Beato Fra Angélico, o São Tomás da pintura

“Minha maior glória foi pintar a ti, ó Cristo!” — Assim reza um dos epitáfios do Bem-aventurado Frei Angélico, cujo incomparável talento logrou estampar, em luminosos afrescos, as maravilhas celestes. Neste mês de fevereiro, Dr. Plinio nos convida a conhecer a vida e a arte deste filho de São Domingos.

 

Uma das mais altas expressões da piedade e do bom espírito na pintura e iconografia católica, retratista exímio de Nossa Senhora e dos santos, o bem-aventurado João de Fiesole, chamado Beato Angélico, é festejado pela Igreja no dia 18 deste mês. Dele possuímos alguns traços biográficos, que compõem de forma tocante sua figura de artista e varão virtuoso.

Um santo de genialidade inimitável

Guidorino di Pietro nasceu por volta de 1387, em Florença. Aos 20 anos, tendo ouvido numa noite de Natal um sermão do grande dominicano Fra Giovanni, decidiu ingressar na Ordem dos Pregadores, tendo sido admitido como noviço no convento de São Domenico, de Fiesole, e mudado seu nome também para Giovanni.

O jovem já demonstrava grande aptidão artística, mas julgou dever sacrificá-la a Deus. Seus irmãos de hábito dissuadiram-no da ideia, encorajando-o a desenvolver seus dons. Para isso, o prior ordenou logo que ele ornasse os livros de horas da biblioteca conventual.

Sua vida, inicialmente tranquila, foi alterada cerca de três vezes por mudanças de mosteiro. Na primeira ocasião por motivo do Cisma do Ocidente, pois o superior de Fiesole, o beato Jean Dominici não aceitava o Papa que a república de Florença admitira. Essas mudanças, contudo, contribuíram para o enriquecimento espiritual e artístico de Fra Giovanni, principalmente o período passado em Foligno, perto de Assis, que o santo frade visitava com freqüência.

Como bom dominicano, tinha um grande entusiasmo pela obra de São Tomás de Aquino. Conhecia-a perfeitamente, com ela nutria sua piedade e sobre a mesma, inconscientemente, lançava os fundamentos de sua própria obra futura. A “Suma Teológica” o levara a descobrir sua nova razão de viver e seu ideal estético.

É preciso três qualidades para se ter a beleza, dizia São Tomás. Em primeiro lugar, a integridade, pois as coisas inacabadas, como tais, são deformadas. Depois, a proporção de harmonias entre as partes. Enfim, a claridade, posto considerarmos como belas as coisas de cores claras e brilhantes.

E Fra Giovanni fez desta lei sua regra de ouro. Em 1418, os dominicanos de Fiesole voltaram ao seu convento e o santo frade entregava-se agora, cheio de satisfação, à sua arte. Sua primeira grande obra foi um quadro destinado à cartuxa de Florença. Seguem-se outras, cada vez mais numerosas. Os monges estão cheios de admiração. “Fra Giovanni não pinta, ele reza”, diz um deles. Sua arte com efeito era cântico, prece. Jamais tomava seus pincéis sem invocar o Todo-Poderoso, e é em estado de graça que ele colocava seus anjos nos jardins floridos do Céu. Seu anjos, tão belos e puros, dir-se-ia executarem uma música que se difundia em notas cristalinas sobre as arcadas do convento, enquanto ele lhes dava vida.

De tempos em tempos, um velho frade abria a porta da cela do pintor, olhava maravilhado e voltava sem rui­do, escondido em seu capuz. Foi esse admirador secreto e esquecido que lhe deu o nome de glória: o de Angélico. Um único religioso, antes dele, fora digno de usá-lo: São Tomás, seu guia e mestre. A partir desse dia, Fra Angélico só teve um cuidado na Terra: merecer o epíteto divino e tornar-se o São Tomás da pintura.

Em 1435, Fra Angélico foi encarregado de pintar os afrescos do velho convento de São Marcos, em Florença. Entregou-se de corpo e alma ao trabalho e, todos os dias, antes da aurora, um espetáculo tornou-se familiar aos monges de São Marcos. De pé, sobre o andaime que o fazia tocar no teto da estreita cela, um especial penitente recitava seu rosário: Fra Angélico rezava antes de começar a pintura. Ajoelhados no solo, dois jovens monges oravam também. Três pobres lâmpadas a óleo iluminavam a casa, fazendo tremer as sombras e brilhar as tonsuras. Depois, o pincel do Angélico, que se diria feito com cabelos de anjos, começava a correr e a colorir. Seu azul era inigualável. “Pinto como o céu do Paraíso”, costumava dizer sorrindo.

Fra Giovanni obteve em Roma a estima e a amizade do Santo Padre. Um dia, este o julgou digno do arcebispado de Florença, que estava vago. Mas o Angélico suplicou ao Pontífice que designasse em seu lugar um dos irmãos de sua Ordem, seu amigo, religioso cheio de ciência e humildade. E foi assim que Fra Angélico nomeou um arcebispo que seria canonizado cem anos mais tarde, Santo Antonino.

O humilde religioso, que se tornara um dos artistas mais célebres de seu tempo, ainda estava em Roma quando a doença veio surpreendê-lo no convento dos frades pregadores de Santa Maria Sopra Minerva. À tarde do dia 18 de fevereiro de 1455, o mosteiro estava envolto por um silêncio cortante. Cada religioso esperava, seja em sua cela, seja no coro, o instante em que o sino soaria para anunciar o último suspiro de Fra Angélico. Às 8 horas da noite, o breve e doloroso sinal tocou. Em alguns minutos, a cela e o corredor encheram-se de monges ajoelhados. A melodia da Salve Regina elevou-se no silêncio, enquanto o rosto de Fra Giovanni se iluminava com um calmo sorriso.

A lenda conta que, neste momento, uma lágrima deslizou sobre a face de todos os anjos dos quadros pintados por ele, sem saber que trariam a auréola de seu inimitável gênio e de sua santidade.

Uma civilização de “Angélicos”…

Trata-se de uma linda ficha biográfica, pois se refere a uma belíssima vida, tornando-se difícil até selecionar algum aspecto dela a ser comentado.

Antes de tudo, é bonito notar um dos princípios da civilização católica que aqui se afirma: o da reversibilidade dos planos.

Com efeito, toda forma de ordem, beleza e virtude que existe num plano é suscetível de ser revertida num outro. Assim, se houve um Tomás de Aquino no âmbito da filosofia, da metafísica, devem existir outros no campo da pintura, da música e demais artes.

O resumo biográfico observa muito bem que São Tomás de Aquino e o Beato Giovanni de Fiesole foram chamados, respectivamente, o Doutor e o pintor Angélicos. Seja nos dado considerar que, não fosse a Idade Média interrompida prematuramente em sua caminhada rumo a um esplendor de realizações católicas, teríamos tido “Angélicos” em vários terrenos. Pois houve guerreiros angélicos como São Luís IX e São Fernando de Castela, assim como estadistas angélicos, etc. Surgiria, então, uma ordem Angélica no mundo, sobrenatural, luminosa, coerente, profundamente lógica, que seria a da Civilização Cristã e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana. Uma ordem mais própria para anjos do que para homens, conduzindo estes ao Paraíso.

Sabedoria e desejo das coisas harmônicas

Por trás de tudo isso existe algo que cumpre mencionar, embora não diga respeito diretamente à obra de Fra Angélico, mas do qual esta é uma fulguração. Quer a produção de Fra Angélico, quer a de São Tomás de Aquino são manifestações da virtude da sabedoria, por onde o homem apetece a coerência e a profunda harmonia interior das coisas, muito mais do que as trivialidades ou bens menores do existir humano. Primeiro, porque sua natureza encontra plena expansão nessa harmonia. Porém, há outra razão, mais alta: essa consonância exprime algo de inefável, total, que é a melhor representação de Deus.

O Criador é simbolizado nessa harmonia de todas as coisas. E quem a ama, ama o símbolo e, portanto, o próprio Deus, predispondo assim sua alma para o Céu.

Convém ressaltar que essa harmonia não é igualitária, mas hierárquica, tendo seu cume no sublime, no ponto supremo da ordem criada, do qual todas as harmonias derivam.

Nosso Senhor e Nossa Senhora, ápices da harmonia

Assim, na ordem meramente criada, essa harmonia se revelou de forma mais perfeita em Nossa Senhora. Ela é a mais excelente entre as simples criaturas, pois, segundo essa concepção, o expoente é aquele que contém em si as qualidades de todos os outros inferiores, por ele capituladas, compendiadas e contidas. Nossa Senhora, portanto, reunia em si todas as formas e graus de perfeição de todas as meras criaturas, n’Ela elevadas a um grau de sublimidade sem paralelo.

Quer dizer, entra a Virgem Maria e nós não há somente um abismo insondável, mas uma série deles, de tal maneira Ela sobrepuja o resto dos homens.

Claro está, Nosso Senhor Jesus Cristo, em sua humanidade santíssima, é o único acima de sua Mãe. Aliás, algumas revelações de Sóror Maria de Ágreda a respeito de ambos, nos dão a conhecer aspectos tocantes. Segundo a vidente, o Divino Redentor era sumamente parecido com Nossa Senhora, cujo rosto seria a transposição para um semblante feminino do semblante masculino de Jesus. Então, a perfeição de todas as perfeições tinha de ser, forçosamente, a Sagrada Face de nosso Salvador.

Por quê? Pelo olhar e fisionomia, Ele espelhava todas as formas e graus de excelência de alma possíveis no homem, além de sua natureza divina inefável. Por outro lado, sendo perfeito, o que Nosso Senhor deveria ter de mais sublime era a face, pois esta é a condensação de todas as riquezas do corpo.

Certo estou de que se alguém conseguisse conhecer essa Face em seu estado normal (não, portanto, desfigurada pelas torturas da Paixão), na sua integridade, compreenderia que as proporções de seus traços tinha de conter as regras de harmonias do universo, cuja beleza nos seria dado decifrar, em se estudando o mesmo sagrado semblante.

Uma preparação para a visão beatífica

Assim como entenderíamos outra coisa, tão raramente encontrada unida à beleza: a graça, o charme, o encanto. Freqüentemente se acham modalidades de encanto, mas separadas da verdadeira beleza. Ora, em Nosso Senhor essas qualidades se uniam na sua plenitude. E como Ele era atraente! Era a majestade mais empolgante e arrebatadora aliada à graciosidade mais meiga, afável, acessível, capaz de se fazer pequena e nos acariciar; era o charme incomparável por trás da beleza perfeita, somado à expressão de uma inteligência infinita e uma santidade transcendente. Tudo isso nos faria ter a ideia da esplendorosa fisionomia d’Ele.

No fundo, o que São Tomás entendeu e escreveu, o que o Beato Angélico discerniu e pintou, é o que no Reino de Maria se verá. Contemplar-se-á através de todas essas harmonias, algo que nos faça pensar no semblante imaculado, sacratíssimo, régio, maternal e meiguíssimo de Nossa Senhora. E naquilo para o qual não há palavras, cessam os adjetivos, tudo é silêncio e adoração reverente: a Face de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Compreendendo essas harmonias nos preparamos para entender a Sagrada Face e para a visão beatífica, por toda a eternidade.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Misericórdia

Na gloriosa corrente constituída pela Santíssima Trindade, Nossa Senhora e o Papado, este último vem a ser o elo menos vigoroso: porque mais terreno, mais humano e, em certo sentido, estando envolto por aspectos que o podem menoscabar.

Costuma-se dizer que o valor de uma corrente se mede exatamente pelo seu elo mais frágil. Assim, o modo mais excelente de amarmos essa extraordinária cadeia é oscular o seu elo menos forte: o Papado. É devotar à Cátedra de Pedro, em relação à qual esmorecem tantas fidelidades, a nossa fidelidade inteira!

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Senso da hierarquia e da Contra-Revolução

A Ordem dos Servitas é uma das mais antigas entre as especialmente fundadas para propagar a devoção à Mãe de Deus. O título de Servos ou Escravos de Maria, que os sete fundadores quiseram dar a esta Ordem, prenuncia a devoção de São Luís Grignion de Montfort, que é a da escravidão a Nossa Senhora. Quer dizer, um despojamento completo de todos os bens materiais e espirituais, e até dos méritos de nossas boas obras, presentes, passados e futuros para serem postos nas mãos da Santíssima Virgem.

Com a canonização dos sete fundadores e a aprovação desta Ordem, a Igreja indica que, em relação a Nossa Senhora, devemos ser servos.

Peçamos aos Santos Fundadores dos Servitas que intervenham na Terra e ajudem a estabelecer uma verdadeira devoção a Maria Santíssima entre os homens, e com ela o senso da hierarquia e da  Contra-Revolução.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/2/1965)

Revista Dr Plinio 215 – Fevereiro de 2016

Cátedra de São Pedro

Uma lenda antiga nos conta que à beira de certo lago havia um rochedo que crescia à medida que as ondas o acometiam, de sorte a nunca ser submergido, ainda nas maiores tempestades. Hoje em dia, este rochedo é a Pedra, é a Cátedra de Pedro, que tem avultado com as revoluções, zombando das heresias, crescendo em vigor à medida que seus adversários crescem em rancor.

Há já vinte séculos, ela vem espargindo água benta sobre os adversários prostrados no caminho. (…) Neste mar revolto do século XX, naufragam homens, idéias e fortunas. Só ela continua e será “via, veritas et vita”, devendo ser aceita pela humanidade, para levantar um voo salvador sobre o próprio abismo que ameaça tragá-la…

Plinio Corrêa de Oliveira (Do “Legionário”, nº 130, de 15/10/1933)

Escravidão de amor a Nossa Senhora

Eis a conclusão das palavras dirigidas por Dr. Plinio a um grupo de jovens que acabavam de fazer a consagração a Nossa Senhora, pelo método de São Luís Grignion de Montfort. Dr. Plinio lhes  explicara inicialmente o contexto no qual esse Santo explicitou e desenvolveu suas doutrinas.

 

Em seu “Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem”, São Luís Grignion estabelece vários princípios que justificam a nossa consagração a Ela como escravos de amor.

Medianeira desejada pela Providência

O mais importante deles é a mediação universal de Nossa Senhora. Ou seja, o fato de que Ela é a medianeira entre Deus e os homens para a obtenção e a distribuição de todos os dons divinos que  pedimos ao Céu.

De tal modo essa intercessão de Maria é querida pela Providência que — ensinam os teólogos — nada do que os fiéis pedem a Deus seria alcançado, se a Santíssima Virgem não rogasse também  por eles. Pelo contrário, se Ela sozinha fizer a mesma oração em seu favor, será atendida.

Compreende-se. Escolhida para ser a mãe do Verbo encarnado, sempre imaculada e cheia de graça, a união que Nossa Senhora tem com Jesus é a mais alta que uma simples criatura humana pode ter com Deus. Em virtude desse vínculo extraordinário, Nosso Senhor nada recusa à sua Mãe, o que faz d’Ela uma intercessora onipotente junto a Ele. Esse é o princípio ensinado por São Luís Grignion e reconhecido pela Igreja.

Passemos a outro ponto.

Co-redentora do gênero humano

Quando foi decidido pelo Pai Eterno que Jesus Cristo deveria morrer para expiar nossos pecados, quis Ele ter o consentimento da Santíssima Virgem, o que representou para Ela um golpe  espantoso. Pensemos em nossas mães. Se alguém lhes dissesse: “Quer me dar seu filho, para que ele sofra blasfêmias, seja ridicularizado, perseguido, preso, entregue ao desprezo e ao ódio do povo, flagelado, coroado de espinhos, obrigado a carregar sua cruz até o Calvário e morra de modo atroz?” — nenhuma delas cederia o filho! Não há mãe que queira isso para aquele que ela trouxe ao mundo.

Porém, Nossa Senhora sabia ser necessário esse holocausto para a redenção do gênero humano. Ela deu seu consentimento, e com isso sofreu uma dor intensíssima, como se um gládio Lhe  transpassasse o coração. Daí vem a devoção a Nossa Senhora das Dores, e a imagem d’Ela com o coração aparente, atravessado por uma espada.

É uma evocação do sacrifício que Ela fez.

Nos seus eternos desígnios, Deus quis que esse padecimento de Maria fosse unido ao de Nosso Senhor para resgatar os homens, e por essa razão Ela é chamada pela Igreja de Co-redentora do  gênero humano.

Nossa Senhora é nossa arqui-mãe

Em conseqüência dessa participação de Nossa Senhora na redenção do mundo, podemos dizer, com inteira  propriedade, que Ela é nossa mãe: sem o auxílio e o consentimento d’Ela, não teríamos  nascido para o Céu e para a vida da graça. Ela aceitou e quis o sacrifício de seu Divino Filho por todos e cada um dos homens, até o fim dos tempos, e é, portanto, mãe de todos e cada um de nós.

Mãe a um título mais alto que simplesmente o de mãe natural, posto ser mais alta a vida sobrenatural para a qual Ela nos gerou. Em certo sentido, Ela é a nossa arqui-Mãe, a Mãe das mães. E tem, então, para conosco, uma tal misericórdia, que São Luís Grignion de Montfort não hesita em afirmar que Maria ama cada um em particular mais que todas as mães somadas amariam seu filho  único. Daí, diga-se de passagem, a entranhada confiança que devemos depositar na clemência d’Ela.

É louvável que nos consagremos a Nossa Senhora

Ora, se Nossa Senhora nos deu de tal maneira seu sacrifício, sua alma, se Ela nos amou a tal ponto, se é tão autenticamente nossa mãe, se Ela nos ofereceu seu Filho, o Filho de Deus, se O imolou por nós, se nos cumulou de tantos bens, é justo e louvável que nos consagremos a Ela por completo. Eis a tese de São Luís Grignion.

Pertencemos a Ela, de direito, pelo que Ela fez por nós. O santo autor diz muito bem que, quando um rei (ele se referia aos monarcas absolutistas) conquista um povo, torna-se senhor desse povo.

Nossa Senhora nos comprou e nos conquistou por seu sacrifício, e por isso Lhe pertencemos. Mas, como somos seres inteligentes e livres, é preciso que, por uma deliberação nossa, nos  entreguemos a Ela. Com nosso consentimento, essa união se torna completa.

De fato, não pode haver dom mais proporcionado ao que Nossa Senhora nos fez, do que a doação de nós mesmos a Ela, como seus devotíssimos escravos. Quer dizer, a escravidão de amor à  Santíssima Virgem Maria como Mãe de Deus, como nossa Co-redentora e nosso celestial amparo.

Características dessa escravidão

Por essa escravidão consagramos nossa vida nas mãos de Maria Santíssima, e Lhe entregamos todos os nossos méritos para que disponha deles como melhor quiser. Convenhamos, não é um  muito bom negócio para Ela… Que são os pobres méritos dos homens em comparação com os que Ela alcançou! Mas, se é este o desejo d’Ela, deixemos que Nossa Senhora use de nossos méritos  como Lhe aprouver, em benefício de terceiros, em tal intenção da Igreja, etc., etc. São Luís Grignion, entretanto, procura nos fazer ver a inestimável vantagem dessa entrega, aplicando à  generosidade de Nossa Senhora uma expressão francesa muito interessante: “Em troca de um ovo, ela nos dá um boi”. Ou seja, damos diminutos méritos e, em retribuição, Ela nos concede uma  torrente de graças.

Devemos, pois, fazer tudo o que Nossa Senhora deseja que façamos, quer dizer, cumprir a lei de Deus e procurar sermos perfeitos. Em outras palavras, tudo o que sabemos que seja o melhor para  os interesses da Igreja, segundo a moral e a perfeição cristã. Em compensação, Ela nos toma sob sua proteção de modo especial, e nos torna beneficiários de méritos superabundantes.

Eis no que consiste essa consagração de amor à Santíssima Virgem.

 

Doçura em nossas aflições

Maria Santíssima, mais que qualquer um de nós, mostra-se sensibilizada e generosa diante do infortúnio e apuro do próximo.

Ela sabe dizer a palavra amiga, oferecer o suave lenitivo de seu amparo ao coração atribulado, desejoso de encontrar doçura na ajuda alheia. Ela não poupa nada de sua inesgotável clemência, compaixão e misericórdia para com os que se acham em toda espécie de aflições: removendo-as, se pode fazê-lo sem com isto diminuir o benefício espiritual que a provação traria para o socorrido; ou alcançando para este redobradas forças, manifestando-lhe de modo particular a doçura de sua insondável solicitude materna.

Daí o acertado pensamento de Santo Ildefonso: “Ó Virgem Maria, sois clemente em nossas necessidades, doce em nossas tribulações, boa em nossas angústias, pronta a nos socorrer em nossos perigos…”

ORAÇÃO A NOSSO SENHOR AGONIZANTE NA CRUZ

Era 10 de março 1988, quando Dr. Plinio, atendendo ao pedido de um jovem que terminara de fazer um  retiro, ditou esta esplêndida oração, plena de amor a Cristo padecente, humildade e filial confiança

Ó Senhor Bom Jesus! Do alto da Cruz deitais sobre mim o vosso olhar de misericórdia, parecendo desejar que, de meu lado, também eu levante os meus para Vos considerar!

Sim, para Vos considerar em vossa infinita perfeição, e no insondável abismo das dores que padeceis… por mim. Pois bem sei que todas essas dores, Senhor, Vós as sofreríeis só por mim ou por outro homem qualquer, se este fosse o único a depender de tais padecimentos para se salvar.

Vós me convidais a Vos fitar, Senhor! Mas Vós mesmo sabeis que não ouso fazê-lo. Não ouso pôr no vosso divino olhar os meus olhos pecadores, pois me é patente que não sou senão um  vermezinho e miserável pecador, como disse vosso grande e glorioso servidor São Luís Maria Grignion de Montfort. Entretanto, sei também, Senhor, que num extremo de misericórdia destes-me por Mãe vossa própria Mãe.

É ela a advogada que instituístes para pleitear minhas atenuantes ante o vosso tribunal, e para me obter a torrente de vossas misericórdias.

Assim, rogo-Vos, Senhor, por Maria Santíssima, Medianeira de todas as graças, favorável acolhida para as súplicas que passo a Vos apresentar.

Conheço, Senhor, quanto os horizontes de minha alma são de “teto baixo”. Isto é, quanto as cogitações para as quais me volto são meramente práticas, sumidas no concreto, de pouca elevação, todas restringidas ao âmbito natural e à vida terrena, cujos aspectos são precisamente os que mais me atraem. E procuro não olhar de frente o que existe de maravilhoso, de grandioso, de admirável, em suma, as criaturas terrenas que melhor refletem vossa supremacia e vossa glória.

Imploro-Vos, ó Bom Jesus, que limpeis de minha alma este, como tantos outros defeitos meus, tão indignos da condição para a qual me chamastes, a rogos de vossa Santíssima Mãe; tão indignos da condição de quem deve viver afastado de todas as coisas terrenas, cogitando destas apenas na medida que estejam ordenadas ao Céu, a fim de preparar neste mundo as condições para que os homens melhor se salvem e Vos deem a maior glória — “nunc et semper et per omnia sæcula sæculorum”. Fazei-me amar, reta e santamente, tudo quanto é grande, maravilhoso, régio e elevado. Dai-me a graça de ser totalmente inapetente das ninharias que até agora me atraem e de ser totalmente apetente das grandezas que me deixam enfastiado. Pois o fastio dessas grandezas, Senhor, acaba redundando em fastio de Vós. Quem é frio e resistente aos apelos que fazeis ao amor dos homens, através do que é santo e maravilhoso na terra, o é também em relação à vossa obra-prima, que é a graça. E o é, outrossim, em relação a todos os infinitos horizontes da fé, que devemos contemplar.

Não Vos peço apenas, Senhor, que esse defeito se atenue em mim, nem Vos suplico somente que dele me cureis. Imploro-Vos mais, muitíssimo mais: que eleveis minha alma ao amor de tudo quanto é grande na ordem sobrenatural e na ordem natural, e que eu a tudo ame com um amor que esteja no extremo oposto da indiferença que até agora me tem dominado.

Pela linfa preciosa que correu de vosso lado, pela Igreja que saiu de vosso flanco, pelo sofrimento de vossa Mãe aos pés da Cruz, peço-Vos, Senhor: perdoai-me todas as minhas infidelidades e fazei de mim o contrário do que sou. Amém.

Castelos de Espanha

Fronte erguida, olhar distante, característico de quem está meditando em horizontes sublimes; a ressequida mão estendida de modo firme, própria do homem que, sem se abaixar nem se rebaixar, assim recorre à caridade alheia: “Se tiver o que me dar e quiser fazê-lo, dê-me por amor a Deus. Porque dEle eu sou filho e, portanto, mereço que me socorram com aquilo de que necessito. Quer me dar uma esmola, pelo amor de Deus?”

Esse perfil do mendigo espanhol, superiormente retratado pelo escritor Antero de Figueiredo, revela muito bem a altivez e a dignidade com que a mendicância tinha lugar na terra do Cid   Campeador e de Santo Inácio de Loyola. É este o mesmo senso da grandeza e da respeitabilidade que permite aos mais subidos nobres espanhóis usarem um belíssimo título: Grande de Espanha.

Quando se ouve semelhante denominação honorífica, tem-se quase a impressão de que seu portador é um ente fabuloso: Fulano de tal, Duque e Grande de Espanha!

Uma alma verdadeiramente católica, que sabe admirar e amar as diferentes qualidades postas por Deus nos diversos povos do mundo, rejubila-se com esse senso da grandeza, tão distintivo dos nobres, dos guerreiros, dos santos e dos mendigos de Espanha.

E dos seus castelos. Sim, essa ideia da própria magnificência se acha presente também nos castelos espanhóis, de tal maneira que, para se referir a alguém que estivesse arquitetando sonhos e inalcançáveis anelos, cunhou-se nos vários idiomas europeus a expressão: “construindo castelos em Espanha”. Quer dizer, edificações formidáveis, miríficas, inexistentes, mas das quais os castelos de Espanha se aproximam de algum modo, dando a ideia de um ambiente onde o tal sonhador quereria viver. Daí alguns imaginarem o castelo na Espanha mais ou menos como os antigos concebiam o Olimpo…

Na verdade, sonhos postos à margem, certos álbuns de castelos da Espanha nos fazem conhecer variados  aspectos da grandeza dessa nação. As fortalezas neles retratadas são tão altivas, tão  altaneiras — e altanaria não quer dizer orgulho, e sim noção do próprio valor e dignidade — são tão corajosas, têm torres tão feitas para avistar ao longe o atacante mouro, que realmente encantam.

É curioso notar que esse modo de ser tem igualmente seu reflexo na vida de família dos espanhóis. Ou seja, a par de um elevado grau de carinho cercando os membros de uma mesma casa, a autoridade paterna conserva algo da supremacia do antigo castelão e senhor feudal junto aos seus vassalos. O pai quer ser inteiramente respeitado, e o filho se compraz em devotar-lhe essa completa deferência. As fórmulas de afeto e de cortesia existem, porém sempre envoltas nesse panejamento de dignidade e de incontestável força paterna, em virtude do que o filho não se atreve a  discutir com o pai, e menos ainda a ridicularizá-lo com algum gracejo.

É o hispânico senso da grandeza, que deste modo enobrece as relações domésticas.

* * *

Trata-se do mesmo senso que envolve de uma aura mítica as antigas fortalezas ibéricas. Ora é um castelo que se diria inexistente. De fato, ele está ali; mas, se fôssemos idealizar uma construção fabulosa, mirífica, imaginaríamos algo como ele. É um castelo cujos vários aspectos são realizações de sucessivos desejos de algo mais belo, mais grandioso, mais extraordinário. Insaciáveis aspirações que, por fim, se concretizam em admirável conjunto: um castelo de Espanha!

Ora são panos de muralha erguidos num ambiente que a natureza lhes tornou particularmente adequado, sob um dossel de nuvens volumosas, inconstantes, e em meio a um cambiante jogo de luz que lhes confere uma aparência fugidia, deixando-lhes partes profundas meio escuras, e outras muito iluminadas.

Por vezes resta apenas uma ruína. Mas, que força maravilhosa tem essa ruína! Em vez de incutir pena, ela sugere a ideia da grandeza que outrora possuiu. Ela faz reviver um esplendoroso passado, tão magnífico que se pode perguntar se essas pedras derruídas não nos levam a imaginar um passado mais bonito do que este foi na realidade.

Entretanto, é o próprio das coisas que tiveram seus dias de grandeza: todo o seu passado permanece como uma espécie de imensa cauda que desce do Céu até elas. É a continuidade histórica, é o que foi e, uma vez extinto, deixou sua lendária memória no espírito humano: “Fui. Não sou mais. Contudo, se eu fui o que deveria ter sido, de algum modo para sempre o serei!”

Quem, pois, não se toma de respeito diante dessas ruínas? Elas também foram, e continuam sendo, castelos de Espanha…

Flor dos vales

Em sua infinita benevolência, Deus adornou certos vales com uma doçura especial, cuja amenidade e poesia contrastam com a majestade e o agreste das montanhas que os circundam.

Neles, a prodigalidade divina dispôs que as flores se apresentassem com rara e envolvente beleza, superando em formosura as que nascem noutras paragens.

É com inteira propriedade, portanto, que a Igreja canta os excelsos predicados de Maria Santíssima, louvando-a como a “Flor dos vales”: quer dizer, o requinte daquilo que há de mais delicado, mais terno, mais esplêndido; o ápice que concentra em si toda a beleza da Criação.

São Cirilo e São Metódio

A vocação dos irmãos Cirilo e Metódio estava intimamente ligada à evangelização e conversão do povo eslavo. Para isso dedicaram inteiramente suas vidas, obtendo assim a glória dos altares.

A respeito de São Cirilo e São Metódio, tenho em mãos o seguinte trecho extraído do “Ano litúrgico”, de Dom Gueranger(1):

Cirilo e Metódio eram filhos de um alto funcionário de Tessalônica.

Metódio obteve o governo de uma colônia eslava, na Macedônia.

Cirilo, depois de ter estudado e ensinado, recebeu as ordens, e se fez monge na Bitínia; posteriormente foi encarregado da missão junto aos cazares, que eram os bárbaros da Rússia meridional, e nessa região ele deveria exercer com seu irmão uma missão político religiosa, em 862.

Tendo o Príncipe da Morávia pedido a Bizâncio missionários que falassem a língua do país, Fócio lhe enviou, em 863, os dois irmãos. Eles compuseram um alfabeto novo, chamado ciríaco — que ainda se usa entre os russos —, e ensinaram os morávios a escrever. Depois traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio, que era a forma de língua eslava falada por aqueles povos, e organizaram numerosas cristandades na Boêmia e na Hungria.

Em 869, chegaram eles a Roma, onde Adriano II os tratou com honra, permitiu que celebrassem a Missa em eslavônio e ordenou-os Bispos. Mas Cirilo morreu logo depois, com a idade de 42 anos. Metódio voltou à Morávia e foi nomeado Arcebispo de Cirinium, na Sérvia, onde ele encontrou uma situação muito perturbada, contrária a ele. Seus inimigos mandaram encarcerá-lo, e o Papa interveio várias vezes em seu favor, tendo São Metódio finalmente triunfado sobre seus adversários. Morreu em 877, com pesar de todos. Seus magníficos funerais foram celebrados em grego, latim e eslavônio. Pio IX autorizou, em 1863, o culto aos Santos Cirilo e Metódio.

Ponto de partida para verdadeiros baluartes católicos

Nessa síntese biográfica, há várias notas muito curiosas. Em primeiro lugar, São Cirilo e São Metódio, como irmãos, fizeram uma obra da Providência que glorifica a instituição familiar. Deus não realiza isto habitualmente, mas, às vezes, escolhe dois irmãos, ou toda uma família, para fazer determinada obra pia. Esses dois foram enviados para uma obra extraordinária: a conversão dos povos de língua eslava, dos Bálcãs, que haveriam de irradiar a Fé, preparando a futura conversão da Rússia.

Por isso a Divina Providência escolheu dois irmãos de certa categoria; um deles foi governador de Província e o outro se tornou monge.

Outra nota curiosa é a seguinte: quem mandou estes dois irmãos fazerem esta evangelização tão extraordinária foi Fócio, precisamente um dos responsáveis pelo Cisma do Oriente; antes de cair em heresia, ele ainda deu esse impulso. O apostolado deles haveria de ser, nos Bálcãs, o ponto de partida de verdadeiros baluartes católicos no Oriente.

Se até hoje há católicos nos Bálcãs, isso se deve exatamente a este “erro” estratégico de Fócio.

Dando expressão escrita à mentalidade de um povo

É interessante acompanharmos o papel desses Santos fundadores de povos, que é uma coisa tão extraordinária. Deus envia homens de sua destra para fazerem obras que constituem um povo. Ou seja, tomam pessoas que são como uma nebulosa, alguma coisa completamente anorgânica, sem vida própria, e as transformam num povo com todos os seus elementos.

Vejamos o que eles fizeram para que nascesse o povo. Primeiro ensinaram os morávios a escrever, compondo para eles um alfabeto novo, chamado ciríaco. Quer dizer, o povo era tão analfabeto que nem tinha formas de caracteres próprios para exprimir a língua que falava. Os dois Santos inventaram os caracteres adequados, e o dialeto se radicou de tal maneira que até o tempo em que foi escrita a ficha lida há pouco era usado na Rússia. Portanto, durante aproximadamente mil anos, mais ou menos, o ciríaco esteve em vigor.

Eles deram a expressão escrita do pensamento de um povo. A nota de fundador vai mais longe: São Cirilo e São Metódio traduziram a Bíblia e a Liturgia para o eslavônio; foi uma grandíssima obra literária, que fez com que aquela língua de um povo tão hostil adquirisse toda a dignidade de um idioma.

Fundadores da Liturgia eslava

Além disso, eles organizaram numerosas cristandades na Boêmia e na Hungria, ou seja, núcleos de povos vivendo como cristãos, que depois haveriam de se irradiar e cristianizar aquelas regiões. Ora, quando se trata de povos semibárbaros, cristianizar equivale a civilizar. Eles estavam dando os fundamentos da civilização — e, já de uma vez, uma civilização cristã — a povos que não ficavam apenas nos Bálcãs, mas entravam pela Europa Central, a Hungria. Vemos, portanto, a graça triunfante da Fé.

Depois eles se dirigiram a Roma para apresentar a sua inteira submissão a Adriano II, o que, naquele tempo de luta entre o Oriente e o Ocidente, era muito significativo. Foram os fundadores da Liturgia eslava, porque obtiveram do Papa a licença para rezar a Missa em eslavônio.

São Cirilo morreu em 869; São Metódio voltou ao Oriente, foi nomeado Arcebispo — é a Hierarquia eclesiástica que começava a nascer — e tornou-se objeto de uma oposição violenta. Vemos isso na vida de quase todos os fundadores: fundam a obra, têm triunfos e de repente estala uma tremenda revolta contra eles. A obra muitas vezes cai, outras vezes não, como sucedeu a São Metódio: ele venceu e morreu cercado de honra.

“Emitte Spiritum tuum”…

Para a glória de sua Igreja, ao longo da História, Nosso Senhor suscitou Santos que agiram nos campos mais variados. Porém, depois que a Revolução começou a triunfar, houve uma retração das bênçãos de Deus, e a civilização católica não prosperou. Toda a ordem temporal ficou afetada por uma espécie de raquitismo religioso; foi um castigo decorrente da Revolução.

Isso continuará até que a Revolução produza os seus últimos e amargos frutos, e a Humanidade tenha comido as bolotas dos porcos. A Providência então restaurará a Humanidade.

Nesta ocasião aparecerão os Santos fundadores que vão fundar o Reino de Maria. E na aurora desse Reino convém lembrar-nos de São Cirilo e São Metódio. Pode nos parecer muito difícil organizar o Reino de Maria; não pensemos nisso, mas procuremos compreender esse ensinamento.

Os varões da destra de Deus podem fazer tudo. São Cirilo e São Metódio não eram sociólogos, economistas, nem psicólogos, porém eram incomparavelmente mais do que isto: Santos da destra de Deus. Eles surgiram e tudo nasceu. Lembremo-nos, então, daquela oração feita ao Divino Espírito Santo “Emitte Spiritum tuum et creabuntur, et renovabis faciem terrae — Enviai o vosso Espírito e renovareis a face da Terra”. Poderíamos dizer: “Enviai o vosso Espírito, presente nos homens de vossa destra, e todas as coisas serão novamente criadas e se renovará a face da Terra”. É isto que devemos pedir.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1965)

1) Cfr. http://www.abbaye-saint-benoit.ch/gueranger/anneliturgique/pentecote/pentecote03/040.htm