Rainha e Mãe de misericórdia

As primeiras palavras da Salve-Rainha inspiram a quem as recita a plena confiança de que será atendido, apesar de suas misérias.

 

Pediram-me para fazer o comentário da Salve-Rainha. Devido ao pouco tempo de que disponho, vou comentar apenas as primeiras palavras desta bela oração: “Salve Rainha, Mãe de misericórdia…”

Rainha que tudo tem e tudo pode

Salve, em latim, é uma saudação, e passou assim para o português. Os latinos costumavam dizer salve como saudação, sem nenhum nexo e sentido com a ideia da salvação, “salvai-me”. Não é isso, é uma mera saudação. Então, “eu Vos saúdo”.

Agora vem outro ponto: “…Rainha, Mãe de misericórdia”.

Vemos aqui uma harmonia muito bonita. O autor da oração coloca antes de tudo o título d’Ela de Rainha.

Nossa Senhora é Rainha? Evidentemente, Ela o é, pois é a Mãe do Rei, e um Rei que faz tudo quanto Ela deseja.

Maria Santíssima é chamada a Onipotência Suplicante. Ela, de Si, é uma criatura humana como nós, mas a súplica feita por Ela é onipotente, porque pode tudo diante de Deus.

Assim, também enquanto suplicante, Maria é Rainha, porque Aquela que pode tudo é Rainha. Então, vem desde logo uma ideia posta ao alcance do fiel: Aquela a quem ele vai se dirigir é uma rainha; logo, Ela tem e pode tudo.

A rainha e o rei são de uma riqueza enorme. Normalmente são as pessoas mais ricas do reino, que dispõem da maior soma de poderes, honrarias e riquezas de toda ordem. Ela é a Rainha, quer dizer, tudo quanto Lhe peçamos Ela pode dar.

Ademais, Deus, que é o Filho d’Ela, concede tudo quanto sua Mãe insondavelmente perfeita Lhe pede. O resultado é que, quando pedimos alguma coisa a Ela, temos a certeza de que Ela pode dar, porque Ela tem. Isso nos leva a nos encher de confiança no nosso pedido.

Não há carinho como o materno

Mas vem logo depois: “Mãe de misericórdia”.

Mãe já traz consigo a ideia de misericórdia, porque o mais misericordioso e compassivo dos entes, numa época em que a instituição da família funcione normalmente, é a mãe. Mesmo o pai pode ser muito bom e seu afeto é indispensável para completar a educação do filho. Mas o carinho é com a mãe.

Lembro-me de ter assistido, certa vez, a uma cena minúscula em casa, entre meu pai e minha mãe.

Eu costumava, naquele tempo, sair logo depois do almoço para meu escritório de advocacia. Minha mãe me acompanhava até a porta do elevador, junto à qual tem uma escada. Às vezes eu estava com muita pressa e me impacientava com a lentidão do elevador, e descia a escada a toda pressa. Lembro-me de que, enquanto eu descia, ouvia minha mãe dizer: “Filhão, cuidado com o corre-corre.” Era um último sinal de carinho.

Mas um dia desci muito precipitadamente e esqueci um objeto em casa. Chegando na rua, senti falta do objeto e voltei para apanhá-lo. Passei ao lado de uma pequena sala de estar onde ela e meu pai costumavam ficar durante o dia. Estavam conversando, certos de que eu tinha ido embora.

Meu pai estava sentando numa poltrona e minha mãe, em pé junto a ele, dizia:

— João Paulo, hoje para o jantar eu mandei fazer tal prato. Você acha que o Plinio ficará satisfeito ou seria melhor preparar outra coisa?

Não parei para olhar, mas tive a impressão de que meu pai estava louco para tirar uma sesta, e respondeu negligentemente que estava bem.

Não satisfeita com a resposta, ela acrescentou:

— Não, mas quem sabe se fizer de tal outro jeito seria melhor.

— Também está bem — respondeu ele.

Como ele estava querendo dormir e ela continuava a insistir, ele disse:

— Bem se vê que mãe é mãe. Se fosse comigo eu diria: “Rapaz, tem aqui para jantar tal coisa, se você não quiser, vá jantar num restaurante”.

Ora, mamãe queria exatamente evitar que eu fosse para o restaurante, pelo gosto de estar e conversar comigo. É o carinho da mãe que é todo especial, único.

Mãe toda feita de misericórdia

Entretanto, não contente com esta ideia, o autor da Salve-Rainha pôs: “Mãe de misericórdia”. É uma Mãe toda feita de misericórdia.

O que quer dizer “misericórdia”? Cordis, em latim, é o coração. Miseri, os miseráveis. Portanto, para com os miseráveis Ela é “toda coração”. Os miseráveis são aqueles que não têm do que viver, estão na miséria. Porém, moralmente falando, são os pecadores que ofenderam muitas vezes a Nossa Senhora e deram a Ela razão para estar descontente. Se esses pecadores se voltarem e rezarem para Ela, encontrarão n’Ela uma Mãe de misericórdia toda disposta a atender.

Então, está tudo reunido para inspirar a maior confiança: Ela é uma rainha que tem tudo e pode tudo; é Mãe de misericórdia, “toda coração”, inclusive para os filhos mais miseráveis.

Quem pode deixar de ter toda a confiança na bondade d’Ela em que será atendido, quando faz esta oração?

(Extraído de conferência de 5/3/1992)

 

Guerra de tendências

A vida de Dr. Plinio, analisada à luz da batalha das tendências por ele travada e transposta para a história dos povos, permitiu-lhe formar princípios dos quais deduziu uma teoria e com esta elaborou o livro “Revolução e Contra-Revolução”, que constitui, em grande parte, as memórias dele.

A primeira sensação que tive, relacionada com a Revolução tendencial, foi a da pressa. Entre a geração de mamãe e a minha havia uma intermediária, de primos. Dona Lucilia tinha, em números redondos, trinta anos a mais do que eu. Assim, entre ela e mim havia primos quinze anos mais velhos do que eu, parentes e vários amigos da família.

Choque entre dois modos de ser

Pouco depois de Dona Lucilia, começava a aparecer uma geração na qual a alegria do viver estava deslocada. Não era mais o bem-estar daquela placidez, com tempo diante de si, mas uma forma de vivacidade que consistia em andar e falar depressa, em estar continuamente alegre, satisfeito, em contar coisas tendentes ao engraçado, ao divertido, ao sensacional.

Eu presenciei, mas de forma confusa, o choque desses dois modos de ser e notei que, ou me engajava nesse modo de ser novo e mudava minha personalidade, abandonando essa placidez e tomando esse trem que ia para a frente, ou seria tido como sem graça por essa gente nova. Era toda uma orquestração tendencial que ia nascer, na qual a estabilidade fecunda, pensativa, forte, mas compassada, cedia lugar ao corre-corre em busca de prazeres, agitação e excitação.

Conferi esse modelo comigo mesmo, perguntando-me, entre outras coisas, se me adaptaria a isso. E pensava: “Eu não sou assim. Sou tranquilo, gosto das coisas plácidas e que andam passo a passo. Não quero essa alegria saltitante.”

Por exemplo, via determinada pessoa entrar em casa assobiando a última música da moda. Alguém perguntava:

— Que música é essa?

Gargalhada…

— Ah, você não sabe?! É tal música assim.

E sentava-se com uma cara radiante, quando eu não via razão para estar radiante. Aliás, não vejo nenhuma necessidade de passar a vida radiante, mas sim de modo tranquilo. É uma coisa completamente diferente. E concluía: “Não tenho embocadura para isso. Se fosse meter-me nisso, falsearia minha personalidade. Mas, pior, não se deve ser assim. Deve-se ser como quem? Como mamãe. Ali está certo, está direito, está bom…”

Estabelecia-se entre mim e os adeptos da nova mentalidade um diálogo de surdos que terminava amavelmente porque todo mundo era amável, mas com um pensamento assim na cabeça deles: “Esse menino não tem jeito… É um desmancha prazeres mesmo!” E eu com outra reflexão: “Essa gente não tem jeito. Não se pode viver perto deles. Eu vou destoar mesmo.”

Mecanização geral da vida

Essa impressão acentuou-se à medida que a influência do pós-guerra, carregada de vida mecânica, se intensificou. Em São Paulo, os carros puxados a cavalo foram ficando mais raros, enquanto os automóveis e bondes mais numerosos. A mecanização geral da vida foi entrando e dando um ritmo mais apressado a todas as coisas.

Fiquei colocado diante da seguinte situação: eu tinha tendência à lentidão e à preguiça. Sentia a preguiça como uma espécie de peso em cima de mim, que me tornava todos os movimentos lentos, lerdos, pesados, desagradáveis, e me fazia encontrar gosto na inação. Isso devia ser vencido por uma vida ativa. Ora, vida ativa só era possível no ritmo daquela que todo mundo levava, porque era necessário tomar o bonde, ir para o colégio, voltar correndo, ir ao dentista, depois passar por casa para fazer não sei o quê, e isso precisava ser feito dentro daquela velocidade, não tem remédio, do contrário “perdia o bonde”.

Donde uma espécie de reajuste interno tendencial para combater a preguiça, nunca permitindo deixar para mais tarde o que eu pudesse fazer logo. E começando sempre, se  pudesse optar, pelo mais desagradável. Porque para o mais agradável se tem ânimo; o difícil é fazer logo o mais desagradável, de maneira a nunca me permitir, nesse ponto, moleza nenhuma, mas dentro do corre-corre dos pés conservar a tranquilidade do modo de ser e da alma, de molde a dar, com a estabilidade antiga, uma force de frappe1 nova, juntando as duas reações.

Contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza

Ligada a isso, outra coisa tornou-se clara para mim: o contraste entre a posição tendencial da pureza e da impureza. A castidade tem isto de próprio: quem a vive verdadeiramente é comedido e encontra sabor em tudo, até nas menores coisas. Ela se contenta com pouco e se alegra muito com coisas pequenas; não precisa viver correndo atrás de delícias. Um pequeno prazer, um pequeno atrativo já a regozija inteira. Quando lhe acontece de receber uma delícia, o homem puro se alegra também e, cessada a delícia, ele não entra na depressão, mas continua a vida animado pela alegria que teve.

No homem impuro é tudo ao contrário. As alegrias pequenas não lhe satisfazem, parecem bagatelas. As coisas que se repetem lhe parecem enfadonhas. Ele só quer alegrias enormes e, quando elas passam, cai na depressão. Antes de chegar a alegria, ele fica na torcida; depois da alegria, vem a frustração. Essa é a vida do impuro. Não preciso entrar em descrições, porque todos nós vemos o mundo encharcado disso.

Eu notava muito o contraste nesse ponto entre pessoas de minha geração, em torno de mim, sonhando com maravilhas, e o desdém que tinham pelas coisas agradáveis e pequenas que a vida oferece. Eu me regozijava, às vezes, com essas coisas, mas não comentava com eles. Por exemplo: sábado à noite, tendo todo um domingo diante de mim, eu me deitava. Era o dia em que, em minha casa, se trocava a roupa de cama. A cama dava impressão de inteiramente nova; quarto tranquilo, todo revestido com um papel de parede de que eu gostava muito, um quadro de Nossa Senhora em esmalte, uma mesinha com pequenos objetos. Eu me deitava e pensava: “Como me sinto bem e estou contente! Vou ter amanhã o dia inteiro de repouso; irei de manhã à Missa, depois voltarei para casa e vou brincar com os soldadinhos de chumbo; chegada a hora do almoço, terei um superalmoço. À tarde, vou ao cinema e depois é o desfile nas confeitarias. Por fim, janto. Como é agradável deitar-me agora na previsão desse dia!”

Mas eu via os outros de minha idade indo dormir; era completamente diferente. Não tinham vontade de que chegasse a hora de repousar, queriam ficar conversando e mexendo. Era preciso ir arrancando-os para a cama, meio brigados com a governanta. A hora de dormir era triste porque iam entrar nas sombras da noite. Para mim as sombras eram amigas. Apagada a luz, eu ainda ficava ouvindo um pouco os grilos num terreno baldio perto de casa, com um cheiro de vegetação que vinha dali. Logo passava da reflexão para o sono. Contudo eu não ousava elogiar isso diante de ninguém, pois percebia que não sentiam isso assim.

A hora de levantar também me era agradável. Mas levantar sem corre-corre; sentar na cama e rezar, tomar um pouco a noção das coisas que me rodeavam: a luz que entrava pela veneziana, os sons domésticos, os ruídos da rua, a vida que começava a pulsar em torno de mim. Depois me levantava com calma e, primeira coisa: “Bom dia, mamãe!”, depois fazia minha toilette e começava a vida.

Outros se jogavam para fora da cama. Eu pensava: “Mas o que é isso? Essa eletricidade perto de mim!” Tinha vontade de dizer: “Fora!” Mas não podia, tinha de engolir por inteiro. Se fosse algum primo que ia passar a noite comigo e conversava com exagero, eu respondia pausadamente até que ele também se domasse um pouco. Outra coisa altamente apreciável para mim, mas não para ele: tomar café com leite, pão com manteiga. Não tinha geleia, nem queijo, nem outras delícias. Era o comum. Mas um pão no qual se sentia o bom gosto do trigo, uma manteiga feita do genuíno leite, passada abundantemente sobre o pão. Um prazer simples, mas cheio de suco para uma alma equilibrada.

Uma espécie de xadrez humano

Eram tendências que se chocavam. Resultado: eles gostavam de brigar, eu detestava a briga. Discussão, sim, é agradável, pois entra o florete do argumento. A meu ver, é a mais bela forma de esgrima que o espírito humano excogitou. É lindo! Disso eu gostava. Mas, brigar…! Então um diz para o outro: “Eu te parto a cara!” Que intenção é essa? “Primeiro, com a minha não pode. A sua, não tenho o menor intuito de partir, pela simples razão de que não perco tempo com ela. A sua cara me desinteressa do modo mais total possível. Nem sequer para quebrar, ela me importa. Concebo bem que você tenha as mesmas disposições a meu respeito. Portanto, cada um com sua cara, e não quebre a do outro.”

O senso da hierarquia, muito desenvolvido em mim, vinha de todo o ambiente doméstico de que falei, marcado pela recusa à pressa. No momento em que recusei a pressa revolucionária, preservei dentro de mim o senso da hierarquia. Porque a vida com pressa é feita sem hierarquia, as pessoas não têm hierarquia de valores e, no convívio, não existe a hierarquia de pessoas. Elas se cortam a palavra umas às outras. E me causava muita estranheza exatamente a vida igualitária dos meus companheiros de colégio.

Ficam assim apresentados alguns problemas com os quais me deparei ainda em pequeno: uma escolha e uma definição temperamental e tendencial; um choque entre uma posição e outra; depois esses choques se multiplicam, porque a posição inicial se desdobra em posições afins, tanto de um lado quanto de outro, formando uma guerra de tendências.

Então, havia pessoas com as quais eu estava em guerra total, ou seja, eram completamente opostas a mim. Elas percebiam isso, como eu também, e inaugurava-se uma verdadeira batalha, disfarçada pela educação comum. Quer dizer, não se podia mostrar, mas havia luta.

Eu notava também a existência de indivíduos divididos tendo, em parte, tendências boas que afinavam comigo e, em parte, tendências más que afinavam com a Revolução. Esses constituíam uma “terra de ninguém” entre os dois extremos de tendências opostas, e que estavam na guerra total, procurando acentuar nos intermediários as tendências afins para puxá-los ao seu próprio campo, constituindo uma espécie de xadrez humano. Eram a Revolução, a Contra-Revolução e o semicontrarrevolucionário, apresentados tendencialmente e já entrevistos no tempo de pequeno. Assim, minha vida de criança e de mocinho era levada nessa batalha das tendências, mas sem uma conscientização inteira.

Montando um vocabulário como quem confecciona uma joia imensa

Que papel faz dentro disso a conscientização?

Por incrível que pareça, sentia tudo isso em pequeno, mas, foi tal a inibição causada pelo fato de ninguém aludir a tais considerações, que só vim a explicitar essas coisas mais ou menos a partir dos meus vinte e cinco anos, e devagar. Implicitamente, eu tinha torrentes disso; porém, não saberia explicitar para os outros, como não saberia fazê-lo para mim. Ademais, para saber por em termos é preciso ter toda uma linguagem. É quase outra ordem da realidade e outra paragem do espírito humano, que exige um vocabulário próprio para se chegar a explicitar.

Esse vocabulário não se procura no dicionário. Encontra-se testando: “Tal palavra serve, tal outra não serve. O que quer dizer essa, o que quer dizer aquela?” No uso do dia a dia, reter as palavras: “Essa serviu para explicar tal coisa, vou reter; aquela outra palavra vai me servir, mas em tal ocasião…” Assim ir montando o vocabulário como quem monta uma joia imensa, com milhares de pedras preciosas ou semipreciosas, para poder explicitar essas coisas. Isso não faz uma vida mole, mas uma existência sumamente entretida. No dia em que o homem pode dizer antes de dormir: “Hoje encontrei uma palavra!”, esse foi um dia positivo na vida dele.

Quando explicitei isso para mim mesmo, consegui montar as regras que instintivamente eu tinha seguido. Então, em grande parte, a obra Revolução e Contra-Revolução constitui minhas memórias. Não que eu tenha pensado naquela ordem teórica, histórica, filosófica. Esses pensamentos não afloraram em minha cabeça assim, mas constituíam um magma fecundo no qual as ideias iam se ordenando.

As batalhas internas de um povo são parecidas com as de uma alma

Em sentido figurativo, cada povo tem uma cabeça, um espírito, uma alma, à maneira de um homem: o que neste são tendências diversas, naquele são partidos políticos, correntes filosóficas ou artísticas. As batalhas internas de um povo são extraordinariamente parecidas com as de uma alma. Logo, é conhecendo as lutas internas de nossa própria alma e da dos outros que interpretamos bem os fatos históricos.

Minha vida analisada e reanalisada à luz da batalha das tendências por mim travada, e transposta para a história dos povos, permitiu-me uma remontagem da minha experiência, formando princípios, dos quais deduzi uma teoria e com esta elaborei um livro.

Neste sentido, esse livro constitui as minhas memórias, mas não só. É a minha previsão. Porque, como na luta das tendências, percebi, com a ajuda de Nossa Senhora, quais eram as regras do jogo, daqui por diante sei como esse jogo deve continuar. Sempre aprenderei algo de novo, porque as tendências são insondáveis, e não presumo esgotá-las. Qualquer alma humana tem um fundo incognoscível. Entretanto, é possível conhecer muita coisa e, por aí, saber o traçado do futuro. A previsão política é, em boa medida, a análise de como estão as tendências hoje e no que elas vão dar amanhã. Com isso, a previsão política é fecundada como a água fecunda a raiz de uma planta. Na raiz do pensamento previsor está o conhecimento das regras das tendências. Essa é a vantagem de conhecer as tendências.

Entretanto, todas as coisas verdadeiramente muito elevadas são passíveis de serem exploradas. Por exemplo, a música. Quanta coisa magnífica se faz com ela, mas também quanta vilania! Todas as artes são assim. Ora, agir nas tendências é uma arte; logo, pode ser tomada para o melhor e para o pior.

Onde está a dignidade disso? Quando se vive toda essa intensa vida das tendências, há determinados momentos em que o espírito se distancia desse jogo e faz a pergunta: “Mas, afinal, o que aqui é verdade, o que é erro? O que é bem, o que é mal?” Passo, então, a fazer disso uma análise lógica, com argumentos, raciocínios, para saber como uma coisa se costura na outra. E faço, eu mesmo, a crítica do meu pensamento para verificar se ele enfrenta as objeções. Então, vemos surgir, à maneira de um píncaro de neve sobre uma montanha muito verde, a lógica fria, rutilante e, dentro da sua frialdade, espelhando melhor o Sol do que a relva nas encostas da montanha. E podemos formular a teoria.

Um modo de ser eminentemente hierarquizante

Por exemplo, eu tenho um modo de ser eminentemente hierarquizante. Não basta dizer que possuo esse modo de ser para provar que é justo que isso seja assim. Quem me dá o direito de ser assim? A ordem natural das coisas feita por Deus é assim? Se for, então é bom que eu seja assim. Do contrário, não é bom. Porque a medida de todas as coisas de nenhum modo sou eu, que fui criado por Deus. A medida de todas as coisas é Ele. O que Ele ensinou a esse respeito? Por que Ele ensinou? Qual foi a intenção d’Ele?

E aqui entraria a teoria esplendorosa, magnífica, de São Tomás que contraria o igualitarismo. Explica o Doutor Angélico que, ao criar seres que refletissem suas infinitas perfeições, Deus não poderia fazer um único ser, porque qualquer criatura é tão insuficiente para realmente espelhá-Lo que ela seria caricata.

Mas essas criaturas, por sua vez, para O refletir têm que ser diferentes umas das outras. Se Deus criasse dois seres iguais, Ele cometeria o erro que um gago pratica quando pronuncia duas sílabas inúteis: “Eu que-quero.” Porque na palavra humana cada sílaba tem um som. O resto é linguagem de criança, ou de uma pessoa que não tem a locução normal, bem construída. Então, por causa disso, Deus formou criaturas diferentes, e assim sendo, criou-as desiguais, pois não há seres diferentes sem que um seja superior ao outro em algum ponto. Logo, ou não haveria Criação, ou existiria hierarquia.

Então, Gloria in excelsis Deo! (Lc 2, 14). No fim, o cristal de rocha do raciocínio, em arestas tomistas definidas que rutilam ao Sol, é o encanto e a glória da montanha. Assim, nos entusiasmamos tanto com as tendências quanto com o raciocínio, e glorificamos a Deus que nos deu esta riqueza: sermos verdadeiros instrumentos de música de tendências e cristais reluzentes de raciocínio.               v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/7/1979)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Do francês: força de ataque.

Santo Inácio de Loyola – A coerência sem meios termos

Uma conversão assumida com extraordinário vigor de espírito, a santidade abraçada e levada às suas últimas conseqüências: na vida de Santo Inácio de Loyola a força de vontade e as atitudes extremas foram uma constante, e sua inflexível coerência constitui, no dizer de Dr. Plinio, a nota mais bela da existência do grande Fundador da Companhia de Jesus.

 

Santo Inácio de Loyola nasceu em 1491, na casa-torre dos senhores de Loyola, em Azpeitia, norte da Espanha. Era o décimo terceiro filho do casal e entrou aos l9 anos como pajem na corte do Rei Fernando V. Dotado de temperamento ardente e belicoso, a carreira das armas o seduziu. No cerco de Pamplona foi gravemente ferido na perna. Durante longa convalescença, por falta de livros de cavalaria, que o apaixonavam, deram-lhe para ler a Vida de Jesus Cristo e dos santos. Tal leitura foi para ele uma revelação. Compreendeu que  a Igreja também possuía sua milícia, a qual, sob ordens do representante de Cristo, luta para defender na Terra os interesses sagrados do Deus dos exércitos.

Cavaleiro de Cristo e da Igreja militante

Na célebre abadia de Montserrat, Inácio depõe a espada aos pés da Santíssima Virgem e sua alma generosa, outrora seduzida pela glória mundana, não mais aspira senão  pela maior glória do grande Rei que doravante servirá. Na noite da Encarnação, a 25 de Março, depois da confissão de suas faltas, fez a vigília de armas e pela Mãe de Jesus é armado cavaleiro de Cristo e da Igreja militante, sua esposa. Será em breve general da admirável Companhia de Jesus, suscitada pela Providência para combater o protestantismo, o jansenismo e o paganismo renascente. A fim de conservar em seus filhos a intensa vida interior que supõe a atividade militante à qual os destina, Santo Inácio lhes dá uma forte hierarquia e lhes ensina, em magistral tratado aprovado pela Igreja, seus Exercícios Espirituais que têm santificado milhares de almas.

Tudo para a maior glória de Deus

O lema que santo Inácio escolheu para sua milícia foram: “Ad Maiorem Dei Gloriam — Para a Maior Gloria de Deus”. Eis toda a sua santidade. E o fim da Criação, o fim da elevação do homem ao mundo sobrenatural, o fim dos preceitos do Evangelho em que almas generosas renunciam às coisas lícitas para se ocuparem mais livremente dos interesses de Deus e para lhe darem essa totalidade de glória acidental, cujo uso pelos homens, de coisas ilícitas, O havia privado. A 13 de julho de 1556 morre Santo Inácio, pronunciando o nome de Jesus. Sua Companhia, espalhada pelo mundo inteiro, contava então dez províncias e cem colégios.

Homem de decisões extremas

Sobre a vida de Santo Inácio de Loyola, cujos aspectos constituem um conjunto sobremodo arquitetônico e rico, poder-se-ia tecer inúmeros comentários. Entretanto, gostaria de ressaltar um lado que me parece ser a nota mais bela de sua existência, o ponto pelo qual ele brilhou especialmente no firmamento da Igreja.

Refiro-me à sua força de vontade e de decisão que o fazia tomar, em todas as suas atitudes, a posição mais extrema, mais aguda, aquela que chegava ao fim último, sem meios termos.

Tomemos em consideração, por exemplo, o conhecido episódio de sua perna quebrada no cerco de Pamplona. Não se pode conceber algo de mais tremendo do que um homem, então mundano e voltado para as honras terrenas, ao se ver na contingência de mancar para o resto da vida em virtude de um erro ortopédico, decidir mandar quebrar de novo o osso imperfeitamente consolidado para que a perna ficasse em ordem. E isto porque, pelos cânones da elegância naquele tempo, um fidalgo capenga seria malvisto na corte e teria sua carreira política e militar prejudicada.

Ora, Inácio de Loyola encarou de frente o futuro que essa deficiência lhe traçava. Pesou tudo em sua crueza: “Quero viver na corte, desejo seguir a carreira militar. Se eu ficar coxo de uma perna, não brilharei entre meus pares, não dançarei, não terei valor algum como soldado. Ora, devo lutar, devo luzir na corte. Se não me livrar dessa carência física, minha vida está rateada. Então, vamos quebrar de novo esta perna!”

Imaginemos agora um cirurgião munido dos instrumentos e métodos ortopédicos daquele tempo, desferindo pancadas sobre um osso mal jungido, rompendo-o e ligando-o de novo. O que isso significava de dolorido e dramático, só quem o sofreu pode saber!

Em seguida, os longos dias e as horas intermináveis de inércia num leito, aguardando a consolidação do osso e a recuperação dos movimentos da perna, seriam horrivelmente enfadonhos para aquele homem super-ativo, afeito a batalhas e grandes realizações.

Vê-se nessa atitude a decisão extrema do homem que mediu tudo e resolveu aceitar um sacrifício momentâneo em prol de seu futuro brilhante. Excluindo-se os motivos meramente mundanos que o levaram a essa situação, percebe-se naquele Inácio de Loyola o senso da preeminência do definitivo sobre o efêmero, uma fibra de alma para enfrentar tudo que fosse preciso e uma capacidade de olhar os problemas de frente que nos deixam admirados.

Santidade levada às últimas conseqüências

O mesmo vigor de espírito, a mesma força de decisão e de vontade ele empregará no momento de se converter e abraçar o chamado de Deus. Homem mundano e militar vaidoso, esquecido das coisas do Céu, sente-se tocado de modo irresistível pela graça e, como procedera em relação ao defeito físico, medita nas suas lacunas morais: “Tenho de encarar de frente as verdades eternas, o Céu, o inferno, a salvação ou a condenação. Recebi graças, compreendi como o ser autêntico católico significa dedicar-se ao serviço de Deus, a amá-Lo sobre todas as coisas nesta Terra e na eternidade. Não ser assim é procurar apenas a felicidade transitória do mundo, mas também o infortúnio e a injúria a Deus. Essa é a verdade, e tenho de encará-la.

“Devo tirar todas as conseqüências que daí pendem para mim, Inácio de Loyola, e estas consistem em seguir a voz da graça que me pede, à vista dessas considerações, uma completa mudança de vida, vivendo ao contrário do que até agora vivi, construindo para mim uma existência feita de abnegação, de humildade, mas, sobretudo, de coerência. Serei coerente até o fim na verdade que considerei e abracei por inteiro”.

E temos, assim, o programa de vida magnífico de Santo Inácio de Loyola. Ele não recuou diante de nada e empreendeu tudo quanto foi necessário para levar essa coerência até os últimos limites. Recordemos, por exemplo, o fato de ele se pôr como um mendigo, sujo e maltrapilho, pelas ruas de sua cidade, sendo reconhecido pelos seus antigos amigos fidalgos que o interpelavam com risos sarcásticos nos lábios:

— Sois vós, Inácio? O que aconteceu?

— Faço isto por amor a Deus e em reparação de meus pecados.

Os outros riam mais alto e se afastavam. Se nos colocarmos, cada um de nós, na pele de Santo Inácio em semelhante situação, numa rua de nossa cidade natal, poderemos talvez aquilatar o que essa atitude representava de vitória sobre o amor próprio e os apegos mundanos.

Pouco depois, ele funda a Companhia de Jesus, obra minúscula, constituída de meia dúzia de discípulos, com a intenção de deter a avalanche da reforma protestante pela Europa do século XVI. Santo Inácio decide realizar essa coisa extraordinária: uma ordem militar, no sentido mais elevado da palavra, para opor barreiras ao inimigo da Igreja.

Mais uma vez, é a eterna coerência levada às últimas conseqüências. Ele empreende a obra jesuítica, levanta diques à Revolução e, afinal de contas, consegue salvar e preservar vastos territórios do mundo católico.

Tratado da coerência humana

Esse espírito coerente levado até o fim, esse tratado da genuína coerência humana se acha expresso nos célebres Exercícios Espirituais escritos por Santo Inácio. Da primeira à derradeira linha, tudo neles não é senão o ver os problemas de frente, sem nenhuma mitigação covarde.

Poder-se-ia distinguir, nos Exercícios Espirituais, duas gamas de coerência levadas ao último ponto: uma, que é o pólo de todas as outras coerências, exprime-se pelo direito soberano de Deus, de Nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Igreja Católica, de serem amados sobre todas as coisas pelos homens; a segunda se traduz pela desconfiança a nosso próprio respeito, pela consideração da maldade de toda criatura humana concebida no pecado original, pela falta de lealdade que cada um tem para consigo mesmo e nossa desonestidade em assumirmos os bons propósitos — o que, tudo, deve ser visto igualmente de frente e até o fim.

Na junção dessas duas gamas de coerência temos uma obra característica da alma de Santo Inácio. Encontra-se ali uma super-coerência que só as almas autenticamente virginais possuem, e constitui para nós um indizível modelo de pureza de intenção, aliada à pureza do corpo.

Pedir a graça de sermos coerentes na santidade

Assim sendo, para concluir esses comentários, creio oportuno invocarmos a intercessão de Santo Inácio de Loyola, rogando a ele nos obtenha a graça de o imitarmos nessa sua extraordinária coerência. Que tenhamos, como ele, a coragem de vermos nossos defeitos de frente, por piores e desagradáveis que sejam, e, como ele, tenhamos a coerência sem meios termos para abraçar a verdade inteira, a virtude completa, o caminho da santidade levado até as últimas consequências.

Claro está, sem a graça divina nada alcançamos. Sem a infalível proteção de Maria Santíssima, dificilmente vencemos nossa maldade e nossas fraquezas. Porém, rezando e confiando nesse patrocínio de nossa Mãe celeste, nossas defecções e debilidades serão sobrepujadas e obteremos de Deus os dons necessários para correspondermos à plenitude do que Ele deseja de nós.

Pode mesmo parecer milagroso que alguém, considerando suas misérias, chegue ao grau de virtude de Santo Inácio de Loyola. Pois devemos pedir esse milagre da misericórdia divina, uma vez que a todos os homens são franqueadas as graças necessárias para alcançarem a perfeição.

Seja essa a nossa ardente súplica ao grande Santo Inácio de Loyola em sua festa.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 30/7/1966)

 

Il Gesù

Edificada em frente à Sede Generalíssima da Companhia de Jesus, a igreja “Il Gesù” é riquíssima em formas e cores. Contemplemos alguns de seus detalhes em companhia de Dr. Plinio.

 

Ao contemplar a famosa Igreja do Gesù, em Roma, dada a propensão que tenho pelas cores, a primeira coisa que me ocorreria seria analisar os mármores que lá estão colocados.

Altar forrado de belos mármores

Em um dos altares laterais, onde está o corpo de Santo Inácio, nota-se a distinção entre duas coisas. No altar propriamente dito, sobretudo nas duas colunas de mármore que se encontram de cada lado da imagem do santo. Cada uma delas é peça monolítica, uma pedra só de baixo até em cima. E esse mármore dá a nota dominante de todo o colorido.

Logo depois dessas colunas há uma faixa de mármore por onde as colunas das extremidades, de certo modo, se encostam à parede. E é um salpicado, um misto da cor de noz com o branco, preparando a transição para o branco total.

Depois existe um grande quadrilátero, dentro do qual se nota uma cor parecida com a das colunas; há uma transição que prepara a passagem para o marrom-claro absoluto, através do branco também absoluto. É uma coisa muito bem feita, um jogo de cores entre o marrom e branco muito bem calculado, que se repetem no próprio altar.

Harmonia entre cores e formas

Em cima do arco que serve de dossel para a imagem de Santo Inácio de Loyola, encontram-se alguns anjinhos. E mais acima algumas figuras brancas, são anjos também; e bem acima, a Santíssima Trindade: a glória de Deus, eterna, imutável e absoluta.

O jogo de cores e as formas são muito agradáveis de olhar. Todas as formas são muito definidas, proporcionadas, e fazem do altar uma obra de arte.

O altar é a glorificação de Santo Inácio de Loyola. Mas contém um pensamento sério: por mais elevado que Santo Inácio tenha sido, infinitamente acima dele, portanto em uma outra ordem de coisas, por assim dizer, além do altar, está Deus Nosso Senhor. Deus, ótimo, máximo, que brilha no mais alto da glória. Abaixo d’Ele está um santo, com os braços abertos em uma espécie de êxtase, olhando para o Céu, quer dizer, com o pensamento dele todo voltado para o Criador: Deus e seu servidor.

Vejam a diferença que há entre o servidor de Deus, o santo canonizado pela Igreja, de um lado, e, de outro lado, um simples fiel que reza ajoelhado junto à mesa de Comunhão, à grade que está colocada abaixo do altar. Observem a hierarquia das coisas. A Igreja militante, tendo acima de si a Igreja gloriosa, a qual está toda voltada para Deus e absorta na consideração e na contemplação d’Ele. Um santo é um cidadão, um membro eminente da Igreja gloriosa.

O gesto de Santo Inácio é exclamativo, como quem está em um êxtase e todo absorvido na contemplação do esplendor de Deus, de um lado; de outro lado, nota-se que é um gesto muito harmonioso, muito digno, que não tem nada de demagógico.

Seriedade do altar renascentista

Trata-se de uma peça caracteristicamente renascentista; apesar disso tem uma seriedade que não chega a ser de nenhum modo a seriedade sublime do gótico, mas é uma seriedade real. Os próprios anjinhos não são como os de Bernini; é tudo sério, pensado, bem ordenado, articulado. É o espírito de Santo Inácio de Loyola.

Se este fosse o altar-mor de uma grande igreja, nós diríamos: “Que igreja!” Mas, esse é um altar lateral…

Madonna della Strada

Entre o altar de Santo Inácio e o altar-mor, venera-se a imagem da “Madonna della Strada”.

Alguém dirá: “Mas não é esquisito que haja um altar entre o de Santo Inácio e o altar-mor? Não se compreenderia melhor que ele estivesse bem junto ao altar-mor?” Onde está Nossa Senhora todo mundo recua. E uma imagem da Santíssima Virgem não pode figurar depois da imagem de um santo. A imagem miraculosa de “Madonna della Strada” é muito venerada por todos que vão ao Gesù.

É realmente uma muito bonita imagem, muito expressiva, séria, como muito sério é também o Menino Jesus. Nossa Senhora dá vagamente a impressão de ter os trajes de uma imperatriz bizantina; a imagem é um tanto orientalizante.  E o Menino Jesus está todo vestido, cheio de pudor, diferente dessa mania de apresentar o Divino Infante nu, ou quase nu, como se Nossa Senhora fosse uma Mãe despreocupada e indolente, que não tivesse vontade nem disposição de cobrir o corpo de seu Menino.

O altar de São Francisco Xavier

Em frente ao altar dedicado a Santo Inácio há outro em honra de São Francisco Xavier, o grande apóstolo das nações de raça amarela, que evangelizou uma boa parte do Japão, e morreu numa ilha entre o Japão e a China, olhando para a China, com vontade de chegar lá e de evangelizar aquela nação.

Ele era súdito de Santo Inácio, por quem foi convertido. Mas ele era um tão grande apóstolo que mereceu ser colocado em frente a Santo Inácio, embora do lado esquerdo de quem entra na igreja. Lá está o braço incorrupto de São Francisco Xavier, encastoado em um relicário que muito vagamente toma a forma de um braço com a mão na extremidade. Eu chamo a atenção dos presentes para o lacerado da mão, como também para os dedos, que são finos, delicados, exprimindo assim um feitio de alma especialmente delicado.

Tomem em consideração que São Francisco Xavier foi um grande professor da Universidade de Paris, antes de se tornar jesuíta. Todos os dias em que dava aula, ele encontrava um seu conterrâneo, baixo, de olhos como dois sóis, coruscantes, penetrantes, pobre, malvestido, que se aproximava dele enquanto os alunos lhe prestavam homenagem. São Francisco Xavier era tão homenageado como professor que frequentemente, quando terminava a aula, os alunos — que naquele tempo usavam capas — punham suas capas no chão para que ele ao sair pisasse sobre elas. E Santo Inácio esperava a São Francisco Xavier do lado de fora da porta e perguntava: “Francisco, de que serve isto tudo se perderes a tua própria alma?” Aquilo foi tocando a alma de São Francisco, o qual afinal se converteu e pertenceu ao primeiro grupinho de jesuítas. Depois foi o imenso apóstolo do Oriente, tendo também trabalhado na Índia.

Comungando na Igreja do Gesù 

Para encerrar, eu gostaria de narrar um fato que se deu comigo.

Fui comungar, certa vez, na Igreja do Gesù.

Ao ajoelhar-me junto à mesa de comunhão notei que ela era magnífica, toda incrustada com figuras geométricas, de mármores das mais diversas cores — aliás, sabe-se que a Itália é a terra dos lindos mármores.

Quando me dei conta, eu estava tentado a ficar prestando atenção nos mármores em vez de prestar atenção no Autor dos mármores, que Se dignava entrar dentro deste peito do qual Ele também é o Autor. Precisei fazer um solavanco violento para que o esplendor da mesa de Comunhão não afastasse o meu espírito da consideração d’Aquele que é o esplendor subsistente, em relação ao Qual todo o resto não é senão imagem ou semelhança.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 4/8/1979 e 11/11/1988)

Santa Ana e São Joaquim

Expoentes da fidelidade a Deus no Antigo Testamento, São Joaquim e Sant’Ana ansiavam pela vinda do Messias prometido, desejando ardentemente estar entre os ancestrais do Salvador.

Porém, segundo uma piedosa crença, os anos passavam, eles envelheciam e não lhes nascia um filho que alimentasse suas esperanças.

Sabiam, no entanto, que as grandes esperas são o prelúdio dos grandes dons da Providência. Continuaram a confiar e não se viram desiludidos: eis que Sant’Ana concebe em avançada idade, e dá à luz Aquela que haveria de ser a Esposa do Espírito Santo e a Mãe do Verbo Encarnado.

São Joaquim e Sant’Ana, magníficos exemplos de quem, sabendo esperar e confiar, recebe o cêntuplo das promessas divinas!

Todos serão julgados pelo que fizeram por suas nações

No Juízo Final os indivíduos serão julgados, entre outras coisas, pelo bem que poderiam realizar a favor das nações às quais pertenceram, mas por terem sido preguiçosos, ambiciosos, hereges ou cismáticos, não o fizeram. Se desejamos que os nossos países sejam grandes, queiramos antes de tudo que a Igreja Católica seja glorificada.

Há duas espécies de povos que desapareceram: uns sumiram definitivamente; outros preenchem o vácuo deles na História e a vida vai para a frente. Exemplo característico são as ruínas, que se encontram em certas partes da Ásia e da Polinésia de modo especial, de civilizações bastante desenvolvidas, das quais ninguém sabe o que foram, quando existiram e por que desapareceram. São os navios fantasmas da História!

Embarcações vazias flutuando sem rumo pelos mares

Até a navegação obter o progresso que ela tem hoje, era frequente haver mares ermos os quais passavam anos sem que um navio neles entrasse. Às vezes, quando dois navios se encontravam, costumavam se aproximar e, se não eram inimigos – pois nesse caso saía tiro! –, chegavam a se encostar para saber qual deles tinha estado em terra firme a menos tempo e que notícias trazia. Compreende-se isto perfeitamente.

Essa história de os navios se aproximarem perdurou por muito tempo. Lembro-me que quando eu tinha cinco anos mais ou menos, vinha de Gênova para Santos num navio de passageiros chamado Duca D’Aosta, quando nos chegou um telegrama passado do bordo de outro navio, parece-me que era inglês. Eles avisavam que tinham tido notícia de que o Duca D’Aosta ia passar por lá e pediam que se aproximasse, para que os passageiros pudessem se saudar, tal era a aventura de estar em alto-mar. Todos os passageiros de ambos os navios foram para o tombadilho, e as duas tripulações se saudaram, como poderiam fazer hoje dois navegantes no espaço, que se movimentam em sentido contrário.

Lembro-me de ver distintamente os passageiros do outro navio, onde, aliás, havia parentes muito chegados nossos, que sabíamos estarem viajando nele. Então nos reconhecemos, houve saudações, as senhoras trocavam beijos, etc. Não lembro se todas, mas algumas pelo menos compareciam ao tombadilho preparadas para resistir ao vento e à deslocação de ar no navio, com chapéus grandes, uns tules protegendo o rosto e ainda echarpes. Porque quando se está num alto-mar ínvio como aquele, é melhor estar preparado para tudo!

Nesses tempos, e também em épocas anteriores, encontravam-se, por vezes, navios aos quais se mandava um sinal e não se obtinha resposta. Então, o capitão do navio que não recebia resposta aproximava-se para ver o que se passava, porque podia haver casos de necessidade. E várias vezes foram encontrados navios completamente vazios, em situações muito curiosas. Num deles, por exemplo, tudo indicava que uma parte dos passageiros estivesse tomando refeição, porque foram encontrados nos pratos de sobremesa restos do que comiam. E sem nenhum sinal de luta interna – ninguém lutou, não houve começo de incêndio nem infiltração de água. O navio estava perfeito, flutuando sem rumo pelos mares.

Nações que se tornaram os navios errantes da História

Qual foi o mistério que levou a tripulação inteira – supõe-se que sejam navios de passageiros, pais, mães, filhos, enfim, parentelas e outros avulsos – a saírem do navio para irem a outra embarcação? E por que motivo os que transportaram essa gente não levaram reservas de comida? Podem imaginar que prejuízo para um navio levar bocas e não água doce, alimentos? O que houve?

Em uma revista histórica francesa li um artigo muito bem feito e cheio de casos desses, que levantava a seguinte hipótese: Tudo bem analisado, só há uma conjetura cabível, mas que não tem base científica: terem vindo entes de outros astros e levado essa população inteira para outro planeta.

Não estou opinando nem pelo sim nem pelo não, porque acho impossível opinar, mas é um mistério enormemente pitoresco, interessante, acho até atraente… Eu, por mim, gostaria de visitar um navio assim!

Há navios cujas ruínas estão em ilhas e desertos, dentro dos matos… uma população viveu lá, floresceu, morreu. E não se sabe quando e por que deixaram aquele lugar. Não foram mortos, porque não se encontraram cadáveres. Não foi guerra, porque não há sinal de combate. O que aconteceu? É pitoresco.

Pois bem, há civilizações que se tornaram os navios errantes da História.

O homem responde pela sua nação perante Deus

Nossa civilização tanto entrelaçou o mundo, que não nos passa pela cabeça de sermos algum dia um povo navio errante da História. Mas imaginem que venham os castigos previstos em Fátima, e restem uns punhados populacionais pelo mundo. Pode ser que os componentes de alguns desses punhados morram muito velhos e não tenham descendência, está acabado. Mas, há outras nações que têm contas mais severas a prestar a Deus, porque muito tempo depois de extintas as suas descendências ainda deveriam marcar a História. É uma possibilidade.

Então, no dia do Juízo Final tudo isso vai se apurar? Sim e não. Porque, no Céu, não há nações. E o Juízo Final é um juízo individual, vai julgar os indivíduos. Então, o que fazem as nações dentro disso? Os homens serão julgados, entre outras coisas, pelo que eles fizeram às nações a que pertenceram. É evidente. E aqueles que poderiam ter modificado muitas nações para o bem serão julgados por aquilo que elas não receberam deles, porque foram preguiçosos, ambiciosos, hereges ou cismáticos.

Uma nação desapareceu na História, mas o homem responde pela nação perante Deus: “Por que tal país que Me deveria ter prestado tais e tais serviços não prestou? Tu tinhas na mão a possibilidade de fazer isto, aquilo, aquilo outro. Por que não fizeste?” E, sobretudo, e essencialmente o que se refere ao apostolado: “Tu poderias ter feito que tua nação espalhasse meu Nome em tais outros lugares. Isso não aconteceu.”

Tomada de Saigon pelos comunistas

Causou-me um arrepio ler a queda de Saigon1. De manhã, antes de os comunistas chegarem a esta cidade – todo mundo sabia que iam chegar –, o comércio abriu, tudo funcionava normalmente. No melhor clube da cidade, a piscina cheia de banhistas e o bar vendendo champagne e outras bebidas de luxo. Nos grandes hotéis, também de luxo, os correspondentes de imprensa, os diplomatas, etc., divertindo-se, esperando que os comunistas chegassem. Perguntam:

— Mas vocês não fazem nada?

Na piscina, um nababo que tomava champagne deu esta resposta:

— Só eu? Não é possível fazer nada mesmo. Deixe-me beber aqui a última taça de champagne!

Muito inteligentemente, os primeiros contingentes comunistas que entraram em Saigon eram compostos de rapazinhos adestrados e, naturalmente, com gente mais velha atrás para fazer a coisa trotar. Pulavam dos caminhões em que estavam e se espalhavam pela cidade. As pessoas os olhavam, achavam-nos tão jovens e inofensivos que davam risadas e os saudavam amistosamente. Eles tinham a palavra de ordem de tomar conta dos postos-chaves.

Quando as tropas começaram a entrar, toda a resistência era impossível porque elas estavam armadas e os lugares-chaves, de onde podiam desencadear alguma resistência, já estavam nas mãos desses meninos. Se matassem esses meninos havia o risco de atrair sobre si uma vingança da qual eles tinham medo. Compor com os comunistas era a coisa melhor que tinham para fazer, imaginavam eles.

Os católicos eram numerosos em Saigon e poderiam ter feito uma resistência. Mas eles tinham um arcebispo a favor da conciliação com os comunistas. E esse arcebispo trazia consigo uma série de gente que era do mesmo naipe, leigos e eclesiásticos.

Estes não vão prestar contas pelo fato de que Saigon caiu? Os homens que pregaram a rendição não entregaram irremediavelmente seu país ao inimigo, quando tinham a obrigação de defendê-lo? Então, não vai ser julgado o Vietnã, mas sim todos os homens que resistiram ou não, que amoleceram. Todos vão prestar contas por sua vida individual e pelo que fizeram de seu país.

Veneza e Florença: duas vertentes do espírito humano

Entretanto, as nações pagam nesse mundo os pecados que cometem, precisamente porque não haverá nações no Céu nem no Inferno. Logo, Deus pune com castigos terrenos os pecados das nações. Resultado: as nações se tornam infelizes, mesquinhas, sem importância, por causa dos pecados que cometeram.

Quando a nação não peca e corresponde à graça, qual a recompensa que ela recebe nesta Terra também pela sua virtude? Recebe toda espécie de grau de glória, de grandeza que Deus lhe tinha destinado. Com uma alegria especial, que é a ufania justa e razoável daqueles que pertencem a essa nação.

Então, encontramos nações que tiraram de si o que podiam. O exemplo mais característico disso talvez tenha sido a Itália. Nos séculos XV e XVI, a Itália não era uma nação, mas um conjunto de pequenas nações independentes. Florença, por exemplo, era um grão-ducado à testa da Toscana. O povo havia correspondido durante muito tempo à graça, e com isso tinha desenvolvido o seu perfil intelectual e moral extraordinariamente. E houve um pulular de grandes homens, de Santos, que faziam da vida interna da Toscana um dos ápices do acontecer do mundo. A Catedral de Florença, os monumentos, as bibliotecas, o Palácio della Signoria, mil coisas, constituem um tesouro. Todo mundo que deseja ter cultura precisa se informar um pouco sobre Florença. Ela foi ou não uma grande cidade? Foi inclusive um grande Estado.

Veneza é mais ou menos contemporânea de Florença. Vai-se de uma cidade à outra em poucas horas, mas são dois mundos completamente diferentes. Eis um lado por onde se pode ver a característica de cada uma: os artistas de Florença eram peritos, sobretudo, no desenho das figuras que pintavam, porém davam menos importância às cores, enquanto os de Veneza eram exímios pelo colorido. São dois feitios de alma: um é aberto, afável, ameno, dos que gostam mais da cor do que da forma; outro é lúcido, penetrante, inteligente, daqueles que dão mais importância à forma do que à cor.

Em Veneza os coloridos são feéricos, não só dos quadros, mas também da natureza. Aquela laguna com toda a sua beleza, os coloridos que se fazem durante o dia quando o Sol se levanta ou se põe, os palácios construídos ao longo daqueles canais onde se refletem indefinidamente, tudo é de um colorido estupendo! Vai-se para Florença e se vê uma coisa diferente: é a precisão do desenho carregado de expressão. Então, que glória: duas cidades próximas, pequenas, republiquetas, engendraram essas duas escolas de arte representando dois feitios, duas vertentes do espírito humano. É uma maravilha!

Poder-se-ia perguntar: O espírito do povo brasileiro vai mais pelo gosto das cores ou do desenho? Nos panoramas do Brasil, o que é mais bonito: o colorido ou o desenho? Procurando – não como um argumento de certeza, mas de probabilidade – um traço do espírito nacional, como seria interessante tratar disso!

Portugal sobreviverá, mas precisa mudar muito

São Luís Grignion de Montfort, contemporâneo de Luís XIV, diz que no tempo dele o mundo já estava invadido por uma torrente de iniquidade, mas haveria um momento em que Nossa Senhora interviria, venceria e implantaria o Reino d’Ela. A Santíssima Virgem falou de nações inteiras que desapareceriam; serão os “navios fantasmas” da História. Com certeza, Ela já escolheu as nações que sobreviverão.

Garantia de sobreviver, a Virgem de Fátima só deu a uma nação: Portugal. Ela escolheu esse país para lá aparecer, quer dizer, foi o pedestal do alto do qual a Mãe de Deus quis falar ao mundo. No entanto, poderia perfeitamente não ter dito que Portugal, depois de todos os castigos por Ela profetizados, conservará o dogma da Fé2.

Como será Portugal no Reino de Maria? Por certo, Portugal terá que mudar muito até lá… É uma nação que se deixou semientregar aos comunistas. Aquela porcaria da Revolução dos Cravos3, poderia haver algo de mais contrário à índole de um povo guerreiro como o português, tendo o passado de batalhas que tem? Portugal daquele tamanhozinho, com um império colonial formidável! E mais ainda, nenhuma colônia de país europeu resistiu tanto a favor da metrópole quanto Moçambique e Angola em relação a Portugal. Entretanto, depois disso, Portugal ir na onda daquela Revolução dos Cravos, e por causa desses cravos acreditar nas intenções pacíficas daqueles bandidos!

Ora, Portugal conservará o dogma da Fé. Conclusão: para que haja o Reinado de Nossa Senhora é preciso que a nação lusa mude muito, porque não podemos imaginar no Reino de Maria um Portugal com o Estoril rachando de imoralidade em épocas de turismo, e daí para fora.

No Reino de Maria, as nações católicas constituirão um concerto de beleza sublime

Mas no Reino de Maria deve realizar-se a descrição famosa de Santo Agostinho, a respeito da nação católica. Disse ele: Imaginem uma nação onde o rei e o povo, os generais e os soldados, professores e alunos, esposos e esposas, pais e filhos, todos vivem em estado de graça e no cumprimento do amor de Deus; esse país sobe assim ao mais alto de sua glória.

Será que para isso acontecer vão desaparecer as características dos diversos povos, e todos se fundirão por terem a mesma Fé? Absolutamente não. Pelo contrário, as características se acentuarão, constituindo entre todas as nações católicas um concerto com harmonias de uma beleza sublime. Se víssemos o mundo assim, diríamos: “Mas isso é o Céu ou é a Terra?”

Este “sonho” viveram-no tantos povos da Idade Média. A Cristandade era a família das nações cristãs católicas, na qual se cumpria a Lei de Deus. São Pio X disse isso em uma de suas encíclicas: se a Europa estava acima de todas as nações do mundo, por causa do esplendor de sua civilização cultural, artística e material, era devido à Fé Católica.

Conclusão: preocupemo-nos, sobretudo, em que todas as nações sejam inteiramente católicas, e então se aplicará a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Procurai o Reino de Deus e a sua justiça – quer dizer, a virtude que nele se pratica – e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo” (Mt 6, 33).

Se desejamos que os nossos países sejam grandes, queiramos antes de tudo que a Igreja Católica seja glorificada, que todas as nações pratiquem a Lei de Deus e tenham o espírito da Santa Igreja; o resto nos será dado por acréscimo e teremos o Reino de Maria.          v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 4/9/1986)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Nome da capital do antigo Vietnã do Sul, tomada pelos comunistas em 30 de abril de 1975.

2) Cf. IRMÃ LÚCIA. Memórias I. Quarta Memória, c. II, n. 5. 13ª ed. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007, p.177.

3) Ocorrida em 25 de abril 1974.

O Bem-aventurado da grande resolução

Por meio de seus Santos, Deus faz brilhar de mil maneiras a fortaleza católica. Em Santo Ezequiel Moreno y Díaz essa virtude reluz de modo enlevante, por sua vontade resoluta em cumprir a vontade divina, disposto aos maiores sacrifícios.

Mandaram-me um quadro de um Bem-aventurado colombiano, famoso por seu antiliberalismo, Ezequiel Moreno y Díaz1. Sua fisionomia me agrada muito.

Batalhador destemido contra o liberalismo

A expressão fisionômica é digna, forte, nobre, dentro de uma grande serenidade. Nota-se uma determinação e uma resolução que não precisa de fogachos para se firmar. Ele é calmo, tranquilo, mas o que ele resolveu, resolveu.

Parece-me uma fisionomia que, a seu modo, pode emular, ser colocada à altura do semblante de Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, Bispo de Olinda e Recife no tempo do Império. Com a diferença de que o Beato Ezequiel é espanhol, o que se percebe considerando algo no rosto que dá essa ideia. Dom Vital é tipicamente brasileiro, inclusive a vivacidade no olhar é do estilo de vivacidade brasileira.

Fizeram-me um pequeno relato sobre esse Bem-aventurado, que passo a ler.

O Bem-aventurado Ezequiel Moreno y Díaz foi Bispo da cidade de Pasto, que faz fronteira com o Equador, onde está o Santuário de Nossa Senhora de Las Lajas, grande devoto d’Ela e importante promotor da construção do atual santuário.

Um dado que chama especialmente a atenção é seu combate ao liberalismo que nessa época – fins do século XIX –, tanto na Colômbia quanto no Equador, estava atacando fortemente a Igreja, desapropriando os bens eclesiásticos e perseguindo o clero.

Ele levou a luta contra o liberalismo ao ponto de escrever pastorais, nas quais chamava os católicos a se levantarem em armas contra o liberalismo, inclusive citando-lhes o exemplo dos Macabeus: Mais vale morrer do que viver numa terra devastada e sem honra (cf. I Mac 3, 59).

A prédica desse prelado deu calor aos católicos especialmente durante uma guerra havida na Colômbia entre exércitos católicos e liberais, que se desenrolou ao longo de três anos, intitulada a “Guerra dos Mil Dias”.

Outro traço da firmeza deste Bem-aventurado foi o fato de ele ter lançado uma excomunhão contra todos os pais de família que enviassem os seus filhos a um colégio, cujo diretor era uma pessoa de doutrinas liberais. O tal diretor se transladou para o outro lado da fronteira e, com a anuência de um bispo equatoriano de ideologia liberal, começou a funcionar ali uma escola.

Alguns pais colombianos mandaram seus filhos a esse colégio do Equador. Então, o Beato Ezequiel renovou a excomunhão, o que levou o bispo equatoriano a se queixar junto à Santa Sé. Resultado: a Sagrada Congregação dos Bispos desautorou o Bem-aventurado. Este foi a Roma – viagem que naquela época durava vários meses –, fez revisar todos os documentos no Vaticano e obteve que Leão XIII levantasse a condenação que havia recebido.

A correia de São Tomé, característica dos agostinianos

Isso é saber lutar bem! Notem a analogia com Dom Vital que, desautorado por uma carta de Pio IX, inspirada pelo Cardeal Antonelli, foi a Roma, obteve o julgamento do caso dele e a afirmação de Pio IX de que ele tinha andado bem. Portanto, a intriga havia subido até dentro do Vaticano.

Passo a comentar o quadro. Estamos na presença de um religioso da Ordem de Santo Agostinho. Notam-se as insígnias episcopais: o solidéu roxo, a cruz peitoral e o anel pastoral. Em seu hábito ele traz a correia característica dos agostinianos, a qual, segundo me disseram, é uma reminiscência do cinto que Nossa Senhora levava consigo e que atirou a São Tomé, enquanto Ela subia ao Céu.

Como sabemos, São Tomé foi o único Apóstolo que não assistiu à dormição e Assunção da Santíssima Virgem, no que se poderia ver uma severidade por causa daquela dúvida dele a respeito da Ressurreição de Nosso Senhor. E o que Nosso Senhor disse a ele: “Tu creste, Tomé, porque Me viste; bem-aventurados os que não viram e creram.” (Jo 20, 29); é uma censura. Santo Agostinho diz sobre essa censura uma coisa extraordinária: que a Fé de milhões de homens pelo futuro pendeu do dedo de São Tomé, porque como há muita gente com a mentalidade que São Tomé tinha antes de tocar nas Chagas de Jesus, essas pessoas se sentem tranquilizadas com tal narração.

Mais uma vez entram os desígnios ocultos, misteriosos e superiores da Providência. Em última análise, São Tomé teve um momento de dúvida, mas desta dúvida a Providência tirou uma vantagem tão grande que nos perguntamos como Ela Se teria arranjado para produzir esse efeito, se São Tomé não tivesse duvidado. Tal é a complexidade dos fatos considerados do ponto de vista da Providência.

São Tomé chegou atrasado, quando Nossa Senhora já ia subindo, e ficou naquele encantamento por vê-La. Ela sorriu, desprendeu de Si o cinto e atirou para ele. Onde, uma vez mais, entram os tais desígnios da Providência. O único Apóstolo que não esteve presente foi ele; entretanto, pelo que conste, o único a receber uma lembrança d’Ela, quando já Se destacava da vida terrena e ia subindo ao Céu, foi ele. Tem-se vontade de dizer: “Bem-aventurado Tomé!”

Distensão das grandes resoluções tomadas

Mas voltando ao quadro, o olhar do Bem-aventurado Ezequiel Moreno está fitando alto no horizonte. Esta atitude do olhar, uma pessoa romântica não tem. Porque ele está olhando para um ponto fixo, e o romântico não gosta de olhar nada de fixo, é um olhar “melado” que não se crava em nada porque fita sonhos interiores.

O rosto dele está inteiramente distendido, não se nota nele a menor contração. Entretanto, não é a distensão comum do homem que dorme, mas é aquela forma de distensão que os irresolutos não têm. Estes possuem a distensão da moleza, parecem carnudos ainda que sejam magros. Aqui ele tem a distensão das grandes resoluções tomadas, do homem que resolveu tudo, entrou rijo no caminho por onde tinha que entrar e disse: “Vi, decidi e entrei! Haja o que houver, venha o que vier e custe o que custar, eu resolvi, aquilo eu faço!”

Alguém poderia me perguntar: “Como o senhor nota isso?”

Como notaria numa fisionomia viva. Quando o homem tomou uma grande resolução, algo fica marcado no rosto, onde a musculatura é definida e rija, mas ao mesmo tempo distendida, porque as dúvidas ficaram para trás e todos os sacrifícios que esse caminho traga consigo, vê-se que de algum modo ele os mediu, aceitou e pede a Nossa Senhora que o ajude a não recuar.

Resolução absoluta do Redentor e de sua Mãe Santíssima durante a Paixão

Creio que o modelo transcendental e infinito dessa resolução deveria estampar-se na face de Nosso Senhor depois que o Anjo O consolou, considerando etimologicamente o termo, ou seja, deu-Lhe força. No Horto das Oliveiras Ele pediu: “Meu Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a tua vontade e não a minha” (Mt 26, 39). Veio o Anjo e O fortaleceu (cf. Lc 22, 43). Ele que nunca estivera irresoluto, entretanto estava com toda a natureza humana d’Ele posta diante da previsão terrível da Paixão, mas com a determinação: “Deus Me ajuda, Eu aguento, agora vou.”

Podemos notar essa resolução de um modo divino no Santo Sudário. Uma das notas que a Sagrada Face dá é precisamente de uma resolução absoluta: ela está machucada, cuspida, nota-se que o nariz sofreu uma pancada. Nosso Senhor morreu no auge de todas as dores, mas Ele deliberou resgatar o gênero humano e resgatou.

Algo disso se deveria notar também em Nossa Senhora, no momento e depois do consummatum est: “Eu resolvi, Ele é meu Filho, Eu O ofereci ao Padre Eterno para isto. Aconteceu que meu oferecimento foi aceito e Ele morreu. Era o que Eu queria. Vamos para a frente!” É indizível isso, mas é assim. Esta é uma das razões pelas quais, sem ter nem de longe o atrevimento de negar o valor artístico da Pietà de Michelangelo, nego o valor religioso. A Pietà é um conjunto lindo; entretanto, o jeito de Nossa Senhora olhar para Ele não é aquela compaixão de quem contempla o fruto doloroso de sua própria resolução. Há qualquer coisa de mole, que não corresponde a quem acaba de beber a derradeira gota de fel e ver a última consequência da resolução tomada: “É terrível, é trágico, porém é o que Eu queria!” Compaixão é ter dor, sem dúvida, mas é participar da intenção sacrifical d’Ele.

Diversidades de brilho da graça nas almas dos Santos

Na fisionomia do Beato Ezequiel Moreno y Díaz notamos algo que eu poderia dizer que está à altura de alguém que adorou e se embebeu profundamente do consummatum est. Vê-se que ele está para além dos sacrifícios, das resoluções e das dúvidas. A atitude dele é de como quem diz: “Já sofri muito e talvez tenha muito por padecer, mas resolvi sofrer isso para atender à vontade de Deus. Nossa Senhora obteve d’Ele esta força, e eu sigo até o fim.”

Percebe-se isso na postura do corpo. A cabeça não está nem um pouco numa atitude de galo de briga; é uma posição normal, mas alta, não tem nada de cabeça “heresia branca”2, de nenhum modo. O corpo não está arqueado nem é preguiçoso, mas tem qualquer coisa de quem diz: “Não estou sequer fazendo força, porque todas as forças foram feitas. Está tudo consumado, chegarei até o fim.”

Ele poderia se chamar “o Bem-aventurado da grande resolução”.

É bonito compararmos um Santo com outro, não para saber qual é o maior, mas para ver as diversidades de brilho da graça conforme a alma. Considerem este Santo em face de seus adversários. A atitude dele é: “Eu vos combato, mas estou muito além de vós! Meus olhos pousam em outros horizontes e minha alma ama outras grandezas.”

Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira, o Bispo de Olinda e Recife, é diferente. Ele olha para o adversário como quem diz: “Atrevido, que ousaste levantar-te contra o Senhor Deus dos Exércitos e contra a Imaculada Conceição de Maria. Eu te enfrento! Estou te combatendo e tenho o gáudio de estar te derrotando.”

O Beato Ezequiel polemiza, mas paira acima das polêmicas. Dom Vital não. Ele entra na polêmica como um tufão que leva tudo consigo. É outro modo de ser.

A Igreja se exprime assim, e ainda de muitos outros modos. Por exemplo, a face triste, inabalável, resoluta e angelical de São Pio X; a fisionomia batalhadora, desconfiada, férrea e dulcíssima de Santa Bernadete Soubirous. E assim poderíamos ir comparando as mil maneiras de brilhar a fortaleza católica. A do Bem-aventurado Ezequiel Moreno y Díaz é uma maneira altamente enlevante.    v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 14/11/1980)
Revista Dr Plinio 257 (Agosto de 2019)

1) Canonizado em 11/10/1992.

2) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na arte e na cultura em geral. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.

Brado de guerra

São Tiago foi o Santo que exerceu grande atração na Idade Média, e o seu nome foi usado como brado de guerra pelos heróis da Reconquista espanhola.

Para uma alma combativa, nada mais bonito do que imaginar que, quando ela já não fizer parte do número dos vivos, sua memória ficará, não como um sinal de conciliação, mas como um brado  de guerra! E que os bravos, no momento de arriscarem tudo, até a própria vida, pela causa católica, terão nos lábios esse nome como um símbolo de luta e de vitória, a ponto de ser este o último  nome que muitos deles pronunciarão, cheios de entusiasmo, antes de se apresentarem à glória de Deus e ao sorriso de Maria.

Para muitos, este nome foi o de “Santiago!”

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 25/7/1967)

Santo Inácio de Loyola

O grande Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus, à qual se deve a primeira e talvez a mais gloriosa e mais eficaz das Contra-Revoluções, que é a Contra-Reforma, tornou-se famoso pelo seu espírito pugnaz, pela sua penetração política, sua psicologia finíssima e pela capacidade que possuía de pregar extraordinários exercícios espirituais.

Homem capaz de guardar segredo, de fazer no silêncio uma longa, complexa e subtil trama política, dotado de um espírito de autoridade invulgar, Santo Inácio exercia sobre os seus religiosos um mando total, que fez da Companhia de Jesus o próprio símbolo da obediência.

Entretanto, esse mando que Santo Inácio exercia sobre os outros, ele começou por praticar sobre si mesmo: é um homem que tem o completo domínio sobre si.

Ao contemplar sua fisionomia, tem-se a impressão de que se estourasse uma bomba nas proximidades, ele não se assustaria.

Se tivesse que pegar uma espada para combater, ele não mostraria sanha, mas deveria ser um combatente excelente. Entretanto, ele possuía não o hábito de esgrimir com a espada, mas sim com argumentos. E, por nobre que seja esgrimir com espadas, é mais nobre ainda esgrimir com argumentos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1986)

A confiança produz grandes acontecimentos

São Joaquim, esposo de Sant’Ana, provavelmente seria desprezado por não ter filhos, devido à esterilidade de sua esposa. Naquele tempo, isso constituía uma tristeza, pois o casal estéril estava privado de ser da ascendência do Messias.

Por meio deste sofrimento aceito com confiança, Deus preparava a vinda do Salvador, do qual São Joaquim foi o avô.

É assim que Deus prepara os grandes acontecimentos.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1968)