma doutrina não só enquanto concebida, mas possuída, personificada e vivida. Quer dizer, algo de lógico e algo contido nesta expressão meio imponderável que é o espírito de alguém como, por exemplo, o espírito de Elias.

O que é o espírito de Elias? A comparação até não é muito feliz porque é a graça de Elias. Mas vamos dizer, por exemplo, o espírito da Companhia de Jesus. O que é o espírito da Companhia de Jesus? No seu bom sentido, é o espírito de Santo Inácio. Porém o que é o espírito de Santo Inácio? É o conjunto de doutrinas especificamente dele e enquanto vividas por ele, possuídas por ele, simbolizadas por ele. De tal maneira que ele era o paradigma do próprio espírito dele.

Assim é o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas enquanto querendo disseminar-se, contagiar, conquistar, quer dizer, um espírito enquanto amoroso dos homens. E como em face de uma  humanidade pecadora o maior triunfo desse espírito não é a justiça, mas a conquista, acaba sendo a misericórdia. Porque pela justiça Deus manda o pecador para o Inferno, pela misericórdia Ele conquista o pecador. O maior triunfo de Deus está em perdoar e em converter.

Então, nós compreendemos o aspecto misericordioso da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, que é tão acentuado na piedade popular. Aliás, também bastante realçado em muitos documentos da Santa Igreja: o Coração de Jesus enquanto fonte de misericórdia.

Similitude do Imaculado Coração de Maria

Paralelamente entende-se o que é o Imaculado Coração de Maria, nem é preciso tratar disso. Contudo, quando se presta bem atenção nessas duas invocações e devoções, nota-se haver meandros dentro dos quais cabem algumas coisas que se intuem, mas tem-se a impressão de que não foram inteiramente ditas.

Há uma espécie de comunicação de Nosso Senhor a quem Lhe cultua o Coração, maior, mais completa, mais inteira, do que quem Lhe presta culto nos outros mistérios. Como também há uma forma de comunicação mais plena de Nossa Senhora a quem Lhe cultua o Coração Imaculado. Os que tratam dessas duas devoções  dizem que elas são para os últimos tempos, os fins da História da Igreja, as últimas expansões da misericórdia.

Então, nós voltamos mais uma  vez à impressão de um acréscimo da graça que se opera por maravilhas de misericórdia, progressivamente e mais intensamente a partir do momento em que essas duas devoções foram reveladas aos homens. É, portanto, mais uma tinta para a ideia de um mistério de graça a se manifestar, a se declarar.

Sinal precursor de uma graça superabundante que unirá os homens a Nossa Senhora no Reino de Maria Tem-se a impressão de que essa graça, essa misericórdia nova incidiu sobre uma humanidade em extremo pútrida, quase que tornada inidônea, à força do vício, para praticar verdadeiramente a santidade. De tal maneira decadente do ponto de vista moral, que é uma coisa que indicaria dever vir o fim do mundo.

Vejo, entretanto, naqueles que procuram ser bons, a luta entre uma graça persistente, inefavelmente obstinada, e uma série enorme de repelões em sentido contrário, de recusas, de molezas, de  infidelidades de toda espécie e tamanho.

Não obstante, parece- me ver uma vitória  progressiva dessa graça, marcada de um modo muito interessante pela forma através da qual as pessoas progridem espiritualmente dentro de nosso  Movimento.

Nesse sentido, é tanta misericórdia que sou levado a ver nisso uma espécie de sinal precursor desta graça superabundante, que no Reino de Maria vai prender os homens a Nossa Senhora.

A meu ver isso não seria explicável sem esta graça dada aos fracos, aos pequenos, e que corresponde àquela divisa da Igreja de Filadélfia, conforme diz o Apocalipse: fraca, mas fiel (cf. Ap 3, 8).

Uma graça que sustenta na fidelidade aqueles que são muito fracos. Na humanidade mais capenga, mais pobre, descem graças contínuas as mais imerecidas que, entretanto, vão formando um fluxo de virtude absolutamente indiscutível.

Tantos casos de regeneração moral magnífica, de gente que passa de moleque de rua para o que há de mais recomendável em matéria de piedade e de virtude, e não se pode deixar de reconhecer haver ali um enorme sopro da graça, uma coisa eminentemente sobrenatural, mas comparável aos grandes sopros da graça que a História da Igreja registra. Naturalmente ainda uma coisa de  começo, nos seus primeiros vagidos, nos seus movimentos iniciais, mas existe. Tudo isto indica uma enormidade de graça que verdadeiramente não tem proporção com nada do que se passa hoje.

E esta graça é toda assentada na devoção a Nossa Senhora. Se tivéssemos uma diminuição da devoção a Maria Santíssima que fosse do tamanho de um milímetro – se em milímetros essas coisas pudessem se medir – nosso Movimento estourava agora. Tenho a impressão de que não dava tempo de eu acabar a minha conferência. De tal maneira tudo isso é nascido da devoção a Nossa  Senhora e vive do alento d’Ela.

A devoção à Virgem Maria está em relação a outras virtudes como o motor ao avião. O motor na frente leva atrás de si todo o resto. A devoção a Nossa Senhora é o motor de todas as virtudes. Estando em progresso, o resto vai.

“Pequena Via” e aurora do Reino de Maria

Creio não dever terminar esta exposição sem falar um pouco a respeito de Santa Teresinha do Menino Jesus, e da “Pequena Via” em conexão com isso. Se isto é assim, nós então passamos para uma outra ordem de ideias que parece colateral, mas que nada tem de colateral.

Santa Teresinha do Menino Jesus, em sua História de uma alma, tem também várias referências a uma intensidade nova do amor de Deus, tão poderosa que vai colher aqueles que são pequenos,  insignificantes, pouco poderosos em vários sentidos da palavra, e levá-los para a santidade.

Então, é uma maior efusão da graça divina enquanto conquistadora, da benignidade de Deus, enquanto contentando- Se com pouco para fazer grandes  coisas, uma maior manifestação da eficácia da graça, enquanto tirando o grande daquilo que é pequeno. Santa Teresinha diz que ela se imolou como vítima em holocausto ao amor misericordioso de Deus, para consagrar uma via que  incontáveis almas deveriam seguir. E que ela, no Céu, passaria sua eternidade fazendo cair uma chuva de pétalas de rosas sobre a Terra.

É evidente que as pétalas de rosas significam graças temporais como ela concede, mas para conduzir a graças espirituais, e que é esse maior amor de Deus de que nós acabamos de falar.

Deve haver uma relação entre essa esperança dela de um progresso do amor misericordioso de Deus e a aurora  do Reino de Maria.

Embora ela não tenha expressado isso em termos de Reino de Maria, percebia-se também que o fato deveria se dar depois de sua morte, com uma certa continuidade, não era para começar a aparecer dali a mil anos. Mas a morte de Santa Teresinha correspondia, de algum modo, ao desencadear disso. E que, portanto, a marcha progressiva do amor misericordioso no mundo deveria  ser feita a partir do caminho aberto por ela.

A “Pequena Via” acaba sendo – quando estudada em todos os seus aspectos –, a vários títulos, a via pela qual as almas pequenas de uma humanidade decadente seriam colhidas pela misericórdia e levadas à santidade.

É, pois, a espiritualidade específica daqueles   que querem ser filhos e escravos de Nossa Senhora, e subir nas vias da vida espiritual.

Temos, assim, uma relação entre a “Pequena Via” e essa aurora do Reino de Maria.

Uma novena a Santa Teresinha

Uma coisa puramente individual, mas vem ao caso lembrar: lá pelos idos de 1930, fiz uma novena para Santa Teresinha, em que eu pedia duas graças: uma era de me cair nas mãos um livro que desse andamento à minha vida espiritual.

E a outra, arranjar um bom dinheiro para não ter preocupações financeiras, e poder cuidar do apostolado sem aborrecimentos.

Fui logo atendido quanto ao primeiro pedido. Na semana em que iniciei a novena, fui à Igreja do Coração de Maria, para comprar um livro de vida espiritual. Eu só tinha dinheiro para adquirir um livro, então escolhi muito para, pelo menos, levar o que mais me convinha. E afinal de contas optei pelo livro de São Luís Maria Grignion de Montfort. Mas escolhi-o por uma bagatela, pois estava impresso em vermelho e preto, uma edição muito bonitinha, e porque,  em última análise, o vermelho sempre exerceu uma atração sobre mim. Acabei, assim, decidindo pelo Tratado da  Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem.

Levei-o para casa e comecei a ler. Então compreendi que era um paraíso! Santa Teresinha foi muito menos rápida em atender a segunda parte do meu pedido, e muito mais parcimoniosa também.

Mas a primeira ela atendeu generosamente. Tenho a impressão de que esta graça do Reino de Maria algumas almas muito eleitas de Nossa Senhora, desde Elias até o fim do mundo, tiveram e terão. Mas eram fatos individuais, que passarão a ser um episódio coletivo quando vier o Reino de Maria.

Elias foi o primeiro, e Eliseu teve porque recebeu o espírito de Elias. Aqui entra outro mistério. O que é essa comunicação do espírito, como se faz, qual é a realidade?

Creio que São Luís Grignion de Montfort teve isso de um modo magnífico. A meu ver, quem quiser ter uma ideia de como foi Elias, pode ler na Bíblia, mas também o livro de São Luís, porque essas pessoas prefiguram e seguem as outras, mais ou menos, como os anticristos prefigurativos ao longo da História.

Acho que São Grignion de Montfort foi eminentemente uma espécie de Elias. E que há assim algo à maneira de gotas de graças “eliáticas” que caem de vez em quando. E que haverá uma era em que essa graça de Elias vai ser patenteada para o mundo inteiro, e então será o Reino de Maria.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/7/1967)

1) Religiosa concepcionista, escritora mística, abadessa do convento de Ágreda, na Espanha (*1602 – †1665).

Quadros impregnados de sobrenatural

Ao aplicar seu dom do discernimento dos espíritos na análise de alguns quadros de Giotto, Dr. Plinio descreve, além de traços das almas de diversos personagens, a atmosfera inocente e sobrenatural que os envolve.

Giotto é um pintor italiano do fim da Idade Média, quase Renascença, admirável. Não sei se ele foi um santo como o Beato Angelico — que é o magnata da pintura da graça —, desconfio que sim e desconfio que não. Porque na literatura comum — a que chegou a meu alcance, nunca tive tempo de procurar um livro especial sobre ele — há um silêncio sobre sua pessoa. Ou porque ele foi muito bom, e os maus querem esconder; ou foi muito ruim, e os bons desejam ocultar. Mas há qualquer coisa que não está clara. Enfim, Giotto pintou muitos quadros, a meu ver intensamente impregnados de sobrenatural.

Inocência e dignidade ante a hipocrisia dos prevaricadores

Em Pádua, na Cappella degli Scrovegni, aparecem cenas caracterizadas por uma inocência ainda toda medieval, numa atmosfera sobrenatural magnífica.

Essa famosa capela situa-se num parque muito bem cuidado. Dentro, o chão é todo de mármore esplêndido, com um desenho agradável, um jogo de cores bonito. De um lado e de outro, vemos  estalas reservadas com uma espécie de gradeado de mármore também, muito bonito e bem trabalhado.

São Joaquim e Sant’Ana são os pais de Nossa Senhora. A construção dos fundos simboliza vagamente o que Giotto imaginava como Templo de Jerusalém, mas é muito mais algo medieval com  reminiscências românicas, ou com prenúncios renascentistas, do que qualquer outra coisa. Na primeira fileira, vemos um personagem vestido de cor-de-rosa que conversa com outro; ambos usam hábitos à maneira de batinas, o que era corrente para todo o mundo na Antiguidade. A cor de um desses trajes seria um pouquinho verde-ervilha, misturada com um pouco de dourado. Vejam  como a cor-de-rosa é muito delicada. Um desses deve ser sacerdote judaico; e ao lado do estandarte está São Joaquim.

Ele e Sant’Ana não tinham filhos e isso era considerado uma vergonha, porque quem não possuía filhos estava condenado a renunciar à esperança de ser um antepassado do Messias. A grande alegria era viver com os olhos voltados para o futuro, à espera do Messias que viria salvar o mundo, e seria o centro da História de Israel e da Humanidade. São Joaquim está sendo conduzido para fora, e vê-se na atitude dele uma certa vergonha.

Ele quer resistir um pouco, argumentar porque se sente inocente, mas o outro, muito mais corpulento do que ele e com a autoridade de sacerdote, parece dizer-lhe que não tem remédio e vá  embora. Atrás, um personagem muito mais graduado, com uma capa vermelha sobre uma túnica que parece meio dourada, o qual olha a cena como quem faz executar as suas ordens por um sacerdote de posição inferior. É a humilhação deste homem, que seria um antepassado do Messias.

Notem a cor do céu, a luz espalhada é inocente, não tem nada de comum com a poluição da luz nas babéis modernas, nem com a luz do Sol de hoje em dia. É uma luz diáfana, bonita, encantadora, que parece perpetuamente matutina.

São Joaquim, na humilhação em que ele está, parece muito virginal, muito digno. O sacerdote, meio misterioso. Vê-se que São Joaquim é um homem limpo, até fisicamente. Quanto ao sacerdote, tem-se a impressão de que, por debaixo dessas batinas, há sujeira. E mais suja é a figura de vermelho ali atrás. São Joaquim representa a doçura da Nova Lei, os outros exprimem a hipocrisia e a dureza do sacerdócio prevaricador, no fim do Antigo Testamento.

São Joaquim faz penitência

São Joaquim achou que tinha faltas. Era geralmente admitido que sobre quem não tivesse filhos pesava o castigo de ser estéril para o Messias. Então, ele vai fazer penitência, num lugar ermo, deserto. Vemo-lo aí numa atitude muito digna, triste, confrangida, de quem está fazendo um exame de consciência inútil, porque ele não consegue encontrar a sua falta.

E dois pastores vêm falar com ele. Notem como se vestia um pastor daquele tempo! Como estão bem trajados, e é acertada a escolha de cores nesse quadro penitencial! São Joaquim mais uma vez de cor-de-rosa. Um homem velho, cujo cabelo está entre louro e grisalho, profundamente compenetrado e envergonhado, pedindo perdão das faltas que ele não praticou. Ele não sabia, mas assim expiava as faltas que os outros têm, mas não querem reconhecer. E os pastores com certeza estão querendo oferecer alguma coisa para ele. No chão há umas ovelhas e na frente um cão pastor.

É interessante o seguinte: os pastores estão com trajes meio róseos; os rochedos, que indicam uma natureza um tanto desértica, têm qualquer coisa de róseo também. E a ingenuidade das arvorezinhas que nascem do rochedo é encantadora. Uma criança inocente, que fosse pintar arvorezinhas, pintaria assim, e nós sorrimos encantados com o frescor de alma que elas exprimem.

Mais ainda: o jeito desse cão pastor — que deveria atacar o lobo —, diante desse verdadeiro cordeiro que era São Joaquim, tem simpatia, se sente contente. Observem o salto desse cachorro, o jeito com que deseja ter uma carícia de São Joaquim, que não presta muita atenção nele porque está meditando.

No próprio cão há qualquer coisa de puro. Uma alma virginal que fosse pintar um cão pastor pulando, pintá-lo-ia assim. Essa candura toda agrada enormemente a quem gosta da inocência. O azul do céu contrasta com esse cor-de-rosa com uma harmonia magnífica! Um fato bonito e nobre Vem então a primeira gota de luz, no meio dessas trevas. Sant’Ana está rezando sozinha num  quartinho — que o autor procurou imaginar como seria naquela época — e recebe uma revelação, na qual lhe é dito que ela vai ser a antepassada do Messias, e então sua tristeza vai se transformar em super alegria. Uma criada está do lado de fora com uma espécie de roca — é frequente ver isso em coisas medievais — e alheia à cena. O modo pelo qual Giotto apresenta Sant’Ana inteiramente entretida na revelação, e a criada completamente alheia — esta é terra a terra, pensando nos seus fios, e aquela no terceiro Céu — é muito bonito.

É interessante notar também a ingenuidade do desenho: o quarto de Sant’Ana, um toldozinho de alvenaria, e em cima um terracinho para as noites quentes. Embaixo a criada trabalha. O Arcanjo São Gabriel, que foi quem avisou Nossa Senhora da Encarnação do Verbo, fala a São Joaquim e explica- lhe o que sucederá. O Santo, então, está oferecendo um sacrifício a Deus para agradecer essa grande dádiva, esse grande dom que ele está recebendo. Mas se vê que está com a fisionomia mais animada, mais alegre, e que ele é um sacrificador sério. E se tem a impressão que um bom número da bicharada que está perto dele vai perecer.

São Joaquim teve um sonho a respeito do futuro nascimento de Nossa Senhora. Não é um sonho na casa dele, mas ao ar livre; o teto é a abóboda celeste. Um Anjo desce e comunica-lhe o  nascimento de uma filha. E aqui está o mistério: o direito de primogenitura e os direitos  sucessórios na Casa de Davi se transmitiam entre homens, não entre mulheres; como é que ele, tendo uma  filha e não um filho, seria o avô do Messias? Mas lhe foi revelado, ele crê.

Perto de São Joaquim estão pastores, camponeses, vestidos exatamente como nas iluminuras medievais. É muito bonito o tom que ele dá para o céu, um azul que não é dia, mas uma espécie de claridade noturna que também não é luar, e que circunda um fato tão bonito e tão nobre quanto esse.

Jerusalém era fortificada, como todas as cidades daquele tempo, com ameias um pouquinho à medieval. São Joaquim e Sant’Ana se encontram na Porta de Ouro.

Nascimento de Nossa Senhora

Maria Santíssima nasceu e é apresentada pelas assessoras. Essa vestida meio de verde parece ser uma mulher especializada em assistir senhoras em lances desses; atrás será alguém da família que também está assistindo. E Sant’Ana recebe essa Menina que ela sabe ser a Mãe do Messias. Daí ela acolher a Menina, não como tantas mães recebem uma filha — uma bonequinha e começam a brincar com ela —, mas com profunda seriedade, contemplativa, olhando para a Menina.

A Menina está toda enrolada. De acordo com o hábito, deve ter sido banhada e depois apresentada a Sant’Ana, mas já com o aro de santidade em torno da cabeça. Porque como Ela foi concebida sem pecado original, e recebeu desde o primeiro instante de seu ser uma inteligência muito superior à de todos nós — de São Tomás de Aquino, de Santo Antônio de Pádua, de quem quiserem —, já tem em grau eminentíssimo a santidade. E Sant’Ana está recebendo Aquela que é o Vaso de Eleição, o Vaso Sagrado de toda espécie de graças, e ela olha como quem diz: “Desta nascerá o Messias esperado pelas gerações.”

Notem uns pormenores bem curiosos: a combinação de cores da cobertura de Sant’Ana é bonita? Tem qualquer coisa de contemporâneo. E, dentro de um quadro atual, o preto tomaria um realce que não possui no quadro aqui apresentado. E é agradável de olhar. Posta num ambiente moderno, esta cobertura me daria a impressão de meio modernosa.

Embaixo está a cena. É sucessiva, como história em quadrinhos: um quadrinho no fundo, um em cima e outro embaixo. Nossa Senhora vai ser deitada numa espécie de berço. Então há uma criada que está embalando — ou é um bercinho que deve fazer um pouco de “ninna nanna”, com certeza —, e outra criada faz com que Ela engula algum alimento. A mulher que se encontra no ângulo está com as mãos postas, rezando; ela percebe algo do extraordinário da cena. A profissional tem uma cara profissional, apenas muito atenta ao que está se passando.

São José, modesto, humilde, recolhido e calmo

Maria Santíssima vai ser apresentada no Templo. Essa construção é uma idealização de como esse homem imaginava a parte do Templo onde Nossa Senhora ia ser apresentada. Sant’Ana é essa de vermelho que está carregando a Ela. E São Joaquim me parece ser aquele que está no fundo, vestido com uma roupa um pouco violácea, com as mãos postas e um aro de santidade na cabeça, com barba, etc. Ambos são velhos e vão apresentar no Templo Nossa Senhora.

Mas o que importa especialmente no caso é o seguinte: fazer notar o escândalo dos que falavam contra eles porque não podiam ter filhos. Mas ao mesmo tempo ceticismo: “É verdade, afinal tiveram uma filha. Mas o que adiantava ter uma filha mulher?” De maneira que para eles era uma vitória, porém uma vitória que não dava em nada. Eles estão apresentando calmamente Nossa Senhora que já anda com os próprios pés, é uma mocinha.

Tudo no Templo era muito ornado com ouro, mármores, etc. Vemos ali candidatos à mão de Maria Santíssima, que se apresentam ao rabino levando ramos secos. Aquele cujo ramo florir é quem deve casar-se com Nossa Senhora.

Encontramos São José à esquerda. Aquele cujo ramo de fato vai florir está colocado de lado, é o último. Ele é modesto, humilde, tem o halo da santidade, mas não quer sobressair. Os outros desejam salientar-se e estão apresentando o ramo seco quase como cheques, pois julgam que vão vencer. São José está recolhido e calmo.

Evidentemente só o ramo dele florirá. Ele é quem vai ficar com a mão da Santíssima Virgem. Sua fisionomia é apresentada com certa perplexidade. Por quê? Porque ele tinha feito voto de ser virgem. Ele recebera uma revelação de que deveria casar-se com Nossa Senhora, mas não sabia como seria isso. Mas obedeceu e levou o seu ramo também. Podemos imaginar a surpresa dele quando o seu ramo floresceu.

“Sou muito sensível às cores”

Eu queria chamar a atenção para este ponto particular: eu sou — como já disse, é um modo de ser legítimo como outros — muito sensível a cores. E as harmonias de cores me interessam  especialmente. Giotto joga predominantemente com duas espécies de recursos cromáticos: algumas são cores muito clarinhas, delicadas. Vejam o verde bonito do primeiro portador de ramo. Um que deve ser ajudante do sacerdote tem uma túnica lilás e uma espécie de capa ligeiramente esverdeada, mas combinando muito bem. E atrás há outro portador de ramo cujo traje é de uma cor  que não sei definir, mas é feita de cores muito claras. São José está vestido com cores um pouco mais escuras, mas ainda são bastante claras. Entre eles há um com uma cor mais escura, ou melhor, bem menos clara. Seria uma composição de cor bordeaux com um pouco de azulado. As cores dos outros trajes quase não se distinguem, porque aparecem pedaços pequenos de roupa.

O rabino está com um traje de uma cor um pouco parecida com a daquele personagem de roupa mais escura. Há uma espécie de radicalidade nisso. É a radicalidade no claro e a radicalidade no carregado, que forma no todo um contraste interessante. Imaginem que esse sacerdote estivesse com uma cor clarinha, e o outro que está atrás também. Como ficaria tudo insípido! Esse tom escuro confere uma nota de seriedade ao clarinho, e é um equilíbrio de cores muito bonito.

A cena é tão característica, tão expressiva! Há uma espécie de empenho da parte dos pretendentes a se casarem com Nossa Senhora. Era nobre querer isso. Pode-se desejar alguém melhor do que Maria Santíssima? Entre as hipóteses  possíveis, no momento me alegra imaginar que todos os pretendentes rejeitados eram levados pela graça, e que depois se tornaram grandes devotos de  Nossa Senhora.

Mas o eleito já estava determinado por Deus, que operou o milagre na vara carregada pelo homem casto por excelência.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/11/1988)

A grande vitória é pertencer inteiramente a Maria

Eu assisti a muitas festas de ano-novo em outros tempos, em que cada pessoa manifestava, na intimidade de uma roda de parentes e amigos, suas esperanças para o ano vindouro. Um esperava
fazer um bom negócio, outro planejava uma viagem à Europa, etc. Assim, a passagem do ano era repleta de presságios favoráveis.

Hoje quase ninguém ousa fazer prognósticos para o ano que se inicia. Tem-se medo de falar no futuro, entra-se no novo ano como quem ingressa numa sala de operação.

Com efeito, vivemos dias de confusão, cheios de enigmas pesados e terríveis, dias de incerteza em que só uma coisa deve ser certa: é a deliberação de cada vez mais sermos de Nossa Senhora,  sempre mais unidos a Ela e dispostos a lutar por Ela. Porque a grande pergunta que domina todas as incógnitas do mundo contemporâneo é: Como está a luta entre o reino do demônio e o Reino de Maria?

Ao dirigir-me a almas animadas pela mesma Fé Católica, pela mesma devoção a Nossa Senhora, pelo mesmo desejo ardente do advento do Reino de Maria, derrota dos inimigos da Santa Madre Igreja e exaltação, ou seja, glorificação da Santíssima Virgem e do Reinado d’Ela, tenho certeza de que a Mãe de Misericórdia, voltada a nos proteger e favorecer, como a todos os homens, e que não ama nada no mundo tanto quanto a Santa Igreja Católica Apostólica Romana – à qual consagramos a nossa vida e em defesa da qual estamos dispostos a dar todos os instantes de nossa  existência – do alto do Céu sorri para todos esses seus filhos que se colocam a seus pés e suplicam as mesmas graças junto ao Sapiencial e Imaculado Coração d’Ela.

Certo de que Nossa Senhora também atenderá este meu pedido, imploro, com a alma genuflexa, que Ela nos aproxime e nos torne cada vez mais d’Ela.

Se no fim deste ano que agora se abre, apesar de todas as dificuldades e tropeços, nós pudermos dizer que estamos caminhando para o ano seguinte com passo decidido e sempre mais unidos à  Rainha das Vitórias, estaremos vencendo. A grande vitória é pertencer a Ela inteiramente.

Há uma frase na Liturgia da Igreja que pode ser aplicada a Maria Santíssima: “Deus, cui servire regnare est”(1). Ó Maria, servir-Vos é reinar. Nós queremos para nós esta forma de realeza: servir a Maria completa e ilimitadamente, até a hora em que Ela nos acolha no Céu.(2)

1) Do latim: Ó Deus, servir-Vos é reinar.
2) Extraído, com adaptações, de conferências de 1/1/1988 e 26/12/1989.

Mãe e Advogada nossa

Mãe do Homem-Deus, a Santíssima Virgem foi Mãe de todos aqueles que nasceram para a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mãe do Redentor, tornou-Se Mãe dos pecadores e desempenhou, assim, um papel que, de certo modo, o próprio Deus não poderia exercer. Ele é o eterno Juiz que deve punir os que O injuriam. Nossa Senhora, porém, é Mãe. E às mães não cabe a tarefa de julgar, as a de interceder.

Elas são as naturais advogadas dos filhos, e estão solidárias com estes até quando o pai os increpa a justo título. Assim, por mais miserável, imundo e repelente que seja o filho pecador, a Mãe de misericórdia o perdoa e roga por ele ao Senhor, aplacando a justiça divina. Advogada supremamente boa, Nossa Senhora, em favor de cada um dos pecadores que a Ela recorre, dirige a Jesus Cristo esta súplica: “Meu Deus e meu Filho, pelo vosso dolorosíssimo sofrimento no Calvário, pela minha Imaculada Conceição, pela minha perpétua virgindade, pelo amor que Vós sabeis que Vos tenho, peço-Vos: perdoai-o!”

Eis a missão de Maria Santíssima como nossa Mãe e Advogada.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/2/1971)

Considerações sobre a Sagrada Face

Algumas representações de Nosso Senhor existentes nas catacumbas não se parecem com Ele. Aos poucos, a piedade católica compôs a Face do Redentor e, quando encontraram o Santo Sudário,  conferiu impressionantemente. Na Sagrada Face, conforme se analise, estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz.

 

Analisando a face humana, notamos que ela se compõe de duas linhas. Uma vertical e outra horizontal. Uma linha parte da fronte e desce à base do  queixo, de maneira que toda a horizontalidade das sobrancelhas, dos lábios e do queixo é percorrida sutilmente por uma verticalidade.

A face humana tem aspecto de cruz

Essa ideia de horizontalidade é acentuada pelas orelhas que têm no aspecto do homem uma importância que ninguém imagina! Mas é só um indivíduo não ter uma orelha que todo mundo nota. Se não tiver as duas orelhas, brame! Nenhum de nós olhou hoje para as orelhas dos outros, mas é só aparecer um sem orelha que se nota imediatamente, porque completa a fisionomia de modo imponderável, interessante, inesperado.

Trata se de saber qual é a altura ideal que na face humana deve ter a linha horizontal para completar a perpendicular, e dar esse aspecto de cruz que a face humana tem.

Poderíamos imaginar cruzes bonitas com a trave horizontal a diversas alturas. E esse mesmo princípio é enunciado de modo interessante pelo rosto humano, criando várias alturas do travamento da cruz. Podemos imaginar uma cruz bonita com o braço em cima, quase em forma de “T”; ou mais próximo do meio, contanto que não passe de certo ponto, pois deixaria de ser uma cruz na posição normal e passaria a ser cruz de São Pedro.

Depende de certa proporção entre o tamanho e a largura para indicar onde deve ficar a altura. A harmonia do rosto humano tem muita relação com isso. Esses indivíduos que interpretam os traços do rosto humano, etc., pensam que a harmonia consiste só em tomar esculturalmente cada traço e ver se é bonito. Mas isso dá a beleza, não o charme. O charme é dado, no fundo, por essa  proporção. E sempre que se encontra um rosto com certa expressão ou certo charme, deve-se procurar isso, porque no fundo encontra. É até um exercício interessante procurar o charme dentro  da fisionomia.

Vemos descrições de montanhas, de panoramas bonitos, e depois exclamações: “Como Deus foi sábio! Como foi bom ao criar isso! …” Eu concordo perfeitamente, mas por que não falam da face humana que vale muito mais do que qualquer montanha? A mais arrebentada das faces humanas contém mais elementos de beleza do que uma montanha linda. O homem é o rei da Criação, o resto é uma ralé em comparação com ele. Qualquer homem que quisesse saberia pôr em relevo algum cantinho de sua alma por onde ele tivesse mais dignidade do que o Himalaia, o qual, afinal, é uma imensa trouxa de terra e pedras.

Na Sagrada Face estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz

Da Sagrada Face eu tenho a impressão de que é impossível desvendar qual é a proporção, porque tudo é calculado de tal maneira que dentro da discrição dela nada é enfeitado. Estão insinuadas todas as formas possíveis de beleza da cruz, conforme se analise.

Imaginem que nos dessem uma imagem da Sagrada Face na qual faltasse apenas traçar as sobrancelhas; e um de nós deveria fazer esse traço. Eu ficaria muitíssimo hesitante. Onde pôr as sobrancelhas ideais para a Sagrada Face? Quer dizer, um milímetro faz diferença. Como desenhar? Arqueadas? Retas? De que jeito?

Prestem atenção, elas estão presentes na Sagrada Face de maneira tão discreta, que nem nos lembramos do problema das sobrancelhas. Mas em todas há um mesmo tato que indica a mesma coisa e que guia por uma tradição de piedade e bom gosto os autores. E que indica uma forma.

Depois, a barba aumenta a linha perpendicular. Enquanto o cabelo caído e desdobrando-se pelos lados parece acrescer a linha horizontal. Então há possibilidades de horizontais dentro disso a perder de vista! É uma feeria de cruzes.

A Sagrada Face tem isso que também é insondável: vamos olhar nas catacumbas as representações de Nosso Senhor, e algumas não se parecem com Ele. Por exemplo, a pintura do Bom Pastor representa um pastor qualquer do campo romano com uma ovelha nas costas. É digno, estou longe de depreciar; mas não é a Face d’Ele. Depois, aos poucos, a piedade católica compôs a Face de Nosso Senhor e, quando encontraram o Santo Sudário, conferiu impressionantemente.

A Face d’Ele é tão perfeita que qualquer expressão da fisionomia que se queira comunicar-lhe – de tristeza, dor, majestade, bondade ou qualquer outra –, com um pequeno aceno fica  expressivíssima! São os opostos harmônicos. Não há face que seja mais expressiva e que menos precise mover-se para conter um mundo de expressões do que a d’Ele.

Mais ainda: as atitudes do Corpo divino importam pouco, porque a Sagrada Face absorve tanto a atenção que o resto fica quase como se fosse um busto.

Olha-se tanto para a Face que nem se deita bem a atenção sobre os pés divinos. Presta-se, isso sim, alguma atenção nas mãos.

Dimensões do universo e movimentos da alma humana

De posse desta noção, nós nos perguntamos o que fazer da ideia de São Tomás de Aquino segundo a qual o círculo é a mais perfeita figura, uma vez que é o efeito que volta à sua própria causa.

Então poderíamos nos perguntar se a cruz não é uma figura mais bonita. A cruz não é, propriamente, uma figura geométrica contínua, não é um triedro nem nada disso, são dois paus. Mas contém as duas dimensões do universo e os dois movimentos da alma humana.

A alma humana encontra um gosto específico em relacionar-se para cima e para baixo; e outro gosto especial em relacionar-se para o lado: transcendência e semelhança.

Ninguém pode viver sem essas duas disposições de alma. Por exemplo: alguém vive perpetuamente entre os inferiores e os superiores sem nunca encontrar um congênere, quando encontra faz uma festa!

Mas de uma vida só com um congênere dizemos: “Que tédio!” É de não poder suportar porque a alma humana pede, exatamente, esses dois movimentos. Então, deve haver – mas eu não tive tempo de refletir – no fundo da estética um princípio pelo qual se encontra também na natureza a presença da cruz como a coisa mais bonita que há.

Posto a forma esférica da Terra – agora a coisa é muito improvável, estou apresentando pontinhas de reflexão inacabada apenas pelo desejo de dar tudo –, poder-se-ia dizer que o meridiano e o eixo, projetados de certo modo, a sombra deles num plano daria uma cruz? Uma pergunta que se poderia fazer, mas é um pouco laboriosa.

Entretanto como se pode caracterizar isso numa Terra que é esférica? Por que isso não vale para qualquer ponto da esfera?

Disseram-me haver estudos demonstrando que o centro da Terra está no Santo Sepulcro. Isso me interessaria muito saber se houvesse dados a esse respeito, porque é uma coisa magnífica! Quando eu era pequeno, caçoavam nas aulas de Geografia do conceito da Idade Média, de que Jerusalém era o centro do mundo. E zombavam da ideia da esfera, dando a objeção que indiquei. E a objeção me deixava perplexo, naturalmente não saberia como responder, mas internamente pensava: “Demonstrem como quiserem, deve ser o centro, um dia isso aparecerá!”

De maneira que eu fico contente em saber e vai na linha das elucubrações que eu fazia a hipótese que estava lançando. Mas conhecer o critério segundo o qual isso é o centro me interessaria no mais alto grau. Serviria para uma série de outras elucubrações.

O dormir e o levantar-Se de Nosso Senhor

O perfil moral de Nosso Senhor, a meu ver, é inabarcável. Porque olhando para Ele – aliás também se dá de um modo curioso com Nossa Senhora, cuja verdadeira efígie, não conhecemos – temos a impressão de como a humanidade d’Ele, santíssima, resplandece de divindade. É natural. Jesus é tão pleno que em qualquer estado de alma em que esteja, temos a impressão de que Ele é aquilo e só aquilo.

Por exemplo, imaginando Nosso Senhor dormindo na barca, temos a impressão de um sono que não é o de bicho, desmaiado, mas é o repouso do equilíbrio perfeito da alma com o corpo. Não é, portanto, o sono do que ronca, gesticula, se move, sua, grita. Isso é uma coisa horrorosa!

Mas é um sono placidíssimo, em que a alma fica naquela distensão agradável, tranquila, porque o corpo inteiro não está se movendo e ela toda fica colocada sob a mão de Deus. E se tem a impressão de um repouso, de uma distensão e de uma união com o Padre Eterno e com o Divino Espírito Santo na inocência do sono, uma coisa que não se pode ter ideia! Então, tem-se vontade de dizer: “Olha, eu não creio que acordem a Ele nunca, porque de vê-Lo dormir eu vivo.

Eu tenho coragem para qualquer coisa, só de vê-Lo dormir!” Em certo momento os Anjos O acordam. Já pensaram o que é o despertar d’Ele? Sereno, tranquilo, abre os olhos… um caudal de compreensão de tudo, e começa a exercer, desde logo, um poder a respeito de todas as coisas, com a naturalidade com que um de nós move os braços. Ele Se levanta, “os ventos e os mares Lhe obedecem”(cf. Mc 4, 39). O erguer-Se de Nosso Senhor tem que ser mil vezes mais formoso do que o erguer-se do Sol. Não tem comparação!

Imaginem, por exemplo, de madrugada Ele se levantar e um Apóstolo, que acordou mais cedo, está na penumbra e se imagina não visto por Ele, começa a vê-Lo no momento em que Ele está, na aparência, inteiramente só, e aí começa a mover-Se, de repente Se levanta. E diante de nós aparece Ele, alto e majestoso. Nasceu o Sol! Se Sol se pusesse naquela hora, se Ele se levantasse no ocaso eu diria: “O Sol é uma bola inútil! Deixa de fazer esses seus sinais insignificantes porque você está reduzido a zero! O Sol nasceu aqui… vai ser dia porque Ele acordou! Não me venham com mais nada, o resto é lorota, está acabado!”

Estados de alma do Redentor

Vejamos agora os estados de alma. Na hora da compaixão temos a impressão de que Nosso Senhor é de tal  maneira compaixão, que Ele nem é capaz de outro sentimento a não ser este. Mas no momento da oração, tem-se a impressão que Ele se isola de tudo e fica em oração. E se alguém de longe O visse rezar poderia dizer: “A minha vida inteira não farei outra oração senão repetir a  d’Ele, porque depois que O vi rezar, não sei fazer outra coisa senão me lembrar daquilo e orar. O que são os meus Padres-Nossos, as minhas Ave-Marias em comparação com a oração feita por Ele?! Absolutamente nada!”

De repente é a ação. “Vamos ao mar da Galileia!” Pran!

Quer dizer, tudo isso tem uma tal grandeza que Nosso Senhor, em cada atitude da Alma, é como se Ele fosse aquilo! Ele é a Ação, o Sono, a  Compaixão, a Cólera, a Justiça. Aquela resposta aos fariseus: “Então dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus…” (cf. Mc 12, 17). Tem-se a impressão de que Ele ali é de uma argúcia tal que seus olhos resplandeceram de penetração.

Logo no primeiro brilho da argúcia, nos pomos de joelhos. Eu li que alguns autores espirituais censuraram uma atitude de São Pedro que, se forem todos, é censurável, mas se não for a totalidade  deles, estou do lado dos que admiram. Aquele dito de São Pedro para Jesus: “Afastai-Vos de mim, Senhor, porque eu não sou senão um miserável pecador!” (Lc 5, 8). Porque é tanta grandeza, tão  infinita, que não temos ideia; é muito além do que estamos afirmando! Tem-se vontade de dizer: “Eu me descomponho, me arraso, escorro como cera no chão diante de tanta grandeza. Senhor, afastai-Vos de mim porque sou um miserável pecador.

Mas não Vos afasteis demais porque sem Vos ver eu morro…”

Há em Nossa Senhora algo de parecido ao que existe em seu Divino Filho

De que maneira vemos isso em Nossa Senhora?

De modo muito bonito. Não sei se notaram que as invocações de Nossa Senhora são muito variadas, mas diversas delas se repetem. Por exemplo: Nossa Senhora Auxiliadora e Nossa Senhora do  Amparo são a mesma coisa. Nossa Senhora da Saúde e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Nossa Senhora da Saúde é Ela enquanto socorre os doentes, portanto é uma especificação do gênero  Nosso Senhora do Perpétuo Socorro. Mas Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é Auxiliadora e Amparo, pois está socorrendo! Mas cada uma das imagens próprias a uma dessas invocações traduz uma personalidade própria. De maneira que Nossa Senhora enquanto Genazzano, ou enquanto Auxiliadora, é como se fossem pessoas distintas, harmônicas, mas diferentes.

É que a piedade popular se dá conta de que havia n’Ela, em proporções criadas, algo do que existe de parecido no Divino Filho d’Ela. E que em cada invocação Ela é tão plenamente, que julgaríamos estar tratando com outra pessoa.

Na realidade eu creio que se víssemos simplesmente Nossa Senhora, nós não aguentaríamos. Se Ela fizesse conosco como Nosso Senhor fez no Tabor, nós não suportaríamos, tal o esplendor, a pujança.

Alguém dirá: “Mas no Tabor até os Apóstolos pediram para ficar.” É verdade, porque foi mostrado tudo com uma doçura muito grande e com os contrapesos necessários.  Porque, do contrário, não aguentavam.

Pois um homem não aguenta a aparição de um Anjo, se este não ajudar o homem. E Anjo da guarda é a hierarquia menos elevada de Anjo. Imaginem Deus!

Façam, então, o retrospecto. A Santíssima Virgem dando explicações ao Menino Jesus Imaginem Nossa Senhora brincando com o Filho, dirigindo sua adolescência. O Filho perguntando para Ela com toda a seriedade: “Como é isto?

Explique-Me…” E a Santíssima Virgem sabe que Ele é Deus e conhece infinitamente melhor do que Ela. Mas Ela sabe também que a divindade não comunica essa informação à humanidade d’Ele, porque quer que esta a receba dos lábios d’Ela. Imaginem Nossa Senhora falando…

Para um de nós isso é um impacto que não aguentaria. Se o Menino Jesus dissesse: “Que forma tem a Terra?” Diríamos: “Hã! é, como é, isto é, ou seja… ahhh!…” E daí para fora, não saía a explicação. Depois começava a olhar para Ele e ficava intimidado.

“Sendo Ele tão infinitamente superior, o que vai achar da bobagem que vou dizer? Nem tenho coragem de me apresentar a Ele!”

Nossa Senhora, com toda a tranquilidade, diz: “Meu Filho…”, e dá a explicação angélica. Ele ainda faz duas ou três perguntas e Ela quase desmaia de encanto diante da sabedoria das indagações. Depois Ele agradece e vai brincar…

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/5/1980)

Vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso – I

Deveria haver uma educação pela qual a pessoa compreendesse que esta vida é um vale de lágrimas, porém colocado no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Ou seja, existe a possibilidade de altas felicidades, compradas a custo das lágrimas e do sangue. Não se trata de êxtases ou revelações, mas dos gáudios da união com Deus, prefigura da visão beatífica.

 

Como todos sabem, eu nasci na “Belle Époque”(1). Minha adolescência e mocidade transcorreram no período denominado “entre deux guerres”(2), no qual havia uma convalescença que não chegou a se consumar, um meio-termo entre a saúde e a doença, com algo do peso, mas também da alegria da convalescença, porquanto esta é um sair do estado doentio e um caminhar para a saúde que se aproxima.

Sem nenhuma complacência com o ilícito, Dr. Plinio apreciava o lícito material

Houve um período primevo no qual a minha inocência me dava muito o desejo de coisas extraordinárias, não expressas, mas nas quais entrava a graça. Porém pouco mais tarde a minha atenção foi, não inteira, mas fortemente, desviada desse campo de cogitação para os problemas referentes à minha perseverança, à interlocução e polêmica com o pensamento revolucionário, à necessidade de me agarrar na minha fidelidade para não me deixar levar e, portanto, para a luta.

Assim, essas cogitações superiores saíram um tanto de minha atenção, sem que jamais eu as recusasse. Mas era como se não coubesse na minha mente tanta coisa para pensar ao mesmo tempo. Então, isso ficou um pouco de lado como um quadro que se tem dentro de casa, do qual se gosta muito, mas que a vida cotidiana obriga a não estar prestando atenção sempre nas excelências do quadro. Assim também era isso dentro da minha alma.

Eu tinha a ideia de que dia viria no qual teria tempo de cogitar e de somar o que ia conquistando na luta, na polêmica, na concepção da sociedade temporal com aquelas alcandoradas e anteriores elucubrações, percepções, conaturalidades, apetências naturais elevadas, etc. A isso juntou-se o fato de que, ao começar a frequentar o mundo do “entre deux guerres”, ele me oferecia, mesmo dentro do lícito, muitas delícias. E eu, “truculento” em tudo, embora negando-me categoricamente qualquer complacência com o ilícito, era muito apreciador do lícito material: o luxo, a boa comida, o conforto, a vida agradável. Essas coisas passaram a se representar para mim como muito desejáveis e criavam a ilusão, mais ou menos implícita, de que o homem, possuindo virtude, prestígio e grande luxo, teria atingido o teto do que esta vida pode dar. Até certo ponto, isso projetava a poeira de um olvido sobre as apetências alcandoradas de outrora.

As felicidades apresentadas pelo mundo eram festivais do demônio

Nos primeiros cinco anos do que eu poderia chamar minha conversão, caiu-me nas mãos uma biografia de Santa Teresa de Jesus, em dois volumes, escrita por uma carmelita de Caen, na França. A descrição dos êxtases deliciosíssimos feita pela autora, acrescida ao fato de que eu estava numa fase onde nadava nas consolações muito mais deleitáveis do que o prestígio, conforto e luxo dentro da virtude, isso tudo me levou a compreender que havia outra gama de felicidade para a qual a minha alma estava desatenta, em virtude do curso das coisas.

Comecei, então, a procurar o que era isso. Para Santa Teresa de Jesus gostar tanto daqueles êxtases fantásticos, deveria haver na alma dela uma aptidão natural, que o sobrenatural satisfazia.

Fazendo a introspecção de mim mesmo, eu notava uma violentíssima vontade de degustar aquilo porque era a união com Deus, mas também – devo dizer – e muito, pelo gáudio inseparável dessa união. Quer dizer, essa união em si mesma, e salvo as noites escuras e provações, é cheia de gáudio como uma esponja pode estar cheia de água.

Então me perguntava: onde existe na minha alma uma apetência dessas coisas, tão dormente que eu não percebia, mas tão viva que, posto diante da descrição, levanto-me inteiro como que num bramido?

Muitos anos depois, lendo fragmentos de literatura grega, em geral, um pouco de Platão e, depois, Padres do Oriente, percebi que a alma deles se movia numa atmosfera de delícias do espírito. Nos gregos, eram delícias naturais, mas andando na linha da transesfera(3); nos Padres gregos, eram sobrenaturais e também naturais, visto que eles eram algum tanto herdeiros da cultura grega.

Perguntando-me qual o suporte dessas coisas, cheguei à conclusão de que aqueles arroubos da infância indicavam a zona natural da alma voltada para o desejo dessas graças, e na qual, entrando a graça, aquilo se desenvolve.

Deveria, pois, haver uma educação na qual a pessoa compreendesse o seguinte: esta vida é um vale de lágrimas, é verdade, mas um vale de lágrimas no meio de montanhas cujos picos tocam no Paraíso. Portanto, existe a possibilidade de altas felicidades nesta vida, compradas a custo das lágrimas e do sangue, mas existe. Essas felicidades não são as da “Belle Époque”, do “entre deux guerres”, nem do que se lhe seguiu – que eram festivais do demônio –, mas são felicidades presentes nessa zona da alma.

Ponto de inserção do amor de Deus na alma

O homem fica um imbecil, cego, tartamudo e coxo se ele não vive em função disso. A meu ver, sem isso a pessoa tem condições dificílimas para praticar a Religião Católica e perseverar nela, porque o ponto de inserção do amor de Deus na alma é esse. Essa é a zona de nossa alma mais voltada para Deus, e é nas felicidades dessa zona que a pessoa encontra parte de sua motivação para não querer o vício, que é o obscurecimento e a renúncia a essas altas felicidades. De outro lado, é essa zona da alma que dá coragem para as renúncias impostas pela virtude.

Para ser implantado o Reino de Maria seria necessário que a graça criasse um ambiente em consequência do qual as almas ficassem assim, e as virtudes fossem preservadas pela educação e por tudo, constantemente nessa direção. Aliás, aí está a temperança. Sem isso essa virtude é uma espécie de ascese e ginástica.

Entretanto é preciso notar que aqui, sem que nós tenhamos percebido, se encontra um dos pontos mais delicados da fidelidade à nossa vocação. Porque o thau(4), quando está no seu florescimento primeiro, abre um caminho para isso. Há um determinado momento em que os atrativos sensíveis deste caminho deixam de reluzir, e a fidelidade ao thau passa a ser mais ou menos como a fidelidade conjugal num casal em que o esposo e a esposa perderam a graça um para o outro, mas aguentam porque é preciso. Com efeito, há uma espécie de segunda etapa matrimonial com o thau – se ousássemos nos exprimir assim – que é despida dessas coisas. Tenho a impressão de que não seria tão despida, mesmo na maior noite escura, se esse senso tivesse prevalecido, por onde a decadência equivale sempre a um determinado momento em que a pessoa quis fechar os olhos aos esplendores do thau para prestar atenção nas coisas da Terra. São as vaidades e aflições de espírito que levam a isso.

Se para nós a perseverança é dura e penosa, a vida é fatigante e cheia de abrolhos, isso tudo tomará um caráter de suportabilidade e até de alegria – não a da fruição, mas dessas alegrias que chamam para Deus –, na medida em que conseguirmos recompor na nossa alma essa forma de amor de Deus, que corresponde a ter sentido, conhecido e degustado a semelhança de certas coisas com Ele, e nisto ter degustado a Ele.

Não me refiro a coisas materiais, mas às internas da alma, prefigurações da visão beatífica. Não se trata de êxtases, visões, mas é natureza e graça. Isto recompõe as nossas almas e nos faz andar.                v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 9/5/1984)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)

 

1) Período de cultura cosmopolita na História da Europa que começou no fim do século XIX (1871) e durou até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914.

2) Período compreendido entre o fim da I Guerra mundial (1919) e o início da II Guerra (1939). A primeira metade deste período chamou-se “les années folles” (os anos loucos), devido essencialmente às rupturas que se verificaram no relacionamento social.

3) Termo criado por Dr. Plinio para significar que, acima das realidades visíveis, existem as invisíveis. As primeiras constituem a esfera, ou seja, o universo material; e as invisíveis, a transesfera.

4) Denominação da última letra do alfabeto hebraico, a qual tinha a forma de uma cruz. Baseando-se no capítulo 9 da profecia de Ezequiel, Dr. Plinio empregava esse termo a fim de indicar um sinal marcado por Deus nas almas das pessoas especialmente chamadas a rezar e agir pela derrota da Revolução, vitória da Igreja e implantação do Reino de Maria.

Os ódios sapienciais do Imaculado Coração de Maria – I

Maria Santíssima é toda cristalina, feita de suavidade e de pureza, dir-se-ia ser uma alma incapaz de odiar. Entretanto, pelo próprio amor insondável que Ela tem a Deus, é impossível que não odeie o que é contrário a Ele

 

Nossa Senhora é a Medianeira de todas as graças e o ponto de referência de todos os elogios feitos a Deus. Não podemos conceber um louvor de Deus perfeito que não tenha a Ela como ponto de referência.

O caminhar do espírito humano

O espírito humano caminha para a cognição de “proche en proche” – de próximo em próximo, mas nesse caminhar, qual é o próximo d’Aquele que é eterno, absoluto, perfeito, infinito, transcendente em relação a qualquer criatura? Deus mora, a um título muito especial, no interior das criaturas por Ele amadas. Então, como Ele habita em Nossa Senhora, que é tão especialmente objeto de seu amor?

N’Ela temos o modo de nos tornarmos mais próximos de Deus. Embora Ele seja inacessível, fica ao alcance de nossa mão, porque habita em nossa Medianeira. Sendo Ela o Palácio da Trindade, o Paraíso do Homem-Deus, por meio d’Ela podemos ter com Ele aquele contato sem o qual nada somos.

Por essa razão, para exaltar qualquer perfeição divina, até mesmo a sagrada cólera d’Ele, não podemos tratar disso sem falar a respeito d’Ela.

Quando um indivíduo peca e se fixa irreversivelmente no pecado, torna-se odioso

Como medir a cólera do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria? Como podemos sequer conceber o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria em cólera? Parece que as expressões são contraditórias, antitéticas. N’Ela não pode haver cólera, Ela é toda cristalina, toda feita de suavidade, de pureza. A cólera parece uma vibração de indignação, do amor de si mesmo contrariado, do egoísmo vilipendiado. Como se pode conceber disposições de alma tão baixas n’Aquela criatura que é toda Ela elevação?

A quem e como Nossa Senhora odiou? Costuma-se dizer que Ela odiou o pecado. É verdade. Mas o pecado só existe na pessoa do pecador. Não há um pecado tomado em abstrato. Antes de Adão e Eva pecarem, não havia pecado, pois não havia pecadores. Existia uma possibilidade de alguém pecar. Então, poder-se-ia odiar essa possibilidade, mas o ódio não teria como objeto um ser existente. Se Adão e Eva tivessem esse ódio ao pecado, enquanto sendo uma eventualidade, teriam encontrado mais recursos de alma para não pecarem.

Maria Santíssima odeia em todos os pecadores aquilo que é pecado e ama os pecadores, pois ama neles a possibilidade que, por disposição divina, têm de se arrepender. Mas a situação atual do pecador, enquanto permanecendo no estado de pecado, Ela odeia.

Como Ela odeia? Como nós podemos imaginar os ódios do Sapiencial e Imaculado Coração de Maria?

Tenho a impressão de que com o pecado e com a virtude há quintessências. Alguns pecadores, por assim dizer, levaram tão longe o pecado quanto uma criatura humana pode levar a virtude. E, ao pé da letra, pecaram tanto quanto podiam, isto é, quanto estava na condição deles pecarem. Sendo criaturas muito elevadas, tiveram a possibilidade de pecar de modo muito abominável. Diz o ditado popular: quanto maior é a altura, tanto maior é a queda.

Assim, houve criaturas de uma natureza muito elevada chamadas por Deus a emitir um reflexo magnífico das três Pessoas Divinas. No momento em que pecaram e se fixaram irreversivelmente no pecado, essas criaturas tornaram-se odiosas. Ao ser criada, e tendo tomado conhecimento dessas criaturas e da hediondez do pecado por elas cometido, Nossa Senhora não foi em relação a elas senão ódio.

Maria Santíssima toma em consideração que o pecador forma um todo só com o pecado, assim como a pessoa virtuosa forma um todo só com a virtude. É mais ou menos como a pessoa feia e a feiura; como também a beleza constitui um todo com a pessoa bela. Tanto a beleza quanto a feiura são inerentes ao ser da pessoa.

Assim também o pecado, com a diferença de que este é livremente escolhido pelo pecador; e nisso a pessoa tem exatamente a nota mais humilhante, pois ela viu e aderiu àquilo por sua própria vontade.

O ódio se mede pelo amor

Então, pelo próprio amor insondável que Nossa Senhora tem a Deus, é impossível que Ela não odeie completamente aquele ser ao vê-lo como sendo o contrário do Criador. Para cada pecador a quem a Divina Justiça selou o destino e condenou ao Inferno, Maria Santíssima pode dizer as palavras da Escritura: “Eu te odiei com ódio perfeito!” (cf. Sl 138, 22). É um ódio ao qual não falta nada.

Esse ódio é feito de uma concepção retíssima e nobilíssima de como aquele ente deveria ser, pois Nossa Senhora conhece o modo único pelo qual aquela criatura deveria ser a imagem e semelhança de Deus, e ama muito aquilo. Ao ver que aquele ser rejeitou essa perfeição, transformando-se voluntariamente no contrário, Ela percebe que ele atingiu o requinte de sua própria maldade e o odeia completamente, por amor àquela mesma perfeição que Ela contempla em Deus.

É forçoso que, amando-se algo muito, se odeie igualmente o contrário. O ódio e o amor se acompanham como a figura e a sombra.

Os pés puríssimos de Nossa Senhora calcam os precitos com ódio

Poderíamos imaginar Nossa Senhora na presença de Deus e, diante d’Ela, uma alma que será julgada. Se for uma pessoa virtuosa, Ela a considera com amor e diz: “Filho meu, como te pareces comigo e com os dons que Deus pôs em Mim! Quero oscular-te, meu filho, dá-me tua fronte!”

De repente, aparece a alma de um pecador empedernido, trazendo o sinal do demônio na testa. Evidentemente, toda aquela força de atração se transforma em repulsa, e as palavras de carinho tornam-se increpação: “Eu desvio de ti minha face, tenho horror ao semblante que apresentas, ele causa-Me asco e indignação. Quero calcar aos pés a deformidade que por teu pecado assumiste, como calco a serpente eternamente!”

Poder-se-ia pintar um quadro representando a Santíssima Virgem calcando aos pés cada um dos réprobos que estão no Inferno porque, de fato, sobre eles pesa eternamente o ódio total e implacável d’Ela. E tendo Ela como uma de suas glórias pisar sobre os precitos, poderia dizer a Deus: “Faço-Vos este ato de reparação, meu Criador, que sois meu Pai, meu Filho e meu Esposo! Esses miseráveis quiseram ser o contrário de Vós, por isso meu pé puríssimo, elemento integrante e executivo da mais alta criatura que vossa Sabedoria e vosso Poder engendraram, calca-os com ódio, e Eu entoo o cântico de cólera e de triunfo de todos os justos no Céu e na Terra!”

Ela teve vontade de punir Salomão, que levou à perdição o povo eleito

Dos múltiplos exemplos que se poderiam apresentar, não há nenhum que me cause tanto arrepio quanto Salomão, o filho bem-amado, o rei que recebeu de Davi a coroa e a missão. Davi deixou prontos os materiais e os planos para a construção do Templo, mas foi Salomão quem teve a glória de construí-lo. Salomão, que é o autor do Livro da Sabedoria, entretanto prostituiu-se a ponto de adorar ídolos, transformar-se num devasso e morrer na libertinagem e na apostasia. Como era possível que uma alma de tal maneira decaísse daquele pináculo? Esse homem, que escreveu as palavras ditadas pelo Espírito Santo para serem comunicadas à humanidade, de repente transforma-se nesse vaso de abominação!

Ao ler no Livro da Sabedoria a narração da construção e inauguração do Templo, de que amor a alma santíssima de Maria deveria se sentir cheia! Era um perfeito reflexo do amor de Deus e quanta glória deveria dar a Ele!

Contudo, ao considerar a narrativa da queda de Salomão, como poderia não sentir um ódio tão grande quanto o amor por Salomão na sua justiça? Como não sentir náusea, asco, repulsa, vontade de rejeitar e de punir aquele que de tal maneira se tornou inimigo de Deus, levando à perdição o próprio povo eleito?!

Horror implacável a toda forma de pecado

Sabe-se que houve Santos que, ouvindo os penitentes em Confissão, sentiam o mau odor dos pecados cometidos por aquelas almas.

Quando o mau odor resulta simplesmente da negligência da pessoa no trato do próprio corpo, causa uma particular repulsa. Ninguém tem culpa pelo mau cheiro do corpo provocado por alguma doença, mas ser negligente e não ter horror ao mau odor de si mesmo já é uma forma de conivência que contagia de algum modo a alma com aquele mau odor físico.

Por exemplo, uma pessoa que por negligência nunca escove os dentes e tenha, por isso, um hálito abjeto. Ela sabe que, se escovasse os dentes, o mau hálito cessaria, mas não os escova porque não tem horror ao mau gosto e ao mau odor de sua boca. Somos levados a pensar que essa alma tem conaturalidade com certos defeitos morais, e ficamos com horror ao corpo que leva a um horror à alma, enquanto esta não tem aversão àquilo que para o corpo é horrível.

Ora, o pecador que poderia e deveria eliminar o seu pecado, mas se deixa ficar nesse estado, tem incomparavelmente mais culpa e é mais aderente ao mau cheiro de sua alma do que ao mau hálito de sua boca.

Imaginem Nossa Senhora sentindo o mau odor da alma de Salomão, por exemplo, que Ela, a posteriori, terá conhecido por completo. Salomão, cujas palavras deveriam ter o perfume do incenso ao ser queimado, o aroma dos frutos quando chegam à maturidade, após sua prevaricação ficou com o cheiro abjeto de todas as putrefações.

Se isso é assim, podemos compreender, então, o implacável horror de Nossa Senhora a toda forma de pecado.

Maria Santíssima conhece até mesmo o que é oculto

Assim também a Santíssima Virgem, a Quem nada era oculto, conhecia perfeitamente a abjeção a que tinha caído sua nação no tempo em que Ela nasceu. Ela sabia que o Messias estava por nascer naquela ocasião, mas via a que auge de degradação chegara o povo judeu. Nossa Senhora não podia deixar de ter, com muito mais lucidez do que o profeta, aquela visão de Ezequiel quando foi conduzido para dentro do Templo e viu em seus recintos ocultos os sacerdotes praticando idolatria, porém diante do povo fingiam adorar o Deus verdadeiro.

Ora, Maria Santíssima sabia que a classe sacerdotal se preparava para cair no abismo do deicídio, e seria a promotora mais ativa de todas as calúnias contra Nosso Senhor. O Sinédrio era propriamente a força deicida dentro de Israel.

Devemos imaginar a Virgem Maria menina entrando para o serviço do Templo, aos três anos de idade, e presenciando esta realidade bivalente: a casa de Deus, onde a glória d’Ele habita, os justos vão rezar, seu Divino Filho iria ensinar, ou seja, todo o Templo era uma espera ansiosa do Messias que deveria vir; e, ao mesmo tempo, Ela via, ao lado do culto verdadeiro, o culto secreto, disfarçado, abominável, e a prevaricação de toda a classe sacerdotal.

Alguém objetará:

— Mas Ela só tinha três anos!

Eu respondo:

— Ela era Nossa Senhora…

Não tem outra resposta a dar. Ela já conhecia tudo.

Com que enlevo Ela penetrou na casa de Deus! Qual não terá sido o cântico dos Anjos ao verem se aproximar Aquela de Quem nasceria o Salvador e que era a nova Arca da Aliança, da qual a arca guardada no Templo, com tanto respeito, era apenas uma prefiguração!

Reação das almas diante de Nossa Senhora menina

Podemos imaginar uma ou outra alma boa que havia por ali, quiçá a Profetisa Ana, o Profeta Simeão, e que, por premunições misteriosas, observando aquela criança diriam: “Que grande chamado tem essa menina!” Vendo-A passar no cortejo das outras meninas educadas para o serviço do Templo, talvez percebessem ser uma intercessora incomparável junto a Deus, e a Ela se dirigiam implorando os favores celestes. E a futura Mãe de Deus, por uma dessas correspondências internas da alma, dava a entender: “Eu tenho consonância contigo, tu és um comigo”. E aquela alma se banhava de alegria!

Provavelmente alguns faziam sua vida girar em torno d’Ela. Sabendo nas várias ocasiões do dia onde Nossa Senhora estava, olhavam para um quarto, por exemplo, para ver se Ela apareceria na janela; ou verificavam de que recinto a Menina saíra para poderem entrar lá logo depois, e por esta forma viver em Maria, com Maria e por Maria, que era uma forma antecipada de viver em Cristo, com Cristo e por Cristo.

Assim, deveria haver em torno da Santíssima Virgem almas fervorosas às quais Ela impulsionava ainda mais para o bem, elevando-as a um píncaro de santidade para elas inimaginável. Outras que eram boas, mas postas na mediocridade, a quem Ela convidava a um voo possante rumo à perfeição que deveriam ter atingido, mas não atingiram. A cada uma dessas a presença d’Ela dizia: “Ou tu Me amas, ou te atolas. Tua hora chegou! Vem, minha filha!”

Por fim, havia também os filhos de satanás, abominando qualquer forma de verdade, de bem ou de beleza, e que, ao sentir a presença d’Ela, dentro deles o demônio grunhia, encobria-se, efervescia, tinha medo, sentia a necessidade de abandonar a presa e sair fugindo, mas armava a alma daqueles malditos contra Ela.

Teve ódio e foi odiada

Se um bom católico no mundo de hoje divide, como não supor que Nossa Senhora não dividisse? Não podia deixar de haver no Templo, além dos amigos da Virgem, os inimigos que desviassem d’Ela o olhar, sentissem mal-estar perto d’Ela, A odiassem, tentassem eventualmente caluniá-La ou difamá-La, procurassem de todos os modos ser-Lhe nocivos, invocassem demônios para tentá-La, prová-La, recusassem-Lhe alimentos, enfim, A sabotassem de todos os modos. Salvo por uma disposição especial da Providência, isso deve ter sido assim. E tanto as almas que eram a favor d’Ela quanto as contrárias acabavam se articulando. Portanto, Nossa Senhora, no Templo, fez a Contra-Revolução oposta à Revolução que se preparava contra o Filho d’Ela.

Estas são hipóteses que se constelam em torno da Santíssima Virgem Maria e nos fazem entender o que foi a vida d’Ela, o papel que o ódio representou em sua vida desde a primeira infância.

Levo minha suposição mais longe: creio que Nossa Senhora, quando estava no claustro maternal de Santa Ana, já causava mal-estar nos que eram de satanás. O demônio, a partir do momento em que Maria Santíssima foi concebida, começou a perseguir Santa Ana de um modo especial, surgiram antipatias, ódios, como também venerações e simpatias, antes mesmo de se perceber que ela concebera uma criança. De tal maneira Nossa Senhora é o contrário do demônio, que ele tinha que sentir a irradiação da pessoa d’Ela, instigando contra Ela o ódio daqueles em quem ele habitava. Não é possível que não fosse assim.

Vemos, portanto, que, desde o primeiro instante de seu ser, Ela teve ódio e foi odiada. Essa compressão e descompressão do ódio e do amor representaram a própria trama da existência d’Ela.    v

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/7/1980)
Revista Dr Plinio 262 (Janeiro de 2020)