“Dos que me destes, não perdi nenhum”

Nos momentos de provação e angústia, lembremo-nos de que Nossa Senhora, por disposição divina, se acha junto a cada um de seus filhos provados, ajudando-o a lutar e a vencer as dificuldades. De tal sorte que dia virá em que Ela, afetuosa, amorosa e pacientemente deitará um olhar misericordioso sobre todo o seu rebanho de devotos e repetirá a Nosso Senhor Jesus Cristo essas palavras magníficas que o próprio Redentor pronunciou: “Dou-vos graças meu Deus, porque de todos os que Vós me destes, não perdi nenhum!” (Jo 17, 12)

Na verdade, Maria Santíssima nos acompanhará pelos extravios, pelas infidelidades, prostrações e conspurcações, pelos olvidos, pelas ingratidões, por toda a poeira e por toda a lama do caminho: mas, a todos e a cada um, em determinado momento, Ela dirá infalivelmente a palavra que o poderá salvar.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 26/4/1974)

Obra-prima da Idade Média

Típica cidade medieval italiana, Orvieto é rendilhada de pitorescos arcos românicos, de ogivas e edifícios góticos talhados em grandes pedras, cujo conjunto compõe um urbanismo lindo e imprevisto.

Sobretudo, nela se ergue, a meu ver, uma das fachadas de igreja mais esplêndidas que há no mundo. Ao se contemplar a frente da catedral de Orvieto, ornada de cenas que representam a vida de Maria Santíssima, têm-se a impressão de um frescor de colorido que se diria, à primeira vista, inexplicável. Com efeito, construída na Idade Média, séculos de chuva, de neve e de sol incidiram sobre esses painéis que, entretanto, conservam um viço magnífico.

A explicação, porém, é simples: são mosaicos. Portanto, quadros compostos de incontáveis pedrinhas coloridas, numa combinação de matizes e tonalidades tão fascinante que faz dessa fachada uma das maravilhas da arte católica na Terra.

A rosácea central, emoldurada de esculturas e lavores góticos, apenas ressalta a feeria das cenas policromadas que ornam os vários tímpanos. De modo particular, tal frescor de colorido se nota na pintura superior onde se vê a coroação de Nossa Senhora e naquela que encima o pórtico principal, em que aparece a Virgem Santíssima venerada por anjos. Estes como que esgotaram suas manifestações de devoção a Ela, e já não sabem o que mais fazer para exprimir sua veneração, sua admiração e seu amor à Mãe de Deus. Toda a cena se insere num “décor” extraordinário e rico em detalhes, simbolismos, etc. Como essas, as outras cenas também se rivalizam em beleza e atratividade, evocando significativos episódios das vidas de Nosso Senhor Jesus Cristo e de Nossa Senhora.

O restante da fachada é um requintado trabalho de arquitetura, com molduras, colunas, arcarias e florões góticos, recortados em lindo mármore branco, vermelho ou preto. Na verdade, a escultura medieval se esmerava em adornar seus monumentos e edifícios — de maneira especial as igrejas — com pormenores bonitos. Daí se poder observar num pequeno pedaço de coluna ou de arco, todo um fantástico trabalho de artífice que procurava dar de si o melhor, o mais perfeito.

Na delicadeza e no frescor das suas cores, na animação dos personagens representados em seus mosaicos, no movimento dos seus arcos, na elevação de suas colunas e torres elegantes, a catedral de Orvieto é uma autêntica obra-prima da Idade Média. v

 

Plinio  Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/11/1988)

 

Maternal bonança

Maria Santíssima nos socorre em meio às intempéries espirituais que todos padecemos ao longo de nosso palmilhar rumo ao Céu.

Tempestades das lutas face às tentações, ao pecado, à tibieza, ou diante das aflições do dia-a-dia.

Tempestades da vida, tempestades da alma. Em todas essas circunstâncias mais borrascosas ou menos, Nossa Senhora vem ao nosso encontro, como a mãe que se debruça, sôfrega de solicitude, sobre o filho necessitado. Acode-nos imediatamente, 

Fruto da santidade da Igreja

Na história da Inglaterra, vemos os grandes processos de atonia, de tibieza, de indiferentismo que preparam depois toda a massa católica para as maiores defecções que deram no protestantismo.

Mas, ao lado disso, nos deparamos com uma coisa bonita: a permanência da nota da santidade da Igreja. Porque, apesar de todas essas tristezas, é na Igreja que se vão encontrar os mártires, os homens de um caráter admirável, que preferem tudo a ceder diante do adversário, e que expõem tudo quanto têm, e até a própria vida, para se manterem fiéis à verdadeira tradição e à continuidade eclesiástica.

Quer dizer, mesmo quando a putrefação invade os meios católicos, a santidade da Igreja produz frutos excepcionais e tão maravilhosos como fora da Igreja não se encontram.

Assim, ao mesmo tempo em que a Igreja é traída, renegada, vemo-la deitar uns lampejos memoráveis que provam a divindade dela. Nisto está uma espécie de afirmação contínua da assistência do Divino Espírito Santo na Igreja.

Esta me parece ser a reflexão mais oportuna que podemos fazer sobre o martírio de São João Fisher.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 22/6/1965)

São Luís Gonzaga

Mais do que pela alta nobreza de sangue que o distinguia, São Luís Gonzaga reluziu na história por sua santidade estelar, especialmente vincada na prática exímia e heroica da virtude da castidade. Resguardando sua alma com um requinte de pudor e de fidelidade aos Mandamentos divinos, rejeitou até o fim da vida qualquer forma de mal, sempre ancorado na verdade, na lógica e na justiça.

Varão talhado para grandes lutas, de físico vigoroso e espírito delicadíssimo, pode-se dizer que a inocência de São Luís começa onde a de muitos outros terminaram. Por isso a Santa Igreja o exaltou como o arquétipo da pureza e como uma de suas mais rutilantes glórias.

São João Batista, percursor do Cordeiro de Deus

No mês de junho a Igreja comemora a festa de São João Batista, o Precursor de Nosso Senhor Jesus Cristo. Apresentamos a nossos leitores um eloquente comentário tecido  por Dr. Plinio, pelo qual conheceremos mais profundamente a vida e a personalidade daquele santo varão cuja voz clamou no deserto, preparando os caminhos do Senhor.

 

A vida e missão profética de São João Batista, marcadas pela vigorosa personalidade do Precursor, teve um início que nos enche de admiração e enlevo, por nele estar envolvida a própria Mãe de Deus.

Como se sabe, na mesma ocasião em que o Verbo Eterno se encarnava no seu seio puríssimo, Nossa Senhora recebeu do Anjo a revelação de que sua prima Isabel também esperava uma criança. Ciente dessa feliz circunstância, Maria decidiu atravessar as estradas e montanhas da Judeia para se encontrar com sua parente e compartilhar com ela as alegrias daquela futura e tão ansiada maternidade.

O encontro entre as duas é uma das mais lindas páginas da História Sagrada, magistralmente imaginado e retratado pelos maiores artistas da iconografia católica.

Além disso, foi nesse momento que Nossa Senhora entoou o único hino que se tem notícia haver brotado de seus lábios virginais — o “Magnificat” jubilosa do Batista, conforme o exprimiu Santa Isabel: “Donde me vem esta honra de vir a mim a mãe de meu Senhor? Pois assim que a voz de tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança estremeceu de alegria no meu seio” (Lc 1, 43-44).

Nossa Senhora falou, e um frêmito de contentamento percorreu o frágil corpo do menino no claustro materno. Por quê?

Segundo conceituados autores — não se trata, portanto, de opinião imposta pela Igreja —, São João Batista, sendo o último dos profetas do Antigo Testamento, podia aquilatar o que representava a Mãe de Deus e o significado da Encarnação que n’Ela se operara, tão intimamente relacionada com sua missão. Afinal, ele iria anunciar o advento iminente do Salvador do mundo. Assim, ao ouvir a voz da Virgem Bendita, ao sentir a presença de Deus, o menino estremeceu de alegria. E, também de acordo com os teólogos, nesse momento, ainda no seio materno, ele foi santificado por Maria.

Podemos conjecturar que Nossa Senhora comunicou, de um modo misterioso, algo do espírito d’Ela a São João Batista. E tudo quanto este fez em sua vida, era uma decorrência dessa graça inicial recebida pela intercessão de Maria, constantemente intensificada até atingir uma plenitude no momento de seu martírio. Então, o São João Batista asceta e austero, o pregador do Cordeiro Deus, o herói que enfrenta Herodes e morre como testemunha da Fé, sublime de grandeza e de serenidade, nos revela reflexos da própria alma de Nossa Senhora que lhe foram participados no encontro das duas primas.

Desse fato maravilhoso decorre uma importante aplicação para nossa vida espiritual. Pois nele discernimos o poder insondável de Nossa Senhora como Medianeira de todas as graças e onipotência suplicante em nosso favor. O eco da voz d’Ela santificou um homem de um momento para outro, infundiu-lhe um grau eminente de perfeição moral.

Ora, isso é o que devemos esperar que a Santíssima Virgem obtenha para cada um de nós. Peçamos a Ela, com inteira confiança, que fale no íntimo de nossa alma, e que esse timbre imaculado nos santifique de um instante para outro, concedendo-nos uma virtude que anos de lutas e de trabalhos não nos proporcionaram. Por isso, todo aquele que tenha algum desânimo, tristeza ou perplexidade na vida espiritual, pode fazer sua a prece que a liturgia tomou das palavras do centurião a Jesus, e dirigir-se a Maria Santíssima: “Senhora, eu não sou digno de ouvir a vossa voz, mas dizei uma só palavra e a minha alma será transformada, se Vós assim o quiserdes”.

Portanto, devemos desejar que a voz de Nossa Senhora nos toque a alma e a faça estremecer de júbilo, como o fez com a alma de São João Batista.

Semelhança física com Jesus

A par desse extraordinário acontecimento ocorrido nos primórdios de sua existência, é sobremaneira belo considerarmos o papel de São João na vida do Filho de Deus. Basta imaginarmos quantas vezes Nosso Senhor não terá louvado e glorificado São João Batista no interior de sua alma! Quanto vezes, pregando para as multidões, observando a alma deste, daquele ou daquele outro, preparada pela “voz que clamava no deserto”, terá pensado: “Aqui passou o meu dileto, meu precursor, o homem nascido do mesmo sangue que eu, descendente de David, abrindo os caminhos dos corações para Mim. E naquele lampejo de virtude, naquele olhar de simpatia, naquele ato de adoração, naquela maior facilidade para tal conversão, naquela pureza expressa em tal outra alma, vejo o fruto da pregação do meu dileto!”

Quantas e quantas vezes assim se encontraram as almas do Precursor e de Nosso Senhor Jesus Cristo!

Agora, qual era o aspecto físico e o semblante moral desse homem?

As descrições no-lo apresenta um tanto parecido com Nosso Senhor. Jesus era de estatura elevada, de uma compleição harmoniosa e forte, com uma plenitude de varonilidade unida a uma delicadeza e a uma nota de sobrenatural, constituindo um todo do qual podemos ter ideia contemplando o Santo Sudário de Turim.

Assim também seria São João Batista, porém com uma característica diferente. O Precursor representa a penitência, o jejum, a flagelação, a solidão no deserto, a mortificação. Por causa disso, seu corpo tinha a pele bronzeada por mil sóis, pelos calores ardentes do Oriente Médio. Além disso, apesar de forte, sem ser esquelético nem de natureza doentia, era entretanto muito magro, de tal maneira os jejuns o haviam consumido.

Retidão e severidade

Quanto ao feitio moral, é inegável que São João Batista, embora repassado de bondade e compaixão, era a própria representação da severidade. Ele peregrinava por todas as partes clamando: “Fazei penitência, porque o Senhor está próximo!”, e sua única preocupação era a de cumprir a vocação para a qual fora suscitado: levar os corações a se purificarem, para receber dignamente o Messias.

Ora, fazer penitência não é coisa simples. Só se convence alguém a se mortificar, quando o convencemos de que pecou. E nisso estava o cerne da missão de São João Batista. Quer dizer, ele se entregara ao jejum e aos sacrifícios, para pagar pelas faltas do povo. Para que Deus, em atenção à penitência que ele próprio praticara, concedesse eficácia às suas palavras e perdoasse aqueles aos quais pregaria.

Porém, para aquela gente em grande parte tomada pela ganância, voltada para as coisas terrenas, adoradora do conforto e da vida agradável (na medida que as condições daquele tempo o permitiam), aparece um homem que era o contrário de tudo isso. Desprendido, desapegado, um facho ardente de amor de Deus, vivendo apenas para realizar sua tarefa. Àqueles que esperavam um Messias temporal, um rei poderoso, este era anunciado, não por um guerreiro nem por um potentado, mas por um homem penitente.

O Batista produziu um choque nas pessoas. E o contraste do homem sensual, ganancioso, com aquele varão reto, simples, eloquente, que o tempo inteiro bradava: “Fazei penitência!”, deixava as consciências profundamente abaladas. Ele produzia uma grande vergonha. As pessoas compreendiam, no contato com São João, que não deviam ser ruins. E o Precursor completava esse efeito, dizendo-lhes: “Endireitai os caminhos do Senhor. Aí vem o Messias. O dia de Deus está próximo”, etc.

Ele era, portanto, a própria expressão da limpeza de alma, porque o puro detesta o sujo, o reto detesta o sinuoso, o corajoso aborrece o covarde. Nisso ele era a severidade, essa virtude pela qual se rejeita o que deve ser rejeitado. Diante das suas admoestações, os outros sentiam e reconheciam seus próprios defeitos. Ele passava e todos o respeitavam, todos os obedeciam. E assim ia preparando os caminhos de Deus.

Até o desenlace de sua intensa trajetória neste mundo, interrompida de modo criminoso pela poltronice e luxúria de um rei infame, incapaz de resistir às artimanhas da mulher que desposara ilegitimamente. A pedido dela, São João Batista morreu decapitado, vertendo seu sangue em união com o do Cordeiro de Deus, que logo seria também imolado no Calvário.

Graça a pedir a São João Batista

Uma pergunta que acredito muito interessante é esta: se São João Batista passasse por uma cidade de hoje, que efeito ele produziria? Se, de repente, em nosso bairro, em nossa rua, em nossa própria casa, surgisse esse homem com a sua fisionomia austera e bondosa, dizendo-nos: “Fazei penitência!”, que sentimentos despertaria em nós?

Imaginemos que, ao vê-lo, sentíssemos com maior agudeza todos os nossos defeitos e o mal que há neles; penetrássemos nossa consciência no mais fundo, permitindo que se realizasse conosco o que David exprime no Salmo: “Peccatum meum contra me est semper”. Ou seja, os meus pecados, minhas faltas como que se destacaram de mim e se puseram à minha frente como um outro homem, onde permanecem continuamente me censurando. Ali estou eu com todos os meus defeitos.

Achar-nos-íamos preparados para receber esta presença celeste, cheia de severidade e de bondade? Amaríamos aquele que nos apontasse os nossos defeitos por inteiro? Seríamos ávidos dessa revelação e dispostos a aproveitá-la? Nós o agradeceríamos? O que nos aconteceria?

A melhor reação que poderíamos manifestar não é outra senão de reconhecido enlevo, de humildade e sincera contrição perante as justas censuras que ele nos dirigiria. Nossa atitude deveria ser a de quem se sente feliz e aliviado por lhe terem sido reveladas as faltas que o impedem de trilhar as vias da perfeição. E exclamar: “Que maravilha de homem! Veja como ele detesta os meus pecados! Como ele é puro, íntegro, sem nada dessa mazela horrorosa que há em mim! Como ele aponta com clareza o que tenho de ruim, e me deixa contente porque alguém me admoesta como mereço!”

Em seguida, ajoelharíamos e oscularíamos os pés dele, rogando-lhe: “Ó enviado de Deus, dizei-me tudo. Necessito dessa repreensão que me tire de meu letargo espiritual e me dê vontade, finalmente, de ser bom. Fazei descer sobre mim as torrentes regeneradoras e purificadoras de vossa severidade. Falai, que eu vos escuto!”

E assim, como outrora preparou ele os caminhos do Senhor em Israel, São João Batista também aplainaria em nossas almas as veredas que a conduzem ao Reino de Deus.

Peçamos, pois, ao santo Precursor que, pela intercessão de Maria Virgem, alcance-nos da misericórdia divina essa insigne graça de reconhecermos e vencermos nossos defeitos, para nos tornarmos dignos da bem-aventurança eterna.

Roma sparita

A Roma dos Papas não tinha a monotonia das grandes cidades modernas, mas possuía muita fisionomia, porque as pessoas, ao fazerem suas residências, comunicavam-lhes seu caráter, seu modo de ser, com o pitoresco que causa o sorriso.

 

Vou expor o que era a Roma papal, para termos um pouco a ideia de que tipo de cidade se tratava, e depois iremos considerar algumas fotografias selecionadas de um álbum chamado “Roma sparita”, ou seja, “Roma desaparecida”. Quer dizer, a Roma papal que foi demolida pelas reformas nela introduzidas pela Casa de Sabóia, a qual unificou a Península Italiana e se tornou a única dominadora da Cidade de Roma, onde estabeleceu a sua capital, transformando-a, de cidade antiga que era, numa grande cidade do tipo moderno.

Cidade não planejada, com muita fisionomia

O que vem a ser a Roma do tempo dos Papas? É, ao mesmo tempo, uma Roma medieval com todas as características da vida medieval, um tanto reformada no tempo do período do “Ancien Régime”(1), e uma cidade eminentemente eclesiástica.

Quando falo de uma cidade medieval, o que eu quero indicar? Era uma cidade raras vezes planejada de antemão. Por exemplo, se tomarmos, em São Paulo, o bairro Higienópolis, perceberemos que o traçado das ruas não foi espontâneo: as casas não foram se acrescentando umas às outras normalmente, mas houve uma empresa que planejou e fez o loteamento do bairro, devido ao qual todas as ruas são em linha reta e se cortam em ângulo reto, fazendo do bairro uma espécie de tabuleiro de xadrez. O mesmo se poderia dizer do bairro do Pacaembu, que foi urbanizado por uma grande empresa norte-americana.

Na época em que o Pacaembu foi urbanizado, o urbanismo tipo Higienópolis estava fora de moda. Tinha-se considerado que as avenidas retilíneas, cortando-se em ângulo reto e formando quarteirões quadrados, eram monótonas. Então fizeram zigue-zagues e curvas no Pacaembu, que existem também em outros bairros de São Paulo: Pinheiros, Jardim América, Jardim Europa, em que não se usa mais a linha reta, mas as grandes curvas macias.

Porém o que nos interessa no momento é o fato de que as ruas não foram feitas por cada morador, que colocou sua casa onde queria, portanto, um pouco mais recuada da rua, ou um pouco mais para a frente, e dando à via pública um gráfico todo casual, fortuito; aquilo foi planejado de antemão.

Também as construções eram menos planejadas do que se tornaram depois. Uma família construía uma casa; nascia um filho, mandava construir um quarto no teto da residência; nascia outro filho, colocava dois quartos. De repente um velho, que morava num quarto da casa, começava a ter reumatismo: abria-se uma janela no lugar onde devia entrar sol para o ancião se aquecer. Não se incomodavam em saber se a casa ficava simétrica ou assimétrica, bonita ou feia. Era uma necessidade do velho para não ficar reumático. O idoso ficava muito pouco consolado com a ideia de sentir seu reumatismo, para evitar que quem passasse fora achasse feia a janela que ele ia abrir. Ele queria o sol sobre a perna ou o braço doente. Quer dizer, circunstâncias imprevistas foram formando essas cidades.

Por causa disso, elas não tiveram a monotonia das grandes cidades modernas e possuíam muita fisionomia: porque as pessoas que iam fazendo essas construções imprevistas comunicavam seu caráter, seu modo de ser, sua fisionomia às casas que estavam sendo construídas.

De onde Roma, como todas as cidades desse tipo, era uma cidade com fisionomia. A esse dote de ter fisionomia, nós poderíamos chamar, em certo sentido, de pitoresco. O pitoresco é a fisionomia quando, pelo imprevisto, ela faz sorrir um pouco.

O Panteon e o túmulo de Adriano

Há outra coisa que se acrescentava à Roma: ela era uma cidade velhíssima, nascida mitologicamente de Rômulo e Remo. Portanto, uns sete, oito séculos antes de Jesus Cristo. E com aquele senso de conservação existente na Europa, do qual nós, brasileiros, não temos uma ideia. Até hoje certos prédios do tempo dos remotos romanos são utilizados para uso comum. O Panteon de Roma era o templo onde adoravam todos os deuses gentílicos antigos. E, para a Roma de antigamente, era uma igreja bem grande. O Panteon esteve franqueado ao culto pagão até o momento em que Constantino mandou fechá-lo. Quando o Imperador deu a ordem de fechar, não pensem que, à moderna, derrubaram o Panteon; ele mandou instalar uma igreja católica ali. E o Panteon é hoje uma paróquia. As pessoas se casam, são batizadas, confessam-se lá, e a igreja funciona como qualquer outra. Ali, há séculos, Júpiter era adorado, e agora é adorado Nosso Senhor Jesus Cristo. E o prédio ainda se conserva.

A sepultura do Imperador Adriano foi aproveitada: é uma torre cilíndrica de pouca altura e imenso diâmetro. Foi utilizada, durante a Idade Média, para fortaleza. Depois, uma parte dessa fortaleza foi aproveitada para palácio. O túmulo de Adriano não existe mais. Mas podem-se visitar as muralhas da fortaleza e o palácio, que agora é museu. De maneira que houve a seguinte mutação: de sepultura de Adriano para fortaleza, de fortaleza para palácio, de palácio a museu.

Em Roma havia mais de 400 igrejas

Vejamos, agora, as fotografias.

Eis um pórtico, um arco numa rua no gueto de Roma. A rua existe para uma casa que está em cima.

Ali, uma rua popular, com a roupa lavada, estendida e gotejando em cima de quem passa; duas velhas comentam qualquer coisa. É a pequena vida caseira que sai da casa e se espraia pela rua afora. Reconheçamos que é bem diferente da Avenida Paulista(2).

Observem um recanto da velha Roma. Uma casa, o alinhamento caprichoso da rua, uma bonita torre no meio de casarões velhos, que eu quase chamaria leprosos. Um dossel sobre a imagem talvez de Nossa Senhora com o Menino Jesus. Nichos com imagens de Santos assim eram frequentes na Roma daquele tempo.

Vejam a escadaria que perfura uma casa a qual já foi construída assim. A rua é uma escadaria que passa no meio da velha casa, sem eira nem beira, tem um bonito balcão de alguma família nobre ou rica que mora aqui. E isso é uma coisa muito comum até hoje na Itália. Metade da casa é cortiço, a outra metade é um palácio de nobres.

Duas irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo, com seus lindos chapéus bretões, andando numa espécie de praça de terra, sem calçamento, da velha Roma, com uma magnífica palmeira se espraiando suavemente no clima romano. Uma nobre torre antiga e mais adiante outra torre. Roma era uma cidade com mais de 400 igrejas.

Cidade das fontes

Esse terreno foi rebaixado para a construção das casas. Mas aqui, por qualquer razão, o dono não quis que rebaixasse e ficou alto. E permaneceu a árvore que se eleva de modo pitoresco aqui. Um muro, uma água parada e uma bela igreja ao fundo.

Pormenor da vida do tempo: um cachorro, que procura comida pela rua. É um cão sem dono, na infeliz situação dos cachorros sem dono.

Uma senhora conduzindo o filho para passear. A criança está vendo o cachorro, mas ela está tocando uma espécie de corneta para ver o que o cão faz. Manifestação musical do gênero italiano. O cachorro é utilitário e está se preocupando exclusivamente com a comida. Não liga para nada.

Aqui o reboco da casa caiu, mas ela pode durar mais mil anos. Não pensem que a escada é para escorar a casa; está encostada do lado de fora para qualquer coisa. Um cavalo bem lustroso e bonito, uma porta com um nobre arco, um pátio cimentado de pedras, mas sem qualquer regularidade.

Outra viela romana. Nas cidades medievais as ruas eram muito estreitas para caber tudo dentro das muralhas. A iluminação pública já havia começado. Aqui há um poste com iluminação a gás, que era o grande progresso do momento. Também significava progresso a placa com o nome da rua.

Está chovendo, duas senhoras passam abrigadas num guarda-chuva insuficiente, e aqui há uma comerciante oferecendo algum produto. Notem a desigualdade do solo, como é tudo feito mais ou menos ao acaso.

Isso não se vê de jeito nenhum em rua moderna: um arco comunicando uma casa com a outra. Eu não sei por que se condena isso, que é uma coisa que pode prestar muito serviço.

Uma bela torre. Está mal cuidada e velha, mas é nobre como uma velha marquesa que conserva sua nobreza, apesar de todas as devastações do tempo e do dinheiro.

Numa praça pública, um homem dança, e outro não presta atenção na dança. Esse aqui parece um aleijado apoiado num bordão, e vai andando com uma sacola e uma caixa de música. Essas cidades eram todas muito musicais. Cantava-se, tocava-se violino, dançava-se mais ou menos em todos os lugares e ouvia-se música sair de todas as janelas, com a voz bonita e o senso melódico tão frequente na Itália.

Cena pitoresca mais uma vez. O burrico puxado pelo homem, carregado, que vai devagarzinho pela cidade. Provavelmente um vendedor ambulante.

Aqui, uma como que pequena coluna, e dali brota água. Roma é a cidade das fontes, em geral com água muito límpida, muito boa.

Significado da palavra ”pitoresco”

Uma torre que foi fortaleza durante a Idade Média. Tudo caiu, mas ao lado foi construído um pitoresco jardim suspenso. Um dos pitorescos em Roma são os terraços como esse, onde se colocam guarda-sóis grandes e há restaurantes no local. Um homem toca violino para os que comem e bebem, e ficam olhando o movimento da rua, onde se vê um monge dominicano atravessando-a. A cidade dos Papas era a cidade dos frades.

Esse menino tem um lado pitoresco. É um menino de rua que não teve nenhuma educação e, portanto, está deitado na carroça como estaria em sua casa. Se ele estivesse de bruços na cama, tentando pegar um rato no quarto dele, sua atitude não seria diferente. Apesar disso, o gesto todo dele não deixa de ter certa harmonia e muita naturalidade. Não é um gesto feio. Tem certa harmonia de posição e de atitude, e a naturalidade de uma pessoa que se sente completamente à vontade na cidade. É a cidade dele, feita para ele, na qual ele está em casa como em sua residência particular.

Esse inteiro “laissez faire”(3) faz parte do pitoresco da atitude do menino. Alguém diria que isso não deveria ser assim, e que ele não é um menino educado. Não é verdade. A educação tem vários graus. Ele possui essa forma principal e mínima de educação, que é a virtude. Ele está composto, direito, porque é um menino que teve uma educação pura. A pureza é o principal da educação, e não as maneiras. Maneiras ele não tem, mas possui a compostura do menino direito. É o essencial.

A ideia que eu tenho de pitoresco é imaginar morando ali gente que são os pais e tios desse menino e desse outro que está atrás. Talvez esse casal e esses dois homens sejam moradores aqui. E gente do povinho, inteligente como é habitualmente o italiano, gente que mora nos casebres, mas que se pôs numa situação muito pitoresca: tendo sempre diante dos olhos esse templo, a torre e o Tibre milenários, e que presencia tudo isso como de um terraço. O cenário é magnífico: encostado num templo pagão, uma torre do fim da Idade Média, olhando o rio romano passar como quem vê a vida fluir com toda a navegação do Tibre.

Isso é pitoresco porque forma quadros. A palavra “pitoresco” vem de pintura: “pictus”, pintado. O pitoresco está no homem do povinho, com sua inteligência, sua vivacidade, inalando tudo isso sem saber bem o que é, e vivendo aqui à romana. Quer dizer, à noite, fazendo um jantar entre o parapeito e a casa, comendo uma polenta, bebendo vinho quente e tocando num instrumento de corda que talvez tenha uma corda ou duas a menos, e cantando a plena voz numa noite enluarada de Roma. Isso é pitoresco.  v

 

(Continua no próximo número)

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 29/1/1977)

Revista Dr Plinio 207 (Junho de 2015)

 

1) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

2) Extensa via pública localizada entre as zonas centro-sul, central e oeste da cidade de São Paulo.

3) Do francês: deixai fazer. Aqui tem o sentido de distender-se.

O Divino Interlocutor

Em sua concepção sacral da existência, no processo de seu pensamento e até na elaboração de uma arte de conversar, Dr. Plinio tinha como fonte de inspiração e ponto de convergência o Sagrado Coração de Jesus.

 

Início, expansão e morte

E isso é tão diferente nas várias espécies de vegetais, e em cada planta em particular! É diverso nos bichos e nas velocidades materiais. E também em todo o processo de pensamento e de desenvolvimento do homem.

Nesse crescer, expandir-se e morrer, Deus Nosso Senhor fez um verdadeiro jogo de maravilhas, que evidentemente as pessoas que cultuam a natureza não se dão o trabalho de apreciar. Porque isso supõe um mínimo de pensamento, de contemplação e de meditação. E esse tipo de meditação, em geral, elas não querem fazer.

Tudo isso — nas plantas, nos animais e nas velocidades materiais — é simbólico, de um modo ou de outro, do processo do homem; é simbólico da vida terrena de Nosso Senhor e da trajetória da História, do curso dos acontecimentos.

Até mesmo certas coisas que são feitas para matar e não para viver — por exemplo, uma batalha — têm seu começo, seu crescimento, depois seu murchamento, e caem. Um dos aspectos bonitos desse estudo é a questão dos recrudescimentos: quais são suas origens, que forças têm, como se faz um recrudescimento. Só o tema dos recrudescimentos daria para uma doutrina interessantíssima da Contra-Revolução.

Até os fogos de artifício podem ter uma trajetória muito bonita nesse sentido.

Um universo de belezas

Uma das coisas que eu gosto de apreciar no mar é exatamente o nascimento da onda, depois o sistema de ondas, quando elas arrebentam ou expiram na praia.

Também, a ilusória perpetuidade da calmaria… Como, dentro da calmaria, o primeiro elementozinho indica uma mudança completa das coisas que vão se acumulando. É um processo muito bonito!

Isto tudo é uma verdadeira maravilha que depois tem sua transposição para os processos políticos, para a história das instituições, das correntes de espiritualidade, etc.

Há um universo de belezas aí, que ao homem foi dado contemplar com olho rápido, furtivo e atento, porque não tem tempo para pensar nisso. Mas que é uma coisa lindíssima!

Por exemplo, há mortes que são como um Amazonas desembocando na eternidade; quase que empurra a eternidade um pouco para fora. Mas existem outras mortes como um riozinho pequenininho, humildezinho, que vai dar diretamente no mar e se perde, envergonhadinho, com um sussurro que o mar incorpora a si…

Há uma porção de coisas bonitas, interessantes, para ver dentro disso. E isso se aplica muito à história de um homem.

Por temperamento, sou muito estável e gosto das coisas estáveis, que duram na calmaria.

Não concebo o Céu num perpétuo movimento, mas com diferentes modos de ser da estabilidade. Não é a instabilidade; é a mutação dentro da estabilidade.

Processo de pensamento de Dr. Plinio

Todas as doutrinas e temas — portanto, também o conceito de sacralidade — têm um modo de se desenvolver peculiar de cada indivíduo. Em mim, essa peculiaridade é assim:

Primeiro, um nascimento cheio de intuições, de graças, ultra-alcandorado, em que entra de um modo especial uma visão confusa do ultra-maravilhoso e do ponto terminal bom, do ponto supremo, do auge; e o encantamento por esse auge.

Depois do auge bem visto, e de dar a ele tudo quanto naquele estágio da vida espiritual ele merece que se dê, então vem um período de aparente estabilidade; mas de fato é um período em que se vai “cozinhando” lentamente a explicitação.

Ao mesmo tempo — é como se dá concretamente comigo — um período de luta, em que a explicitação é ajudada possantemente pela contestação. Porque aquele conhecimento confuso, primeiro, vem acompanhado de uma implícita rejeição do que não é aquilo. E quando alguém afirma o contrário, vem a repulsa.

Na repulsa implicitamente fica mais conhecido aquilo que foi negado. E, ao mesmo tempo em que se prepara a apologética, elabora-se a explicitação. A apologética e a explicitação são fenômenos reversíveis um no outro. De maneira que eu me torno conhecedor das coisas por dois dados: por uma espécie de conaturalidade, e por uma espécie de repulsa daquilo que é contrário.

Num determinado momento, tudo o que se podia conhecer a respeito daquilo está conhecido, com os próprios recursos e com a observação concreta da vida. Aí chega a hora da leitura. Não antes.

Podem percorrer todos os livros de minha biblioteca, e encontrarão sinais disso. A leitura veio exatamente depois para ajudar esse processo, dando mais informações, fazendo com que a pessoa se situe ante o que diz o escritor e, portanto, julgue: é “sim”, é “não”, é “talvez”, é “conforme”, etc.

Depois de tudo isso feito, há mais uma vez uma nova aparente estagnação, em que todos esses elementos recolhidos são objetos de uma nova síntese. E vem uma visão final que depois cresce pouco, na aparência, mas que de fato tem muita intensidade. E prepara o ato de amor terminal.

Eu não sei se isso será assim em outros. Desconfio muito que não, e que varia muito de acordo com o caminho de Deus para cada pessoa.

A inocência é o princípio da sabedoria

Graças a Nossa Senhora, há nesse processo muita inocência. Porque não é só conhecendo a coisa em si, mas é conferindo os dados externos com a inocência. A inocência, nesse sentido, é um começar de sabedoria. Ela constitui uma espécie de ortodoxia.

O que eu disse agora, há um ano eu não teria tão claro a ponto de explicitar; neste momento estou explicitando com facilidade.

Na aparência, isso em mim se encontrava parado; mas, de fato, estava sendo preparada esta explicitação. O que indica que havia uma ação profunda — muito silenciosa, tranquila, discreta, mas não pouco ativa — para passar do último estágio de um conhecimento confuso para o conhecimento inteiramente definido.

Seria um crescimento contínuo sob a forma de estabilidade, mas na realidade trata-se de uma ação em profundidade. Mais ou menos como o desenvolvimento da árvore já crescida, que não cresce mais, mas suga da terra coisas que dão ao processo vital da árvore o meio de ir vivendo. Examinando bem, a árvore pode, durante muito tempo ainda, crescer em força e em volume por esse processo.

Então, o conhecimento da transcendência de Deus, por exemplo, depois de chegar a certo estágio, entra nessa fase de elaboração profunda, pouco perceptiva, que de repente dá um fruto muito mais sutil e melhor, que é fazer as correlações entre os conjuntos que se têm na mente, e daí nasce um determinado “unum”.

E esse é o píncaro do processo intelectual e moral. Porque esse píncaro já é a primeira nota, é a antífona do cântico que nós devemos entoar no Céu.

Procura do mundo dos possíveis

Esse é o processo de conhecimento das coisas que poderiam ou deveriam existir, algumas das quais existem. Por exemplo, quando vejo um belo castelo. Ele corresponde a ideias que todos tivemos na mente sobre um castelo inexistente. Então, minha primeira reflexão é: “Aqui está o inexistente que eu procurava!”

Muita coisa, que parece estar no mero mundo dos possíveis, existe. É questão de saber procurar. Em última análise, se fosse bem ordenado, o turismo perfeito seria uma procura pelo mundo dos possíveis que a pessoa não conheceu.

Essa procura é um pouco o que vai dando ânimo e movimentação à vida. O contrário é o tipo de velho que, no domingo, às três horas da tarde, junto com sua esposa, acabou de almoçar; ele está bem satisfeito e ela está aliviada porque o marido almoçou bem e gostou da refeição. Ele se senta numa cadeira e fica ruminando, com desapontamento, porque ele acha que não há mais possíveis.

Propriamente, a substância dessa velhice mal concebida é crer pouco nos meramente possíveis do Céu, e achar que na Terra não adianta conhecê-los, porque já se viu que todas essas coisas fanam. Então o velho fica sentado na cadeira, ruminando sua bronquite. Essa é a substância desse conceito de velhice.

Antigamente, como a senhora — de modo habitual, não necessariamente — era melhor do que o homem, ela ficava pensando um pouquinho no Céu e nas saudades do tempo que se foi.

O homem, pouco sujeito a saudades, não pensava no Céu, mas de vez em quando o relâmpago do Inferno lhe aparecia pela mente. E isso o levava a fazer a sua Confissão e Comunhão pascais. Assim era a velhice.

Havia uma casa — creio que não existe mais — na esquina da Rua Imaculada Conceição com a Rua Martim Francisco(1). Eu percebia, pela conformação do prédio, que existiam muitos quartos de dormir vazios; donde se deduz terem morado filhos ali, que depois tinham se mudado, e o casal residia sozinho.

Eu, então, imaginava o velho e a velha possível no nível daquela residência, que era uma casa mediana. Esse velho e essa velha eu os construía de vários velhos e velhas que tinha conhecido.

Como a ideia da Contra-Revolução foi elaborada no espírito de Dr. Plinio

Estou explicitando agora. Mas a explicitação é fruto de um trabalho lento, que a mim me dá a impressão de que não estou trabalhando, mas simplesmente vivendo. Eu diria que parei. Mas, de repente, saio com uma enxurrada de coisas que, assim, nunca pensei. É o lento trabalho terminal que deve aprontar na mente.

A Contra-Revolução, considerada no seu conjunto, teve exatamente esse papel no meu espírito.

Primeiro formei impressões, observei fatos, tomei conhecimento pela leitura de alguns tantos acontecimentos históricos, e também conheci muito pelas narrações, mais ou menos à Alexandre Dumas, que circulavam no ambiente familiar, a respeito desse ou daquele caso.

Por exemplo, Maria Antonieta. Na minha geração, o preconceito contra Maria Antonieta era uma coisa atroz: “Mulher dura, má, traidora, favorecia os austríacos! De uma beleza esplendorosa — era vista assim — que fazia com que todas as mulheres feias ficassem complexadas, pensando nela!”

Mas contavam que o povo faminto chegou a Versailles, e ela estava tão alheia às verdadeiras necessidades do povo que disse: “Então, se vocês não têm pão, comam brioche”. E ela nem sabia bem que brioche era mais caro que o pão; porque problema de dinheiro não existia para ela. Então deu um conselho que provava — assim diziam — como ela vivia alheia ao sofrimento do povo.

Eu me lembro de, ainda pequeno, perguntando para Dona Lucilia:

— Mas, mamãe, o que é brioche?

— Uns bolinhos excelentes.

Não cheguei a me perguntar por que ela não fazia brioche para eu comer. Até lá a gula não chegou… Mas vejam a provação para uma criança que ainda não sabe o que é brioche:

“Então as pessoas bonitas, alinhadas, estiladas, superiores não têm coração porque seguem demais regras e se endurecem com essas regras? Por que seguir a regra endurece e cega para a compaixão com os que não conseguiram seguir a regra? Então, seguir as regras é mau?”

Minha resposta interior:

“Não pode ser. Porque entre bem e bem não pode haver incompatibilidade.”

A doutrina não é o ponto de partida, mas o de chegada

A importância que dou ao raciocínio faz com que eu não considere nada por acabado se não foi raciocinado. Porque todo esse processo de intuição tem que chegar a raciocínios que provem ou não provem aquilo que foi antes intuído, apalpado, pressentido.

Podem, então, imaginar o meu encantamento lendo o “Tratado de Direito Natural”, de Taparelli d’Azeglio, o “Tratado de Sociologia Católica”, de Albéric Belliot, um franciscano; enfim, uma flotilha de coisas que eu li e me provaram, por exemplo, a legitimidade do direito de propriedade, que era uma coisa instintiva, mas cuja legitimidade eu apanhei aí.

Quando vi que o direito de propriedade, a instituição da família, a indissolubilidade do vínculo matrimonial, a autoridade paterna — cuja liceidade era intuída por mim — se baseavam num raciocínio claro, límpido, perfeito, tive um entusiasmo enorme!

Isso deu ao meu pensamento uma estrutura que veio depois de mil apalpações.

Essa é uma característica do meu espírito: não começar por ler a doutrina, mas por pegar a realidade. Depois de ter intuído na realidade, ir ver a doutrina. E aí ter um contentamento, um gáudio enorme.

Estou longe de ser daqueles que julgam dever prescindir da doutrina, mas a questão é que para muitos a doutrina é o ponto de partida, e na conformação do meu espírito é o ponto de chegada.

Todas essas coisas com o tempo acabam formando um depósito primeiro de impressões maturadas, para raciocinar. E enquanto já vou raciocinando algumas de minhas impressões, continuo a maturar ou explicitar outras. Então, nós poderíamos dizer que esse processo é:

Primeiro: observar, captando e classificando subconscientemente.

Segundo: estabelecendo oposições, e começando por aí a explicitação.

Terceiro: fazer os primeiros raciocínios que constituem pontas de trilho para que, daí para diante, em contato com qualquer coisa nova o processo inteiro vai se movendo.

Concepção sacral da vida

Isso forma inclusive o progresso na vida espiritual.

Por exemplo, a noção de sacralidade, no começo, é muito mais vívida em relação à Igreja. Depois menos em referência à autoridade paterna dentro da família como entidade toda ela sacral, num certo sentido especial da palavra “sacral”. E também em relação ao mito monárquico dentro do Estado, que pode ser sacral se o indivíduo quiser vê-lo assim, oferecê-lo à Igreja e pedir as bênçãos dela a fim de sacralizá-lo.

Isso acaba dando lugar a uma noção de sacralidade adequada às coisas temporais, que é um desdobramento da noção do sacral — própria das coisas estritamente espirituais e sobrenaturais — e formando no espírito vários degraus e modos de ser da sacralidade, cujo auge sempre me pareceu como sendo a Consagração durante a Missa, mais do que a minha Comunhão.

Agora, uma coisa que é pessoal: sou mais sensível à sacralidade do ato da Consagração, enquanto considerado na Consagração do vinho e a apresentação do cálice para o povo adorar, do que na Consagração do pão e a apresentação para ser adorado.

Eu tinha a impressão — que soube, depois, não corresponder à realidade — de que a transubstanciação se dava no momento da elevação. E daí aquele respeito e aquela veneração! Porque nos fiéis há um redobrar de respeito e veneração, quando o Santíssimo é elevado. Compreende-se, porque é exposto para eles adorarem, então fazerem um ato interior que corresponde a essa exposição. Mas eu achava que era porque a transubstanciação estava se dando naquele momento.

A forma material do cálice é tão evocativa do que é o oferecimento da sacralidade! Uma alma que se oferece, ou oferece alguma coisa de dentro de si, é tão bem representada por um cálice que se abre e que dá tudo o que tem! Por outro lado, o vinho é tão mais parecido com o sangue, do que o pão o é com o corpo, que tudo isso me dava mais sensação — puramente física e analógica — de sacralidade.

A simples presença do Santíssimo Sacramento exposto me dava uma sensação de sacralidade colossal. Muito mais do que o Santíssimo guardado na capela-mor. Poder chegar perto d’Ele, adorá-Lo, produz em mim impressões de sacralidade que eu acho que possuem qualquer coisa de místico, muito maiores do que as que se têm em contato com a sociedade temporal.

Mas por esse progresso de alma de que estou falando, a pessoa vai compreendendo que em formas, termos e modos diferentes, a sociedade temporal inteira acaba tendo qualquer coisa de sacral. E, então, uma concepção toda ela sacral da vida vai se maturando lentamente, ao longo das décadas, para depois fazer uma conferição com os autores especializados.

Porque a palavra definitiva é deles. Eles representam a Igreja, que é infalível e, portanto, vamos ouvir o que a Santa Mãe Igreja ensina a esse respeito. E ensina, na força da palavra “ensinar”: quer dizer, ela é a Mestra infalível, eu sou o aluno bobo que posso ter feito um engano, e apresento a ela aquilo que pensei.

No princípio não estava o livro, mas o pensamento

É um processo que, em certo momento, entra numa aparente estagnação, e continua a elaboração em profundidade. De maneira que quem me conhece há muito tempo, é possível que tenha tido ideia de que em algumas coisas eu estou me repetindo indefinidamente. Mas se forem examinar de perto notarão que tem sempre alguma coisinha nova, que corresponde em profundidade a esse processo lento.

Mas isso levanta um problema: Esse não é — em suas linhas gerais, não nos seus pormenores — o próprio método de pensar legítimo do espírito humano?

Vamos formular a coisa assim: O primeiro livro foi escrito por um homem que não teve livros. Então, a cultura nasceu de um pensamento anterior ao livro. Logo, no processo intelectual, no princípio não estava o livro, mas o pensamento.

Então, eu volto ao ponto de partida.

O “unum” é o Sagrado Coração de Jesus, de uma majestade infinita, doçura infinita, sabedoria infinita, de um poder infinito e de uma bondade infinita; para dizer só alguns atributos. Tudo isso é uma síntese para chegar até Ele, compreendê-Lo.

A teoria geral das várias formas de crescimento, de desenvolvimento, que apresentei no começo da reunião, parece não ter relação alguma com Ele. Mas, no fundo, é a Ele que visamos. Ele é o alfa e o ômega; o “unum” é Ele! Ele é o começo e o fim de tudo. E se de algum modo todas essas reflexões não visassem o melhor conhecimento d’Ele, não teriam valor.

Numa conversa os espíritos vão evoluindo juntos, como num dueto musical

Em toda essa teoria, a conversa tem um papel enorme, porque ela, no fundo, requer certo discernimento dos espíritos e uma percepção do que convém ou não ser dito. Quando não convém, deve-se ter o suficiente desapego para não tratar.

Muita gente conversa sobre aquilo que tem vontade de conversar. Isso é a morte da conversação. A conversa boa nem é sobre aquilo que tenho, ou meu interlocutor tem, vontade de conversar; mas sim tratar daquilo em que nós dois podemos igualmente gostar de conversar. O resto é a morte da conversação.

À medida que uma conversa está bem travada, os espíritos vão evoluindo juntos, como num dueto musical. E quando se entendem bem, vão mudando de tema igualmente, muito mais por apetências do que por nexos lógicos. Entra em algo o nexo lógico, mas são nexos psicológicos, mudanças de temas vizinhos, que vão fazendo com que as duas pessoas gostem das mesmas coisas. Então a conversa aí se torna deliciosa.

É mais ou menos como, por exemplo, duas pessoas que passeiam juntas no centro de Roma, a caminho das catacumbas. Passam por uma loja qualquer que tem gravatas bonitas; os dois estão precisando comprar gravatas; param, olham, gostam, conversam. Depois transitam em frente a uma confeitaria, e comem algum doce. E assim chegam à catacumba.

A conversa só pega mesmo — ao menos é a impressão que eu tenho — quando na pontinha do que está sendo conversado há qualquer coisa que é uma graça de Deus, sobre alguma coisa de transcendente, maravilhoso, que, por uma pontinha de consolação sensível, ambos estão sentindo.

Pode ser o “unum” ou não. Pode ser uma consolação, que todos têm juntos, sobre um ponto que Nossa Senhora quer glorificar. Então, a conversa em geral tem um fundinho comum de supremo. E quanto mais esse fundinho é sentido por todos, mais a conversa é animada.

Donde se tira uma conclusão linda: o principal interlocutor é o Interlocutor Divino, presente em nossa conversa, falando dentro das nossas almas e elogiando-se a Si próprio por nossos lábios.

A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece

Isso dá uma elevação ao conceito de conversa, em que Deus está sempre presente; não só — e já é muito! — através da Fé, mas também, no fundo, por alguma coisa comunicada diretamente pela graça, que se torna sensível e causa alegria. Esse é o sal da conversa, e que a Providência dá quando quer. É certa forma de sensível. Não é uma mera troca de ideias teórica, mas algo que vai mais alto.

Eu volto a dizer: pasma, mas é fato, o Divino Interlocutor é propriamente Aquele que fala. Ele fala pela boca de um, responde pela boca de outro e Se alegra pelo coração de todos. É uma coisa muito bonita!

Pode-se dar um fato parecido com esse, na ordem meramente natural. O exemplo mais característico disso é este: quando se está muito longe do país em que se nasceu, e vários co-nacionais se encontram inesperadamente em algum lugar, sai uma conversa animada.

O que há no gáudio de, por exemplo, vários brasileiros se encontrarem na Tailândia, inesperadamente, formarem uma conversa animada e serem capazes até de ir almoçar juntos?

Há um fato natural meio parecido com o sobrenatural — porque há muita analogia entre certos fenômenos naturais e outros sobrenaturais —, que é um ponto comum da alma do brasileiro e do ambiente do Brasil; o brasileiro, que se sente muito isolado quando está na Tailândia sem ter com quem conversar, quando encontra outros com o mesmo ponto comum, aquilo aflora com uma veemência extraordinária, e faz na conversação o papel natural, semelhante ao que a graça opera no tipo de conversa de que falávamos.

Outra coisa se dá quando alguns dos interlocutores, por serem bons católicos, são objetos de uma graça por onde os demais podem ficar deslumbrados. Isso pode ocorrer até no relacionamento entre um jovenzinho e seus colegas.

O que se passou nesse caso? É algo de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou de Nossa Senhora enquanto canal necessário do Redentor, porque foi dita alguma coisa da Doutrina Católica, ou qualquer outra matéria por onde eles percebem, por um discernimento de espíritos que lhes foi dado no momento alguma coisa de maravilhoso e de celeste.

E isso pode determinar dois rumos diferentes: a conversão dos que estão ouvindo ou a perversão de quem está falando. Porque este fica sujeito ao seguinte raciocínio: “Aqui me compreendem mais do que nos meios católicos que frequento. Portanto, vou frequentar mais este ambiente porque aqui faço apostolado…” Mas, de fato, ele vai se atolando naquele ambiente mundano.

A conversa, em sua natureza, tem algo de uma prece. Quando está presente esse lado sobrenatural, é uma oração, uma coletiva elevação da mente a Deus.

Porém naqueles salões do período do “Ancien Régime”(2) — era uma coisa medonha! — havia uma graça propriamente sobrenatural, católica, de caridade fraterna, que dava na “douceur de vivre”(3), manifestamente presente lá, misturada com a frivolidade mais escandalosa e com a irreligião categórica.

Desde que o Divino Interlocutor esteja presente, a conversa é o verdadeiro prazer da vida

Uma pessoa frívola costumava dizer, na minha presença, que o verdadeiro prazer da vida era uma boa conversa. Também acho que conversar, desde que o Divino Interlocutor esteja presente, é o gosto da vida. E nenhuma outra coisa tem o valor da conversa.

E daí entra outro tema que quase justificaria uma conversa: não é compreensível a felicidade do Céu se não se admite o que estamos dizendo. Aquele co-louvor no Céu é uma conversa sumamente bem-aventurada, porque o Divino Interlocutor está presente, dando uma animação incomparável ao que dizem a respeito d’Ele, de si próprios, da História e do universo — sempre com vistas a Ele — todos os que estão ali participando.

Mesmo assim, é preciso tomar em consideração que o modo de ser apresentado o Céu por certas escolas espirituais deturpa-o e torna-o menos apetecível. Tenho a impressão — que é quase uma certeza, mas se a Igreja ensinar o contrário, no mesmo instante mudo de opinião — de que no Paraíso cada bem-aventurado conserva todas as características legítimas que teve na Terra.

E, no Céu, é interessante o fato de almas com personalidades tão diferentes estarem todas unidas na conversa, na interlocução a mais agradável, a mais amável, a mais nobre, a mais gentil, a mais elevada, a mais distinta, a mais recolhida e ao mesmo tempo a mais pseudo-dissipada que se possa imaginar.

De maneira que cada um ama muito que o outro seja de outro modo, e todos sentem as respectivas harmonias. E a presença de Deus se tornando continuamente sensível, conhecida e apreciável a todos, e sendo Ele, no fundo, o Divino Interlocutor dentro da alma de todos, há um tipo de conversa que é do gênero das conversações abençoadas aqui na Terra, mas com qualquer coisa que vai infinitamente além.

A conversa no Céu será como uma contínua oração

E aí compreendemos todo o gáudio que o Céu pode trazer, a partir do primado da conversa sobre todos os outros prazeres.

É uma coisa que nos é dada de vez em quando na Terra, um pouquinho, e que nos deixa fora de nós de contentamento. E no Céu nos é concedida contínua e plenamente, e com uma intensidade inimaginável. Donde a felicidade celeste.

Considerem as almas que certos estilos artísticos pintam como estando no Céu, todas elas têm a mesma personalidade, as mesmas características, e o co-louvor perde o sabor. Fica meio inimaginável um Céu saboroso.

Porém, imaginar que no Paraíso se está conversando, por exemplo, com um grande historiador e vemos São Tomás de Aquino que está passando, e lhe perguntamos:

— São Tomás, o que dizeis sobre este assunto?

Ele para extasiado, fica contente e responde com aquela simplicidade que lhe é característica:

— Olhe aqui, isso é assim…

Grande alegria! Ele passa, e ainda durante algum “tempo” — para usar nossa linguagem aqui da Terra — aqueles a quem ele ensinou ficam contentes por causa disso.

No “fim” do “dia” vão levar de presente para ele uma pedra linda que encontraram no Céu empíreo. Ele pega-a, fica encantado, e faz uma reflexão ultra-substanciosa sobre aquilo…

É a vida do Céu, vista com base na conversa tida como uma oração.

A conversa é uma coisa continuamente móvel. E como as perfeições de Deus são infinitas — Deus é insondável! — Ele é para nós, no fim de milhões, de trilhões de anos, tão novo como no primeiro instante.

Além disso, há o Céu empíreo, onde suponho que é dado ao homem fazer obras de arte, construir, organizar, arranjar, etc., e assim ter o gosto de realizar. Eu não acredito que um contemplativo tenha um verdadeiro gosto de contemplação se não tiver também o gosto da contemplação transformada em obra e deixada para outros.

Nesse sentido, por exemplo, quando li pela primeira vez aquelas palavras de São Paulo: “Combati o bom combate, etc.”(4), que ele pronunciou próximo da hora de morrer, aquilo me pareceu a morte por excelência, magnífica: “Eu pensei, eu fiz, eu deixei!” Quer dizer: “Aqui está!” E o ter feito é uma grande coisa.

Carlos Magno morrendo com a consciência de que ele fez um império, que coisa magnífica!

Bem, tivemos uma ótima conversa. Assim foi, porque o Interlocutor Divino estava presente.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 19/4/1989)

Revista Dr Plinio 207 (Junho de 2015)

 

1) Em São Paulo, bairro Santa Cecília.

2) Do francês: Antigo Regime. Sistema social e político aristocrático em vigor na França entre os séculos XVI e XVIII.

3) Do francês: doçura de viver.

4) Cf. 2Tm 4, 7.

O fim da Idade Média inglesa

As palavras de Dr. Plinio abaixo transcritas, que versam sobre um dos mais importantes momentos da história inglesa, guardam profunda relação com seus comentários estampados logo a seguir, na seção “Luzes da Civilização Cristã”.

 

Antes de Henrique VIII, a Inglaterra era um dos baluartes da Igreja Católica. Em toda a vida intelectual, artística, política e social, a influência dos princípios católicos era profunda. O número de Santos nascidos em território inglês foi tão grande que a Inglaterra chegou a chamar-se-á “Ilha dos Santos”.

Características particularmente salientes desse espírito católico eram exatamente o apego profundamente sincero do povo à autoridade do rei e, ao mesmo tempo, a altivez com que se insurgia contra todas as tentativas da Coroa, tendentes a transformar a monarquia em tirania.

A luta dos ingleses por suas liberdades traz o estigma característico do espírito católico, um grande respeito à autoridade e um grande amor à justiça. Amantes da autoridade, os ingleses, antes de Henrique VIII, nunca chegaram a tentar a destruição da monarquia, mesmo quando lutavam pela sua liberdade. Amigos da justiça, sempre reivindicaram seus direitos, sem que seu respeito à autoridade lhes tolhesse a liberdade de ação.

A história medieval inglesa não conhece a maior parte das abominações que comoveram a história da França, da Alemanha ou da Itália no mesmo período (que, seja dito de passagem, são insignificantes perto daquelas às quais assiste o mundo contemporâneo).

As “jacqueries” em que os camponeses queriam exterminar os senhores feudais, as revoluções em que os nobres queriam exterminar a realeza, e as lutas em que a realeza procurava aniquilar os direitos do
povo e da nobreza, tiveram na Inglaterra um aspecto imensamente mais benigno e mais razoável que em outras partes. O feudalismo inglês, modelo admirável de inteligência administrativa, foi quiçá o mais perfeito regime político da Europa medieval.

Nas lutas dos barões e do povo com os reis, as desinteligências existentes a respeito do governo da Inglaterra acabaram por se resolver definitivamente. E surgiu, com o bafejo da Igreja, a estrutura política mais firme que a Europa tenha conhecido até hoje.

O pecado do outrora “Defensor da Fé”

Uma crise de caráter íntimo e passional veio pôr em jogo a estabilidade desse admirável edifício, todo ele alicerçado e cimentado nos princípios católicos.

Antes de a atmosfera político-religiosa se deteriorar, o Rei Henrique VIII, fazendo-se intérprete do sentimento do povo inglês, escreveu uma obra de refutação do protestantismo, que começava a incendiar a Alemanha. O Papa, reconhecido pela intervenção do Rei, outorgou-lhe o honroso título de “Defensor da Fé”. E Lutero, indignado com Henrique VIII, o chamava “o mais sujo de todos os porcos”.

Mas acontece que Henrique VIII sentiu em si a mesma fraqueza que arrastou David ao pecado e Salomão à perdição.

Um romance — expressemo-nos assim, para não dizer algo pior — havia se formado na vida do Rei. Desejava ele anular seu casamento com a Rainha para contrair núpcias com outra dama de sua corte. Não conseguindo do Papa a anulação do casamento, ficou colocado em um cruel dilema: ou renunciar à Fé, ou renunciar ao “romance”. Renunciou à Fé. Fez-se protestante o “Defensor da Fé”! E sua união ilícita foi abençoada pelo mesmo protestantismo que o alcunhara de “o mais sujo de todos os porcos”.

O fim da monarquia orgânica

É interessante notar que Henrique VIII encontrou em São Tomás Mórus, seu primeiro Ministro, um adversário irreconciliável da anulação de seu casamento. Profundamente católico, Tomás Mórus recusou-se a abjurar a Fé. Foi condenado à morte. Sofreu o martírio e hoje brilha nos altares da Igreja Universal com a auréola da santidade (*).

Pode-se dizer que, com o desaparecimento de São Tomás Mórus, extinguiam-se também os últimos bruxuleares da Idade Média — moribunda naquele século XVI — e da monarquia orgânica. Esta, como se sabe, baseava-se no princípio da subsidiariedade, pelo qual cada grupo social deve tirar de si mesmo os recursos para prover suas necessidades e solucionar seus problemas. Conta com o auxílio do grupo superior apenas na medida em que, por sua própria natureza, não lhe for possível suprir suas carências nem resolver suas dificuldades. De maneira tal que exista uma espécie de autonomia de todos os corpos e instituições dentro do Estado.

Era o que se verificava na organização da Idade Média, em que cada unidade social dispunha de uma vitalidade pela qual produzia o seu próprio impulso. Assim, os feudos tinham leis, costumes e até idioma característicos. Os pequenos se encaixavam nos maiores, que só intervinham na existência dos primeiros para remediar as violações da Lei de Deus e dos princípios da civilização cristã, ou para sustentá-los quando as limitações de sua pequenez assim o exigissem. As cidades se desenvolviam com vida própria e, dentro delas, as corporações levavam também sua existência particular, com regras e usos peculiares. Acima de todos, o rei, ápice dessa estrutura de subsidiariedades. Era ele o mantenedor de todas as liberdades e autonomias, o coordenador e estimulante de todas as atividades gerais.

Entre estas autonomias, a maior, a mais notável, era a da Igreja Católica. E quando se trata da Igreja, não se pode falar em autonomia, mas sim em soberania. Ela é uma entidade soberana, tanto quanto o Estado, e, na sua esfera própria, não pode ser dominada nem dirigida por nenhum governante civil.

Quando, porém, teve início a decadência da Idade Média, os monarcas passaram a se fazer absolutos, tomando como modelo os imperadores romanos, verdadeiros déspotas da antiguidade. Levados por essa mania de absolutismo, começaram a eliminar todas as autonomias inferiores, e se jogaram, com particular empenho, sobre a liberdade da Igreja. Desejavam transformá-la num instrumento para o governo de seus respectivos países, embora num âmbito próprio à força espiritual e, portanto, independente das funções do poder temporal.

Um fato de graves conseqüências…

Ora, Henrique VIII, a pretexto de legitimar seu divórcio, foi mais longe. Ao determinar a ruptura da igreja anglicana com Roma, teve por objetivo adquirir o mais pleno domínio sobre toda a Inglaterra, tornando-se, ao mesmo tempo, chefe do Estado e do poder espiritual.

Para se ter ideia das conseqüências desse fato na antiga “Ilha dos Santos”, basta tomarmos em consideração duas coisas.

Em primeiro lugar, o minguamento das Ordens religiosas, que começaram a se esvaziar em virtude da supressão do celibato. O rei, agora líder da igreja anglicana, permitiu que monges e freiras abandonassem seus conventos para contrair matrimônio, munidos de uma pequena dotação que o próprio monarca lhes concedia, a fim de iniciarem “a nova vida”. Semelhante disposição concernia também os padres seculares.

Em segundo lugar, os bens da Igreja Católica foram confiscados pelo monarca e, na sua maior parte, distribuídos entre os nobres — de tal sorte que, ainda hoje, muitas famílias residem em antigas abadias, transformadas em habitações particulares.

Ora, na velha e boa Inglaterra, os pobres viviam às custas da Igreja, sendo por Ela muito bem sustentados. A partir do momento em que foram fechadas e espoliadas as instituições eclesiásticas, os mendigos se viram privados daqueles meios de subsistência. Passaram, então, a confluir para Londres, no intuito de angariar esmolas junto às classes mais abastadas da capital britânica. Resultado, surgiram os primeiros decretos na igreja anglicana de repressão à mendicância, um dos tristes frutos do desaparecimento das instituições de caridade.

… que perduram até hoje

Não foram essas as únicas conseqüências do que se passou na Inglaterra do século XVI. Outras, igualmente graves, surgiram com o passar do tempo, e algumas delas se fazem sentir até os dias de hoje (**).

Com efeito, as sementes de protestantismo que o anglicanismo adotou, produziram os frutos de anarquia que lhe são próprios. Destes foi um prelúdio a Revolução que destituiu e decapitou o rei Carlos I.

De lá para cá, lentamente, a desagregação das instituições políticas inglesas se tem acentuado mais e mais. A luta entre o fator “ordem católica” e o fator “anarquia protestante” na doutrina anglicana, se projetou no terreno político. As duas tendências se têm combatido num confronto de todos os momentos, e é por elas que se explica a grandeza e a decadência da monarquia britânica.

Grandeza, porque nenhum domínio temporal está, hoje em dia, colocado mais alto. Firmado em um princípio, o poder do monarca inglês não se alicerça sobre um entusiasmo de momento, mas sobre um profundo amor da multidão a uma dinastia ligada à história do País.

Decadência, porque este poder, de aparência tão magnífico, é apenas um vestígio do que ele foi outrora, uma reminiscência histórica, nos quadros constitucionais ingleses. Poucos são, atualmente, os homens que recebem tantas reverências e manifestações de respeito quanto a Rainha da Inglaterra. E, no entanto, poucos são os chefes de Estado mais privados de reais atribuições na vida política de seu país do que ela…

São João Fisher Vigilância e serenidade diante da morte

Inabalável na Fé e na defesa da Verdade, São João Fisher, Arcebispo de Rochester, chegou ao seu último momento na prisão com placidez e esperança na bondade divina. Porém, antes de receber o golpe do verdugo, não confiou nas próprias forças e rogou as orações dos que presenciavam sua morte, para não fraquejar e ceder no derradeiro instante. Dr. Plinio nos apresenta e propõe esse admirável modelo de humildade e vigilância.

 

No  dia 22 de junho a Igreja celebra a memória de São João Fisher, juntamente com a de São Tomás Morus, ambos martirizados na Inglaterra por se recusarem a aderir à revolta de Henrique VIII contra o Papado.

“Deixai-me dormir mais uma hora…”

São João Fisher tinha sido capelão da mãe de Henrique VII e chanceler da universidade de Cambridge, antes de ser nomeado Bispo de Rochester. Opôs‑se ao divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão, bem como à constituição da igreja anglicana. Tendo negado a prestar o juramento exigido pelo rei aos bispos ingleses, foi detido e encarcerado na Torre de Londres. Durante sua reclusão, em maio de 1535, foi feito Cardeal pelo Sumo Pontífice Paulo III.

São João Fischer foi condenado a morrer por torturas, mas a pena lhe foi comutada para decapitação, devido ao muito debilitado estado de saúde em que se encontrava. Assim, nas primeiras horas do dia  22 de junho, o oficial da Torre encontrou‑se com o prisioneiro na cela, recordou-lhe que era idoso e não poderia suportar o regime do cárcere por longo tempo. Em seguida, declarou-lhe ser vontade do rei que a execução tivesse lugar naquela mesma manhã.

— Está bem — respondeu o santo —, se é essa a mensagem que me trazeis, não constituiu para mim novidade. Espero‑a todos os dias. Que horas são?

— Cerca de cinco.

— Para que horas foi marcada a minha partida deste mundo?

— Às dez.

— Então, agradeço‑vos que me deixeis dormir uma hora ou duas mais, pois não dormi muito essa noite, não por medo, mas por causa de minhas doenças e grande fraqueza.

Extremo cuidado com a saúde, a caminho do cadafalso

Ao voltar às nove horas, o oficial encontrou Fischer de pé e vestido. O santo Bispo tomou o novo Testamento e com grande consolação leu essas palavras de São João: Ora, a vida eterna é essa: Que te conheçam a ti como um só Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei sobre a Terra, acabei a obra que me deste para fazer; e agora, Pai, glorifica‑me junto de ti mesmo com aquela glória que tínheis em si antes que houvesse o mundo. Depois, pediu que lhe dessem seu manto forrado. Ao que lhe interrogou o oficial:

— Mas, meu senhor, por que haveis de ter um tal cuidado com vossa saúde, se vosso tempo está contado, e pouco mais tendes que uma hora de vida?

— Peço meu manto para me conservar aquecido até o momento da execução. Pois ainda que não me falte coragem quanto a morrer santamente, não quero, entretanto, comprometer minha saúde nem um minuto sequer.

Caminhou rumo ao cadafalso endireitando seu corpo tão magro e descarnado que parecia que a morte tinha tomado a forma de um homem. Sobre o patíbulo, com voz inteligível e clara pediu aos que assistiam a execução que rezassem por ele:

— Até agora nunca tive medo da morte; contudo, sou carne. E São Pedro, receando‑a, negou o Senhor três vezes. Ajudai‑me, pois, a que no instante preciso em que eu receba o golpe mortal, não ceda por fraqueza em nenhum ponto da Religião Católica.

Já no lugar do suplício lhe ofereceram o perdão por várias vezes, se quisesse dizer o que dele esperavam. Mas foi inabalável. Após o suplício, seu corpo ficou exposto, desnudo, durante todo o dia. Sua cabeça, espetada numa lança, foi posta na ponte de Londres. Quinze dias depois, como ainda parecesse viva e o povo começasse a acreditar num milagre, foi lançada ao Tâmisa.

Castigo que todo homem teme

Vemos aqui as reações de alma de um grande prelado às vésperas de seu martírio, o qual não oculta seu receios diante da morte.

Creio que, sem uma assistência da graça, ninguém pode dizer que não teme a morte, pois esta, de si, significa um castigo de Deus infligido aos homens por causa do pecado original. Ela é, portanto, de natureza a incutir medo. Não se pode saber que espécie de sofrimento a separação definitiva entre a alma e o corpo traz para quem morre, porém nos é dado conjeturar que se trata de uma dor profunda, mais ou menos inimaginável. Pois se a menor torção do menor osso do corpo humano pode ser penosa, que dizer dessa dilaceração pela qual a alma vai diminuindo sua influência sobre a carne até abandoná-la completamente?

Portanto, é normal que uma pessoa, ao considerar de frente essa realidade, tenha medo no supremo momento de enfrentá-la.

Se fosse só isso, ainda seria pouco. Na verdade, qualquer pessoa judiciosa que tenha presenciado a situação de um agonizante, sentiu medo da morte por uma razão mais profunda.

Lembro-me, por exemplo, de observar meu pai durante a agonia dele, e de fazer a seguinte reflexão: “Está colocado, a bem dizer, entre a eternidade e a Terra, e já perdeu completamente a consciência de tudo. Os fatos exteriores não lhe tocam. Porém, no mais recôndito de sua mente, não estará pensando em algo? Que formas de medo, de tentação, de provação, que consolações, alegrias, que auxílios uma alma pode sentir nesse momento?”

Mais uma vez, é compreensível que tal circunstância, repassada de incertezas, seja de molde a causar temores no homem.

Admirável tranqüilidade na hora da morte

Agora voltemos ao exemplo de São João Fisher, e consideremos até que ponto admirável esse santo levou a virtude da vigilância e do examinar-se a si próprio. Pois, afinal, ele recebe a notícia da morte com toda a serenidade e, em seguida, pede que lhe concedam mais duas horas de sono. É uma extraordinária despreocupação diante de sua partida iminente deste mundo: “Não dormi bem à noite, estou com sono, deixem-me repousar um pouco mais”.

E adormece na paz de sua alma, pois a sabe pronta para comparecer diante de Deus, e nos braços d’Ele repousa até o momento de se deitar para o descanso eterno. É, sem dúvida, uma impressionante manifestação de limpeza de consciência, como também a de um auxílio sobrenatural por onde ele teve essa tranqüilidade na última hora de sua vida.

Dali a pouco ele acorda, levanta‑se, prepara-se e se apresenta calmo ao oficial que vem buscá-lo.

Medo de ter medo

Dirigiu-se ao local do suplício e, ao pé do cadafalso sentiu que a fraqueza humana poderia falar mais alto. Ele teve medo de vir a ter medo, de perder algo daquele magnífico estado de alma em que se achava para enfrentar a morte. Então pediu que os presentes rezassem por ele.

Quanta razão tinha o santo nessa desconfiança de si mesmo! Pois ali, no patíbulo, sofreu uma longa insistência por parte de seus algozes que o queriam perverter e fazê-lo renegar a fé católica. Esse assédio no último momento não era gratuito: sabiam que se aquele homem aceitasse as propostas heréticas, seria um triunfo para a causa anglicana, e nada mais sedutor do que ter de escolher entre o dizer “sim” e a morte. Se ele aceitasse, sairia daquele cadafalso cercado de honras e aplausos. Naquela noite dormiria em algum palácio, no meio do conforto, e com alguns anos de vida regalada pela frente.

Porém, São João Fisher teve medo do próprio medo, receava uma tentação do demônio naquela hora, reconheceu que poderia cair, e por isso, praticando a virtude da vigilância recomendada pelo Divino Mestre, pediu a oração dos outros em seu favor. Sobretudo, deve ter implorado a intercessão de Maria Santíssima junto ao trono de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Permaneceu inabalável na sua fé, foi decapitado e assim recebeu a coroa do martírio.

Confiando em Nossa Senhora teremos forças para enfrentar a morte

Eis para nós, católicos, um modelo de como enfrentarmos o momento de nossa própria morte. Tenhamos esse espírito de vigilância e humildade manifestado por São João Fisher. Nunca imaginemos que, por sermos devotos de Maria Santíssima e praticarmos boas obras de apostolado, não seremos tentados nem fraquejaremos na última hora.

Devemos, sim, pedir a graça de sermos vigilantes sobre nós mesmos, a graça de resistir sempre à tentação quando esta se apresente, compreendendo que o espírito pode estar pronto, mas a carne é fraca. De modo especial peçamos a Nossa Senhora que nos assista com sua misericórdia no momento de deixarmos este mundo rumo à eternidade. Como nos recomenda a Santa Igreja, a graça de termos uma boa morte deve ser pedida com toda a insistência, pois não sabemos o que pode nos suceder no derradeiro instante de nossa vida.

Essas considerações não visam criar pânico nem um terror malsão. Pelo contrário, quando o homem confia em Nossa Senhora — e, por meio d’Ela, em Nosso Senhor —, ao mesmo tempo compreende como a morte é terrível, mas para ela caminha com serenidade. Porém, insisto, cumpre entender a necessidade de implorarmos amiúde essa confiança em Deus e esse auxílio sobrenatural do Céu, único remédio para evitarmos o terror malsão diante da morte.

Sejam esses os preciosos ensinamentos a colhermos do exemplo de São João Fisher, Bispo, Cardeal e mártir da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 21/6/1967)