Não permitais que me separe de Vós

Minha Mãe, eu sei que sou tal que, se for só por mim, acabo me separando de Vós. Mas sei que sois tão insondavelmente boa e poderosa que podeis impedir-me de me separar de Vós. Então, a minha confiança em ser fiel resulta, minha Mãe, essencialmente disto: Não permitais jamais que me separe de Vós.

Tenho certeza de que, como nunca se ouviu dizer que tendo alguém recorrido à vossa proteção, implorado o vosso auxílio fosse desamparado, essa minha súplica também não deixará de ser ouvida.

Plinio Corrêa de Oliveira (Composta em 12/6/1971)

Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)

Ação de presença de Dona Lucilia

A ação de presença de Dona Lucilia não era invasora e conquistadora, mas muito suave. Dr. Plinio sentia muito a sua presença no apartamento em que ela residiu por longo tempo, na Rua Alagoas. Quando ele ia ao seu escritório e se sentava numa cadeira de balanço que ela costumava usar, tinha a sensação de estar em seus braços, tal como em sua infância.

 

Uma das coisas mais difíceis de explicitar é a ação de presença. Há na ordem posta por Deus mil ações de presença. Por exemplo, o prédio velho do Êremo de São Bento(1). Dadas as ideias que eu tinha a respeito de São Bento de Núrsia, Patriarca dos monges do Ocidente, quando transpus os umbrais deste prédio pela primeira vez tive uma impressão singular, toda ela pessoal, e pensei o seguinte: “Mas, essa é a casa de São Bento! Só me falta encontrá-lo em qualquer canto”.

Exemplo de uma ação de presença

Essa é a mesma impressão que tenho até agora. Não há uma vez em que eu entre ali e não sinta uma verdadeira delícia, um verdadeiro regalo de minha alma. A minha velha admiração pelo espírito beneditino começou quando, meninote ainda, ouvi tocar os sinos do Mosteiro de São Bento, o famoso Cantabona, sério, grave, resoluto, indomável e harmonioso. Essa impressão perdura em mim.

Quando ouvi o Cantabona pela primeira vez, me veio a ideia seguinte, não com a precisão que estou dizendo agora, mas implicitamente era bem isto: certas almas têm internamente um timbre como os sinos. Eu até me lembro de ter lido um livro de poesia muito de segunda classe, pois estava doente e não tinha coisa melhor para folhear; não eram poesias imorais, mas uma coisa assim pseudo-literária. De repente, encontrei uma frase que dizia só isto:

“Sino, coração da Igreja; coração, sino da gente.  Um sente quando bate, outro bate quando sente.”

Esse poeta débil pegou bem essa analogia. Todo homem tem interiormente um sino. E eu me perguntava como seria a alma daquele do qual se poderia dizer que o sino do Mosteiro de São Bento era como o coração dele. Naturalmente a resposta é: São Bento!

Depois, tudo quanto li sobre São Bento – não foi muita coisa –, quanto peguei a respeito da Ordem Beneditina, frequentando o antigo Mosteiro de São Bento, dava-me esta impressão: algo que era semelhante ao toque do Cantabona.

Alguma coisa que se levantou em Núrsia, andou, passou também através de Cluny por glórias incríveis e por humilhações inenarráveis. Depois, o que foi a decadência da Ordem beneditina no “Ancien Régime” não tem palavras. No século XIX, Dom Guéranger realça a Ordem Beneditina, mas já os beneditinos que conheci na França, posteriormente, quão inferiores a Dom Guéranger… De repente, encontro em São Paulo essa afirmação. Isso é ação de presença. Como ela se exerce? É uma graça. Porém, como essa graça se torna presente, se faz sentir, não sabemos.

Há coisas que foram feitas para ficarem implícitas

Ora, se um prédio pode ter uma ação de presença, a “fortiori” os seres humanos. Porque, quer na ordem da natureza e, sobretudo, na ordem da graça, a presença de um ser humano é incomparavelmente maior do que a de um prédio. A graça pode estar presente num prédio como um jarro com flores. É uma coisa extrínseca ao prédio que alguém põe ali e ameniza, adorna o ambiente. Outra coisa inteiramente diferente é o modo pelo qual a graça habita na alma. Para usar uma comparação, claudicante como todas as comparações, tem algo de um enxerto que passa a viver uma vida nova na alma e que lhe dá um “élan” novo que a alma não tinha. Mas acabam convivendo no sentido mais íntimo da palavra, a pessoa passa a ter as duas vidas, natural e sobrenatural da graça, formando um só existir e um só ser.

Nessas condições, é claro que um Fundador possa tornar sensível a presença dos ideais de sua fundação, e a Providência tem desígnios especiais com esse ou aquele homem. Esta é a ação de presença. Entretanto, como explicitá-la? Como descrever o indescritível? Até vou dizer mais, é desse gênero de coisas muito imponderáveis que, se houvesse alguém capaz de dizer completamente o que era, empobreceria o tema, porque são coisas feitas para serem vistas no imponderável. A linguagem explícita tem um valor muito grande, mas há coisas que foram feitas para ficarem implícitas. E explicitar certas implicitudes seria o mesmo que acender dentro de uma catedral um farol enorme que tornasse tudo claríssimo. Uma catedral pede penumbras.

Há pouco vi um vitral e achei-o muito bonito. Mas não teria essa impressão se não houvesse penumbra no ambiente. Em nossas almas há assim não sombras, mas penumbras, e estas fazem parte do convívio. É até onde eu sei ir neste tema. A orla do grande mar da ação de presença é esta. Para além disso são vagalhões indecisos.

Isenta de superficialidade de alma

Eu pensava em mamãe enquanto fazia estes comentários. Ela, chamada para aquele ambiente da vida privada na qual viveu sua longa existência, não tinha essas ações de presença invasoras e conquistadoras. Possuía, pelo contrário, uma ação de presença muito suave de quem ligeiramente diz isto: “Se queres entrar nessa presença, há algo para ti. Se não queres, passa que eu nem te detenho, nem te peço, nem te reclamo nada, te olho com benevolência e rezo por ti. Podes passar…” Mais nada.

Era preciso que uma pessoa saísse de um certo estado de alma por onde se podia olhá-la como uma senhora qualquer, porque quem quisesse fazer isso era perfeitamente fácil, não havendo da parte dela um gesto, nem ideia de se impor.

Para mim, como eu a senti, era uma presença ao mesmo tempo riquíssima de expressão no primeiro contato, mas proporcionava outras impressões mais profundas, mais elevadas, mais ricas à medida que se ia caminhando para a frente de um modo insondável, em que a mesma impressão originária se acentuava. Mas se acentuando, revelava belezas novas; e, revelando belezas novas, ia atraindo e ensinando mais.

Era naturalmente uma presença muito variada e sempre muito expressiva para quem quisesse prestar atenção. Havia uma coisa que ela não tinha: superficialidade de alma. Aquele estado de espírito por onde se pega tudo assim pela rama, isso ela não possuía; nunca a peguei numa situação dessas. Se tivesse acontecido, o meu amor a ela decrescia um tanto. E se fosse crescente, empalidecia.

Discrição, respeito, consideração e humildade

Quando ela era mais moça, fazia bolos e doces, um deles chamado pavê, com biscoitos e chocolates. É um doce gostoso, mas corrente. Porém o bolo super-ornado, recoberto de glacê, umas balazinhas cor prata, umas guirlandas formando um desenho, desconfio que para cada aniversário ela compunha um traçado novo.

Tendo ficado mais idosa, de repente o bolo desapareceu. Eu fingi que não notei. Vi que as forças não davam mais e que ela mesma queria fazer, não deixava para a empregada.

Eu me lembro do jeito dela na copa de nossa casa, na qual há uma espécie de armarinhos, onde preparava o bolo. Acho que não colocava no forno, mas a massa ela mesma fazia. Ela ficava ali em pé, preparando, industriosa, mais para cá, mais para lá, ajeita ali…

Ela estava adiantada em catarata, e notava-se que tinha uma certa dificuldade de ver, mas mexia para cá, mexia para lá, empenhada. Era o pavê ideal dela.

Eu olhava só de relance para deixá-la inteiramente à vontade. Depois ficava trabalhando, rezando, ou fazendo qualquer coisa, mas vendo o viver dela. Em geral isso saía quase à última hora, e ela sempre um pouco apressada. Por sofrer do fígado, precisava descansar em certa posição. Então ia nuns passozinhos miúdos, rápidos, para o quarto dela a fim de ter um grande repouso. Depois se vestia, arranjava-se, iam chegando as primeiras pessoas da família, algum amigo, e começava a festa de aniversário. Quando chegava a hora de passar para a sala de visitas, ela estava conversando. Aí eu prestava atenção na preocupação dela – ultra-disfarçada – na hora em que entrassem os doces, para ver se eu comia bastante daquele que ela fizera. Se eu tivesse comido muito era porque o doce estava bem feito. Se comesse pouco, ela tinha fracassado… O doce era sempre bem feito.

Mas ela me conhecia tão, tão bem, que eu nunca fiz essa jogada – alguém julgaria acertada – de comer mais do que tinha vontade para agradá-la, porque ela sentia perfeitamente se eu estava gostando ou não do doce. Comia tanto quanto queria, mas eu via que ela olhava um pouco de relance o doce para ver se, cortado, estava com o aspecto que ela queria; depois um relance nos meus olhos para ver o que eu estava achando.

E se eu não dissesse nada, ela também nada dizia. Era, portanto, uma espécie de discrição e respeito pelo outro, ainda que fosse filho, consideração e humildade. Quando ela prestava seu serviço, se retraía, não pedia e não impunha mais nada, ela tinha atendido.

Saudades e esperança de reencontrá-la

Ora, o que estou dizendo aqui não é nada. A profundidade, o modo de doçura que havia em mamãe, e algo por onde ela, no fundo, reportava isso a Deus é uma coisa que precisava ter sido vista. Quem vê o Quadrinho(2) tem uma ideia. Era assim o dia inteiro, sob as mais variadas formas, constituindo um tipo de ação de presença inenarrável, que ainda está na casa dela.

Pelas escrituras públicas, sou o dono do imóvel, mas para mim aquela é a casa de Dona Lucilia, eu me regalo que seja casa dela. Para mim o charme da casa é ser a casa de Dona Lucilia, e tenho a impressão de que ela está presente lá. De que jeito, de que modo, também não sei. Mas quando se atende no telefone: “Casa de Dr. Plinio Corrêa de Oliveira!”, eu teria vontade de retificar e dizer: “Não! Casa de Dona Lucilia Corrêa de Oliveira, porque é a casa dela”.

Mamãe viajou raras vezes e saía pouco à rua. Quando era mais moça naturalmente saía um pouco mais, como todo mundo. Nas raras vezes em que ela viajava, eu ainda morava em casa de minha avó. Era dessas casas patriarcais com muita gente morando. Quando ela viajava, eu tinha a impressão de que a casa inteira estava vazia e que nada era nada. Podia ter gente, podia não ter gente: mamãe não estava, a casa estava vazia.

Pelo contrário, quando passamos a morar no apartamento da Rua Alagoas – só ela, eu e meu pai, mas ele viajava muito para negócios e, portanto, durante a maior parte do tempo estávamos apenas nós dois –, e eu viajava deixando-a só, tinha a impressão de que o melhor de mim mesmo ficara em casa rezando, e era a parte mais banal de mim que tinha saído. De maneira que, quando voltava para casa, eu tinha a impressão de que me encontrava com o melhor de mim mesmo e mais algo, que era a casa habitada por ela.

É o que ainda sinto quando volto para casa. Vou jantar, rezo as orações que mamãe rezava e sempre me lembro do lugar onde ela ficava durante o jantar, a cabeceira da mesa. No almoço ela sentava-se em frente a uma janela que dá para a Praça Buenos Aires, para ver a vegetação. Então não era a cabeceira, mas um lado da mesa. Entretanto, para fazer o gosto dela, eu concordava inteiramente.

Sempre que me sento junto à mesa, lembro-me dela, de como ela poria o braço… Mas com esta circunstância: tenho ainda a impressão de que ela está presente e que eu me encontro, de algum modo, com o melhor de mim mesmo quando estou na casa dela. A tal ponto que eu sinto mais a presença dela em casa do que junto à sua sepultura. E sinto a presença dela intensamente no quarto em que mamãe dormia, e também no resto da residência, porque ela habitava tão densa e tão ricamente a casa.

Inclusive no meu escritório. Quando me sento numa cadeira de balanço na qual mamãe costumava sentar-se, tenho a sensação de que seria como quando eu era criança: ela me punha nos braços dela. E assim são minhas saudades, a minha admiração e a minha esperança de reencontrá-la.

Um raio de luz lilás e prata

Outro dia passei pela Rua Vieira de Carvalho(3) onde nós moramos por alguns anos, no quarto andar de um prédio. Nossa sede ocupava o sexto e o sétimo andares, e todas as noites eu ia com membros de nosso Movimento para um restaurante chamado Fasano. Não sei de que maneira ela, que não ouvia bem, intuía mais ou menos quando descíamos para ir ao restaurante.

Após a refeição, ficávamos ainda conversando durante algum tempo na calçada. Ao sair do restaurante, eu batia naturalmente os olhos no prédio em frente. Evidentemente olhava para o quarto andar, que possuía uma janela quadriculada, e a via sempre no mesmo quadrículo, exatamente como está no Quadrinho, olhando. E todo o tempo em que ficávamos ali fora, às vezes era muito, eu via aquela cabecinha olhando. Pela discrição dela, não fazia nenhum sinal, mas estava profundamente entretida. Quando nos despedíamos, ela percebia que eu ia atravessar a rua e subir.

Então, ela não ia abrir a porta, mas ficava por ali rezando – a imagem do Coração de Jesus estava perto da janela. Eu abria a porta, entrava e ia falar com ela. Mamãe, às vezes, fazia algum comentário: “Como esse ou aquele te prendeu longamente…”, mas sem rabugice. “Em certa altura, tomei um susto porque passou um automóvel e quase pegou um de vocês…” Eram coisas assim.

O Quadrinho me dá a impressão exata daquela que eu via na janela. Era aquele raio de luz lilás e prata que atravessava a Rua Vieira de Carvalho bem larga, com umas árvores magníficas, mas que não atrapalhavam o caminho, e chegava até mim, que sorvia aquilo.

Se me fosse dado voltar ao quarto andar eu voltaria? Não sei. Não é melhor ficar com a imagem que tenho na memória? Nós mudamos de residência, o Fasano fechou, o trânsito se tornou torrencial e inundou aquilo. Eu tenho o Quadrinho e a Consolação. Mais do que isso, eu tenho a esperança do Céu.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 25/8/1980 e 20/11/1980)
Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)

1) Localizado em São Paulo, bairro Jardim São Bento.
2) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base nas últimas fotografias de Dona Lucilia. Cf. Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.
3) Situada no Centro velho de São Paulo.

Santa Maria Madalena – Contemplação unida à penitência

Depois de arrepender-se, Santa Maria Madalena passou a representar claramente duas virtudes unidas: a contemplação e a penitência.

Ela representou a contemplação, por distinção com sua irmã, no famoso episódio em que Nosso Senhor disse a Marta: “Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada” (Lc 10, 42). Então, ela passou a representar a pura contemplação, não tanto unida à vida ativa, mas enquanto estado inteiramente contemplativo.

Ao mesmo tempo, por seu arrependimento enorme e sua fidelidade ao pé da Cruz, e pelo fato de ter sido a primeira a ter notícia da Ressurreição de Nosso Senhor, ela não representou apenas a contemplação, mas a penitência na sua glória, no estado do maior perdão, da maior intimidade com o Divino Mestre. A tal ponto que, com o exemplo de sua vida e de outros Santos, alguns teólogos pretenderam afirmar que o estado de penitência – uma penitência séria, profunda – é ainda mais bonito que o de inocência.

Plinio Corrêa de Olveira (Extraído de conferência de 22/7/1965)

Revista Dr Plinio 256 (Julho de 2019)

São Pedro e São Paulo – Arautos de Nosso Senhor Jesus Cristo

As figuras dos grandes Apóstolos Pedro e Paulo, como as retrata a iconografia católica, sugere a Dr. Plinio os comentários transcritos a seguir, pontuados de devoção e enlevo por esses baluartes da Igreja, os quais — juntos — confessaram com seu martírio a fé inabalável no Filho de Deus.

 

Certa feita, mostraram-me a fotografia de uma iluminura que representava o enterro de Nossa Senhora. Em linguagem piedosa, dá-se o nome de “dormição” (dormitio em latim) ao passamento de Maria Santíssima, a fim de significar que sua provável morte foi como um doce e aprazível sono. Seja como for, a ilustração apresenta o sepultamento da Mãe de Deus, cujo caixão é conduzido pelos Apóstolos, de modo saliente por São Pedro e São Paulo. E sobre estes cabe um comentário.

Vigor e venerabilidade próprios ao chefe da Igreja

São Pedro aparece como um ancião venerável, resoluto, de barba branca, abundante, caudalosa, voltada para a frente, indicando vigor e mais hombridade do que se fosse direcionada para baixo. O pintor o imaginou calvo, com uma moldura de cabelos formando tufos copiosos nas laterais do rosto. Tudo nele indica vitalidade, não possuindo as características rugas da velhice. Sua face é quase corada, rósea. É o grande São Pedro que ainda deverá lutar tanto pela Igreja Católica. Assim, à robustez da juventude ele alia a venerabilidade da idade madura, cujo aspecto respeitável é bem expresso pelo artista, dando-lhe o tônus conveniente ao primeiro Papa, chefe da Igreja.

Resolução e força de São Paulo

São Paulo, por sua vez, parece ser bem mais moço que São Pedro. Forte, sua fisionomia transpira resolução: o que ele deseja fazer, executa. Percebe-se nele o homem que percorrerá as regiões em torno do Mediterrâneo, enfrentando imensos perigos. Por exemplo, certa vez, para fugir dos que o perseguiam, ele desceu de um sobrado por uma cesta amarrada a uma corda, e se afastou correndo a fim de não ser capturado e morto. Noutra circunstância, estando num navio, sobreveio uma tempestade que fustigou a embarcação e os tripulantes durante vários dias, até naufragarem perto de uma ilha à qual todos chegaram sãos e salvos.

No martírio de São Pedro, a homenagem ao Papado

Os dois Apóstolos são vistos inundados de glória, participando do triunfo da Santíssima Virgem e, sobretudo, empenhados em exaltá-La. Sabe-se que esses dois atletas, arautos de Nosso Senhor Jesus Cristo, padecerão juntos o martírio e morrerão no mesmo dia.

Presos pelos romanos pagãos, sofreram diversos suplícios. São Pedro foi crucificado de cabeça para baixo, o que devia significar um doloroso processo de morte, pois o sangue, atraído pela lei da gravidade, aflui ao cérebro e não tarda em produzir derrame ou apoplexia. A crucifixão poderia ser feita por meio de cordas que amarravam o corpo à cruz, ou por cravos que pregavam no madeiro as mãos e os pés dos condenados, como sucedeu com Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os que crucificavam o Príncipe dos Apóstolos não tinham ideia de quanto, procedendo daquele modo, prestavam homenagem ao Papado. Disse o Divino Mestre ao primeiro Papa: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18).

Para São Paulo, a celeste coroa de justiça

De outro lado, sendo cidadão romano, São Paulo pereceria pela espada. Prestes a ser decapitado, talvez tenha se lembrado de suas magníficas palavras, as quais me comprazo em recordar por muito admirá-las: “Bonum certamen certavi, cursum consummavi” (2Tm 4, 7) — “combati o bom combate, completei o circuito da carreira inteira que eu deveria percorrer”. Era uma alusão aos que disputavam corridas no circo romano. E acrescenta: “Guardei a fé. Resta-me agora receber a coroa de justiça que o Senhor justo juiz, me dará” (2Tm 4, 7-8).

Vale notar a extrema beleza do modo pelo qual a Providência guia as almas. São Paulo revela aqui a certeza de que ele não tem perdão a pedir, porque já está perdoado de tudo, tendo levado uma vida ilibada após a sua conversão. Nisto ele demonstra uma extraordinária segurança. Em linguagem contemporânea, dir-se-ia que São Paulo lança um “cheque” para o Céu: Resta-me agora receber a coroa da justiça. Senhor, Vós prometestes vossa glória a quem combatesse o bom combate e percorresse a carreira inteira que deveria percorrer. Eu o fiz. Agora, dai-me o vosso prêmio!”

Difícil não apreciar este modo varonil de se exprimir, próprio de um homem de fé que crê em Nosso Senhor Jesus Cristo, na Santa Igreja, e por isso não tem dúvida alguma de que será recompensado.

O carrasco cortou-lhe a cabeça e esta — segundo uma bonita lenda — ao cair no chão saltou três vezes. Em cada lugar do solo tocado pela venerável cabeça do Apóstolo teria nascido uma fonte. Donde o local em que houve este milagre ser chamado de “tre fontane”: as três fontes.

Objetos de inimaginável perdão

Frisamos o que há de imensamente belo no trato da Providência com os homens. Tal sobressai quando uma pessoa possui grande vocação e, apesar de suas infidelidades, a graça continua a lhe fazer insistências extraordinárias. Pode a alma se encontrar numa lamentável situação, mas o chamado de Deus conserva todo o frescor primitivo. Disso constitui a vida dos dois Apóstolos excelente exemplo.

O olhar de Jesus para São Pedro, durante a Paixão, é característica manifestação desse misericordioso procedimento divino. O Redentor teve pena dele, fitou-o e São Pedro, então receoso e pusilânime, passou a ser outro.

São Paulo, o Apóstolo das Gentes, confessa ter entrado para o colégio apostólico como um ente abortivo, depois de ter perseguido brutalmente a Igreja. Chegou a ser cúmplice do martírio de Santo Estevão, tendo vigiado as vestes daqueles que apedrejaram o primeiro mártir do cristianismo (AT 7, 58; 8, 1). Ora, em determinado momento este homem é convertido de modo extraordinário e levado por Nosso Senhor ao deserto, onde recebe graças que não foram concedidas a nenhum outro apóstolo. Quer dizer, Jesus o chamou do fundo da ignomínia e lhe deu aquele dom incomparável.

É uma tão sublime lição em meio a tantos perdões, e um tal perdão ao lado de tantas lições, que nossa pobre cogitação não alcança medi-los…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  em 20/7/1988 e 22/11/1991)

Nossa Senhora da Luz Profética

A luz profética é um discernimento por onde vemos, e como que apalpamos, as graças que Nossa Senhora nos concede, e cuja característica é fazer com que passem as inseguranças, os egoísmos, os subjetivismos, os langores. Enquanto essa luz brilha, tudo isso acaba.

É como o Sol: quando ele se põe, as aves noturnas, os bichos feios, os animais agressivos começam a se mover dentro da floresta. Quando o Sol se levanta, eles procuram suas tocas, seus ninhos, buracos e somem. Esse sol é a luz profética.

Nossa Senhora da Luz Profética é Maria Santíssima enquanto resplandecente dessa luz, de um modo inenarrável! Ela, de vez em quando, obtém para nós raios dessa luz para nos fazer completamente outros.

Nada no mundo vale tanto quanto esta luz. Com ela tudo se resolve; sem ela, tudo fica difícil.

Nossa Senhora nos dá a entender o seguinte: “Meus filhos, essa é uma luz que vem do Céu, é a luz do meu Reino. Peçam-na, acreditem nela e deixem-se transformar por ela”.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 16/9/1974)

Liberdade e igualdade, segundo a Doutrina Católica

A verdadeira liberdade não consiste em fazer o que nos apetece, mas na harmonia interior por onde a razão conhece a verdade e o bem, a vontade adere ao que lhe mostra a razão, e a sensibilidade submete-se ao que a inteligência e a vontade lhe indicam. Por natureza, os homens são iguais e todos têm os mesmos direitos e deveres essenciais. Entretanto, são desiguais quanto aos acidentes que podem ser de grande relevância.

 

Vínhamos tratando a respeito do socialismo, da democracia, do liberalismo e o papel do princípio de subsidiariedade na sociedade(1). Faltava-nos considerar no que consiste a verdadeira liberdade, segundo o ensinamento da Igreja e, ao se tratar da igualdade, discorrer sobre a aristocracia de sangue, de cultura e de trabalho e sua legitimidade dentro da democracia. Então vamos abordar essas matérias.

Os Mandamentos asseguram a liberdade do homem

No sentido comum da palavra, é livre quem faz o que quer. Por exemplo, quando alguém recebe uma visita e diz: “Você aqui esteja à vontade, tem toda a liberdade de dispor do que quiser”, isto indica que o visitante pode satisfazer todos os desejos. Então, se ele quiser pegar um objeto para examinar, sentar-se num quarto ou noutro para descansar, pode fazê-lo sem restrições. Nesse sentido, a liberdade é a faculdade de satisfazer os seus desejos.

Segundo essa acepção, deveríamos concluir que os Mandamentos da Lei de Deus limitam a nossa liberdade, porque todo homem, por ser concebido no pecado original, tem muitas tendências más, e se há Mandamentos que proíbem de atender a essas inclinações eles limitam a liberdade do homem.

Ora, a Igreja afirma precisamente o contrário: os Mandamentos divinos garantem, asseguram a liberdade do homem. Então, para ela a liberdade não tem o sentido atribuído pela linguagem comum? O que é, pois, a liberdade conforme a Igreja?

Em uma pessoa que conheça os Dez Mandamentos e, portanto, saiba que deve proceder de um determinado modo, mas tem uma inclinação de fazer alguma coisa oposta aos Mandamentos, a sua vontade oscila: ora ela quer cumprir o seu dever, ora deseja satisfazer a sua má tendência. Nessa oscilação, ao ter a faculdade de fixar a sua vontade onde quiser, nisto ela é livre. Esta é uma primeira noção de liberdade.

Não é, portanto, como um bicho que apenas segue seus instintos. Isso nem sequer merece o título de liberdade. Na liberdade do homem intervêm dois fatores que o animal não possui: a inteligência e a vontade. Pela inteligência, o ser humano compreende que deve fazer uma coisa, e a vontade leva-o a querer aquilo. Entretanto, ele pode vacilar, acabando por fixar seu ato de vontade ora numa coisa, ora noutra, ou em algo que ele segue a vida inteira, pouco importa. Nesse caso ele foi livre, pois, diante de uma alternativa, escolheu o que quis.

A liberdade dos Anjos  

Então, a liberdade é a faculdade que o homem tem de, entre a verdade e o erro, o bem e o mal, poder livremente optar pela verdade e pelo bem. Trata-se de um dom muito alto de Deus, porque é recusando o erro e o mal que o homem pratica, torna efetivo seu ato de amor e de fidelidade ao Criador, e merece por esta forma o Céu. De maneira que sempre que nós temos oportunidade de exercer este ato, devemos agradecer a Deus esta faculdade e precisamos exercê-la de acordo com a Lei divina.

Há, entretanto, um nível superior ao qual corresponde um conceito mais alto de liberdade. Por exemplo, a liberdade dos Anjos no Céu, os quais só querem a verdade, somente amam o bem e não sentem nenhum pendor para o erro e para o mal; eles fazem diretamente aquilo que sua inteligência manda, sem qualquer inclinação má.

Dir-se-ia, à primeira vista, que tendo o homem a possibilidade de optar diante de inclinações opostas, ele é mais livre do que o Anjo que, não estando sujeito a essas tendências, ruma diretamente para Deus. Vou demonstrar como isso é uma ilusão.

Nossa Senhora era muito mais livre do que cada um de nós

Considerem um homem habituado a fumar, e que acha isso extremamente agradável, ao qual o médico diz: “Você deve parar de fumar!” Esse indivíduo toma um choque ao pensar na violência que terá de fazer sobre si mesmo para deixar esse hábito. Cada vez que ele tenha vontade de fumar, é obrigado a travar aquela luta. Sem dúvida, o homem exercerá a sua liberdade dizendo “não” para o desejo de fumar.

Porém se ele, em certo dia, põe-se diante de uma imagem de Nossa Senhora e pede a Ela que lhe tire a vontade de fumar e, sendo atendido, não tem mais aquela paixão que o arrasta quase animalescamente para o fumo, neste caso ele será ainda mais livre do que na situação anterior. Porque no primeiro caso o homem quer parar de fumar, sente uma força contrária à qual pode resistir, mas isso é para ele um embaraço. No segundo caso, não sentindo mais esse embaraço, ele vai inteiro para o que quer e, portanto, é maior sua liberdade.

Quer dizer, aquilo que constitui um obstáculo para a vontade seguir os ditames da inteligência diminui a nossa liberdade. Se nos libertamos desse obstáculo, nossa liberdade aumenta.

Temos, então, uma noção mais elevada e perfeita da liberdade, que é o conceito católico: a faculdade que o homem tem de agir de acordo com sua razão, e querer aquilo que deve querer. A adesão da sensibilidade a isso é a plenitude da liberdade.

Então, Nossa Senhora, concebida sem pecado original e, por isso, não tendo nenhuma inclinação para o mal, nenhuma paixão desregrada, era evidentemente muito mais livre do que um de nós, porque temos muitas inclinações e paixões que constituem entraves para a verdadeira via, que é o cumprimento da vontade de Deus de acordo com o ditame da nossa razão.

Liberdade: harmonia interior entre a verdade e o bem

A verdadeira liberdade, portanto, não está em fazer qualquer coisa que nos apetece, mas consiste nessa harmonia interior por onde a razão vê a verdade e o bem; a vontade, feita para seguir a verdade e o bem, adere ao que lhe mostra a razão; e a sensibilidade submete-se ao que a inteligência e a vontade lhe indicam. Esta é a perfeita ordem dentro do homem, que o torna verdadeiramente livre.

Assim, quando o homem hesita entre o bem e o mal, sua liberdade, embora exista, já está um tanto diminuída. Ao capitular e seguir o mal, ele perde a sua liberdade. É nesse sentido que Nosso Senhor disse no Evangelho: “A verdade vos tornará livres” (Jo 8, 32); porque quem viu e aceitou a verdade derrubou o primeiro obstáculo.

Por fim, em Deus Nosso Senhor, sendo perfeitíssimo, não pode haver a menor inclinação para o mal, nenhuma falha, Ele é a própria Verdade e o Bem. Assim, a liberdade de Deus é a maior de todas, abaixo da qual está a liberdade dos filhos de Deus, a nossa liberdade, pela qual nós também aderimos à verdadeira Igreja e a seguimos. Eis o verdadeiro conceito de liberdade.

A confirmação em graça é a liberdade completa 

A Doutrina Católica ensina que, depois do pecado original, o homem se tornou tão propenso ao mal que pelo simples recurso de sua natureza ele não é capaz de praticar duravelmente todos os Mandamentos. Mas por um auxílio de Deus, um dom sobrenatural criado, que é a graça, o homem tem um suplemento de forças por onde é capaz de ver a verdade inteira e de praticar todos os Mandamentos, tornando-se assim menos dominado pelo mal e pelo erro, ou seja, por satanás, do qual todos os homens ficaram escravos depois do pecado original, mas foram resgatados pela Redenção infinitamente preciosa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A graça, portanto, aumenta a nossa liberdade. O que é a confirmação em graça? É uma graça tão grande que a pessoa já não tem mais nenhuma inclinação para o pecado mortal. De maneira que ela nesse estado conseguiu a liberdade completa. É como a alma da pessoa que quando morre vai para o Céu. Ela no Paraíso está confirmada em graça, quer dizer, nunca mais pecará porque não tem nenhum entrave à sua liberdade.

Então, vemos aqui um modo completamente diferente de considerar a liberdade. Se um de nós detivesse autoridade, por exemplo, um cargo governamental ou policial eminente, mandaria tirar todos os cartazes imorais de propaganda comercial que existem pela cidade.

Alguém diria: isso é contra a liberdade. Nós responderíamos: não, é o contrário, defende a liberdade. Há uma porção de pessoas que querem ser castas e a quem esses cartazes agridem, despertando uma paixão tendente a arrastá-las para o mal. Sem dúvida, a pessoa só pecará se quiser, mas a sua liberdade de não pecar fica diminuída. Embora ela tenha culpa, há um peso que aquela sugestão má pode exercer sobre a imaginação, arrastando a pessoa para o pecado.

Então, acabar com os cartazes e toda espécie de propaganda da imoralidade defende e aumenta a liberdade. Este é o verdadeiro conceito de liberdade.

Uma concepção errada a respeito da liberdade

No campo político, os dois conceitos de liberdade projetam por sua vez uma diferença enorme nas concepções, porque o liberalismo político faz consistir a liberdade em que a lei permita aos cidadãos fazerem, o mais possível, as coisas agradáveis. Segundo essa concepção, propagar o erro e o mal é liberdade. Nós, católicos, não somos inimigos da liberdade, mas sim daquilo que os liberais costumam chamar de liberdade, porém na realidade é libertinagem, isto é, a deformação da autêntica liberdade.

Poder-se-ia objetar: Está bem, mas acontece que os homens se enganam facilmente. Como alguém pode dizer “esta é a verdade” e errar, o chefe de Estado não pode se enganar sobre a verdade?

A resposta é fácil: A Fé Católica Apostólica Romana é demonstrável racionalmente como sendo verdadeira. Pela graça nós aderimos ao que nossa razão nos mostra e fazemos um ato de Fé: “Esta é a Igreja verdadeira.” Ora, a Igreja não poderia ser verdadeira se não fosse infalível em seu ensinamento, ou seja, se a autoridade do Papa não estivesse protegida pelo Espírito Santo, de maneira a não cair em erro quando ensinar ex-cátedra e de acordo com condições conhecidas.

Conclusão: os homens podem cair em erro, mas a Igreja não. E quem segue o Magistério multissecular da Igreja também não cai em erro.

Liberdade e autoridade

Outro equívoco em relação à liberdade diz respeito à autoridade. Muita gente julga, por exemplo, que a polícia atrapalha a liberdade da população, porque captura os bandidos e os leva à prisão. De fato, ninguém seria livre de circular nas ruas se não fosse a polícia.

A autoridade – não só a da Igreja, mas toda autoridade legítima –, quando se exerce no campo que lhe é próprio, não viola, mas garante a liberdade. Portanto, entre autoridade e liberdade não há um conflito. O melhor apoio para a liberdade é a autoridade.

Uma objeção seria: Sendo assim, então o Estado socialista e, mais ainda, o comunista são supremamente livres, porque como a autoridade manda em todo mundo, a liberdade existe para todos.

A resposta é: Não, pois neste caso a autoridade saiu da esfera que lhe é própria. O campo próprio da autoridade é aquele no qual ela se exerce sempre que necessário, de maneira a completar em algo a liberdade de quem não tem meios para exercer uma determinada tarefa por si mesmo. O princípio de subsidiariedade circunscreve o exercício da autoridade harmonicamente.

Hierarquia de bens, condicionada aos fins do ser humano

Outro problema que se põe é o da liberdade da escolha entre diferentes graus de bem.

Absolutamente falando, diante dos diversos graus de bem o homem deve sempre preferir o maior. De maneira que quanto mais aderir ao bem maior, tanto mais ele é livre. Contudo, atendendo a certas circunstâncias, nem sempre o bem maior é aquele que deve ser escolhido ou feito no momento. Por aí intervém uma espécie de carrilhão de jogos de bens, com importâncias maiores ou menores, que se devem considerar.

Por exemplo, qual é o bem maior: rezar numa igreja ou comer? Absolutamente falando é rezar numa igreja; mas na hora de jantar, o bem maior é comer, porque Deus quer que eu conserve minha vida, e isso não farei sem alimentos. Preciso ter uma hora para alimentar-me. Nessa hora, o que é menos bom absolutamente falando, dadas as circunstâncias torna-se para mim um dever.

Há, portanto, toda uma hierarquia de bens condicionada aos fins do ser humano. O homem tem um fim celeste e um terreno, mas este é destinado para se conseguir aquele. Por isso, às vezes tenho que fazer uma coisa menos boa – fim terreno – para obter depois o melhor, o mais alto, que é o fim celeste.

Os bens, em geral, se relacionam à maneira de meios, uns para alcançar os outros. Assim, às vezes temos que buscar primeiro um bem menor que é o meio para chegarmos ao maior. Aí está a hierarquia.

Evidentemente isso não se aplica ao mal moral. Não se pode fazer um mal menor para evitar um maior. Por exemplo, não posso caluniar alguém para impedir que eu seja preso, nem cometer um pecado para obter uma determinada vantagem, porque em matéria de pecado não há tolerância. A ação pecaminosa é contrária a Deus e, como tal, não pode ser praticada.

Os homens são iguais em essência, mas desiguais nos acidentes

Passemos a tratar a respeito da igualdade.

Se tomarmos vários objetos fabricados em série, que acabaram de sair da fábrica, e os analisarmos com cuidado, embora à primeira vista pareçam idênticos, veremos que em alguns pormenores serão diferentes uns dos outros. Porque não é possível uma igualdade completa entre dois seres, mesmo sendo eles da mesma natureza.

Por vezes a desigualdade reside nos acidentes, enquanto que na essência há uma igualdade. Entretanto, os acidentes têm muita importância, principalmente se consideramos a natureza humana.

Por natureza, os homens são iguais e a todos competem os mesmos direitos e deveres essenciais. Entretanto, as diferenças acidentais entre dois homens podem ser de uma grande relevância.

Por exemplo, um soldado pode ser um herói de guerra, mas não sabe dirigir uma batalha; um general sabe. Foi ganha a batalha, e o general teve um papel enorme na vitória. O soldado, por sua vez, serviu de ordenança para o general durante a batalha: trouxe água, apontou lápis, espantou um gato que ia entrar na tenda do general, este pediu-lhe para pegar um lenço, ele o trouxe, etc. Ambos concorreram para ganhar a batalha, porém de modos muito diferentes. Na hora do triunfo, poderíamos imaginar as tropas passando e o povo aclamando, primeiro o general e depois o porta-lenço do general? “Viva, trouxe o lenço!” É uma ação comum, passível de ser praticada por qualquer pessoa, não supõe méritos nem dons especiais. Portanto, não se aplaude, não se faz uma apoteose para algo tão comum.

Consequência: para o general aplausos; ao passar sob o arco do triunfo, a multidão o ovaciona, depois é levado até a casa dele, onde recebe visitas de personalidades importantes. O soldado é esperado pela sua família, que o leva em uma charrete e vão comer uma feijoada em casa, na hipótese de a cena se passar no Brasil. É natural. Trata-se de um bom soldado que prestou seu serviço, um homem honesto, digno de toda a consideração que se tem aos homens comuns honestos.

É preciso tirar proveito dos dotes recebidos de Deus

Deus criou os homens com capacidades desiguais, por onde, se eles as exercerem, uns estarão muito mais propensos a receber grande galardão, honra, dinheiro, do que outros.

Recentemente eu estava vendo a fotografia da residência onde nasceu Winston Churchill, o famoso primeiro ministro inglês durante a II Guerra Mundial. É o lindo Castelo de Blenheim. O Rei da Inglaterra deu esse castelo a John Churchill, primeiro Duque de Marlborough, porque ele tinha vencido uma guerra para aquele país. E o que o monarca terá concedido para o soldado que combateu? Talvez uma condecoraçãozinha. Está muito bem, de acordo com a justiça, é o normal.

Essa desigualdade existe porque a Divina Providência assim promoveu e o homem tira o devido proveito dos dotes recebidos. Não basta Deus ter dado, é preciso que o homem saiba tirar proveito. Se alguém é muito inteligente, porém nunca estudou, e outro é menos inteligente, mas se aplicou nos estudos, este progredirá mais do que o anterior, é claro. O que ficou para trás será um contador de anedotas no botequim; o estudioso tornar-se-á professor de uma universidade. É muito diferente ser a glória de um botequim e a glória de uma universidade. Um tirou proveito do que Deus lhe deu, o outro não.

Portanto, essa desigualdade é nativa, mas por nossos meios podemos ainda nos colocar mais alto pelo aproveitamento daquilo que Deus nos deu, seja muito, seja pouco.

Nesta Terra, não podemos fazer uma hierarquia com base nas virtudes

Na questão da desigualdade há ainda dois aspectos a serem considerados: o moral e o dos dotes humanos.

Um homem pode ser muito bom do ponto de vista moral, mas pouco inteligente. Houve um santo famoso por ser pouco inteligente: São José de Cupertino. Há outros que são muito inteligentes e não são santos. Esta desigualdade como deve ser considerada?

De si, a superioridade moral vale mais do que todas as outras. No Céu, os homens não vão ser colocados conforme o grau de sua inteligência nem de qualquer outra qualidade, mas sim na linha do amor que tiveram a Deus. Esta é a única classificação eterna que Deus toma em consideração.

Contudo, circunstancialmente não. Como nesta Terra as virtudes não são visíveis a olho nu, não podemos fazer uma hierarquia com base nelas. Não posso, por exemplo, dispor as pessoas em um auditório por ordem de virtude. Eu tenho que colocar na frente os mais antigos, aqueles que naturalmente merecem destaque por seus dotes e pelos cargos e funções que exercem. Essa desigualdade existe e deve existir entre os homens, e é um ato de justiça respeitá-la.

Alguém poderia objetar: “Dr. Plinio, isso é bem verdade. Mas não vejo como essa desigualdade pode ser hereditária. Por exemplo, um homem ganhou uma guerra, e por isso o filho dele merece ser respeitado por mim. Ora, o filho dele não ganhou a guerra; eu não vejo por que devemos tributar uma consideração especial à pessoa de uma alta linhagem”.

Gratidão e respeito

Como se explica esse respeito devido às pessoas que fizeram um grande bem? Há várias explicações, porém a mais fácil de dar numa conferência como esta é a da gratidão.

Por exemplo, estou num naufrágio, prestes a perecer. Um vigoroso marinheiro entra num mar cheio de tubarões e, com risco de ser comido por um deles, me resgata e me leva para o barco dele. Evidentemente, fico lhe devendo um agradecimento.

Chegamos em terra firme e esse coitado morre em um desastre de automóvel. Vem a viúva dele, com seus filhos, e diz:

– Dr. Plinio, nós ficamos na miséria. Eu sou a viúva desse homem, esses são os nossos filhinhos. O senhor não tem uma ajuda para nos dar?

Imaginem que eu respondesse:

– Não, nem a senhora nem essas crianças me salvaram do tubarão. Rua com vocês, não me servem para nada! Aquele homem, sim, era de valor. Não vejo grandes qualidades em vocês. Os méritos que ele possuía vocês não têm, pois estes não se herdam. Fora!

Quem acha que isso faz sentido? Quem não percebe que isso é uma asneira? É claro que se eu tinha uma dívida de gratidão para com esse homem, como ele queria a sua esposa por ser sua esposa, e os filhos por serem seus filhos, simplesmente por esta razão devo, embora ele tenha morrido, por gratidão, fazer pela esposa e pelos filhos o que ele me pediria se estivesse vivo.

Se estivesse vivo ele não me pediria que ajudasse a sua família? Pediria. E eu não era obrigado a ajudar? Era. Está bem, tendo ele morrido, devo fazer o que me pediria.

Não é verdade que essa mulher e esses filhos herdaram a gratidão que eu deveria ter a esse homem? Então, gratidão se herda. Se se herda gratidão, herda-se o respeito também.

A viúva desse homem entra numa sala, onde se encontra uma série de outras senhoras do mesmo nível. Vendo-a, eu digo: “A todas as senhoras dispenso a minha consideração, mas aqui está uma das senhoras que tem um privilégio raro, ela é viúva de um herói.” E dirigindo-me a ela, acrescento: “Em atenção ao heroísmo de seu marido, minha senhora, ocupe aqui o primeiro lugar!” Quem não acha isso uma coisa razoável? Sendo a viúva, ela herdou, é natural.

Quer dizer, há esse vínculo pelo qual a luz daquele heroísmo como que passa para uma senhora que não tinha aquele heroísmo, mas que, por ser viúva do herói, possui um prolongamento.

Sob certo aspecto, os méritos e as desigualdades são hereditários

Por causa disto é que antigamente quando uma pessoa se tornava benemérita para o Estado, este não só dava um auxílio para a pessoa, mas para os seus descendentes. Então, um general ganhava uma guerra ou um diplomata fazia um grande tratado, o Governo concedia presentes em dinheiro e títulos de nobreza para sempre, nos Estados cuja organização política comportava isso. Aquela descendência ficava garantida contra o infortúnio para sempre. Era uma coisa justa.

Outrora, na Civilização Cristã, não se erigiam monumentos em honra dos grandes homens. Os monumentos em praça pública começaram a aparecer mais ou menos no século XVII. Antes disso, na Idade Média, não eram feitos. Punham-se, às vezes, monumentos nas igrejas, mas não em praça pública, nem se dava a uma rua o nome do personagem; essas consagrações não existiam. Doava-se, isto sim, uma ajuda para a família do grande homem. Ele e sua descendência eram elevados à nobreza, dava-se dinheiro, etc. A partir do momento em que os auxílios para as famílias foram caindo, os governos sentiram a necessidade de fazer monumentos para pagar o sujeito. Mas o que adiantava?

Temos um exemplo disso no Largo dos Guaianases, em São Paulo, onde há um super-monumento ao Duque de Caxias, uma coisa colossal. O que foi feito da sua família? Caiu numa tal pobreza que o Governo teve que dar para as filhas dele uma pensão, pois estavam na miséria.

Será que o Duque de Caxias se daria por bem pago vendo suas filhas na miséria e aquele monumento no Largo dos Guaianases? Não seria muito mais justo se tivessem dado para ele um bom patrimônio?

Isso nos conduz à conclusão de que as grandes ações conferem às famílias de quem as realizou o direito a uma benemerência especial. Portanto, não só a quem as praticou, mas às suas famílias também. Portanto, debaixo de certo ponto de vista, os méritos e as desigualdades são hereditários.

A impassibilidade de Talleyrand

Ainda a respeito da desigualdade hereditária há um ponto interessante a considerar. Por uma série de razões que não são bem conhecidas da Genética, os dons de uma família muitas vezes são hereditários. Assim, veem-se linhagens inteiras de pessoas com determinados dotes. Então, certas famílias são muito inteligentes, outras muito dotadas para certa forma de arte, há famílias de diplomatas, de advogados, de parlamentares, enfim, há toda espécie de transmissão hereditária assim, onde entra sem dúvida algo da educação passada de pai para filho, mas também qualquer coisa de temperamental que a profissão exige e que a constituição física dá ao homem.

O diplomata, por exemplo, tem que ser impassível.

Talleyrand foi Ministro do Exterior de Napoleão e um diplomata, enquanto tal muito maior do que Napoleão enquanto militar.

Certa ocasião, Napoleão teve uma discussão com Talleyrand e, na presença de muita gente, disse-lhe desaforos horrorosos para ver se o levava a revoltar-se contra ele, encontrando assim pretexto para pôr Talleyrand na cadeia.

Talleyrand era um homem de grandes atitudes, grandes elegâncias e mantinha-se impassível, como uma estátua, apoiado distintamente junto a uma lareira, enquanto Napoleão perdia a paciência e espumava furioso.

Quando o Imperador terminou de deblaterar, Talleyrand olhou para as pessoas que estavam em volta e disse: “Que pena que um tão grande homem tenha recebido uma tão pequena educação…”

Acabou! Napoleão ficou tão pequenino com aquilo, que não tinha mais o que responder.

Napoleão sentia-se tão inferiorizado diante da impassibilidade de Talleyrand, que, com raiva, costumava dizer a seu respeito que se lhe dessem um murro nas costas, sua fisionomia não mudava.

Sem dúvida, entra nisso algo de temperamental. Pode haver famílias temperamentalmente assim.

A organização social não pode ser fechada

Então, algumas famílias já foram destinadas pela Providência de pai para filho, a desempenharem determinados papéis na História, se elas aproveitarem seus dotes. Esta é também uma razão da hereditariedade.

Compreende-se, pois, como é normal que em uma organização social bem feita, tendo como base a família, célula-mãe da sociedade, haja famílias mais ricas e outras menos, conforme tenham trabalhado mais ou menos, ou de acordo com os dotes recebidos da Providência, e algumas famílias que mereçam mais honras por possuírem talentos mais insignes, ou por terem feito no passado maiores coisas.

Por certo haverá pelo meio injustiças: alguns roubaram e por isso subiram na vida. Mas aquela regra geral, numa sociedade normal, é justa.

Portanto, essa desigualdade não é apenas dos indivíduos, mas das famílias, e deve ser tal que permita a ascensão das famílias. Não pode ser como na Índia, onde havia cinco castas e nunca ninguém podia passar de uma casta para outra, absolutamente. Fizesse o que fizesse, nasceu numa casta, ali tinha que morrer.

O fato de alguém pertencer a uma determinada condição provém de seus méritos e de sua capacidade, e se numa família nasce alguém com mérito ou capacidade excepcional, ou especialmente trabalhador, este tem o direito de subir. Quer dizer, esta organização não pode ser fechada, mas deve ser tal que os que vão adquirindo méritos subam, e os que vão perdendo desçam.

Porque as famílias são susceptíveis de apodrecer como as frutas, e ao longo da História algumas se conservam mil anos e até mais, e outras não duram três gerações; e quando uma família apodrece, é preciso que ela volte para a penumbra.

Quer dizer, deve haver, portanto, uma renovação gradual, como mais ou menos seria numa piscina – não num rio onde a água corre –, na qual a água se renova aos poucos e está sempre limpa. Não quero dizer com isto que todas as famílias devam decair. Mas o que decai deve sair e o que nasce deve ter condições de subir; não pode ser uma organização fechada.

Respeito devido a cada ser humano

Por fim, outra condição para haver legítimas e equilibradas desigualdades é que estas sejam proporcionadas ao respeito devido a cada ser humano.

Outro dia, eu estava lendo um livro das memórias de uma filha do Kaiser, último Imperador da Alemanha, onde ela contava uma viagem que fez à Turquia, durante a qual teve contato com o sultão daquele país. Chamou-lhe a atenção o modo pelo qual os sultões eram tratados por seus servos. Estes utilizavam a seguinte fórmula: “Meu senhor, este vosso servo, indigno de oscular os vossos pés, oscula a poeira em que vossos pés pisaram”.

Isso me fez lembrar imediatamente de uma fórmula que li quando mocinho e achei tão chocante que nunca me saiu da memória. Tratava-se de um egípcio, agente comercial do Faraó do Egito na Síria, que mandava ao Faraó uma carta onde eram tratados assuntos comerciais, mas cuja introdução era esta: “Fulano, vosso servo, indigno de beijar vossos pés, indigno de beijar as patas dos vossos cavalos, beijo no chão o pó em que as patas de vossos cavalos pisaram”.

Ora, ambos são da mesma natureza, têm alma, descendem de Adão e Eva! Ele, que é um homem como o Faraó, não é digno de beijar a pata de um cavalo?! Tenha paciência, isto aqui é um exagero, viola o princípio da fundamental igualdade existente entre todos os homens!

Temos, assim, uma noção a respeito do que é a igualdade e a desigualdade, e a verdadeira liberdade segundo a Doutrina Católica.               v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/1/1975)

Revista Dr Plinio 244 (Julho de 2018)

 

1) Revista Dr. Plinio, n. 243, p. 20-30.

 

Em defesa do Beato Gaspar de Bono

Um exemplo característico de Revolução tendenciosa foi o que ocorreu em muitos meios católicos: não se ensinava claramente uma doutrina errada, mas por omissões que se inserem num coro de meios tons, meias verdades, os temperamentos foram se habituando a uma postura mole, de entreguismo, desarmando toda a linha de defesa da ortodoxia.

 

Perfeição cristã e belos feitos de guerra

Gaspar de Bono nasceu em Valência, em 1530. Seu pai, tecelão e, mais tarde, amolador de facas, era homem de vida religiosa profunda. Sua mãe, cega aos quarenta anos, era pessoa de grande paciência e resignação. Todas as manhãs o casal assistia à Missa e oferecia a Deus o seu dia; e, enquanto o marido trabalhava, a mulher meditava ou tecia. Desse casamento nasceram quatro filhos, e a um deles, Gaspar, os pais destinaram uma melhor educação, pois perceberam na criança dons excepcionais.

De fato, o jovem era dotado de grande inteligência, além de encanto pessoal. Seguindo o exemplo dos pais, era piedoso, sendo recebido muito cedo como terceiro dominicano. Adolescente, começou a trabalhar com um comerciante de seda, que custeou seus estudos. Mas a Providência encaminhou Gaspar para servir como soldado do Imperador Carlos V. E este jovem foi um extraordinário exemplo da união entre piedade e coragem, perfeição cristã e belos feitos de guerra. Jamais, como militar, o ouviram jurar em vão pelo nome de Deus, coisa comum entre seus companheiros; as visitas das damas as mais honradas lhe eram suspeitas; desagradavam-lhe as companhias menos dignas. Após o cumprimento de seus deveres, ia para as igrejas, hospitais e outros locais de devoção, onde consagrava sua alma a Deus e seu corpo a seu príncipe.

Corajoso e valente no manejo da espada

Devotíssimo da Santíssima Virgem, recitava todos os dias sua Ladainha, tendo devoção particular a Sant’Ana, São José, São Vicente Ferrer e às almas do Purgatório. Mas ninguém pense que por isso seu temperamento fosse estranho ou arredio. Era um dos mais belos e gentis jovens do exército e dos melhores nas armas, corajoso e valente com sua espada, que ele só empunhava pela honra de Deus e defesa de seu rei.

Foi assim que, em certa ocasião, estando com uma pequena companhia, foi atacado pelo grosso da cavalaria inimiga. Vendo que não podia enfrentá-la, foi-se retirando lentamente, procurando ao menos matar alguns adversários para enfraquecê-los. Não percebeu assim um fosso profundo, oculto por pedras, nele caindo – e seu cavalo também sobre ele. Bastante ferido, foi atingido ainda por três golpes de alabarda de um soldado contrário. Sentindo a morte próxima, recorreu à Santíssima Virgem, prometendo-lhe ingressar na Ordem de São Francisco de Paula, se fosse salvo. E o foi milagrosamente. Voltou a Valência e foi recebido naquela família religiosa, aos 35 anos de idade.

Grande humildade e invulgar mortificação

Na nova via, logo veio a se destacar como exemplo para os demais sacerdotes. Extraordinariamente virtuoso, chegou a extremos na prática da humildade, de uma invulgar mortificação, e do dom da conversão de pecadores empedernidos. Morreu em 1604, enquanto rezava uma Ave-Maria. Foi beatificado por Pio VI, em 1786. Chegou a Geral de sua Ordem, onde era muito respeitado.

Um seu contemporâneo e biógrafo assim o descreve:

“Quando jovem ele era extraordinariamente belo, de estatura mediana e de corpo muito bem proporcionado; quando mais idoso, tornou-se um pouco curvo, o que lhe deu um porte mais grave, e moderava sua extrema humildade e atitude recolhida, porque frequentemente tinha as mãos juntas e os dedos cruzados entre seu grande rosário.

“Sua fisionomia era clara, suave, agradável, mas muito alegre, mesmo quando atingiu idade avançada. Sua fronte era alta, os olhos azuis, nem grandes, nem pequenos, alegres e vivos, mas calmos e discretos; as sobrancelhas arqueadas e entremeadas de fios brancos que, em sua juventude, eram louros; o nariz bem proporcionado, um tanto aquilino, a boca mediana, de lábios bem visíveis; a barba muito espessa, toda branca, com alguns fios dourados; suas mãos eram longas e brancas, seu andar pausado e solene; ele gaguejava um pouco; sua compleição era sanguínea e colérica. Era, sem dúvida, um dos mais veneráveis anciões então conhecidos.”(1)

Biografia bem redigida, porém não isenta do sentimentalismo romântico 

Esta é uma ficha mais inteligente do que muitas hagiografias que por aí se encontram. Quem a redigiu teve o cuidado de fazer do Beato uma descrição quase de uma ficha policial de nossos dias. Dir-se-ia ser uma espécie de fotografia do tempo em que não havia fotografia. Tem todos os pormenores da fisionomia do Beato, descritos com muita vivacidade, de maneira que, por assim dizer, percebe-se sua alma por detrás da descrição.

De outro lado, trata de sua vida de um modo bastante completo, quer dizer, contando que ele foi um guerreiro; e não omite que foi um guerreiro eficaz. Porque normalmente as fichas impregnadas de um hagiografismo meio dulçoroso, ao tratar do santo como guerreiro, diriam apenas assim: “O santo mancebo foi também durante algum tempo um guerreiro”. E passariam adiante. Ou omitiriam que ele foi guerreiro, para dar a ideia de que um Santo jamais brande a espada, porque toda violência é intrinsecamente má e o católico é incapaz do uso da força a serviço de suas ideias. É uma concepção efeminada e sentimental do católico.

Não se pode dizer que essa ficha seja inteiramente sentimental, romântica. Entretanto, tal é a presença sutil do sentimentalismo romântico, que o texto descreve longamente o Beato como religioso, trata bastante da vida de piedade dele; porém não fala de nenhum dos seus feitos de arma, a não ser um em que ele faz o papel de derrotado e recebe um milagre, o qual lhe serve de ocasião para deixar a carreira das armas.

A combatividade militar é integrante da virtude de um santo

Ora, nós teríamos gostado de uma ficha que dissesse tudo quanto diz, mas que nos mostrasse esse Beato como um guerreiro valente, não só na retirada, mas no ataque, matando alguns, contando o caso de dez inimigos que ele fendeu com uma espadagada, bem como de um avanço em que ele se pôs a risco, esteve na iminência de ser morto, não no recuo, mas porque se meteu no meio dos adversários; então Nossa Senhora o socorreu fazendo aparecer um Arcanjo terrível que, por sua vez, expulsou outros tantos inimigos.

Assim, nós apreciaríamos ver a combatividade militar elogiada como integrante da virtude de um Santo. A Escritura, portanto o Espírito Santo, descreve assim Judas Macabeu, por exemplo.

Aqui não. Vê-se que por um esforço de objetividade hagiográfica o biógrafo chega até o limite da objetividade inteira, porque conta um caso muito bonito. O herói não é só aquele que ataca, mas o que recua também.

Até há uma forma especial de heroísmo em perseverar e continuar inteiramente corajoso, apesar da adversidade. Mas com tanto adocicamento da vida dos Santos, nós gostaríamos de outra coisa. E percebe-se que deve ter havido material para isso.

Altar ideal para se venerar um Santo

Qual é o corolário disso? O Beato Gaspar foi um frade da Ordem de São Francisco de Paula. É improvável que se tenham construído em louvor dele capelas em alguma igreja, por ser Beato. Mas, enfim, uma capela na igreja da Ordem dele é muito provável que tenham feito.

O normal seria que houvesse um nicho com a imagem dele e atrás uma pintura, um mosaico, dando vários aspectos da sua vida. Se isso fosse feito de acordo com o espírito católico integral, apresentaria alguns aspectos do Beato com toda a sua doçura, sua bondade, etc. E um outro aspecto dele combatendo, na hora de cravar a espada num adversário que estaria caindo.

Isso teria que ficar num altar para, ao pé desse quadro, pedirmos a virtude da fortaleza. Não pode ser que, na hora de manifestar a coragem e defender o bem, um católico esteja aquém de um guerreiro que luta pelo mal. Pelo contrário, se o católico tem razões sobrenaturais para oferecer sua vida, ele precisa exceder os combatentes do mal, dos quais o mais audacioso deve ser um tímido diante de um verdadeiro católico.

Mas acontece que essa figura do Beato no ato de liquidar um adversário haveria de produzir, em senhoras ou mocinhas que se preparam para a primeira Comunhão, algum arrepio sentimental.

Formação que adocicava o lado combativo dos Santos

Há dez ou quinze anos atrás, em muitos seminários se entendia que para o indivíduo se tornar autêntico padre precisaria não ser inteiramente varonil. Para um padre fazer um sermão elogiando isso, era preciso ter uma formação que os seminários não davam.

Então, vemos que mesmo numa ficha objetiva, bem feita sob vários aspectos, que contém dados verdadeiramente edificantes, úteis para nossa vida espiritual, entra a irradiação de todo um estado de espírito, um modo de ser que, durante muito tempo, dominou – pelo menos na América do Sul – a piedade de largos setores da sociedade católica; não sei bem como é na Espanha, na Itália, em Portugal.

De tal maneira que, como um abismo atrai outro abismo, no tempo em que a influência da Igreja e do clero se exerciam, grosso modo, num sentido reto, em que então um senso combativo poderia ter levado essa influência à vitória, entretanto desenvolviam sua atividade com fermentos que adocicavam completamente essa influência, e a tornavam pouco capaz de atingir a vitória que estava ao seu alcance.

Surge a combatividade a serviço do mal

E à medida que essa influência vai se exercendo num sentido mau, começa a aparecer uma posição combativa e agressiva nesses mesmos ambientes, mas então já a serviço do mal, a teologia da violência, que é o extremo oposto dessas omissões. E é a tese de que o padre, a freira, devem ser violentos, terroristas, para aplicar a justiça social, a qual é um corolário do Evangelho e que, portanto, é preciso ser imposta até mesmo pela violência. Portanto, um abismo vai atraindo outro abismo.

Esse estado de espírito inimigo de toda polêmica, de todo combate, de toda violência teve ainda sua responsabilidade num aspecto dessa crise dramática. Quando o neomodernismo, ou seja, o progressismo começou a renascer com uma insolência maior, teria sido facílimo esmagá-lo. Não se esmagou por quê? Porque o grande número dos homens que detinham o poder tinha essa mentalidade. Eles achavam que não se deve esmagar nada. No plano ideológico das censuras e das penas canônicas, da coragem eclesiástica de punir, ainda que não seja por meios materiais, eles reagiam com a mesma moleza que fica insinuada nesse horror à exercida em termos militares.

Então, nós tivemos crescendo, crescendo, crescendo a onda da violência e os adversários naturais – que não eram homens que quisessem a violência – não reagindo, porque foram educados na escola da não-violência. Então, compreendemos como foi possível a tão poucos se tornarem tão numerosos e fazerem tanto. Ainda é esse estado de espírito responsável por essa ordem de coisas.

Bigrafias mutiladas pela Revolução tendenciosa

Então nós vemos aqui os zigue-zagues da Revolução, afetando a vida de piedade, desenvolvendo-se no campo da vida espiritual de enorme número de católicos. Mais uma vez notamos o fenômeno de Revolução tendenciosa. Porque não está dada aqui uma doutrina errada, nem dito de modo positivo: o católico não deve ser um soldado corajoso. Até está afirmado de algum modo o contrário. Mas há omissões que se inserem num coro de meios tons, meias verdades, as quais acabaram insinuando essa posição e habituando os temperamentos a uma postura mole, de entreguismo, desarmando toda a linha de defesa da ortodoxia, antes mesmo de o adversário erguer a cabeça. Quando o inimigo ergueu a cabeça, as linhas de defesa estavam quase todas adormecidas.

Poder-se-ia fazer uma objeção: “Mas Dr. Plinio, isso é verdade apenas em parte, porque esses mesmos que o senhor disse serem contrários à energia eclesiástica, quando se trata de atacar a ortodoxia são extremamente enérgicos.”

Respondo: Não é uma contradição, mas está na lógica do preguiçoso. Nessa posição entra muito do vício capital da preguiça. E a psicologia do preguiçoso é precisamente esta: ele concorda com tudo e tem preguiça para tudo; entretanto, para com aquele que quer convencê-lo de não ser preguiçoso, deseja obrigá-lo a se mexer, ele agride sem preguiça.

Tomem um homem que está numa cama dormindo agradavelmente. Acordam-no e lhe dizem:

– Há divertimento.

– Não quero.

– Tem trabalho.

Ele dorme mais profundamente ainda.

– Faça uma oração!

Ele desmaia.

Procurem levantar o homem. Ele se ergue e dá um tapa, porque estão lhe tirando de sua preguiça. Esta é a lógica do preguiçoso.

Inúmeras vezes nós quisemos que essa gente combatesse. É claro que nos agrediam, pois estávamos tirando-os da lógica da preguiça.

Alguém me dirá: “O senhor não comentou a vida do Beato. O que fica da vida dele para nós?”

Fica, antes de tudo, uma defesa do Beato que foi apresentado de modo mutilado. E também uma defesa contra tantas hagiografias mutiladas que por aí se apresentam.             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/8/1972)

Revista Dr Plinio 244 (Julho de 2018)

 

1) Não dispomos dos dados bibliográficos da obra citada.

Teoria do Amor à Cruz

O mundano, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formado, admira quem é cheio de honras, dinheiro e conforto. O verdadeiro católico, dotado de sabedoria, desapegado de seus bens e que os utiliza por amor a Deus, possui uma dignidade, um decoro, uma distinção, uma compostura, que são o brilho da Cruz de Cristo.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort(1) apresenta o seguinte elemento para praticarmos perfeitamente o amor à Cruz:

“Renuncie a si mesmo!”

Longe dos Amigos da Cruz os orgulhosos e os sensuais!

Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! “Abneget semetipsum”, renuncie a si mesmo! Longe da Companhia dos Amigos da Cruz os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruído e colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a mim” do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (Lc 18, 2), que não podem suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebaixem sem exaltar-se!

Tende bem cuidado para não admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, que se queixam da mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e falta de mortificação.

Mudança completa de mentalidade

Há aqui umas pequenas observações a fazer. Em primeiro lugar, essa ideia claríssima, de Nosso Senhor:

“Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz!”

Essas são palavras já tão conhecidas e referidas, com tanta superficialidade e banalidade de espírito, por pregadores de segunda classe, que elas tomam aspecto de chavões. Ora, Nosso Senhor não poderia ter dito chavões. E não é possível que o Espírito Santo tenha inspirado chavões. De maneira que, chavões não podem ser. Existe uma pátina de trivialidade por cima dessas coisas, que não se pode confundir com a substância delas, porque do contrário seria admitir que Nosso Senhor diria banalidades, o que é o absurdo dos absurdos.

Como nós podemos atender esse conselho de Nosso Senhor?  Tal conselho de algum modo toca o preceito e até o âmago do preceito: “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo…”; e deve ser aniquilado e crucificado, de tal maneira que só se glorifique na pobreza, nas humilhações e nas dores.

Em primeiro lugar, isso supõe uma espécie de metanoia, uma mudança completa de mentalidade. Porque o homem, pelas forças, pelas tendências de sua natureza, admira o contrário dessas coisas. Ele tem admiração pelo sucesso, pela riqueza, pelas glórias, pelo bem-estar. E quando ele vê uma pessoa nos píncaros da fortuna e das honrarias, gozando do sumo bem-estar, é levado a querer admirá-la. Pelo contrário, quando um indivíduo não tem isto, ele tende a não admirá-lo.

Honras, dinheiro e conforto

É por causa disso que os amigos do mundo procuram cercar de glória, de dinheiro, de bem-estar os homens que eles querem prestigiar; e buscam evitar o acesso a essas coisas às pessoas cujo prestígio desejam evitar. Porque eles sabem que uma grande glória, uma grande fortuna, a ostentação de um bem-estar mais nítido, são tribunas do alto das quais um homem afirma a sua superioridade perante os outros, e se transforma num doutor deles; o que ele diz, os outros acreditam facilmente, ele se torna um símbolo e um guia para os outros. Quer dizer, ele representa a própria plenitude da humanidade. Doutor, símbolo e guia são as três formas pelas quais um homem pode arrastar a opinião pública atrás de si.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, isso é igualmente sabido”.

Eu afirmo: “É verdade, porém não é tão lembrado”. Além disso, é preciso dizer o seguinte: devo retificar em mim esse modo de pensar, e aí está o aspecto metanoia. Quer dizer, preciso agir internamente em mim mesmo, pedir a Nossa Senhora que me dê a graça de ser de tal maneira, que essas coisas não contribuam para que eu tome alguém como meu mestre ou doutor, meu símbolo e meu guia. Mas que eu seja capaz de compreender que isso não são credenciais para ninguém, debaixo de nenhum ponto de vista, e devo tomar outros critérios para julgar os homens.

Por exemplo, o mundanismo não é senão isso. Toda forma de mundanismo acaba tendo esses sintomas. A pessoa que é mundana, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formada, admira o homem cheio de honras, ou de dinheiro, ou de conforto.

Erva daninha em nosso espírito

Eu lhes garanto o seguinte: se fizermos um exame de consciência cuidadoso, corremos o risco — não digo uma certeza, mas um risco sério — de encontrar resquícios disso dentro de nós. Quer dizer, há pessoas que admiramos e exercem império, se não sobre a nossa razão, pelo menos sobre as nossas vivências, porque elas têm algum desses três títulos. E isso de tal maneira nos fascina, que não somos capazes de abalá-lo, de derrubá-lo. Mais ainda, quando desejamos nos credenciar à consideração dos outros, em vez de procurarmos brilhar pelo esplendor da Cruz, intentamos dar-lhes ideia, ou de que somos ricos, ou cercados de muitas honras, ou de que temos um bem-estar esplêndido.

De maneira que há uma verdadeira necessidade de meditarmos a respeito disso, para evitar o desenvolvimento de uma erva má, que a todo o momento está renascendo no espírito de todos nós, ou de quase todos nós; corta-se e renasce, corta-se e renasce.

Por exemplo, conversas mundanas, tratando sobre pessoas que têm qualquer evidência na classe à qual pertencemos. No fundo, tais conversas são sempre seguidas de um preito de admiração à pessoa de quem se fala, por causa desses títulos. Daí vem o efeito debilitante do mundanismo sobre nós. Porque, admirando essa gente, imediatamente em nosso espírito forma-se uma posição falsa a respeito de nós mesmos. Começamos a nos sentir pouca coisa, inibidos, a duvidar do alcance dos grandes lances que nós jogamos. Por quê? Porque não temos dinheiro, honras, em quantidade suficiente para deslumbrar os outros. Possuímos o suficiente para aparecer com dignidade, com decoro, se quiserem, mas para deslumbrar não. Temos o nosso bem-estar nessas proporções. E muitas formas de insegurança em nós resultam da pujança dessa erva daninha no nosso espírito.

Dignidade, desapego e amor de Deus

Se os que estão neste auditório dessem orientação espiritual, compreenderiam melhor o mal que pode fazer a uma alma, numa hora errada, a evocação de um mundano. Aquilo entra como uma picada de uma mosca venenosa e pode estragar um dia, exatamente por causa do mundanismo.

Alguém poderia dizer: “Dr. Plinio, o senhor está preconizando que nós não procuremos nos vestir bem, ter um decoro, uma compostura! E que sejamos uns trapos, ao contrário do que o senhor toda a vida ensinou! Porque se é para ostentar só a Cruz de Jesus Cristo, não se pode fazer brilhar as outras coisas que a pessoa tem”.

O princípio se transmuda da seguinte maneira: como faço brilhar a Cruz de Cristo em mim?

Há uma expressão fisionômica do verdadeiro católico que lhe dá compostura, dignidade e beleza. É um quê pessoal indefinido, o qual resulta da intimidade ou da compenetração da alma com os mais altos princípios da doutrina católica. As expressões mais elevadas do pensamento se tornam para ela como que naturais. A posse da virtude da sabedoria, incluindo em si todas as outras virtudes adequadas, adaptadas ao próprio temperamento; com aquele senso da dignidade sobrenatural do que a pessoa é de fato; com o desapego das coisas no que diz respeito à vaidade, e com aquele puro amor, desejando que essas coisas brilhem, porque são dons de Deus, e para que agradem ao Criador, mas desinteressado em que façam pôr em relevo a miserável pessoinha de cada um de nós; quando isso entra numa alma dá-lhe uma dignidade, uma honestidade, um decoro, uma distinção, uma compostura que é o brilho da Cruz de Cristo.

A Cruz de Cristo é o conjunto de sofrimentos necessários para adquirir a sabedoria. É o conjunto de renúncias, de asceses, de aplicações contínuas e, portanto, muitas vezes esses sofrimentos são sentidos nos pontos fundamentais, com os devidos equilíbrios, contrafortes, as devidas hierarquias; a alma pena para ter amor à Cruz de Cristo. E o esplendor da Cruz de Cristo é uma certa nota de desapego, que vem junto com todos esses dons, e é condição para que esses dons se tornem suscetíveis de serem amados por outros.

Quando uma pessoa tem uma superioridade qualquer, é difícil fazer com que os outros aceitem a própria inferioridade. Mas o modo pelo qual isso ainda é possível, com o auxílio da graça, consiste em fazer com que os outros notem o desapego. Mas se notam uma satisfação vibrante, apegada àqueles dons, e o olhar oblíquo para ver se outros estão admirando ou não, e uma efervescência se não for admirado, os outros notam o apego. Apego gera apego, e nada torna um inferior tão apegado quanto o apego do superior.

Prestígio verdadeiro e sacrossanto

Então, a posse de todas as qualidades de uma determinada alma — que a graça ou a natureza lhe concedeu —, consideradas pelo aspecto sapiencial, nas proporções sapienciais, com renúncia a qualquer coisa contrária e sendo a posse desapegada, isto dá à alma algo que é fator de prestígio verdadeiro e sacrossanto, incomparavelmente maior do que o prestígio de ter automóvel ou qualquer outra coisa.

Esse autêntico prestígio vale mais do que o da Ciência. Há um mundanismo dos homens livrescos e outro dos fúteis. E, no fundo, um é tão fútil quanto o outro; apenas o segundo é um mundanismo mais deslumbrado e ensebado.

Há uma espécie de honestidade, de dignidade, de grandeza de alma, em comparação com o qual tudo mais é resto.

Senso aristocrático e sabedoria

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor parece fazer uma exclusiva glorificação da virtude. A glória do homem é a virtude e nada mais. Ora, isso está em contradição com o hábito que o senhor tem de realçar muito os valores aristocráticos”.

Não é verdade. O que é aristocracia? O senso aristocrático é o aspecto da sabedoria pelo qual o homem sábio nota o que é mais excelente e o que é menos excelente. E dá às coisas com que ele trata um valor que está de acordo com as hierarquias delas. E, quanto a si mesmo, se mostra compenetrado do valor que lhe toca nessas hierarquias, tudo por amor de Deus. De maneira que nada pode produzir um senso aristocrático tão “raffiné”, tão requintado, quanto a verdadeira sabedoria.

O espírito hierárquico não é senão um amor sapiencial à desigualdade, que leva o homem a ter um amor próprio — não de quem está pensando em si mesmo —, mas um amor adequado ao seu próprio grau, tanto quanto ao grau dos outros. E a respeitar cada coisa, não porque é sua, mas por amor de Deus.

Vê-se em muitas pessoas que têm, por exemplo, qualquer grau aristocrático, se entra o amor de Deus ou o amor de si mesmo pelo meio, e a vivacidade com que se interessam pela instituição nobiliárquica, quando não diz respeito a elas.

Então o amor à Cruz não é em nenhuma hipótese o “débraillé”, o desarranjado, o esmolambado, nem o sentimental. Mas é qualquer coisa que prepondera sobre isto.

Segurança e insegurança

Quanto às seguranças e inseguranças, isso dá no seguinte: quem tem esse espírito condenado por São Luís Grignion de Montfort, ou que pelo menos possui “vegetações” subconscientes desse espírito, no conflito ou no contraste entre as duas formas de esplendor — a da Cruz e a do mundo —, chega a sentir-se inseguro. Quem ama verdadeiramente essa hierarquia de valores compreende a força dela e que essa insegurança não tem razão de ser. Pode-se ir para a frente, e aguentar o confronto com toda a firmeza, porque em si a superioridade da Cruz é simplesmente incomparável.

Se nós tivéssemos sempre a compenetração disso, como a nossa vida se tornaria mais fácil! E como todas as nossas atividades se tornariam mais compreensíveis! Por exemplo, um dos segredos de nosso apostolado, do nosso modo de nos apresentarmos em público, consiste em realçar isso. Aqui está a nossa grandeza.

Pôr em ordem a consciência

Alguém perguntaria: “Mas então o senhor considera que o dinheiro, o traje e outras coisas são inúteis para a apresentação?”

Eu não disse que essas coisas são inúteis. Afirmo que elas são de uma utilidade real, mas secundária, para serem assumidas por essa superioridade de espírito e representá-la. Elas existem para sublinhar o prestígio da virtude junto às pessoas com menos profundidade de vistas. Elas representam, em relação ao esplendor da Cruz, o papel do pedal do piano em relação à nota musical, aumentando sua sonoridade. E, como a força do mundo está continuamente procurando acalcar o pedal que diminui a sonoridade, é normal que se acalque o pedal oposto. Mas não é indispensável e nem o principal.

Que vantagem há em explicar isso? Os que se encontram nesta sala não apreenderam nada de novo pelo que eu disse. Mas se lembraram de alguns princípios úteis, tiveram ocasião de se embevecer e de amar mais uma vez a doutrina católica diante de uma reexposição de tudo quanto ela tem de bonito, e sobretudo puderam pôr em ordem a sua consciência, em face a alguns desses chavões, que sempre constituem umas pedrinhas nos sapatos da pessoa.

Aí está uma pequena teoria do amor à Cruz, num comentário muito livre desse texto de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 29/7/1967)

 

1) Carta-Circular aos Amigos da Cruz, n. 17.

 

Amigo da Cruz

Uma das consequências mais prejudiciais do “American way of life”, difundido por todo o mundo por Hollywood, talvez tenha sido incutir nas mentalidades a ilusão de que é possível uma vida sem Cruz; e de que a felicidade está em gozar todos os prazeres — lícitos e não lícitos — que o mundo proporciona. Posteriormente, a televisão e a internet não fizeram senão exacerbar essa ilusão ao máximo. Assim, estamos hoje colhendo os amargos frutos dessa utopia. Como a vida real não corresponde ao mito representado nas telas, “as pessoas inauguram uma série de fraudes psíquicas para levar uma vida como se não sofressem”, alerta Dr. Plinio. Vem daí a frustração seguida, tantas vezes, pelo desequilíbrio mental, pelo desespero, resultando na fuga para as drogas e para a criminalidade, ou ao menos para a extravagância, de parcelas crescentes da população de todas as idades.

Desconhece-se uma faculdade da alma humana: a capacidade e a necessidade de sofrimento, a que Dr. Plinio chamou “sofritiva”. Quando ela não é atendida pelo padecimento efetivo, a pessoa sente uma frustração no fundo da alma, mais dolorosa do que o próprio sofrimento. Na realidade, “a felicidade da vida consiste em sofrer com conta, peso e medida, em vista de um determinado fim e ter o bom sofrimento que justifica esse fim. […] Como o homem tem essa espécie de capacidade ‘sofritiva’ que precisa se esgotar sofrendo, e como ele sofre mais não sofrendo, a questão é ter um sofrimento que seja, por assim dizer, adequado e proporcionado a ele, que tenha razão de ser e um fim que ele compreenda, e que a alma dele seja capaz de aguentar. Então ele o dá por bem empregado e, com isso, realizou o seu fim”.

Este é o ponto: “a única forma de felicidade verdadeira da vida é conseguir o fim para o qual se existe. Por mais que custe, por mais que doa, por mais que seja difícil, alcançado o fim, a pessoa está feliz!”

Em suma, “não há nada mais adequado para conferir nobreza à alma do que o sofrimento; sem este, não pode haver nobreza para a alma. Depois do pecado original, não há faculdade da alma que adquira a plenitude sem o sofrimento”.

O otimismo metódico pelo qual se quer viver como se o mal e o erro não existissem, é uma das formas de evitar o sofrimento.

Portanto, “o conceber a vida como uma série de sucessos é completamente falso, frustro e errado. A vida não é ter sucesso ou não, a vida é ter feito o dever, o qual, às vezes, é o de não ter sucesso. É o de representar um dos maiores papéis: o do infortúnio digno, do insucesso com elevação de alma, e com isso habituar os outros ao próprio infortúnio. Ser o mestre dos outros no infortúnio é um dos mais nobres papéis na vida!”

O celeste rosto de Maria

Quantas vezes o reflexo de um castelo nas águas de um lago é mais belo que o próprio edifício!

Ao caminhar sobre o Mar de Tiberíades, Jesus refletiu-Se nas águas. Entretanto, Ele era mais belo do que o reflexo.

Sem dúvida, isto seria verdade em quaisquer águas do mundo: do Danúbio, do Sena, do Tejo, do Guadalquivir, do Reno, da Baía da Guanabara, e de tantos lugares magníficos da Terra.

Mas o que seria verdade em todos os mares da Terra, não o era apenas num “mar”, maior do que todos eles, entretanto, tão menos extenso: Maria. Porque quando Nosso Senhor olhava para sua Mãe Santíssima, coisas que só Ela compreendia n’Ele se refletiam no semblante d’Ela. E quem olhasse para o celeste rosto de Maria teria como que uma porta de acesso de ouro, para compreender os mistérios da Sagrada Face de Jesus!

Em Maria, só em Maria, mas plenamente em Maria, alguém olhando veria algo que Jesus só manifestava a Ela e àqueles que sabem procurá-Lo n’Ela.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 27/9/1980)