São Luís Gonzaga, um gran de batalhador

Pela via da inocência, São Luís atingiu um elevado grau de santidade. Em meio aos prazeres da corte, ele permaneceu resoluto em seu desejo de fazer-se religioso, pois nada de terreno o atraía.

 

A “Vida de São Luís Gonzaga”, de autoria do Padre Virgílio Cepari, o qual conviveu durante largo tempo com o santo, traz trechos bastante interessantes. Passemos a comentá-los.

A Marquesa Castiglioni, Dona Marta Tana de la Róvere, sentia um desejo muito vivo de ter algum filho que servisse a Deus como religioso. Perseverando neste desejo, pedia com frequência a Nosso Senhor que lhe concedesse essa mercê.

Não é algo novo que um filho tão santo e desejado com tanto zelo tenha sido fruto não menos das orações que do ventre da mãe. Ana, mãe de Samuel, sendo estéril, pediu a Deus um filho que servisse no templo, e logo o obteve. São Nicolau Tolentino foi fruto das orações de sua mãe estéril; São Francisco de Paula nasceu de pais estéreis, que o obtiveram depois de um voto; e outros mil exemplos disto.

As grandes obras nascem das orações

É preciso notar de passagem, embora o que vou dizer não se refira à biografia de São Luís, o comentário que esse padre está fazendo. Se os filhos eleitos, com frequência, nascem das orações dos pais, também é verdade que as obras e frutos preferidos dos homens que se consagram a Nossa Senhora, e que não vão ter filhos, nascem de suas orações. Assim como uma mãe que quer ter um filho reza a Deus para obtê-lo, também uma pessoa que abrace o estado de celibato pode rogar a Nossa Senhora: “Eu vos peço que a fecundidade da minha vida seja tal obra”.

Às vezes, Deus faz com que uma longa esterilidade tenha depois como consequência um nascimento tardio, esplêndido, que longos anos de espera fizeram germinar. Isso se dá com o apóstolo, que pode passar longo tempo estéril nas suas ocupações, mas em determinado momento o “filho” nasce.

Devemos rezar intensamente a Nossa Senhora para que Ela dê a nossas vidas essa forma de fecundidade, que vale mais do que ter “n” filhos.

Belo exemplo de disciplina conjugal

Quando chegou o tempo do parto, foram tais as dores sofridas pela Marquesa que ela esteve a ponto de morrer, sem poder dar à luz a criatura. A boa senhora mandou chamar o Marquês, e pediu licença para fazer voto à Rainha dos Céus; de muito bom grado, o Marquês assentiu, e ela fez voto de ir pessoalmente, se escapasse com vida, visitar a santa Casa de Loreto, levando consigo o menino, se ele também sobrevivesse.

Que bonito exemplo de disciplina conjugal! Ela manda chamar o Marquês e lhe pede licença para fazer a promessa.

Batizar tão cedo quanto possível

Feito o voto, cessou o perigo e em pouco tempo nasceu o filho. Porfiavam ainda os médicos que não era possível que o menino ficasse vivo, e o Marquês instava a que se procurasse salvar a alma do filho; a experimentada parteira, logo que viu o menino o suficiente para poder receber a água do Batismo, antes que nascesse totalmente batizou-o.

Uma criança em vias de nascer, estando apenas com a cabeça de fora do claustro materno, pode ser batizada. Dir-se-ia que esse fato não tem importância nenhuma porque a criança ainda não tem uso da razão; portanto não pode pecar nem rezar, e não é capaz de atos de virtude ou viciosos. Assim, não há razão para esse açodamento.

Sem culpa da criança, mas por artes do demônio, este pode adquirir maior influência sobre ela durante o tempo em que ainda não é habitada pela graça de Deus. Portanto, há vantagem em batizá-la quanto antes, para evitar isso.

Faço essa afirmação com base num cerimonial da Liturgia católica: em certas Missas solenes, o padre começa por incensar o altar. O povo acha que é um ato de reverência do sacerdote para com o altar. De fato, tem esse sentido e também outro mais profundo: é o de exorcizar o altar, expulsando o demônio que ali possa estar. Se o demônio pode ficar junto a um altar consagrado, em que todos os dias se rezam várias Missas, não poderá estar exercendo uma ação sobre uma pobre criança inocente, que repercutirá durante sua vida inteira?

O açodamento do Marquês era para evitar que a criança morresse antes do Batismo e fosse para o Limbo. A alegria do pai se deve ao fato de que, desde muito cedo, a criança fora habitada pela graça.

Para maturar, São Luís foi mandado para o exército e não para o jardim da infância

O Marquês quisera que seu filho fosse soldado como o pai; com este fim, tendo ele quatro anos, mandou fazer uns arcabuzes e outras armas tão pequenas que o menino pudesse carregá-las.

Quando se preparava a armada contra Tunes, o Marquês levou consigo Luís ao local onde deveriam se reunir, para que tomasse gosto pelas coisas de guerra.

Fazer um menino de quatro anos frequentar o ambiente militar pode parecer um excesso, mas, ao contrário, é uma coisa esplêndida.

Hoje em dia, as crianças são colocadas no jardim de infância, e acabam numa espécie de infância a vida inteira. Quando se quer que a criança mature, não se deve pô-la em jardim de infância, mas em jardim de adultos. Maturar é o próprio da criança. Em vez de colocá-la em estágio superior, onde ela procure acelerar sua busca de um estado mais alto, atualmente se faz o contrário: uma educação para comprimir. E quando termina o jardim de infância, o menino é educado junto com as meninas: a coeducação. Há o risco de ele se tornar um elemento híbrido, nem adulto nem infantil e de espírito nem másculo nem feminino. São Luís, portanto, foi mandado não para o jardim de infância, mas para o exército.

Nos dias em que havia desfile militar, o Marques fazia seu filho ir à frente das tropas, com as pequenas armas que mandara fabricar.

Podemos imaginar que encanto: um menino que tinha uma alma de lírio, marchando ufano à testa de uma tropa maravilhada pela vista do filho do Marquês de Castiglione!

Uma vez, estando o Marquês fazendo sesta, e dormindo também outros soldados, Luís tomou pólvora dos frascos dos soldados e ele, sozinho, carregou um canhão pequeno que estava no castelo, e atirou. O Marquês acordou com o estrépito e, temendo alguma revolta dos soldados, quis saber o que tinha acontecido.

Que Marquês de truz! Não era um homem amolecido, e logo teve uma desconfiança: os soldados estão revoltados…

São Luís Gonzaga foi educado na gravidade que se deve atribuir a todas as coisas

Tinha aprendido, pelo trato em conversação com os soldados, a empregar algumas palavras livres e descompostas que eles de ordinário empregam. Um dia seu preceptor o repreendeu por causa disso. Desde aquela hora nunca mais saiu palavra descomposta de sua boca e, se escutava a outros dizê-las, baixava os olhos de vergonha, ou virava o rosto.

Sabemos que nem sempre a linguagem dos ambientes militares é a mais pura e elevada possível. E o menino aprendeu umas tantas palavras peculiares ao palavreado militar, que não faziam parte da linguagem da casa de família.

Naquela época um príncipe viajava muito. Imaginemos o menino numa carruagem, com seu preceptor e um séquito de gentis-homens que o acompanhavam a cavalo. Só depois de ter deixado a cidade, já em pleno campo, o preceptor falou com ele. Notemos a gravidade que o preceptor atribuía ao assunto.

Os espíritos “marca jardim de infância” achariam exagerada a gravidade empregada pelo preceptor. Dir-se-ia que ele foi imprudente, pois a criança, não sabendo o significado dos termos, não fizera mal nenhum. Pelo contrário, ele revelou uma visão profunda das coisas: a palavra é tal que, mesmo quando a pessoa não sabe o que quer dizer, ela faz algum mal.

O que vem a ser escrúpulo?

Essas palavras, ditas naquela idade, são o maior pecado da vida de Luís. Doeu-se delas a vida toda, como se tivesse feito um pecado gravíssimo.

Veremos agora a humildade de São Luís; a humildade é a verdade e esta o leva a considerar esse ato como o pecado mais grave de sua vida. E aí transparece uma inocência, uma santidade, que é uma coisa de cegar.

O que houve da parte de São Luís: um escrúpulo tonto? O escrúpulo é uma deformação da alma. Na linguagem corrente se diz “tenho escrúpulo de tal coisa”, no sentido de afirmar que minha consciência, retamente orientada, me levante dúvidas sobre a liceidade de algo. O escrúpulo, no sentido próprio da palavra, não é uma dúvida varonil sobre a liceidade de alguma coisa; é um treme-treme imbecil a respeito de algo, sobre o qual não há razão para se ter dúvidas.

No caso de São Luís, não é nem podia ser escrúpulo, porque se vê que ele foi um menino admirável desde o começo, e não pode ter tido essa moleza especial que é o escrúpulo. Então, como se justifica que ele se acusasse disso?

Uma hipótese é esta: acusava-se de ter notado que essas eram palavras vulgares, sem lhes conhecer o sentido sórdido ou imoral. Mas ele as pronunciou de algum modo aderindo ao estado de espírito trivial da soldadesca. Embora não tivesse cometido um pecado contra a castidade, teria praticado uma falta que, de longe, raspava no Primeiro Mandamento.

Importância da idade da razão

Chegado aos sete anos, decidiu dedicar-se inteiramente ao serviço de Deus; de maneira que ele chamava a este tempo o de sua conversão.

Isso prova que a criança pode ter a alma já deformada muito mais cedo. E que essa mania de dizer que ela é um “anjinho”, porque não atingiu ainda a idade da razão e não pecou, é uma lorota. Pecado propriamente dito a criança não comete, enquanto não tiver a idade da razão. Mas daí a dizer que não possa ter adquirido maus hábitos, é muito diferente.

O Padre Mucio Vitelleschi, Geral da Companhia, depõe com juramento na informação canônica que conversou um dia com Luís sobre a opinião de Santo Tomás, segundo o qual, quando o menino chega ao uso da razão, tem obrigação, sob pena de pecado mortal, de dedicar-se logo ao serviço de Deus, e encaminhar todas suas ações ao último fim; com grande sinceridade, disse este santo moço que neste ponto não tinha escrúpulo nenhum, por estar certo de que, no instante em que nele amanheceu a luz da razão, Deus o preveniu com sua graça, e com ela se tinha ele oferecido e dedicado de todo o coração.

São Tomás diz que a criança, quando chega à idade da razão, deve racionalmente, e motivada pela Fé e pela graça, resolver levar a sua vida no serviço de Deus. A primeira razão para viver é dar glória a Deus; depois podem vir outras razões.

Seria uma coisa desejável que no dia em que a criança completasse sete anos, fosse uma data especial, pois é o pórtico pelo qual ela entra na arena. Em vez de se fazer uma festa para dar a entender à criança que é um passo a mais no gozar a vida, deve-se proceder de outro modo, dizendo-lhe: “Agora você vai começar a lutar. E lutar pelo seu Senhor e Deus; pela sua Senhora, a Mãe de Deus; pela sua Mãe, a Santa Igreja Católica. Prepare-se! E faça desde já o enunciado de seu propósito: viver para servir a Deus.”

Confirmação em estado de graça

Com razão, o Cardeal Belarmino(2), falando das assinaladas virtudes de Luís, chegou a dizer que provavelmente se pode crer que a Divina Providência em todos os tempos tem na sua Igreja alguns santos confirmados em graça, enquanto estão vivos. Nestes termos se expressou o Santo Cardeal: “Eu, para mim, acho que um destes confirmados em graça é nosso irmão Luís Gonzaga, porque sei quanto se passa na sua alma”.

Uma pessoa ser confirmada em graça é um dom extraordinário. Não quer dizer que ela seja somente santa, mas que Deus deu àquela santidade tal vigor que a pessoa não pecará mais. Mais precisamente, não perderá o estado de graça; não cometerá pecado mortal. É a excelsitude das excelsitudes.

Virgindade exímia

Estando um dia em oração, fez voto a Deus Nosso Senhor de perpétua virgindade.

Fala-se hoje muito pouco de virgens, e é uma coisa razoável, porque se fala pouco a respeito do que existe pouco. E quando se trata de virgens, pensa-se sempre no sexo feminino. Não se tem ideia da beleza da virgindade no sexo masculino.

Vemos aqui ser de virgindade o voto feito por São Luís.

Afirmam seus confessores, e em particular o Ilmo. Cardeal São Roberto Belarmino, que São Luís em toda a sua vida não sentiu jamais nem o mínimo estímulo ou movimento carnal no corpo, nem um pensamento ou representação lasciva na mente, contrária ao propósito e voto que fizera.

Esse fato fala muito em favor da confirmação em graça.

Ele, de sua parte, cooperou para a proteção desta rica joia com o cuidado contínuo que tinha na guarda dos sentidos, especialmente dos olhos, tendo-os sempre controlados para que não olhassem nem a mil léguas onde pudesse haver algo inconveniente.

Encontro com São Carlos Borromeu e primeira Comunhão

Em 1580, esteve São Carlos Borromeo, Arcebispo de Milão, visitando a diocese de Brescia, e chegou a Castiglione. Depois do sermão, visitou-o Luís, então com doze anos e quatro meses.

Vejamos como eram as coisas: São Roberto Belarmino, São Carlos Borromeo, São Luís Gonzaga encontram-se… Um santo conversando com outro tem muita coisa para dizer.

Consolava-se o Cardeal de ver a tenra planta tão forte no meio dos espinhos da corte, sem indústria de hortelão, mas só com as influências do Céu.

“Indústria de hortelão” não é uma linguagem muito contemporânea. Indústria quer dizer aqui jeito, habilidade, arte. Hortelão é o jardineiro. Sem arte de jardineiro, ele era como uma planta muito viçosa.

O menino alegrava-se de ver o Cardeal, e como sempre ouvira falar dele como de um santo, tomava suas palavras e avisos como vindos do próprio Deus. Foi então que fez sua primeira Comunhão.

Decidido a abandonar o mundo…

Um dia, meditando sobre a felicidade dos religiosos, começou a pensar:

“Que grande bem o da religião! Estes padres estão livres dos laços do mundo, afastados de ocasiões de pecar. Por que estranhar que estejam alegres e sem medo, nem sequer da própria morte, do Juízo e do Inferno, se trazem sempre a consciência limpa? E eu, por que não adoto para mim um estado tão feliz?”

Segundo ele narrou, depois de ter-se encomendado a Deus com grande afinco, julgando que Deus o chamava para esse estado, resolveu-se a deixar o mundo e entrar em alguma Ordem religiosa.

Podemos imaginar a maturidade desse menino! Naturalmente, não estava voltado a dizer coisas engraçadas o tempo inteiro, nem a brincadeiras. Desde pequeno lhe foi ensinado a ser sério.

São Luís pede para isso licença a seu pai

Depois de rogar muito a Deus, procurou escolher em qual Ordem deveria ingressar.

Na festa da Assunção de Nossa Senhora, no ano de 1583, tendo ele quinze anos e meio de idade, comungou e depois se retirou para fazer a ação de graças, pedindo a Nosso Senhor, por intercessão de sua Mãe, que lhe descobrisse sua vontade. E então escutou uma voz clara que lhe disse para entrar na Companhia de Jesus.

Luís foi, então, falar com a senhora Marquesa; e ela ficou tão contente que deu muitas graças a Deus, e quis ser a primeira de cuja boca ouvisse o Marquês a noticia. E foi isto bem necessário para aplacar a cólera e primeiros ímpetos dele. Depois, em diversas ocasiões, fez a Marquesa este ofício, e como o Marquês não sabia que ela desejava ter um filho religioso, atribuiu a diversas intenções, entre outras que ela tinha afeição pelo segundo filho, e desejava que este herdasse os Estados.

Vemos que era bem esperta essa Marquesa. Esperta ao serviço do bem: não revelou ao marido que ela queria que seu filho mais velho ficasse jesuíta. Disfarçou, e com isso o Marquês começou a ter outras ideias, como a de que desejava favorecer o segundo filho para o governo dos Estados que pertenciam a esse Marquês; assim, ela desviava a atenção do marido sobre seu filho mais velho e sua vocação religiosa, a fim de ele poder entrar num convento. Ela era corajosa e reivindicou para si a honra de ser a primeira a dar a notícia, ou seja, a escorar no peito a primeira raiva do Marquês.

Mais tarde foi Luís pessoalmente, com a maior humildade e reverência que pôde, e disse ao Marquês que ele estava resolvido, e que haveria de ser religioso.

Notem o contraste: “Foi Luís pessoalmente com a maior humildade e reverência que pôde”, e “disse que estava resolvido”. Quer dizer, respeitoso ao extremo, mas resolvido, e não adiantava vir com histórias: ia ser mesmo. Era maior de idade e dispunha de si.  O resto são amabilidades e reverências necessárias e louváveis. Ele vai atender à vocação de Deus, porque é preciso obedecer a Deus antes que aos homens.

A reação do Marquês

Ficou o Marquês como de fogo ouvindo isto, e com ásperas palavras expulsou-o de sua presença, ameaçando que o faria despir e açoitar.

Não conheço um fato atual de recusa de um pai para seu filho, no caso deste querer entrar para um movimento religioso, e que tenha chegado à ameaça de açoite em carne viva. Isso teve São Luís Gonzaga que enfrentar.

Respondeu Luís: “Fosse do agrado de Deus, meu Senhor, que eu merecesse padecer algo por seu amor”. Ficou o Marquês com incrível ira, e depois de alguns dias em que não pôde descansar nem repousar, mandou chamar o confessor e fez-lhe grandes queixas de ter colocado tais coisas na cabeça do filho, sobre o qual ele depositava as esperanças de sua casa.

Ele via que seu filho era muito inteligente, capaz e virtuoso. E um defeito de muitas famílias antigas era este: quando tinham um filho menos inteligente destinavam-no à vida sacerdotal; a filha feiarrona, que não conseguia encontrar casamento, ia ser freira; escolhiam os filhos mais capazes para continuar a família. Era uma forma de dar a Deus o menos bom, e ficar para si com o melhor. Assim não se trata a Deus, a Nossa Senhora!

O homem forte é aquele que segue todos os meios lícitos para cumprir a vontade Deus

Tendo certo dia ido visitar, com seu irmão Rodolfo, o colégio da Companhia, Luís disse no final aos que o acompanhavam que poderiam voltar à casa, que ele não mais queria regressar, mas ficar lá.

Foi jeitoso. Não disse em casa “até logo” para o pai; pretextou uma visita ao colégio dos jesuítas, e depois disse: “Vocês vão-se embora, eu vou ficar aqui!”, dando a entender: “Meu pai, se quiser, venha cá”. Assim fazem os homens fortes.

Há um modo errado de conceber o homem forte: aquele que é tonitruante como um trovão em meio a relâmpagos. Às vezes ele é assim; outras, não: é jeitoso e macio, mas chega onde deve chegar. O homem que obedece à vontade de Deus, e segue todos os meios lícitos para cumpri-la, esse é um homem forte.

Ao saber do ocorrido, o Marquês enviou vários mensageiros para fazê-lo retornar. Estes só obtiveram êxito quando argumentaram que era um menoscabo da autoridade paterna fazer isso sem licença.

Tentativas do pai em dissuadir São Luís a respeito de sua vocação religiosa

Instou, pois, o Marquês para que, ao menos, o jovem adiasse a entrada até a volta à Itália. Luís, pensando que o Marquês cumpriria a promessa, respondeu que com gosto daria esse prazer a seu pai. E assim ficaram todos de acordo.

Chegando à Itália, o Marquês escusou-se, dizendo ser forçoso que Luís fizesse antes, com seu irmão Rodolfo, as visitas de cortesia às cortes da Itália.

Concluídas as visitas, obteve o Marquês do Duque de Mântua que enviasse um Bispo muito eloquente dizer a Luís que ficasse homem de igreja, e assim poderia servir melhor a glória de Deus; para isso não faltavam exemplos de homens santos, como o Cardeal Carlos Borromeo.

Ou seja, ficar padre secular e não membro de uma Ordem religiosa.

Insistiu o Bispo várias vezes e com diversos argumentos. Luís agradecia a preocupação do Duque, mas escolhera a Companhia, e não pretendia outro gênero de vida.

Veio também uma pessoa da família argumentar que, se queria deixar o mundo, não entrasse na Companhia que ficava perto dele, mas nos Cartuxos ou outra Ordem distante.

Vê-se aí a decadência religiosa da época: o Marquês encontra uma série de eclesiásticos que vão fazer a obra do demônio junto ao filho. Uma pessoa o aconselha a entrar numa Ordem severíssima, como os cartuxos que são contemplativos no rigor do termo. Por que o Marquês poderia preferir que ele ficasse cartuxo a jesuíta? Porque os jesuítas estavam na ponta da Contra-Revolução. E se seu filho se tornasse jesuíta teria inimigos, mas se entrasse para uma cartuxa ou outra Ordem semelhante, ficaria trancado lá. Ao menos esse espantalho sairia de diante de seus olhos.

Afinal, depois de muito relutar, o Marquês confessou estar convencido de que aquela era uma grande vocação de Deus, e logo começou a contar a grande santidade com que Luís vivera desde menino, e disse que ele não queria mais impedir o filho de ficar religioso.

A bonita morte do Marquês

Quando morreu o Marquês, seu pai, dois meses e meio depois de começado o noviciado, Luís não sofreu maior impressão, como se não fosse com ele. Nesta ocasião foi-lhe dito que escrevesse a sua mãe para consolá-la, e ele começou a carta dizendo que dava graças a Deus, pois doravante poderia dizer mais livremente: “Pai nosso que estais nos céus”.

Manifestou-se de modo especial a Providência de Deus nesta morte, pois o Marquês sempre fora dado a pretensões de honrarias e grandezas mundanas. E com motivo da entrada de Luís em Religião fez tal mudança de vida que deixou totalmente o jogo; todas as noites mandava que trouxessem diante de sua cama um Crucifixo que Luís deixara e rezava os sete salmos penitenciais e as ladainhas.

Notem qual é o problema da profundidade do pecado. O mundo hoje está cheio de jogadores, em toda parte. Os presentes neste auditório não acham dificílimo que um deles morra nessas condições? É quase impensável. Para a atitude do Marquês, é claro que contribuía, e em muito, o mérito de São Luís Gonzaga. Também é verdade que esse homem tinha restos de boas resoluções, tradições, e não estava tão gangrenado pela Revolução como estão os de hoje. Assim, foi capaz de um arrependimento sério, profundo, até edificante, depois de ter feito uma oposição a mais tremenda possível à vocação do filho; e morreu na graça de Deus.

São Luís morre em jovem idade

Antes de completar seus estudos de Teologia, faleceu aos 23 anos de uma doença contagiosa.

A 26 de setembro de 1605, Paulo V publicou o seu Breve de beatificação.

Diversos foram os pedidos de beatificação. O próprio Imperador Rodolfo escreveu desde Praga ao Sumo Pontífice, e além de fazer a lembrança “da pura, piedosa, santa e mortificada vida de Luís”, acrescentava esta razão: “era Príncipe do Sacro Romano Império, e parente seu, e tinha dado a todos tão preclaro exemplo de desprezar o mundo”.

Considerem como os tempos mudaram: o mais alto personagem temporal da Cristandade, naquele tempo, o Imperador do Sacro Império, se interessava pela beatificação de uma pessoa. Escrevia diretamente ao Papa, intervindo como filho primogênito, em certo sentido da palavra, da Igreja para a beatificação do Servo de Deus. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de: 9/2/1966, 3/4/1990 e 18/4/1990)

 

1) Cepari. Pe Virgilio. Vida de San Luís Gonzaga, Patrono de la juventude. Einsiedeln, Benziger & Co.: Nova York, 1891.

2) São Roberto Belarmino. Cardeal, membro da Companhia de Jesus e contemporâneo de São Luís Gonzaga.

Pulcritudes na vida de pobreza

Dissociar a pobreza da beleza é um erro, infelizmente, comum em nossos dias. Analisando ambientes pobres moldados pela Civilização Cristã, Dr. Plinio explicita a beleza, dignidade e nobreza existentes na modesta condição em que o próprio Rei dos Céus quis nascer.

 

O homem de hoje tem dificuldade em compreender bem qual a beleza que pode haver na pobreza. É mais fácil conceber o belo na riqueza. Como pode ser a pulcritude da pobreza?

Vamos tratar deste assunto, analisando algumas fotografias(1).

A beleza da velhice

A primeira apresenta uma praça, na Itália, na qual está um poço. Aquele arco dá o ponto de partida a uma corda que desce e, com um recipiente, se pega água lá embaixo. Porque a água encanada não existia nessa favela de pedra que ali se vê.

Junto a essa praça há vários arcos que dão acesso a uma rua, mas ela é toda fechada e seu ambiente é diferente do da rua. As passagens são tais que preservam a praça da entrada e saída de ônibus. Creio mesmo que a movimentação de automóveis não é muito fácil, a não ser por aquela porta grande que fica aberta. Mas nenhum dos presentes neste auditório gosta de imaginar um automóvel entrando ali.

Um carro puxado a cavalo, desde as esplêndidas carruagens conduzindo príncipes, até qualquer carro movido por um cavalinho que, ao trotar, bate com as patas na pedra dura, enfim, tudo isso agradaria, exceto um veículo motorizado, cuja entrada na praça nos daria a impressão de profaná-la.

Essa construção é toda de pedra, feita para durar sempre e que não pede pintura. A pedra é de um jeito que, quanto mais fica suja e velha, mais se torna bonita.

Notem que a construção é feita de tal maneira que se vê que ela é suja. A pátina do tempo passou sobre ela, está meio ensebada, mas não nojenta. Ninguém teria nojo de encostar-se em uma dessas paredes, nem de morar dentro de uma dessas casas. Tudo é pitoresco e tem algo de fortificado.

Nas cidades italianas desse tempo as guerras internas, de bairro contra bairro, eram frequentes. Vê-se que a torre tem no alto uma espécie de terraço, maior do que a própria torre, com uns suportezinhos em forma de arco embaixo. Esses suportes são vazados, de maneira que deles se jogavam chumbo derretido, azeite e água fervente, disparavam-se flechas, etc., sobre os miseráveis que quisessem entrar ou sair, sem licença dos donos da torre.

A pobreza aí é evidente; nada fala de riqueza. O que, entretanto, é bonito dentro disso?

Antes de tudo, é bonita a velhice. Isto, reconstruído, seria muito menos bonito. O vento soprou, o Sol dardejou de modo inclemente sobre essas pedras, fazendo ferver as pessoas que moram ali. As dificuldades da vida, acontecimentos importantes se passaram nesse municipiozinho, e que tudo isso como que deu uma fisionomia a essas portas, janelas e a esses arcos.

Cada lar era um lugar sagrado

Tem-se a impressão de que essas janelas e portas não têm uma fisionomia inexpressiva de uma criança no berço, mas a fisionomia expressiva de um homem que já viveu muito, e no qual a sua biografia mudou o aspecto da boca, dos olhos, da carnatura; enfim, tudo mudou no choque da vida. Olhando para ele, vê-se sua história estampada em sua fisionomia.

Vê-se que essas torres e casas passaram por convulsões da vida e apresentam a beleza forte da História. Durante muito tempo — queira Deus que até hoje — moraram ali populações com Fé, cientes de que a pobreza pode ser uma bênção, mas que é preciso lutar para que ela não nos jogue nos braços da morte. Sabiam que a vida é dura, difícil, mas que tudo isso aponta para o Céu e encontra nele a sua explicação, o seu prêmio. Compreendiam que a verdadeira vida de família, imbuída de sobrenatural, a dignidade e a respeitabilidade do chefe de família e de sua esposa face à prole numerosa que os venerava, tudo isso fazia de cada alvéolo, de cada lar, um lugar sagrado, respeitado, venerado. De vez em quando se ouve numa casa: “Papai está em cima, mamãe desceu, mas já vem.” E onde estão papai e mamãe, está o lar, a respeitabilidade, a sabedoria, a confiança na vida. Em última análise, o Mandamento que preceitua a castidade perfeita aos solteiros e a fidelidade entre casados paira como se fossem dois Anjos sobre essa casa.

Na parede, uma Madonna, uma vela gasta. Mais adiante, um pequeno objeto esculpido por alguém e um presente dado por outrem. Sobre um móvel, uma campânula de vidro e dentro uma coroa de noiva. Era a coroa que a noiva — hoje anciã cheia de rugas e de cabelos brancos — levava, altaneira e digna, ao casamento, como símbolo de sua pureza, e que, a pedido do marido, se conservava lá por toda a sua existência.

Quanta pulcritude na vida de pobreza!

Isso todos o sentiam, o entendiam, e não havia essa ferocidade para escapar da vida de pobre como de dentro de um inferno. Tratava-se, do contrário, de entender o sabor que a vida de pobre tem, saber fruí-lo; isto era o segredo da vida dessa gente.

A vida é, antes de tudo, uma caminhada para o Céu

Comparem isso com algum aspecto de uma cidade contemporânea: prédios enormes visando dar uma impressão de monumental e de riqueza. Mas não têm graça, ninguém se detém para olhar nada, todo mundo passa depressa.

Aqui não! É evidentemente uma rua pobre de um bairro pobre. As casas estão meio espremidas uma na outra. Nas paredes, de um lado e de outro, nada traz sinal de riqueza. Tudo é pobre, mas bonito, tem fisionomia, expressão. É muito mais atraente do que, por exemplo, qualquer dos grandes hotéis modernos, que se encontram mais ou menos por toda parte das grandes cidades.

Nesse ambiente modesto o homem se sente em casa. E existe a alegria do conforto, mas principalmente o conforto da alma, do aconchego de pessoas que se entendem porque participam da mesma Fé e têm o mesmo modo de entender a vida, que é antes de tudo uma caminhada para o Céu; onde as almas restauram suas forças para voltar para a luta, ou ir para a oração, participar da Missa e comungar na igreja mais próxima.

Nesse tipo de cidades há muitas igrejas, e não se dão dois passos sem encontrar com uma. Em todas elas, silencioso, invisível, está sempre Nosso Senhor realmente presente. Há muitas imagens de Nossa Senhora e de outros santos. A igreja é o palácio dos pobres. Eles entram e veem a riqueza da Santa Igreja, a beleza da Liturgia, se regalam com aquilo, seus horizontes se abrem, suas almas voam até o Céu.

Quando se ama a Deus, tende-se para a beleza

Analisemos agora uma fotografia de uma aldeia alemã, na noite de Natal.

Esses grupos de pessoas percorrem de casa em casa para cantar alguma canção relativa ao Menino Jesus. São, em geral, pessoas de uma mesma família. Eles cantam e o dono da casa vem para o lado de fora e ouve a canção. Depois, os de dentro respondem com uma outra música conhecida. Posteriormente, os visitantes são convidados a participar da ceia, comem, agradecem e saem cantando. E os donos da casa, terminada a ceia, vão percorrer outras casas, fazendo o mesmo. E, de alegres em alegres visitas, a noite inteira se canta a glória do Divino Infante.

Eu pergunto: isso não traz consigo uma manifestação de como se pode ser pobre e ter alma feliz? Pode-se ser pobre e ter Fé? Isso não nos leva a compreender a beleza da condição pobre em que o Menino Jesus, Príncipe descendente de Davi, quis nascer? Aí está outro aspecto poético da vida do pobre de antigamente.

Onde está o lado poético da vida do pobre hoje? Mas também, onde está o aspecto poético da vida do rico? Onde há poesia neste mundo de mecanicidade da revolução industrial?

Para entender inteiramente essa outra fotografia, precisamos tomar em consideração que essa casa alemã passa uma parte do ano na neve, e que nesse período não há flor. O único sinal de vegetação é o pinheiro, com seu formato triangular, verde-escuro, e mais nada. Todos os outros vegetais “estão de luto”, e apenas uma camada de “açúcar com água” recobre a terra: é a beleza da neve.

Mas na primavera explodem as flores magnificamente. Não posso me esquecer de quando estive na Europa, pela primeira vez, depois de adulto, em 1950. Fui preocupado com tudo, menos com flores. A primeira nação onde comecei minha viagem foi a Espanha.

Desci no aeroporto de uma cidade cujo nome não me lembro. De repente, um vermelho explosivo que parecia sangrar me chamou a atenção. Eram gerânios. Mas uma cor bonita! Todo entusiasmo da Espanha parecia transbordar no gerânio. Em toda a Europa, na primavera, a vegetação explode. Então os donos das casas têm muita alegria em poder exibir para os transeuntes essa sua felicidade, sua alegria: as flores que possuem.

Nessa fotografia, veem-se flores que ornamentam uma casa visivelmente pobre. É evidente que a família fez florir assim a residência para que todos participem da beleza das flores que ela possui; e há gente que, passando por ali, para, comenta, entra, felicita, depois segue adiante. Existe uma participação de todos na procura e no gosto da beleza.

Vemos na outra foto habitações modestas, cujo ornato é feito por traves de madeira comum e flores nas janelas, e onde tudo está disposto de um modo apenas um pouco artístico. Percebe-se que as pessoas que ali vivem não passam fome, mas não levam uma vida folgada.

É a arte do pobre: tomar materiais simples, fazer com eles desenhos simples. Por que causa tanta admiração? Porque, quando uma população tem amor à verdade e ao bem, ama a Deus — que é a Verdade, o Bem, a Beleza —, todas as pessoas, desde as mais modestas até as mais elevadas, tendem a pensar, imaginar e realizar coisas belas. E, enquanto é próprio dos ricos fazer palácios magníficos, é característico dos pobres tirar de materiais simples uma beleza que ninguém imaginava.

Como é nobre ser católico!

Tudo leva a crer que, na parte de baixo dessas casas, haja um estabelecimento comercial, e mais provavelmente um dos inúmeros restaurantes saborosíssimos existentes pela Alemanha. Posso imaginar os pães, as salsichas, as delícias… evidentemente as cervejas. Comida simples. Cada dona de casa tinha sua fórmula de fazer pão e, portanto, essa loja tinha um pão que não se encontrava em nenhuma outra. As salsichas, a linguiça, eram feitas pela própria casa, e todas elas tinham sua modalidade.

Nesse presumível restaurante havia um homem do bairro, pago para cantar, à noite, e outro tocava violino; era uma coisa original do lugar, tinha seu atrativo.

Hoje não. As salsichas, as linguiças, os pães, tudo é fabricado aos milhares, e vendido igual por toda parte, não tem originalidade nenhuma. Que graça tem isso? Ora, atualmente isso é a vida, inclusive do rico. Minguando o amor de Deus, o pecado e a feiura vão invadindo a vida dos homens.

Em geral, o interior dessas casas modestas é ornado com móveis e utensílios confeccionados pelos próprios moradores. São as tais esculturas domésticas que, colocadas na residência, ficam para sempre. Os bisnetos vão saber que tal bisavô fez isso. E não se vende, é uma lembrança. O artesão que a realiza sabe estar dando uma nota de beleza a mais ao seu lar, e quando ele morrer, sua família terá para sempre um ornato a mais na sua pequena casa.

Formam-se, assim, verdadeiras dinastias de trabalhadores manuais, dentro das quais se aprecia a recordação dos avós como na nobreza tem-se respeito pela ancestralidade. Não são nobres, mas operários que sentem quanto é nobre ser católico, ainda quando não se faz parte da nobreza.

Por outro lado, como Deus é o Senhor, o Rei, o Criador do Céu e da Terra, e a igreja é a casa onde mora Deus no Santíssimo Sacramento do Altar, a igreja é o palácio do lugar. Por causa disso, quando a família ia para a Missa — o ato mais augusto que se possa realizar na Terra, onde se renova de um modo incruento o Santo Sacrifício da Cruz — todos usavam seus trajes de ornato, de festa.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/8/1986)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

1) As ilustrações desta seção não correspondem às fotografias analisadas por Dr. Plinio nesta conferência.

 

A felicidade celeste – II

A Revolução odeia as desigualdades existentes na sociedade e, visando extingui-las, fomenta nos homens o vício da inveja. O contrarrevolucionário ama a hierarquia e se alegra em ver pessoas superiores a si mesmo; assim, ele se prepara para o Céu, onde os bem-aventurados estão colocados hierarquicamente, constituindo uma magnífica unidade em que todos se estimam por amor a Deus, e não há lugar para a inveja.

 

Cornélio a Lápide cita uma carta de São Jerônimo a uma santa do tempo da decadência do Império Romano do Ocidente: Santa Eustáquia, que pertencia à nobreza romana, era muito rica e distribuiu sua fortuna aos pobres. Ela abandonou tudo e abraçou a pobreza por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo.

São Jerônimo escreve a esta santa descrevendo-lhe como seria a entrada dela no Céu, quando ela morresse.

A inveja provoca devastações nas almas

Para explicar a alegria da entrada e da permanência no Céu, Cornélio desenvolve muito um ponto que supõe uma explicação.

Há muitos anos, conversando com um bispo, falávamos de vários assuntos e, a certa altura, tratei da questão da inveja. Ele, então, me disse: “Se você fosse confessor, saberia o que é a inveja e a devastação que ela faz nas almas. Pelo que você está dizendo, calculo que não tenha ideia disso”.

Naquele momento, isso me chamou um pouco a atenção e pensei: “Vou refletir depois”. Posteriormente comecei a pensar… Na obra Revolução e Contra-Revolução faço referência à inveja quando falo da desigualdade. O homem inferior, que não tolera a desigualdade do superior, é um invejoso; fica com tristeza pelo fato do outro ter uma coisa que ele não possui.

E no Céu, se inveja coubesse, haveria um título especial para ela se exercer. E é desse ponto que eu queria tratar para entendermos o mal da inveja, a tristeza e a acidez com que ela enche a vida do homem, e compreendermos a alegria do Céu.

Por isso vou fazer apenas um pequeno parêntesis para chegarmos depois até lá.

Uma hipotética ocasião de inveja no Céu

Não é possível a inveja no Céu. Mas, numa hipótese imaginária, irreal, o que poderia dar ocasião à inveja no Céu? As pessoas, no Paraíso, estão com seu futuro marcado para todo o sempre, e nunca mais mudará. Ora, alguns veem Deus mais excelentemente do que outros, e os que veem menos sabem que outros veem mais.

Os que veem Deus menos excelentemente poderiam fazer o seguinte raciocínio:

Como seria mais deleitável eu ver ainda mais do que estou contemplando! Porque se o que estou vendo, que é menos, já é tão deleitável que eu quase racho — racharia se Deus não me sustentasse — como seria desejável eu arqui-rachar!

Ora, eu que vivi, pelo menos até agora, 72 anos neste exílio, entrando no Paraíso posso notar a alma de um menino que, logo após ser batizado, morreu e foi chamado ao Céu. E Deus, porque quis, deu a ele mais do que a mim. Como é isso?

Então temos que entender o razoável disso, para compreendermos como no Céu não existe a inveja. E, a partir disso, fazer uma aplicação sobre as relações nesta Terra. Esse seria o curso desta exposição.

Diversos modos de ver a Catedral de Orvieto

Tomem pessoas de sensos artísticos de vários graus que, todas juntas, vão olhar a fachada da Catedral de Orvieto, gótica e dourada, adornada por vitrais e mosaicos. Digamos uma família, ou um grupo de amigos, que vá à Itália.

Em certo momento, o veículo que os conduz entra na praça de Orvieto. Maravilhamento! Todos veem a catedral no seu conjunto. Mas, se prestarmos atenção, nem todos a veem do mesmo jeito. Porque, em primeiro lugar, o grau de agudeza de vista pode ser maior em um e menor em outro, de maneira que a imagem que, pelos olhos, chega até a retina seja melhor num e pior no outro.

Em segundo lugar — e isso importa incomparavelmente mais —, um tem o senso dos conjuntos, pega e sente aquela quintessência de sabor própria a quem compreende a fundo a catedral. Enquanto outro, ao ver o conjunto, apenas balbucia: “Quanto dourado, quanta escultura, hein!”

Depois, passada essa primeira impressão, todos se aquietam, um diz: “Olha que bonita aquela imagem, e aquela outra!” De repente, um outro se entusiasma com uma escultura ou com um mosaico e, dentro deste, com uma figura e fica olhando-a.

Isso é legítimo? Está bem?

Pormenores que merecem toda a admiração

Sim! Porque a catedral é uma tal obra-prima que, na ordem das coisas, é proporcionado haver algumas inteligências privilegiadas que vejam ali tudo. Mas é proporcionado também que cada um daqueles pormenores extasie tanto algum homem, que ele teria ido a Orvieto só para ver um detalhe. O pormenor merece isso! É um direito, por assim dizer, do pormenor que haja alguém que vá à Itália só para vê-lo.

Por exemplo, uma cena a qual não lembro que esteja em Orvieto, mas provavelmente está: as mãos de Nossa Senhora, num mosaico, quando Ela recebe a saudação do Anjo. Só por aquilo um homem atravessaria o oceano, para ver as nervuras, os dedos, a piedade. Dir-se-ia: aquelas mãos liriais merecem isto!

E está de acordo com a ordem das coisas que haja uma família de almas feita para apreciar aquilo. O gênio do artista, o valor da obra que ele deixou realizada merecem admiração, isso está na ordem querida por Deus. E o homem que admira só as mãos de Maria Santíssima ou, por exemplo, está encantado com as asas multicolores de um Anjo, diz o seguinte: “Eu não tenho talento para ver tão bem quanto um outro a catedral toda, mas possuo uma alegria: presto justiça a essas asas! E, para admirá-las, poderia dedicar minha vida inteira!”

Dou muita importância a isto para se ter paz de alma. Mas também para ser contrarrevolucionário e poder afirmar: “Eu, enquanto homem, sou proporcionado a isto; esse detalhe artístico merece que um homem consagre sua vida para admirá-lo, e este homem particularmente sensível a isso sou eu”.

Enquanto um homem não concordar que sua vida está bem empregada assim, nele há um fermento ativo de Revolução.

A “fortiori” é com Deus Nosso Senhor, que possui todas as perfeições em todos os graus possíveis. E, quem vir a Ele num todo — isso todos veem — e depois ficar eternamente para contemplar apenas um grau desta perfeição, este será bem-aventurado por toda a eternidade, e perfeitamente aquinhoado porque Deus merece. Aquele grau da perfeição do Criador merece isso e muito mais. Nossa Senhora se daria por feliz de passar a eternidade contemplando o que se poderia dizer o grau mais acessível de uma das perfeições de Deus.

Como não poderíamos nos dar por felizes? Seria, no fundo, negar a perfeição do próprio Deus! Quer dizer, passando do exemplo de Orvieto para o que se dá com Deus Nosso Senhor, compreende-se, então, como no Céu não há inveja.

Devemos nos alegrar ao vermos a superioridade de outros

Assim, entendemos o quanto a inveja é irracional, estúpida.  Alguém dirá:

— Mas Doutor Plinio, eu tenho pesar de ser burro.

Eu lhe respondo:

— Meu filho, você devia ter pesar de ser bobo!

No Colégio São Luís de meu tempo de menino — não sei como fazem nos colégios hoje — havia nota de comportamento e aproveitamento no ensino. Mamãe me dizia: “Desejo que você tire boas notas em aproveitamento, mas não faço tanta questão, porque pode ser que meu filho seja burro, e nesse caso eu também o estimo muito. Mas, em comportamento, não! Nota de comportamento tem que ser dez e raramente nove. E quando não for dez, você precisa explicar a sua mãe o que ocorreu. Porque nesse caso entra a culpa. E neste ponto não transijo”. E eu achava que ela tinha razão.

Então, eu digo àquele que se afirma burro: “Tenho pena de você porque tem nota cinco de comportamento e fica triste por causa do aproveitamento. Com sua pouca inteligência, quando você morrer dará para ver em Deus uma perfeição tão admirável, que justificaria a vida de um coro de Anjos! Isso você vai ver, e está choramingando?”

Para não falar de outras coisas mais ordinárias… “Fulano é tão engraçado, e eu não sei contar nada de jocoso! Fico com inveja de Fulano”.

Dá vontade de dizer: “O palhaço do circo é mais engraçado do que Fulano. Vá lá para admirar o palhaço! Na realidade, você não acha graça no outro, mas tem inveja das palmas que ele obtém, da popularidade que ele forma em torno de si.”

Então deveríamos ter um cuidado muito grande em ficarmos com alegria, notando a superioridade de outros. Precisamos ser almas famintas de admirar essa superioridade. Vendo que uma pessoa tem mais do que eu, digo: “Mas que bom!” E se possui uma coisa que não tenho: “Mas que ótimo! Que satisfação!” E se é mais virtuosa: “Lamento não ser tão virtuoso quanto deva, mas me alegro que tal pessoa seja mais virtuosa do que eu!”

A alma faminta de ver outros superiores é contrarrevolucionária. Se ela não é assim, não minta para si nem para Deus, e reconheça humildemente que tem um grave fermento revolucionário. Bata no peito e peça emenda. Não minta para si, porque a Deus não se mente. Ela carrega duas mentiras: uma para os homens e outra para si mesma. Deus vê! De maneira que isso deve ser analisado bem de frente.

Recepção de uma virgem no Céu

Vejamos agora como São Jerônimo cuida da questão. Na carta a Santa Eustáquia, diz ele:

Qual será o dia em que Maria, Mãe do Senhor, virá a teu encontro, acompanhada pelos coros das virgens?

Ela era uma virgem que entrava no Céu, e o coro das virgens viria recebê-la. Pensemos um pouquinho que coro nos receberá no Paraíso… Será uma pessoa de quem tínhamos saudades e que virá nos abraçar? Nós, mais velhos, morreremos antes dos mais moços. Já temos membros de nosso Movimento que morreram e estão no Céu. Nós podemos esperar que eles nos recebam na orla do Paraíso, como São Domingos Sávio, com certeza, acolheu São João Bosco. E serão os primeiros amplexos, o primeiro entusiasmo, a primeira alegria… Que gáudio para nós ver os que estão na glória dos Céus, e há muito tempo rezando por nós! Que coisa magnífica!

Então vêm Nossa Senhora, o coro das virgens, e também o coro dos guerreiros para receber essa virgem de alma varonil.

São Jerônimo continua:

Virá o próprio Esposo…

Num perfeito cortejo, o rei vem no fim.

…da alma dela e dirá: “Levanta-te, vem, minha irmã…”

Ele imagina Nosso Senhor Jesus Cristo dizendo a Santa Eustáquia:

“…vem minha bela, minha pomba; porque passou o inverno e a chuva.”

São palavras tiradas do Cântico dos Cânticos(1).

 Imaginem que Nosso Senhor diga a um de nós: “Venha, meu filho, venha meu guerreiro! Passou a luta. E agora, por toda a eternidade, triunfarás”.

Vendo a alma que entra, os bem-aventurados se admirarão e dirão: “Quem é esta que se ergue como uma aurora, bela como a Lua, eleita como o Sol?”

Esta última frase é da Escritura(2) e costuma ser aplicada a Nossa Senhora. São Jerônimo a aplica a Santa Eustáquia, e nós poderemos empregá-la aos contrarrevolucionários que entram no Céu. “Quem são estes que se erguem como a aurora, pulcros como a Lua, luzidios e escolhidos como sóis?”

E São Jerônimo acrescenta:

As donzelas te verão e te louvarão.

As graças rejeitadas pelos réprobos serão concedidas aos bem-aventurados

Então, terminada a recepção, da qual estou encurtando partes, afirma São Jerônimo:

Os 144 mil que estão diante do trono e os anciãos tomarão cítaras e cantarão o “canticum novum”, em louvor da nova bem-aventurada que entrou!

Cento e quarenta e quatro mil é um número simbólico. Quer dizer, feita toda a recepção, os bem-aventurados cantam em louvor daquela que chegou! Lá não cabe a inveja, ela não existe!

São Jerônimo continua:

Deus, no Céu, entregará aos bem-aventurados todos os dons, todos os dotes e todas as graças.

E Cornélio a Lápide comenta:

Todas as graças, também aquelas que os réprobos tiveram nesta vida.

Quer dizer, as graças que os réprobos tiveram e rejeitaram são entregues aos que forem, pelas orações de Nossa Senhora, levados ao Céu. Essas graças recusadas esperam aos justos. Tudo isso não se perderá.

Porque a beatitude é o estado perfeito, pela agregação de todos os bens, como diz Boécio.

Vem citado, depois, um dito de Santo Ambrósio:

Cada um dos bem aventurados goza de tal maneira com a glória de cada um dos outros…

Ainda que seja uma glória maior. É o contrário da inveja!

…como se esta glória dos outros fosse a sua própria glória!

Assim devemos ser na Terra com relação aos outros. Quando eles se realçam, precisamos ficar alegres como se fosse um dom para nós; dessa forma nos preparamos para o Céu. Não se pode ser de outra maneira! Eu sei que a Revolução ensina o contrário! Pior do que isso, vicia com o contrário! Porque é um vício o que ela estimula.

Maravilhosa união entre os bem-aventurados

Pelo que é bem-aventurado, não uma vez, mas milhares e milhares de vezes.

Quer dizer, o indivíduo tem a bem-aventurança de milhares e milhares, porque ele frui a glória do outro como se fosse dele. Então, o menorzinho no Céu desfruta a glória de São Miguel Arcanjo, no píncaro dos píncaros, como se fosse a dele. E literalmente ele “racha” de contemplar São Miguel Arcanjo!

E agora vem a metáfora apresentada por São Jerônimo:

Na recompensa há uma torrente de gozo e o ímpeto de um rio que não corre e nem se retira.

É chamado de rio não porque passa, mas porque abunda.

É uma beleza de metáfora! Quer dizer, os bem-aventurados vão chegando ao Céu como um rio; um rio que não escorre, mas deságua numa eternidade para a qual não há mais movimento nem inércia. Está tudo na perfeição. E cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais! Um invejoso que estivesse lá veria um concorrente no novo que chega. Não sendo invejoso, ele tem alegria e exclama: “Mais gente! Que maravilha! Para Deus, eu nunca serei anônimo. Todos que estão aqui me conhecem pelo nome. E me querem até na minha pequenez”.

E os maiores que passam perto dele, vendo-o na sua pequenez dizem: “Como esta perfeição de Deus merece que fosse criado este, e O adorasse especialmente neste grau!  Meu caro, como estou alegre que tu existas!”

Os menores serão o gáudio dos maiores e os maiores serão a alegria dos menores. Tudo numa união maravilhosa, sem igualitarismo. O maior gosta do menor porque é menor. E o menor gosta do maior, porque é maior.

Feito este périplo por tão belos textos, deixo-os aos pés da Catedral de Orvieto.

Imaginem um homem que melhor entendeu Orvieto, o qual passa e vê de repente um que está olhando fixo para uma asa de um Anjo, um arco-íris, ou qualquer outra coisa da Catedral de Orvieto. Ele olha e diz o seguinte: “Sou feito para ver o todo, mas se eu contemplasse só o que ele está vendo, daria minha vida por justificada, porque aquilo merece”.

Passa perto dele e diz: “Meu caro, como você está bem aquinhoado em admirar esse detalhe! Somos irmãos!”

Terminou, meus caros, a nossa visita à Catedral de Orvieto, e nós nos dirigiremos, com a bênção de Nossa Senhora, para outros e novos rumos. Estes não são nem novos nem antigos; são eternos! v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/2/1981)

Revista Dr Plinio 195 (Junho de 2014)

 

 

1) Ct 2, 10-11.

2) Ct 6, 10.

A poderosa intercessão de Maria

Nossa Senhora nos quer tão bem que tudo quanto Lhe peçamos, certamente obteremos. Por pouco que valham nossas orações, Maria Santíssima recolhe nossas preces e, com os méritos d’Ela, torna-as magníficas.

São Luís Grignion de Montfort faz uma comparação muito bonita. Ele fala de um camponês que queria oferecer uma homenagem a um rei, mas a única coisa que ele possuía era uma maçã. Então, ele procurou a mãe do rei e lhe disse:

— Senhora, esta maçã não vale nada, mas se vós a oferecerdes ao rei, ele sorrirá e a comerá. Eu vos peço, oferecei ao rei esta pobre maçã. Apresentada por vós, ele lhe dará valor e a aceitará.

A rainha o fez, e o rei ficou muito contente: comeu a maçã porque sua mãe lhe havia dado.

Assim são nossas orações; entretanto, devemos oferecê-las a Nossa Senhora, dizendo:

— Mãe nossa, nossas orações valem muito pouco, mas, por favor, oferecei-as a Deus, porque por vosso intermédio elas serão muito bem recebidas.

Por causa disso, deveremos sempre rezar com muita confiança de que seremos atendidos. A Mãe de Deus nos tirará de nossos erros, de nossas faltas e obterá perdão para nossas culpas.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 1/2/1991)

Enlevo e holocausto

A “Carta Circular aos amigos da Cruz” – I

Serviço, obediência e holocausto em prol da Igreja, nascidos do enlevo pelas perfeições de Deus, são atitudes próprias da alma onde lateja um autêntico amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo. É o que Dr. Plinio nos convida a compreender, ao comentar — numa série de conferências que equivalem a um retiro espiritual — a “Carta circular aos amigos da Cruz”, escrita por São Luís Grignion de Montfort.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort escreveu uma obra com um título glorioso: “Carta Circular aos amigos da Cruz”. Por ser pequena, deu-lhe a forma de carta. A julgar pelo título, foi redigida para afervorar certo número de pessoas conhecidas do santo, particularmente amigas da Cruz ou, pelo menos, com um começo de amor a ela, numa época (início do século XVIII) onde se era pouco amigo da Cruz(1).

Ardorosa linguagem do santo

Esse é um pormenor importante, e não de interesse meramente livresco. Porque uma é a linguagem empregada com os inimigos, outra, com os amigos. Há ainda um terceiro modo de falar, utilizado com os irmãos, aqueles que vibram de entusiasmo pelo mesmo ideal que o nosso, aos quais não queremos apenas afervorar, mas impulsionar nas sendas desse ideal. São Luís escreve numa linguagem que convém às duas últimas categorias, embora mescle considerações diversas.

Com efeito, alguns pensamentos são próprios a estimular o amor à Cruz, outros constituem defesas ou apologias da Cruz, para serem usados em polêmicas contra os inimigos dela. Analisaremos ambos os aspectos, para bem compreendermos a linguagem e o significado da Carta, que assim começa:

Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz a palavra, não me é possível e nem desejo vos falar, para vos externar os sentimentos do meu coração sobre a excelência e as práticas divinas de vossa união na adorável Cruz de Jesus Cristo.

Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por assim dizer, da atração do meu interior, a fim de esboçar neste papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles transpassar vossos bons corações. Prouvesse a Deus que, para acerá-los, bastasse o sangue de minhas veias, em lugar da tinta da minha pena! Mas, ai de mim! Mesmo se ele fosse necessário, é por demais criminoso. Que o espírito de Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta; que sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz seja minha pena, e vosso coração, o meu papel!

Graça especial para se ter amor à Cruz

Percebe-se nesse trecho certo estilo próprio à literatura da época, mas também um pensamento teológico muito profundo. Ou seja, para tudo quanto é bom, faz-se necessária a graça de Deus, e de modo especial no que diz respeito à cruz. Porque o homem é tão egoísta e infenso ao sofrimento que, se não houver uma graça particularmente intensa, pujante, a ação de qualquer pessoa é incapaz de despertar noutra o amor à Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Por exemplo, a graça do enlevo pelas coisas celestes, pelas coisas de Deus, proporciona a uma pessoa coragem para que ela carregue grandes cruzes como se fossem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, por Nossa Senhora, pelas grandezas do Céu agem com tal profundidade no homem que, por um ato de consentimento livre, consciente — e ao mesmo tempo subconsciente, o que parece paradoxal, porém verdadeiro — ele se deixa transformar. E o amor à Cruz é o sintoma dessa mudança de mentalidade.

Esse é um ponto fundamental na vida espiritual. Pois quando no coração de alguém cresce o enlevo por algo, ele fica apetente de obediência, serviço e holocausto, que são cruzes. Fazer a vontade de outrem e não a própria: obediência; servir ao próximo e não a si mesmo e a seus egoísmos: serviço; e mais que tudo isso, o holocausto, o sacrificar pelo outro o que se possui, até a imolação da própria vida. Essas três atitudes de alma constituem cruzes e são a substância de toda cruz que existe na Terra.

Pode-se supor que é a esse amor nascido do enlevo pelas coisas de Deus, o qual torna as almas capazes de abraçar a Cruz, é a essa graça especial que se refere São Luís Grignion no exórdio de sua carta.

“Coragem! Combatei valentemente!”

E prossegue:

Estais reunidos, amigos da Cruz, como outros tantos soldados crucificados para combater o mundo, não fugindo dele como os religiosos e religiosas pelo medo de serdes vencidos, mas como valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas. Coragem! Combatei valentemente!

Como já vimos, uma das características de São Luís Grignion é o espírito combativo, com um quê de fogoso no sentido de apostrofar os erros dos adversários. Então ele, que fundou uma congregação religiosa, reunindo pessoas para fugirem do mundo, conhece a variedade dos dons que existem na Igreja. E compreende que certas almas são chamadas a permanecer no mundo para combater o mal. Porque viver no mundo é sinônimo de lutar contra o mal. É para esses que ele escreve: “valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha…” Apenas isso? Não. “Coragem! Combatei valentemente!” Quer dizer, é preciso tomar a iniciativa em defesa da virtude, contra o pecado.

Essas palavras se compaginam com a forte personalidade de São Luís Grignion de Montfort, fazendo-nos imaginar um missionário que fala e brande um crucifixo para os seus ouvintes, convidando-os à luta. Nesse trecho há qualquer coisa do timbre de voz de nosso santo, que é insubstituível. Aqui transparece sua psicologia inteira: abrasado de entusiasmo, não passando um minuto sequer sem um amor a Deus superlativo, lucidíssimo, com os olhos voltados ao mesmo tempo para o ideal que o enlevava e para a ação por ele contemplada. Portanto, da chama da contemplação passava para o ato, realizando um apostolado dardejante, levando muitas pessoas consigo. Era um braseiro ardente, cujo calor comunicativo se sente nessas palavras.

Mais anjo do que homem

Tem-se a impressão, aliás, ao lermos esses escritos de São Luís Grignion, de vermos nele mais um anjo do que um homem, com o amor próprio de um serafim. Constantemente aceso e deitando labaredas em torno de si. Ele possuía uma castidade primeira, uma candura inicial, uma incontaminação da sabedoria, sem nenhuma concessão às máximas mundanas, aos desvios da Revolução. Era um reflexo do espírito de Nossa Senhora agindo entre os homens, como um anjo.

Como se vê, nesses comentários procuramos fazer sentir o tom de voz e quase o calor pessoal de São ­Luís Grignion de Montfort, pois para nós é indispensável compreendermos a personalidade dele, que tanto nos fala à alma. Afinal, ele é o santo da verdadeira devoção a Nossa Senhora, a qual alcança para seus devotos a plenitude de dons como este do amor à Cruz, enaltecido por São Luís nessa sua admirável carta circular.

(Continua em próximo artigo)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 20/5/1967)

A verdadeira compreensão da piedade

Notável educador, profundo conhecedor da alma humana, bem como das dificuldades enfrentadas pelos jovens de nosso tempo na prática da religião – dificuldades vencidas garlhardamente por ele mesmo em sua mocidade -, Dr Plinio é a pessoa ideal para abordar essa questão.

 

Poderá à primeira vista causar estranheza que um sobre assuntos de piedade, uma vez que estes têm sido em geral confiados à pena mais competente e mais firme dos sacerdotes.

Por este motivo, começo por declarar que não tenho intenção alguma de doutrinar sobre assuntos piedosos. Observando, apenas, o grande número de obstáculos que a mocidade de nossos dias encontra para conseguir uma compreensão verdadeira da piedade, tentarei remover certas dificuldades e esclarecer certas noções que a rotina ou a ignorância religiosa apagaram completamente.

Que valor tem a vida de piedade?

A primeira dificuldade que se opõe à formação de uma vida intensamente piedosa é o mau exemplo dado por alguns católicos que, assíduos na prática da oração e dos Sacramentos, levam uma vida particular escandalosa, em absoluta contradição com os princípios religiosos que professam.

Confesso ter sido esta uma das observações que mais desfavoravelmente atuaram em minha vida espiritual.

Entendia eu que, uma vez que havia pessoas piedosas que levavam uma vida irregular, a piedade era inútil para o aperfeiçoamento do indivíduo, e tinha por única função o dar expansão a arroubos de temperamentos sentimentais.

E, infelizmente, não me faltaram os maus exemplos. Quando menino, grande parte dos mais piedosos entre meus colegas era de um respeito humano e de uma inconveniência de linguagem pasmosa. Mais tarde, conheci um rapaz que se destacava na Faculdade de Direito pela imoralidade das conversações que mantinha. Com grande pasmo meu verifiquei, posteriormente, que se tratava de uma pessoa extraordinariamente assídua na freqüência de igrejas. E, conversando certa vez comigo (a quem ele conhecia como católico praticante), abordou o tema dos escrúpulos, exibindo aquela consciência empedernida no pecado, notável conhecimento do assunto, discorrendo com facilidade sobre trabalhos de santos e de recentes autores europeus a esse respeito!

Ignorância do papel da graça

Outro grande obstáculo é a ignorância completa em que se vive, do valor e do papel da graça no progresso de uma alma na sua vida espiritual.

Acrescente-se a isto o completo desconhecimento do valor e da necessidade da adoração, da reparação, do louvor e da ação de graças tributadas pela criatura ao seu eterno Criador, e temos a vida piedosa reduzida a uma série de atos frios, mera cortesia externa para com um Criador distante e exigente que, com um olhar impassível e talvez distraído, assiste às genuflexões corporais e espirituais de suas criaturas.

Quadro pintado com cores negras, certamente. Consulte-se, porém, a grande maioria dos que pretendem ser católicos, e freqüentemente encontraremos uma situação espiritual ainda mais triste.

É necessário que esta situação deixe de existir. E, para isto, é indispensável que se vençam preconceitos e se destruam erros.

Desejando não dar grande extensão a este primeiro artigo, deixamos para o próximo número o exame do preconceito suscitado pela falsa piedade.

Plinio Corrêa de Oliveira (Transcrito do”Legionário”, nº 118, 23-4-33.)

São João Batista – Modelo de Alma

Modelo de alma admirativa, São João Batista anunciou a vinda do Messias e, por isso, foi seguido pelas multidões.

Contudo, ao avistar Nosso Senhor, ele proclamou: “Eis aquele que é superior a mim, eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo, e do qual não sou digno de desatar suas sandálias”.

E logo depois, essa afirmação de extrema beleza: “Convém que Ele cresça; a mim me compete minguar”. Como se dissesse: “Terminou minha missão, que era de preparar os caminhos do Filho de Deus. Eu não sou nada; Ele é tudo. Importa que eu diminua, e Ele exista”.

Esplêndida expressão de quem admira e se enleva com o que lhe é superior!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 10/6/1967)

Maravilhosa “neta” do Criador

Mais de uma vez temos considerado como o senso do maravilhoso é algo que possui profundo vínculo com o amor a Deus, pois se trata de um meio superiormente apropriado para conduzir nossa alma ao desejo das grandezas divinas. Noutras palavras,  Deus criou maravilhas para elevar o homem até Ele.

Por exemplo, ao contemplarmos um lindo pôr-de-sol, é-nos dada a oportunidade de louvar, de modo especial, ao Criador. Razão pela qual um São Francisco de Assis cantou o “irmão sol”: porque é maravilhoso, e na sua maravilha ele ergue o coração humano até o Eterno, mais do que o poderia fazer, digamos, um grão de poeira reluzente ao brilho do mesmo sol.

O maravilhoso é a arte produzida por Deus para externar a sua própria magnitude aos nossos olhos.

Acontece, porém, que o nosso maravilhamento não incide apenas sobre as belezas saídas diretamente das mãos do Onipotente, mas também sobre aquelas engendradas pelo próprio homem. Este é a obra-prima criada por Deus, e os esplendores arquitetados pela humanidade ao longo dos tempos, “filhos” do homem, são “netos” de Deus — como disse Dante na Divina Comédia. E, portanto, através da análise desses “netos” podemos nos enlevar com esse imperecível e perpétuo avô que jamais envelhece, Deus Senhor nosso.

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A natureza foi feita por Deus. As obras de arte foram feitas pelo homem, criado e redimido por Deus. Como igualmente já o dissemos, tudo quanto há de bom, de grande e de belo na Terra é fruto do preciosíssimo Sangue de Cristo, efundido no alto do Calvário para a regeneração do mundo. Desta fonte de méritos infinitos e de graças inapreciáveis nasceram as maravilhas do engenho humano. As águas do batismo concorreram para ordenar e requintar o senso do maravilhoso naqueles que as receberam e que passaram a desenhar o perfil admirável — e até hoje admirado — da Civilização Cristã.

Citar um exemplo?

O que sempre nos vem à mente, quando se trata de ilustrar o maravilhoso, o sonho transformado em realidade nesta Terra. O que tanto nos toca a alma, por ter sabido unir de forma insuperável essas duas criaturas divinas: céu e água.

Simplesmente, Veneza.

O perdão dos pecados e a misericórdia de Nossa Senhora

A gratuita misericórdia de Deus para conosco, dando-nos sua própria Mãe como intercessora, de um lado, e ­nossa completa ausência de méritos, de outro, fez de Dr. Plinio um convicto devoto da ­Santíssima Virgem.

 

Um membro de nosso Movimento escreveu-me, fazendo uma pergunta que pode ser assim resumida:

Certas graças determinam para quem as recebe uma espécie de Grand Retour1, como a que Nossa Senhora de Coromoto concedeu a um índio.

Para que Maria Santíssima dê a uma pessoa graça assim fulminante, é preciso que ela tenha pelo menos alguma boa disposição em sua alma, um primeiro desejo de sair do mal?

Ou pode-se admitir que a graça venha a tocar um indivíduo que está aprazivelmente comendo as bolotas dos porcos, sem nenhuma vontade de voltar para a casa paterna?

Gratuidade da parte de Deus e nossa completa ausência de méritos

Passo, então, a responder.

Segundo a doutrina católica, não existe a possibilidade de fazermos nenhum ato de vida espiritual sobrenatural que não tenha como ponto de partida uma graça a nós concedida gratuitamente. Quer dizer, o primeiro passo é sempre dado por Deus.

O ato é sobrenatural quando praticado tendo em vista a Fé, adesão da inteligência a algo que foi revelado.  Nenhum ato sobrenatural pode ser feito pelo homem antes que Deus lhe dê a possibilidade de vir a praticá-lo. De maneira que no início das nossas relações com Deus está a completa gratuidade da parte de Deus, e a total ausência de méritos de nossa parte.

A misericórdia gratuita de Deus para com o pecador

Isto se dá de modo evidente, por exemplo, com a criança que é batizada, a qual não tem o uso da razão e recebe, entretanto, desde logo, o dom infuso da Fé. 

E também com o pecador. Imaginemos dois pecadores. Um tem o resto de algo concedido por Deus e que ele não recusou inteiramente; o outro não possui nada, porque rejeitou tudo. Cada um deles, para dar um passo adiante na vida espiritual, precisa ter um perdão de Deus, uma graça. É claro que este perdão é maior para aquele que recusou tudo. Mas, em relação a ambos é preciso um perdão, um ato de misericórdia gratuita de Nosso Senhor.

Para Deus nada é impossível

Poder-se-ia apresentar a seguinte dúvida: Suponhamos um católico que apostatou da Fé e passou a ser satanista.

E um outro católico, que vive em estado habitual de pecado mortal, mas não apostatou, reza de vez em quando e assiste a Missa aos domingos. Embora esteja morto para a vida espiritual, porque se encontra em estado de pecado mortal, há nele uma série de disposições de alma que, em última análise, são restos do efeito da graça. Pergunta-se: a este pecador não adianta nada ter estes restos, para atrair a misericórdia de Deus?

É claro que adianta muito. Porque Deus, infinitamente santo e justo, sabe premiar até os pequenos restos de adesão que alguém dá a Ele. O melhor prêmio que Ele pode dar é exatamente chamar esta alma para junto de Si. De maneira que estes restos de virtude são uma razão que mais especialmente inclina a Deus a salvá-la. Mas é errado dizer que as outras almas de nenhum modo são tocadas por Deus, ou não podem ser salvas. Todo homem é salvável por Deus. E, portanto, é possível que qualquer pessoa, de um momento para outro, se converta.

Assim como esses restos de virtude, que podem existir numa pessoa em estado de pecado mortal, são razões para Deus se inclinar mais para ela, é verdade também que o negrume de pecado, no qual se encontra aquele que poderíamos chamar pecador total, afasta-o do Criador. E somente atos de misericórdia de Deus podem determinar sua conversão. É certo que não haverá conversão, quando se trata de formas de pecado onde existe um empedernimento, uma dureza tremenda, uma malícia intrínseca pavorosa.

Deus é onipotente, e por um ato livre de sua misericórdia, a um pecador que está em estado de pecado completo, omnímodo, Ele pode dar mais do que a outro, no qual há restos de virtude, e fazer do primeiro um grande santo.

Mas estas são operações de Deus excepcionalíssimas, com as quais, portanto, não se pode contar. Haveria até liberalismo em admitir que fossem fatos normais, correntes. É o que o bom senso indica e o convívio com as pessoas nos exprime.

Repito: pode acontecer, em rigor, que o Criador, a rogos de Nossa Senhora, ainda converta essa pessoa, por mais que sua atitude reflita obstinação, porque para Deus nada é impossível.

A Teologia é uma ciência feita de subtilezas. Existe a misericórdia especial e a excepcionalíssima, incomparável, como a que opera a conversão de um adorador do demônio.

Se estivermos unidos a Ela, tudo se arranjará

O caminho de nossa perseverança e de nossa salvação é o de sempre ter devoção a Nossa Senhora. Ela é a Arca da Aliança, a Porta do Céu, o Refúgio dos pecadores, a Consoladora dos aflitos, o Auxílio  dos cristãos. Se estivermos unidos à Mãe de Deus, tudo acaba se arranjando. Ela acaba nos dando graças incríveis, e as coisas vão para frente.

É terrível quando se inicia a decadência espiritual de uma pessoa. Alguém dirá: “Dr. Plinio, agora o senhor está me assustando, porque comecei a decair.” Digo-lhe: “Meu filho, pegue imediatamente na corda e recomece a subir.” O que faz um náufrago no meio das ondas, ao qual se lança uma corda, mas ele de repente percebe que está segurando-a com uma mão só? Vai começar a gritar e largar a corda? Não!  Deve agarrá-la com as duas mãos!

Rezar muito para ser fiel na hora da morte

Devemos sempre pedir a graça da perseverança final, de sermos fiéis no último momento de nossa vida. Porque é uma graça autônoma das outras. Por causa disto, na Ave-Maria se pede sempre: “…rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém”. As batalhas, as tentações na hora da morte são tremendas; representam a última luta do homem. Se não rezarmos para sermos fiéis neste momento…

Uma pessoa expirou; seu corpo está estendido; ela não responde mais nada. Os médicos a abandonaram. Mas considera-se hoje possível que a alma esteja ligada ao corpo aproximadamente duas horas depois do que se convencionou chamar de morte. Esta alma está lúcida. O que lhe acontecerá neste combate, nesta situação na qual eventualmente ouça comentar em torno de si que ela está morta? E vem o demônio com uma tentação:

— Lembra-se, tal pecado?

— Ah, meu Deus, não o confessei!

— Você está só com medo do inferno; sem graça sacramental você não se salva. Agora, desespere. 

É uma mentira do demônio, porque se a pessoa fez bem a confissão e se esqueceu de acusar algum pecado, a graça do sacramento o perdoa. Na hora de nossa morte, lembrar-nos-emos bem disto?  É preciso, portanto, pedir muito a perseverança final.

E também a perseverança durante os acontecimentos previstos por Nossa Senhora em Fátima, a perseverança na eventualidade de grandes sofrimentos, como estar jogado num lugar qualquer, deitando sangue, todo ferido e não recebendo auxílio de ninguém. Para tudo isto é preciso pedir. E se a pessoa não pedir, não obtém. Esta é a razão pela qual se deve rezar e vigiar muito.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/2/1971)

Uma das facetas do Imaculado Coração de Maria

Um dos meios bonitos de conhecermos o espírito e o Imaculado Coração de Maria consiste em estudar a vida de São João Batista. Por ter sido ele santificado no seio de Santa Isabel pela palavra de Nossa Senhora, vê-se que Ela comunicou-lhe ali, misteriosamente, o espírito d’Ela. E tudo quanto o Precursor realizou em sua vida era uma decorrência dessa graça inicial recebida e constantemente intensificada, pelos rogos d’Ela.

Podemos, então, ver São João Batista enquanto asceta austero, pregador do Cordeiro de Deus que viria, e como herói que enfrenta Herodes e morre como mártir, sublime de grandeza e de serenidade. É uma das facetas do espírito de Nossa Senhora.

(Extraído de conferência de 11/7/1967)