A superior felicidade do espírito

Nas Reuniões do MNF (sigla para “Manifesto”), realizadas três vezes por semana para um seleto grupo de participantes, Dr. Plinio se dedicava a explicitar, concatenar e respaldar na doutrina  católica pontos de Teologia, Filosofia, Sociologia, Psicologia, etc., nascidos de suas reflexões e de sua observação da realidade. Esta longa série de reuniões se iniciou na década de 50, e sua finalidade era elaborar um Manifesto que salientasse a doutrina católica nos pontos específicos em que a Revolução investia contra a Igreja e a Civilização Cristã. Se ¨Revolução e Contra-evolução” era um esquema dessa Revolução, o ¨MNF” seria uma detalhada descrição e refutação, mas sobretudo uma afirmação destemida dos princípios negados por ela. Numa reunião de 1965, cujos excertos principais estampamos a seguir, Dr. Plinio descreveu um dos impactos da catequese que, uma vez ordenado e divulgado, esse Manifesto produziria: dar ao homem atual o gosto da consideração de Deus e dos bens espirituais, como fórmula para uma autêntica felicidade nesta Terra e antecipação do gáudio que terá na visão beatífica.

 

Quando publicado, o MNF mostrará entre outras coisas essenciais que o mundo moderno se esqueceu de que a natureza humana pede uma felicidade espiritual mais do que material, e mais extraterrena que terrena.

Quer dizer, se me ponho a analisar toda a sede de felicidade existente em meu ser, percebo que ela é total, perpétua, absoluta, sem qualquer possibilidade de alguma vez acabar. Sede essa que, bem sentida, refere-se mais ao espírito do que ao físico: posso querer a felicidade para o meu corpo, sem dúvida, mas desejo uma alegria imensamente maior para a minha alma.

A civilização moderna negou essa verdade, amortecendo a noção do prazer do espírito, enquanto acentuou a ideia do gáudio material. De maneira que, para o mundo de hoje, uma vez organizado  o bem-estar temporal, assegurado pela técnica o atendimento razoável das necessidades do corpo e, sobretudo, obtida pela medicina a longevidade que um belo dia elimine a imagem da morte, ter-se-á alcançado nesta vida o que ela pode nos oferecer de melhor.

Exemplos de felicidade espiritual

Ora, quando observamos a nossa existência, notamos situações fugazes em que temos momentos de felicidade de alma rápidos, transitórios, mas que, considerados enquanto tais, dão-nos um júbilo muito mais autêntico do que o desfrutado pelo corpo.

Assim, por exemplo, não há quem não tenha experimentado um movimento de felicidade espiritual e de consola-Nas Reuniões do MNF (sigla para “Manifesto”), realizadas três vezes por semana para um seleto grupo de participantes, Dr. Plinio se dedicava a explicitar, concatenar e respaldar na doutrina católica pontos de Teologia, Filosofia, Sociologia, Psicologia, etc., nascidos de suas reflexões e de sua observação da realidade. Esta longa série de reuniões se iniciou na década de 50, e sua finalidade era elaborar um Manifesto que salientasse a doutrina católica nos pontos  específicos em que a Revolução investia contra a Igreja e a Civilização Cristã. Se ¨Revolução e Contra-Revolução” era um esquema dessa Revolução, o ¨MNF” seria uma detalhada descrição e refutação, mas sobretudo uma afirmação destemida dos princípios negados por ela.

Numa reunião de 1965, cujos excertos principais estampamos a seguir, Dr. Plinio descreveu um dos impactos da catequese que, uma vez ordenado e divulgado, esse Manifesto produziria: dar ao homem atual o gosto da consideração de Deus e dos bens espirituais, como fórmula para uma autêntica felicidade nesta Terra e antecipação do gáudio que terá na visão beatífica. Ação religiosa por ocasião de alguma comunhão. Pode ser apenas um instante. Porém, analisada a felicidade que este instante proporciona, chega-se à conclusão de que ela vale incomparavelmente mais do que todas as felicidades materiais.

Como esse, existem outros momentos de semelhante satisfação. Quando alguém termina uma grande tarefa e se sente dignificado por realizá-la, tem fugazmente um movimento interno de alegria  muito maior do que a produzida por estar guiando um automóvel.

No momento em que enfrentamos um problema muito complicado para resolver e encontramos finalmente a solução, o êxito nos causa um movimento de alegria muito superior àquele que sentimos ao saborear um bom prato.

Ou no momento em que estabelecemos uma comunicação afetiva com alguém, vendo-nos estimados e amparados por essa pessoa a quem retribuímos o carinho, experimentamos um momento de felicidade de alma imensamente maior que a do corpo. É verdade que esses momentos na existência são fugazes, mas servem para nos provar a superioridade da felicidade espiritual, e para nos  fazer sentir como, no fundo, a única coisa que nos contentaria seria se pudéssemos ter uma alegria assim permanente, eterna, imutável, perfeita.

A grande lição do universo

Essa primazia do gáudio espiritual nos é sugerida pela própria ordem disposta por Deus na criação.

Com efeito, no universo formado pela onipotência divina não era conveniente que houvesse apenas uma criatura, pois, sozinha, nunca espelharia o Altíssimo suficientemente. Porém, o conjunto das criaturas, cada qual boa e bela a seu modo, acaba originando uma ideia da bondade e da beleza infinitas de Deus. Donde o universo inteiro ser composto de pequenos “universos” de bondade e  de beleza que se complementam, formando um todo imenso no qual temos uma noção global daquelas perfeições divinas. Podemos dizer, portanto, que o universo é uma grande lição, em virtude dessa admirável ordem em que Deus dispôs as criaturas umas em relação às outras.

E essa lição leva o homem a perceber sempre o significado espiritual daquilo que o cerca, e o faz desejar conhecer e admirar esse significado, eternamente, no Céu. Como o leva, outrossim, a compreender que o secundário nesta vida é o lado material, e que este deve ser tratado conforme a sua importância menor.

Aceitas essas verdades, ou se tem uma ordem social constituída de maneira a que certos princípios superiores do espírito fiquem inteiramente claros e evidentes, conduzindo o homem à procura de um bem maior, ou necessariamente a sociedade ruma para os princípios opostos, e se entra num mundo todo ele desorganizado, onde as crises se acumulam umas sobre as outras, até chegarmos ao caos, e mesmo à completa loucura.

Favorecem essa decadência as formas de cultura, de arte e de civilização que negam os princípios valiosos do espírito, e apresentam as realidades externas e materiais de um modo oposto a eles. Então não produzem o prazer de admirar as coisas superiores, atenuam a alegria autêntica que se pode ter nesta vida, ou até geram desprazer. São formas de civilização, de cultura e de arte ateias, materialistas, que conduzem o homem para o desespero, para a catástrofe, para o ateísmo, para o “non sense”.

São o contrário da formação católica que parte exatamente da concepção daquela ordem estabelecida por Deus no universo, a qual se reflete nos mais variados aspectos da sociedade bem constituída: no estilo de um móvel, no desenho de um armário, no modo de andar de uma rainha, na inflexão de um cântico, na maneira de dispor as árvores na alameda de um parque, ou no  “cozy”(¹) de uma casa operária…

Um poema filosófico

Se o homem se dedica a essa consideração das coisas enquanto ordenadas a Deus, ele encontra já nesta vida a única forma perene de alegria que ela lhe é capaz de oferecer. Uma pessoa que sofra de câncer, que padeça os mais  horríveis tormentos, ainda achará nessa consideração uma felicidade estável que nada lhe pode tirar. É uma satisfação que transcende a todas as outras  proporcionadas pelas coisas práticas e terrenas. É a alegria de espírito.

E se uma pessoa tem a alma assim disposta, ela possui uma facilidade imensa em compreender a ressurreição dos mortos, em aceitar a existência de um outro mundo onde as coisas correspondem  os seus melhores desejos. Ela adquire um feitio religioso natural. Quer dizer, numa sociedade construída sobre esse alicerce, a religião católica é abraçada sem dificuldades.

Mas, eliminando-se a concepção autêntica de felicidade, corta-se na raiz o gosto pela religião. Esta passa a ser opaca, distante, enfadonha, penosa de se seguir. Então, para condensar essas minhas reflexões, exatamente na hora em que a existência terrena se torna em muitos de seus aspectos louca e incompreensível, eu gostaria  de dar no MNF uma espécie de poema filosófico da compreensibilidade do mundo e da vida sob o ponto de vista da felicidade espiritual.

Uma catequese de impacto oportuníssimo

Nesse sentido, cabe uma censura às maneiras de expor a religião que a tornam pouco ou nada aceitável, pois ela não aparece como uma fórmula para organizar uma vida feliz. Costuma-se dizer:  “Você aqui será desditoso, mas no Céu receberá o seu quinhão”. Essa afirmação não exprime a verdade inteira, pois seria um disparate que esta vida não trouxesse um sério prenúncio da superior alegria que nos aguarda na outra. Ademais, o grande São Tomás de Aquino nos ensina formalmente que, para sobreviver, é necessário ao homem uma certa base de felicidade.

O lamentável resultado dessa apresentação incompleta da religião católica é este: as pessoas, pensando que ela não traz a felicidade, correm para os prazeres ilícitos. Cumpre, então, insistir na existência de uma alegria de caráter sobrenatural, espiritual, realizável neste mundo, a qual consiste em compreender a Deus, o universo, a Igreja, o quanto nos seja possível, apetecendo-os com  toda a força de nossa alma, e já sentindo o antegosto da vida eterna na Terra.

Quer dizer, vista assim, a religião católica é percebida como a solução de um caso pessoal. De outro modo, não há catequese, nem doutrina, nem pastoral, não há nada que “pegue”. É preciso vê-la resolvendo o problema que começa no interior de cada indivíduo, conduzindo-o a desejar, conhecer e aceitar os princípios verdadeiros, sentir dentro de si a veracidade desses princípios e a rejeitar os opostos.

Então deveríamos dizer àqueles aos quais queremos atingir com nosso apostolado: “Estão vendo o que é o prazer do espírito? Compreendem como esse prazer é, de certa maneira, completo?  Como ele faz um bem para a  alma muito maior do que qualquer outro benefício material e prático? Agora, percebam que miséria é o homem sem esta noção, e como ela, pelo contrário, o cura.

Pois bem, imaginem se essa felicidade que sentem com isso fosse eterna, imutável, infinitamente maior — o que aconteceria?”

A vocação nasce sempre como uma espécie de vivência desse prazer do espírito no considerar as coisas criadas. Ela sempre cresce quando o indivíduo é fiel ao prazer do espírito que caraterizava Jacó, e fenece quando a pessoa  de deixa atrair, como aconteceu com Esaú, pelas coisas materiais.

Creio que se Nossa Senhora nos ajudar a levar a cabo essa tarefa apostólica, ela significaria dar uma alta formulação do dom da sabedoria. Ela explica tão a fundo o problema da vida humana — no  preciso momento em que a ideia da existência baseada nos prazeres do corpo fracassa — que, a meu ver, seria uma catequese de um imenso e oportuníssimo impacto!

1 – Palavra inglesa que sugere algo de uma elegância simples e aconchegante.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 65 (Agosto de 2003)

O transatlântico e o cais

A tendendo o pedido de vários leitores, iniciamos neste número a publicação de recordações da infância e primeira juventude de Dr. Plinio, nas quais podemos distinguir os traços da formação de  sua personalidade e de seu pensamento. Nesta palestra para jovens, descreve ele como foi surgindo em seu espírito a noção de que existia no mundo um enfrentamento de tendências, idéias e  fatos, posteriormente explicitado em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”.

 

Antes de evocar aqui alguns episódios e circunstâncias do meu passado, conviria uma breve explicação sobre o que tenho chamado de Revolução “A” e Revolução “B” (¹), ou seja, as duas modalidades fundamentais em que se poderia dividir a grande Revolução anti-cristã, cujos perniciosos efeitos vêm correndo o Ocidente há mais de cinco séculos.

Revolução tendencial e Revolução sofística

A Revolução “A” é ideológica e moral, marcando as instituições, os debates doutrinários, com um trabalho do espírito e da inteligência em todo seu empenho e toda sua força. É a Revolução nas idéias. Esta, por sua vez, pode ser dividida em duas fases: a “Revolução tendencial” e a “Revolução sofística”.

A tendencial se dá no fundo da mentalidade do homem: são seus ímpetos, seus anelos, seus desejos, algo de tão interno que se torna muito difícil descrever.

A sofística é o operar do espírito movido, quantas e quantas vezes, pela vontade de tomar posição nos problemas tendenciais no sentido da Revolução, a fim de enganar os homens. Assim como o caminho da lógica é a favor da verdade, o do sofisma é a favor do erro. Por isso eu a chamo de “Revolução sofística”.

Já a Revolução “B” não atua apenas nesse terreno espiritual das idéias

Atendendo o pedido de vários leitores, iniciamos neste número a publicação de recordações da infância e primeira juventude de Dr. Plinio, nas quais podemos distinguir os traços da formação de sua personalidade e de seu pensamento. Nesta palestra para jovens, descreve ele como foi surgindo em seu espírito a noção de que existia no mundo um enfrentamento de tendências, idéias e fatos, posteriormente explicitado em seu livro “Revolução e Contra-Revolução”. e das doutrinas, mas trabalha modificando coisas concretas, instituições, leis, dando-lhes a fisionomia que quer, ou usando da força para transformar, derrubar, impôr ou repôr. É a Revolução nos fatos.

Minha primeira juventude e o fim da Grande Guerra

Passando então aos acontecimentos da minha primeira juventude, analisados sob o prisma das Revoluções “A” e “B”, veremos que o episódio marcante do período entre 1918 e 1930, no terreno  tendencial, é um dos mais importantes da História: o fim da Primeira Guerra Mundial. Com ele, verificou-se a queda na Europa do que representava tradição, hierarquia, esplendor de vida, amor à beleza das formas, dos gestos e das atitudes.

E com o declínio dessas tradições, simultaneamente, o advento da influência norte-americana. A palavra “norte-americana”, cumpre salientar, não significa o que na realidade eram os Estados Unidos, mas o modo como apresentavam esse país à opinião mundial, sobretudo às opiniões européia e latino-americana. Fechavam-se os olhos para aspectos psicológicos do povo norte-americano bons ou não gangrenados pelos novos erros, e mostrava-se apenas o lado “moderno”, afetado amplamente pela Revolução.

Os Estados Unidos eram a grande nação vencedora, que havia decidido em última análise quem ganhara a guerra: os aliados (liderados pela França e a Inglaterra), e quem a perdera: os impérios centrais (basicamente a Áustria-Hungria e a Alemanha).

Eles chegaram à Europa em possantes navios transatlânticos, e desembarcaram nas costas da França em meio a jubilosas cantigas, tropas altamente mecanizadas, trazendo os primeiros tanques e canhões formidáveis, com um estoque de víveres e munições até então jamais visto. Os soldados franceses e ingleses exaustos, marcados de cicatrizes, muitos deles gloriosos veteranos com várias medalhas, viram descer nas praias gaulesas aquela rapaziada “modernizada”, vitaminizada e alegre, indo para a guerra com otimismo, com mecânica, com dólares, e destruindo com força os  obstáculos que se lhe opunham.

Então, aos olhos do mundo o quadro resultante dessa situação era este: a guerra travada entre nações briosas mas extenuadas pelo peso do passado, das revoluções e do combate, quando entram os Estados Unidos, ricos, jovens e saudáveis, decidindo o conflito e decretando como instalar a paz na Europa.

Mudança tendencial e novo tipo de homem

Com essa mudança na balança do equilíbrio mundial, houve também  uma transformação no plano tendencial. Era como se alguém tivesse exclamado: “Tradição, passado, cultura, ideais, arquetipias, vós todos não sois nada! Pelo contrário, máquinas, saúde, negócios, vida alegre, trabalhosa mas produtiva e jovial, futuro, vós sois os Estados Unidos! Vós sois a utilidade, o prático, o terra-terra, viveis para esta vida. E vós, ó velhos europeus, não é com vossa arte, cultura e poesia, não é com a história de vosso passado nem com vossos monumentos que se resolverão os  problemas de hoje. A prova é que vós não os solucionastes. A prova é que estais no chão, sem produzir em nome dessa tradição nada de novo. E mesmo quando alguma novidade realizam, fazem- no por uma ruptura com a vossa tradição, inteiramente gasta.

Se quiserdes ainda reviver, aceitai em vós o enxerto do espírito “yankee” moderno, porque, por vós mesmos, não sois mais nada!”

Pelo influxo dessa voz, muito de quanto fora encanto do passado e levara os homens ao entusiasmo começa a desaparecer, e raia a aurora de uma outra época,de outro estilo e outro modo de ver as coisas. As riquezas do espírito, as arquetipias, as maravilhas que nos dariam vontade de fugir da Terra para pensar só nelas, tudo começa a ser posto de lado. No fundo, passam a se enfrentar dois tipos humanos. E essa confrontação tendencial foi vivivíssima na época de minha infância.

Tomada de Posição

Imagine-se uma criança de dez anos (como eu tinha) em 1918, quando terminou a Primeira Guerra. Ela se depara com os dois tipos humanos e movimentos que acabei de descrever, batendo à porta da alma dela e a solicitando. Ela vê que os outros também estão assediados por esses movimentos, e percebe que essa é a solicitação do século.

Como todo ente batizado, essa criança é visitada pela graça e, portanto, pela fé. À medida que vai maturando, compreendendo melhor a religião e tirando mais conseqüências da doutrina católica, cada vez mais ela é convidada a tomar uma posição.

Para falarmos em termos de impressões e recordações, e não diretamente de doutrina, deve se levar em consideração que não vivi essas circunstâncias no vácuo, mas em uma cidade, São Paulo; em uma determinada camada social paulistana, e num certo meio dentro dessa camada, porque todo homem existe concretamente.

Assim, eu vi esse grande problema religioso e metafísico que acabo de enunciar representado por situações e por pessoas; vi as contradições das personalidades que ora pareciam ser uma, ora outra dentro de um mesmo homem. Vi os extremistas de ambos os lados, e fui levado, pelo desejo de ser fiel à Santa Igreja, a me perguntar qual a posição verdadeira e procurar tomá-la. Desse modo fui arquitetando pensamentos, elucubrações, idéias cujo traço essencial se encontra em “Revolução e Contra-Revolução”, e mais ou menos em tudo quanto penso e faço.

Eu tive os olhos mais abertos para esse panorama que descrevi a partir do início da década de 20. Quanto demorou até que essas reflexões me levassem a tomar posição? Não saberia precisar. Aliás, posição eu comecei a tomar desde o princípio, porque, vendo o problema, já ia optando. Mas é claro que o divisava por lampejos, fragmentariamente, como quem distingue de longe um  incêndio numa floresta: aqui uma chama que se levanta, depois outra mais adiante, sem perceber ainda que, por debaixo da ramagem, o fogo se alastra na floresta inteira.

É-me difícil dizer a idade em que notei o fogo dominando a floresta, e tive o desejo de fazer inteiramente o contrário da ação do incêndio. Pois eu era partidário de cada árvore, de cada capim. Era o inimigo de cada aumento de temperatura que pudesse avolumar a combustão. Antes de saber que o fogo consumia a floresta, eu inteiro era anti-fogo e pró-floresta.

Entretanto, até eu organizar bem as idéias mestras e os pensamentos essenciais, eu teria meus 15 ou 16 anos. Vê-se, portanto, que o trabalho se deu de um modo relativamente precoce e veloz, para uma matéria tão grande. Quando foi, então, que amadureceu no meu espírito o conjunto de “Revolução e Contra-Revolução”, vinda a lume em 1959?

Talvez pelos anos 40 eu já estivesse com tudo pensado e pudesse escrever o livro, porém só o publiquei no primeiro instante em que me pareceu viável.

“Nasci na popa do navio, e quis rumar para o cais!”

Trata-se de considerar, agora, quais foram as impressões primeiras que determinaram na minha alma essas reflexões e pensamentos sobre a Revolução e a Contra-Revolução.

As impressões que alguém nas minhas condições podia ter eram de duas espécies diferentes. Umas, oriundas do relacionamento humano de pessoa a pessoa ou num ambiente social; outras vinham do contato com a natureza.

A nota tônica, contudo, era dada pela impressão do convívio humano, que mostrava esse entrechoque da tradição romântica do século XIX e da “Belle Époque” do início do século XX contra o vento dito “norte-americano” que começava a soprar, e como os homens agiam em função dele.

Depois, eu confrontava essas impressões com a natureza. Então olhava para o céu, para o mar, para o rio, para a flor, enfim, para tudo quanto a criação apresenta e me perguntava: “Bem, fora  dessa gente e dessa época, na obra de Deus eterno, no mato, na montanha, no rio, na vegetação, nos animais, esse problema tem ou não tem repercussão? Deus, o que quer?”

Mas, há um terceiro protagonista, mais importante que o convívio humano, mais belo que a natureza, e o ponto de ordenação e de equilíbrio de tudo: a Igreja Católica. Os personagens do drama estão apresentados. Agora é o momento de a peça começar.

Eu observava a maioria das pessoas, rapazes de minha idade, outros meninos ou outras meninas, com a mentalidade comum do meu meio social. Percebi-as com ligeira nota voltada para o passado, de maneira que aquele meu meio seria tido por conservador.

Na realidade, porém, ia se distanciando da tradição mais ou menos como alguém que entrou num transatlântico rumo à Europa se vai afastando do cais. Alguns passageiros, quando o navio parte,  estão na ponta dele vendo o mar abrindo-se à frente. Outros passageiros estão na parte de trás, dizendo adeus a quem ficou no porto. Uns e outros querem viajar. E uns e outros deixam o cais.

O mesmo transatlântico nos ia levando a todos, embora tivéssemos atitudes diversas. Digamos que nesse meu meio, a maior parte embarcara no navio que eu chamaria — com a ressalva já feita —  de “norte-americano”. Essas pessoas diziam adeus para a tradição, jogando-lhe beijos, vendo-a cada vez mais distante, sem lhes passar pela cabeça de se jogarem dentro do mar e voltarem para a tradição. E assim o transatlântico ia deixando atrás o cais.

Eu nasci como passageiro na popa desse navio. Em certo momento tive de decidir, e Nossa Senhora me ajudou a tomar a decisão de me lançar dentro da água e rumar para as coisas abandonadas no cais e que era necessário resgatar.

Evidentemente, não é possível uma pessoa formar essa ideia sem ter olhado para o navio, sem ter observado os passageiros que estão na ponta, os que permaneceram entre a proa e a popa, sem olhar muito para o cais, sem ouvir descrições da terra para onde vai o navio. Há uma análise da situação antes de a pessoa dizer: “Não continuo!”

Dualidades e contradições

Como foi essa análise? O que me falavam os passageiros do transatlântico, daquele mundo moderno com suas contradições e influências diversas? Chamava-me particularmente a atenção a dualidade de reações dos que ficavam entre a proa e a popa, vivendo da influência francesa e da “norte-americana”. A maioria das pessoas falava francês e inglês, sendo que este último idioma não  era usado com vistas à Inglaterra, mas aos Estados Unidos. Volto a insistir, não os Estados Unidos reais, e sim aqueles admirados através das lentes deformadoras das câmaras cinematográficas de Hollywood.

Então, eu notava que as pessoas elogiavam modas e canções provenientes da França, usavam fórmulas de polidez criadas naquela nação e empregadas na vida corrente. Não raro, conversavam entre si em francês, procurando pôr na pronúncia todas as sutilezas e todas as delicadezas do espírito desse povo, nos vários matizes e nas diversas cores cambiantes com que a França rutila.

De vez em quando vinha, pelo contrário, a influência “hollywoodesca”, e então as mesmas pessoas falavam inglês. Era notória a mudança do estado de espírito: quando se usava o idioma francês,  procurava-se uma pronúncia nobre, delicada, exprimindo nuances em que a alma encontrava mil modos de se manifestar. Já quando se expressavam em inglês, sobre temas “hollywood”, não eram o matiz nem a alma que se exprimiam, mas as vontades do corpo, a fome, o gosto da velocidade, infelizmente também os assuntos contrários ao sexto e ao nono Mandamentos, etc. Era a matéria que falava, desprezando o espírito. E esta mudança se operava numa mesma pessoa!

Nesse sentido, lembro-me de uma discussão que presenciei entre uma senhora de idade madura e um velho tio dela. O mais curioso é que a senhora era católica, e o tio, ateu.

Ora, este sustentava uma posição de bom espírito, enquanto ela — note-se o paradoxo dentro disso — tomava uma posição de mau espírito. Em certo momento o tio se zangou e disse: — Pois olhe,  u acho que a minha ideia é a correta e acabou-se!

Ela respondeu num francês muito bem pronunciado: — “Monsieur, donc vous n’êtes pas à la page!” — Quer dizer, “o senhor não está na página certa do livro. O vento soprou sobre ele e pôs outras  páginas em foco”.

Mas, o modo de dizer vinha carregado de cultura francesa e ela inteira se “afrancesou” no momento de falar. Pouco antes, estava discutindo com um espírito “yankee” a favor da tese norte-americana. Ou seja, era como se uma pessoa substituísse a outra dentro da mesma pele, ao mudar de idioma! Vê-se aí o choque das personalidades.

A mudança dos comportamentos ao sabor das modas

O que se dava em relação aos idiomas, verificava-se também com os modos de ser.

Por exemplo, até então, quando alguém se encontrava com uma senhora bem mais velha ou simplesmente madura, fosse parente íntima ou de fora do seu círculo social, osculava-se-lhe a mão para cumprimentá-la.

Essa deferência em relação às senhoras — um valor da cultura ocidental e européia — minguava diante de um mundo no qual essas começavam a não ser mais respeitadas, um mundo em que se iniciava o processo de masculinização do sexo feminino.

Enquanto a senhora tradicional dava a mão a beijar sorrindo, a senhora “moderna” apertava a mão do outro, fitando-o nos olhos. O modo de rir, de vestir, de andar, de falar, de comer, o modo de  pensar e o de ser variavam de matizes de uma senhora para outra.

Considerava-se muito feio, sobretudo para senhoras, usar a moda do ano anterior. O vestido démodé perdia todo o valor, não importando se fosse bonito. As mulheres estavam sempre de figurino  em punho para se inteirar das mudanças da moda. Os homens, naturalmente com menos afã, acompanhavam também esse processo.

Assim os comportamentos se transformavam, e os passageiros do navio eram seres de épocas diferentes, do passado e do futuro, vivendo misturados e se influenciando, a maior parte sem perceber e sem se dar conta.

A posição da Igreja em face dessas mudanças

Eu era, então, um menino vivendo naquele mundo que passava por essas transformações. E me lembro que, às vezes, quando viajava para Santos (bem diferente da Santos de hoje!), agradava-me passear por suas praias grandes, olfateando e considerando todas as belezas possíveis do mar. Comprazia-me até com o cheiro da areia molhada e com o da maresia, com o rumor das ondas desmanchando-se nas orlas da baía.

Praia deserta, e a Revolução longe. Na praia, um menino que pensa… E sente a contradição daquele aspecto do mar com toda a vida “hollywoodizada” que vinha se desenvolvendo. Sente a afinidade do panorama marítimo com o passado, mas percebe que algo nesse passado também não conduzia a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora, nem à Igreja Católica como Ela é.

Quer dizer, nas tradições do século XIX e da “Belle Époque” nem tudo era bom odor, pois havia nelas uma espécie de entorpecente psicológico: o romantismo. Era um passado em que apareciam juntos, se quiserem, os heróis da Contra-reforma misturados com os românticos, como, por exemplo, Chopin.

Que efeitos o conjunto desse panorama produzia em mim? Até que ponto eu me sentia chamado para o passado ou para outro foco de luz, fixo e eterno, ao qual não só não se trata de nunca abandonar, mas, pelo contrário, devemos nos aproximar cada vez mais dele, isto é, a Santa Igreja?

Como eu via a posição d’Ela em face daquelas transformações? A Igreja não me parecia apenas representar a tradição mas a fonte, o modelo e o arquétipo da tradição, com o Santíssimo Sacramento, o altar-mor, os vitrais, aquela luminosidade difusa do recinto sagrado, a campainha que toca para ajudar a Missa, a torre, o sino que reboa para a população, o púlpito do qual um  pregador fala para as ovelhas que o ouvem reverentes, os paramentos e, sobretudo, o conteúdo da Fé e o esplendor da Moral! Diante da beleza dos Sacramentos, da santidade, da sabedoria das leis  a Igreja que eu ia conhecendo, vinha-me este pensamento: “Isso é a matriz de tudo!”

Então, como estava Ela em relação a essas influências diversas do passado? O que era o passado? Uma sereia a mais para cantar o cântico da perdição? Ou trazia verdades consigo? No coro angélico do passado, cantavam mais sereias?

Tradição e romantismo, mar e romantismo, menino e romantismo. Mar e tradição, menino e tradição.

Eis uma “ponta de trilho” para outra reunião de lembranças…

1 – Dr. Plino usa o termo “Revolução” no sentido que lhe deu na sua obra “Revolução e Contra-Revolução”, publicada pela primeira vez em 1959.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 65 (Agosto de 2019)

São Cura d’Ars

A um erudito advogado que retornava de sua visita à cidade francesa de Ars, perguntaram o que mais o havia interessado naquele povoado. “Vi Deus num homem”, respondeu o profissional das leis aos seus atônitos interlocutores. De fato, ele conhecera São João Maria Vianney, em cuja alma luminosa e perfeita se podia contemplar um magnífico reflexo da infinita santidade divina.

Muitos se convertiam apenas o observando a pregar no púlpito, de longe, admirando-lhe os gestos e a atitude, sem sequer conseguir ouvi-lo. Imbuído e compenetrado das doutrinas que ensinava, as pessoas tinham a sensação de um como que contato vivo com as verdades das quais ele era arauto.

O Cura d’Ars pertence a essa categoria de homens a quem Deus confere a missão de tornar de algum modo translúcido o sobrenatural. De sorte que, perto deles, sentimos o que os Apóstolos  experimentaram no Tabor, junto a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 77 (Agosto de 2004)

Sofrimento: um meio de santificação

Baseado na Doutrina Católica, Dr. Plinio nos indica a necessidade do sofrimento para corrigir os desregramentos de nossa natureza.

 

Monnin(1), em sua obra “Espírito do Cura d’Ars”, escreve a respeito do sofrimento, como privilégio:

“Há pessoas que não amam a Deus, não rezam e prosperam. É mau sinal. Elas fizeram um pouco de bem, através de muito mal. Deus as recompensa nesta vida.”(2)

Dizemos às vezes: Deus castiga aqueles a quem ama. Nem sempre é verdade. As provações, para quem Deus ama, não são castigos, são graças.

O sofrimento ordena nossa natureza desregrada

Vemos aí uma exposição a mais do grande princípio da Doutrina Católica de que o sofrimento é indispensável, como meio para aproximação de Deus.

Ele é indispensável, por um lado, porque Deus quer que completemos o seu sofrimento com o nosso. E, por outro lado, porque o homem, concebido no pecado original, precisa sofrer. Ele tem em si uma fonte permanente de desordem, de apetências desordenadas, más, que lhe vêm de sua natureza desregrada. A todo momento, a natureza do homem pede alguma coisa que não convém, quer aquilo que é dos outros, deseja fazer e pensar o que não deve. E o meio que nos foi dado para matar em nossa natureza esses apetites desordenados é o sofrimento.

O homem que sofre, quebra certa exuberância má desse lado mau da natureza: deixa de ficar pretensioso, mimado, arrogante, petulante, exigente. E se contenta com pouco, torna-se afetivo, compreensivo, humilde. Quando começa o sofrimento, como uma chaga a corroer a alma, todas essas coisas más vão desaparecendo, minguando, e a pessoa então vai melhorando.

À força de gemer, uma pessoa de mau gênio aprende a combater devaneios e adquire temperança

Imaginemos essa situação: uma pessoa com um gênio insuportável, muito suscetível, que fica sentida com qualquer coisa a qualquer momento, muito preocupada em estar no centro das coisas, em aparecer em tudo. Digamos que essa pessoa tem, de repente, uma dor na perna — falemos somente dos sofrimentos físicos — e fica quinze horas por dia gemendo: “Ai, não posso mais! Venha, por favor, me fazer um pouco de companhia, para conversar um pouquinho! Traga-me tal objeto, me ajude em tal coisa! Pelo amor de Deus, tenha pena de mim!”

Ao cabo de seis meses, esse mau gênio está muito quebrado; foi passado a ferro. Porque, à força de gemer e sofrer, a pessoa aprende isto que a natureza humana concebida no pecado original detesta: ter uma vida comum, normal, sem grandes prazeres, já é uma grande coisa; e pode se dizer feliz o homem que tem condições comuns de existência, de tal maneira esta vida é um vale de lágrimas. E estar ambicionando a todo momento condições extraordinárias de existência, grande fortuna, grande consideração, é uma coisa que indica um desregramento.

Quando a pessoa tem condições comuns bem garantidas, começa a sonhar, a ter devaneios. Mas quando lhe faltam essas condições mínimas de existência, ela tem saudades: “Ah, que coisa boa ter saúde! Todo mundo nesta casa vai dormir, e eu, sozinho, vou passar a noite inteira gemendo. Que grande coisa uma noite sem dor!”

Antes disso, ela desejava uma noite de prazeres, ou então queria uma cama confortável, com colchão de molas especiais, uma armação que a faz virar de um lado para outro, com um abanador. Isto era para ela a felicidade. Como apanhou bastante, começa a compreender que valor enorme têm uma cama e um sono normais. Este é o começo, o andar térreo da temperança.

Um indivíduo pensa que iria fazer viagens fabulosas. Abre um jornal e lê: “Voo para a Pérsia, coroação do Xá”. A viagem custa, digamos, dez mil contos. Ele, que não tem mil, começa a pensar: “Mas é a prazo! Eu fico devendo mil coisas, vendo meu automóvel, mas dou uma tacada”. Acaba ficando em casa e se julga um infeliz. No dia em que vem a notícia da coroação do Xá na Pérsia, o indivíduo está deitado, aborrecido, mal-humorado com todo mundo. Alguém lhe pergunta:

— Por que você é infeliz?

— Eu não fui à coroação do Xá da Pérsia…

Se um coitado desses quebrar a perna e passar seis meses numa cadeira de rodas, compreenderá que a grande felicidade não é assistir à coroação do Xá da Pérsia, mas ir dar uma voltinha no jardim. Em sua cadeira, ele fica então pensando: “Se eu pudesse ao menos ir até a esquina ver passar o movimento, que delícia!”

Aí começa a entrar o juízo. As extravagâncias, as luas, as manias das pessoas quebram-se por meio do sofrimento.

Outro exemplo: a pessoa é muito suscetível, e de repente arrebenta qualquer coisa de ridículo na família dela. Antigamente acontecia isto: às vezes um membro qualquer da família caía num ridículo, e o sobrenome da família se tornava apelido. Nesse caso, a pessoa compreende que não deve estar correndo atrás das considerações, e julga uma delícia ser tratada como um anônimo, um joão-ninguém: “Que gostoso o tempo em que eu usava o meu nome e ninguém ria de mim!”

Essas provações e falhas são indispensáveis; sem isto a pessoa não vive bem.

O homem tem necessidade de sofrer

Mas há uma coisa curiosa na alma humana, parecida com o que acontece no corpo: se o corpo nunca faz esforço nenhum, ele padece. Por exemplo, um paxá, que viva deitado num terraço, no meio de almofadas, nunca se mova, passe o tempo todo fumando narguilé, e comendo aqueles doces colantes, brancos, vermelhos, de cores vivas.

Alguém dirá: “Que vida deliciosa leva esse paxá!” É uma ilusão. Porque o paxá tem todos os distúrbios orgânicos, decorrentes de sua inação. E esses distúrbios criam para o paxá uma alternativa, que é um inferno: se ele se move, é horrível, porque está desabituado; se não se move, é horrível, porque faz mal para a saúde. E o paxá se vê entre a doença e a violência; se ele afunda na inação, morre precocemente por causa disso.

O corpo humano precisa de certa violência para se sentir bem. O mesmo se dá com a alma. Quando o homem não sofre, ele acaba procurando sofrimento, porque há algo em sua alma em razão do qual ele sofre quando não sofre. E essa espécie de náusea de tudo, que vem da falta de sofrimento, é um castigo daqueles a quem Deus não manda cruzes.  v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 8/8/1967)

 

1) Monnin, Alfred. Esprit du Curé D’Ars. Paris: Ch. Douniol, Libraire-éditeur, 1865. p. 25-26.

2) Pensamento de São João Maria Vianney citado pelo Pe. Alfred Monnin.

Espelho fidelíssimo de Jesus

Nossa Senhora devia conhecer o dia de sua Assunção, porque Ela estava na plenitude de sua santidade. Sua vida espiritual, que não deixara um instante de progredir de um modo admirável durante toda a sua existência, tinha chegado àquele clímax em que Ela possuía a perfeição perfeitíssima, a beleza belíssima, a virtude virtuosíssima, que tinha chegado, portanto, ao apogeu dos apogeus, e seu amor de Deus nunca fora maior do que naquele momento. Ela então sabia que, imediatamente depois de ressuscitada, seria elevada ao Céu.

Imaginem o estado de espírito de Maria Santíssima ao saber que, a partir daquele instante, iria gozar da visão beatífica, que Ela passaria por um cortejo infindo de Anjos dos quais receberia as maiores homenagens possíveis; e tendo uma ciência perfeita da hiperdulia dos milhões e milhões de espíritos celestes, todos se dirigindo a Ela e aclamando-A com o maior amor, o maior respeito, a maior veneração!

Ao tomar conhecimento de cada louvor, a Santíssima Virgem sentia um amor e um gáudio completos, ciente de que esses louvores eram merecidos, porque Ela tinha sido a Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo e o espelho fidelíssimo de seu Divino Filho.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/8/1966)

O fato mais glorioso da História, depois da Ascensão

Durante a Assunção de Nossa Senhora, toda a natureza e os próprios Anjos refulgiam magnificamente, como nunca, refletindo de modos diversos, à maneira de uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. Porém, nada disso podia se comparar com o esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu.

 

Um fato que chama a atenção, na História Sagrada, é Nosso Senhor ter querido subir ao Céu aos olhos dos homens; e que acontecesse o mesmo com a Assunção de Nossa Senhora. Por que a Ascensão e depois a Assunção deveriam dar-se à vista dos homens?

Ascensão e Assunção

Quanto à Ascensão há várias razões e a mais protuberante delas é de caráter apologético. Era preciso que os homens pudessem dar testemunho deste fato histórico duplo: não só de que Jesus ressuscitou, mas de que Ele subiu ao Céu, a sua vida terrena não continuou. Subindo ao Céu, Ele abriu o caminho para incontáveis almas e Se assentou à direta do Padre Eterno. Ele, na sua humanidade santíssima, foi a primeira criatura – e ao mesmo tempo é Deus – a subir aos Céus em corpo e alma, como nosso Redentor, abrindo o caminho dos Céus para os homens.

Mas havia uma outra razão: era necessário que Ele, tendo sofrido todas as humilhações, recebesse todas as glorificações. E glória maior e mais evidente não pode haver para alguém do que subir aos Céus, porque é ser elevado por cima de todas as alturas.

E aqueles que se salvarem transcenderão todo esse mundo onde nos encontramos, e irão para o Céu empíreo aonde Deus Nosso Senhor está, para se unirem a Ele eternamente. E assim como Nossa Senhora havia participado como ninguém do mistério da Cruz, o Redentor quis que Ela tivesse a mesma forma de glória, participasse como ninguém da glorificação d’Ele. E a glorificação de Maria Santíssima se dava por esta forma, sendo levada aos Céus. E no momento em que lá entrou, a Virgem Maria foi coroada como Filha dileta do Padre Eterno, como Mãe admirável do  Verbo Encarnado e como Esposa fidelíssima do Espírito Santo. Anjos rutilantíssimos Nossa Senhora teve uma glorificação na Terra e depois uma glorificação no Céu. Portanto, nós precisamos considerar a Assunção como tendo sido um fenômeno gloriosíssimo.

Infelizmente os pintores, a partir da Renascença, não sabem representar de um modo adequado a glória que deve ter cercado este espetáculo. Devemos imaginar o seguinte: É próprio às coisas da Terra que quando se quer glorificar uma pessoa, em sua residência, por exemplo, todos vestem seus melhores trajes, se exibem os mais belos objetos, colocam-se flores e tudo aquilo que há de  mais nobre para homenageá-la.

Tal regra está dentro da ordem natural das coisas e é seguida também no Céu. O maior brilho da natureza angélica, o fulgor mais estupendo da glória de Deus nos Anjos deve ter aparecido exatamente no momento em que subiu ao Céu Nossa Senhora. E se foi permitido aos mortais verem os Anjos com seus próprios olhos, eles deveriam estar rutilantíssimos, com um esplendor absolutamente invulgar. E se não foi dado a todos os mortais contemplar os Anjos nesta ocasião, é certo, pelo menos, que a presença deles se fazia sentir de um modo imponderável, porque muitas vezes na História isso ocorreu, embora não fosse propriamente uma visão, ou uma revelação deles.

A glória interior de Nossa Senhora ia transparecendo como no Tabor

É natural também que nesta hora o Sol tenha brilhado de um modo magnífico, que o céu tenha ficado com cores variadas, refletindo de modos diversos, como uma verdadeira sinfonia, a glória de Deus. E que as almas das pessoas felizes ali presentes tenham sentido essas glórias em si de um modo extraordinário, de maneira tal que houve uma verdadeira manifestação do esplendor de Deus em Nossa Senhora.

Mas nenhum desses esplendores podia se comprar com o próprio esplendor da Santíssima Virgem subindo ao Céu. À medida em que Ela ia se elevando, certamente, como numa verdadeira  transfiguração, a exemplo do Tabor, a glória interior d’Ela ia transparecendo aos olhos dos homens.

Falando de Nossa Senhora, diz o Antigo Testamento: “Omnis gloria eius filiæ regis ab intus” (Sl 44, 14), toda glória da filha do rei lhe vem do interior, daquilo que está dentro dela, e com certeza essa glória interna que Maria Santíssima possuía se manifestou do modo mais estupendo quando, já no alto de sua trajetória celeste, Ela olhou uma última vez para os homens, antes de definitivamente deixar esse vale de lágrimas e ingressar diante da glória de Deus.

Relíquia concedida a São Tomé

Compreende-se que deve ter sido, depois da Ascensão de Nosso Senhor, o fato mais esplendorosamente glorioso da História da Terra, comparável apenas com o dia do Juízo Final, em que Nosso Senhor Jesus Cristo virá em grande pompa e majestade, diz a Escritura, para julgar os vivos e os mortos; e com Ele, toda reluzente da glória do Divino Salvador, de um modo indizível aparecerá também Nossa Senhora aos nossos olhos.

Devemos considerar a impressão que tiveram os Apóstolos e os discípulos quando A viram subir ao Céu, recordando o fato que a tradição narra a respeito de São Tomé. Ele duvidou da Ressurreição e por isso foi convidado por Nosso Senhor a meter a mão na chaga sagrada do flanco d’Ele, para comprovar que era realmente Jesus. Depois recebeu o Espírito Santo em Pentecostes, ficou um Apóstolo confirmado em graça e tornou-se um grande Santo. Mas conta uma tradição venerável que, por ter duvidado, na hora da morte de Nossa Senhora, São Tomé não se encontrava  presente. Quando a Santíssima Virgem estava subindo ao Céu, já a certa distância da Terra, São Tomé foi trazido por Anjos para contemplar o final da Assunção. Aí vemos aquilo que poderíamos chamar a índole de Nossa Senhora, para cuja qualificação a palavra “materna” não basta, seria uma índole super materna, arqui materna, incomparável.

E ao receber esse castigo pungente, merecido, por uma culpa tão reparada de não ter podido estar presente à morte e ao início da Assunção de Nossa Senhora, ele olhou para Ela. Então, a Mãe de Deus sorrindo concedeu-lhe uma graça que não deu a nenhum outro. Ela desatou o seu cinto e, de lá de cima, fê-lo cair sobre São Tomé, de maneira tal que ele recebeu não direi o perdão, porque já estava perdoado, mas uma suprema graça, que era uma relíquia d’Ela atirada para ele do mais alto dos céus.

Nossa Senhora é assim quando tem algo a perdoar de algum filho muito dileto. Às vezes Ela nem sequer pune, mas quando castiga Ela faz seguir essa punição de um sorriso bondoso, de um perdão completo e de uma grande graça. Poder-se-ia imaginar que São Tomé, voltando para casa com os Apóstolos, mostrou-lhes esse presente dado a ele e disse: “O felix culpa – Ó feliz culpa –,  eu por desgraça duvidei de meu Salvador, mas em compensação tive a felicidade de receber esta relíquia celeste de minha Mãe Santíssima”. O último sorriso, o último favor d’Ela, a amenidade mais extrema, a bondade mais suave Nossa Senhora deu exatamente a São Tomé, e isto nos deve encorajar.

Que a Santíssima Virgem nos prepare para os dias terríveis que se aproximam Não há nenhum de nós que em relação à Santíssima Virgem não tenha falhas, e não precise pedir algum perdão. Nós devemos rogar a Nossa Senhora, nesta preparação da solenidade da Assunção, que proceda assim maternalmente conosco; que Ela olhe para nossas falhas, mas nos dê um perdão.

E que esse perdão seja o seguinte: Nós estamos cada vez mais claramente na orla dos acontecimentos preditos por Nossa Senhora em Fátima, e é possível que, analisando as nossas próprias almas com aquela severidade implacável que a condição de seriedade de todo exame de consciência exige, consideremos estarmos chegando um pouco atrasados na nossa preparação espiritual para esses acontecimentos.

Pois bem, nós devemos fazer uma oração, lembrando-nos de São Tomé. Se chegarmos atrasados, que Ela nos dê o favor especial particularmente rico e suave, por onde, de um momento para outro, nos preparemos de maneira tal que, quando bater à porta de nossas almas a graça dos dias terríveis que se aproximam, estejamos prontos, cheios de enlevo e capazes de seguir a vocação que Nossa Senhora nos deu.

Esta é a reflexão que me ocorre por ocasião da Assunção de Nossa Senhora. Se quisermos fazer uma meditação bonita sobre a Assunção, podemos ler as revelações de Fátima, narrando o milagre do Sol, que se manifestou de um modo tão terrível e esplêndido naquela ocasião. O astro-rei há de ter sido esplêndido, sem terribilidade, por ocasião da Assunção de Nossa Senhora.

Plinio Corrêa de Oliveira

Complementos do Paraíso

Mais de uma vez me tenho perguntando se as construções, os monumentos e as obras de arte no Paraíso terrestre teriam sido mais belas que os engendrados pelo espírito católico nos séculos gloriosos da Civilização Cristã. Sem dúvida, o Éden onde viveram nossos primeiros pais era lindíssimo. Já o seria pela simples presença de Adão que, na sua inocência e formosura originais, era perfeita prefigura de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como se isso não bastasse, diz a Escritura que Deus até ali descia, no cair da tarde, para se entreter com Adão em meio ao frescor da brisa que  soprava naquela atmosfera paradisíaca.

Diálogo sublime, colóquio inimaginável, momentos incomparáveis.

Contudo, tanto quanto me é dado entrever (condicionando desde logo meu pensamento ao superior juízo da Teologia), algo faltava àquela extraordinária beleza. Pois se Deus criou o mundo para o homem nele crescer em graça e santidade, e nele glorificá-Lo com as obras de suas mãos, a magnificência do próprio Paraíso só estaria acabada quando o homem empreendesse realizações artísticas que servissem de complemento à criação divina.

Nesse sentido podemos dizer que o mundo todo seria como uma ânfora riquíssima e esplendorosa, à qual entretanto faltam as asas ornamentais e igualmente preciosas, que não apenas lhe tornam fácil o manuseio, mas, sobretudo, consumam-lhe o esplendor. Ora, Deus deixou aos filhos d’Ele, aos homens, a missão de colocar as asas na ânfora, de excogitar maravilhas e com elas embelezarem a face da Terra. Esse é o papel primordial da arte.

Então, ao longo dos milênios, talvez, em que este mundo existiria como uma extensão do Éden, as gerações que se fossem sucedendo realizariam obras artísticas cada vez mais belas, mais interpretativas, mais expressivas, mais carregadas de sobrenatural. Todas, porém, seriam a pré-história em relação ao dia em que o Verbo se encarnasse e habitasse entre nós. Pois aí nasceria para o Paraíso outra época e a arte reviveria de dentro de seus esplendores como se fossem de dentro de cinzas, e apareceria com uma nova beleza, porque estava toda constituída em função do Filho de Deus.

É belo Deus descer e conversar com o homem. Quanto mais belo é Deus se fazer homem! E tendo Ele assumido a nossa natureza, é evidente que tudo se modificaria em função de sua Pessoa, e que ovos aspectos de maravilhoso, de beleza, de magnificências, exprimir-se-iam de mil outras maneiras através do talento humano. Assim seria, se o homem não tivesse pecado. Pecou, e foi expulso do Paraíso. Mas trouxe consigo, no íntimo de sua alma, aquele desejo do belo e da pulcritude. Ele o transmitiu a seus descendentes, em cujos corações foi crescendo e crescendo, tornando-se sempre mais premente a necessidade de expressá-lo, de dar-lhe vida, de torná-lo realidade.

Foi uma longa caminhada ascensional, essa história das almas que anelaram, sonharam e pensaram o maravilhoso, transmitindo de geração em geração uma espécie de pressentimento daquilo que um dia, afinal, haveria de florescer na Idade Média com uma pujança insuperável: o estilo gótico.

Nasceu gradualmente, vindo do fundo dos tempos, como os bancos de coral que se vão construindo no correr dos séculos a partir das profundezas do oceano até surdirem por sobre as águas, formando ilhas e rochedos. Assim também o banco da maravilhosa arte gótica foi medrando aos poucos, desde os primórdios do peregrinar das almas fiéis nesta terra de exílio.

Desde os dias em que passaram a conviver com o sofrimento, aguçando nelas as saudades do Paraíso; os dias em que esperaram pelo Messias prometido; os dias em que O viram, Ele mesmo, padecer pela Redenção do gênero humano. E os dias em que O adoraram gloriosamente ressurrecto, em que conheceram o surto do cristianismo sob as bênçãos de Maria Santíssima e o influxo irresistível da graça do Divino Espírito Santo.

Tenho impressão de que aí, então, foi dada à Igreja a plenitude daquela virtude por onde Ela sempre agiria nas almas dos seus fiéis, de maneira a possuírem e desenvolverem esse senso do maravilhoso, esse desejo de esplendor que os fez conceber as grandiosas catedrais, os órgãos de som harmonioso e arrebatador, os majestosos castelos, os vitrais “éblouissants”…

Assim como os fez idealizar quantas outras coisas menos sensíveis ao corpo, mas cuja beleza o espírito compreende melhor: a Cristandade, a Civilização Cristã, a sociedade temporal com seus costumes, instituições e tradições existindo à luz da Santa Igreja Católica, e incontáveis outros valores suscitados na Idade Média que têm uma beleza vitralícia multiplicada pelo vitralício. Já não são vitrais que os olhos vêem, mas são vitrais que a  alma contempla e considera enlevada Numa palavra, são alguns daqueles complementos que faltaram ao Paraíso…

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2003)

Uma prefigura do Céu

Tema sobremaneira grato a Dr. Plinio era a consideração da sociedade enquanto cumprindo a Lei de Deus e, por isso mesmo, constituindo um conjunto harmônico capaz de refletir adequadamente o Criador. Como veremos a seguir, dentro dessa temática salientava ele, de modo especial, a importância da tendência à perfeição — um dos mais belos frutos da ação da graça na alma do homem.

 

Se todos os homens cumprissem os dez Mandamentos, grande número das leis se evaporaria por desnecessidade, e o mundo seria perfeito. Santo Agostinho, grande Doutor da Igreja que viveu ainda antes da queda do Império Romano do Ocidente, tem esta famosa sentença: “Imaginai um país onde o rei e todo o povo cumpram os dez Mandamentos; imaginai um lar onde o pai, a mãe e também todos os filhos cumpram os dez Mandamentos; imaginai uma escola onde todos os professores e todos os alunos cumpram a Lei de Deus na sua integridade; imaginai o mesmo se dando  com todos os oficiais e soldados de um exército; imaginai, enfim, os dez Mandamentos observados em qualquer campo da atividade humana. Existiria uma coisa chamada perfeição.

A organização  social tornar-se-ia exímia e tenderia a ser perfeita. Enquanto os Mandamentos fossem cumpridos, os frutos seriam os melhores, os mais excelentes, os mais magníficos. Isto é a ordem.”

Pela ação da graça, o homem tende ao mais perfeito

Essa ordem foi levada à sua plenitude por Nosso Senhor Jesus Cristo, e Ele deu aos homens a força necessária para pô-la em prática. Os dez Mandamentos são muito bonitos, empolgam. Cada um deles é lindíssimo: “Não matarás… Amarás a Deus sobre todas as coisas… Não tomarás seu santo nome em vão”, etc. O homem começa a cumpri-los, e sente como são belos. Daí a algum tempo, porém, que peso! Porque não é fácil observá-los. A tal ponto que a Igreja nos ensina não sermos capazes de obedecê-los duravelmente, sem o apoio da graça de Deus.

Ora, Deus concede essa graça a todos os homens, e por causa disso todos têm a possibilidade de cumpri-los. Sendo assim, o movimento natural de todas as coisas é para cima, para o alto, para a perfeição. E essa tendência, própria à alma cristã, de fazer tudo de maneira excelente, desde o mais insignificante até o mais elevado, marca um homem: na sua cortesia, no modo de dobrar uma  folha para pô-la num envelope, no modo de dizer “sim” ou “não”, no jeito de se levantar, de se sentar e de andar — tudo deixa transparecer uma inclinação para a perfeição.

Essa tendência é tal que o homem procura levá-la até o ápice do concebível por ele. Quer dizer, não intenta apenas o perfeito, mas o perfeitíssimo. Ele quer se unir a Deus no Céu.

Uma sociedade precursora do Céu empíreo

Para termos ideia de como essa excelência é alcançável na Terra, imaginemos um ambiente onde toda a conversa seja marcada pela presença da fé, numa atmosfera ao mesmo tempo leve e séria, amena e forte, onde as pessoas saibam tratar de qualquer assunto, até dos menores, de maneira aprazível e profunda.

Situemos neste ambiente, por exemplo, o rei Felipe II da Espanha (a quem costumo chamar de “o Felipão”). Sem querer afirmar que tenha sido um santo, há nele algo denotativo de uma fé que  comunicava àquela alma uma grandeza, uma compenetração, uma largueza de vistas, uma profundidade de horizontes, uma firmeza de decisão extraordinária.

Consideremos a ele como um analogado primário de todos os homens sérios de seu reino, e que em cada casa de família que se entrasse, por mais alta ou mais modesta que fosse, o pai seria uma reedição do “Felipão”.

Que estabilidade, que segurança, que recolhimento, que compenetração no ambiente em torno desse homem! Os filhos lhe vêm falar num tom de voz baixo, fazem-lhe confidências ou pedem instruções. E ele, às vezes, fora das horas de convívio, responde-lhes apenas por uma meia palavra, porque está pensando, rezando, lendo ou escrevendo algo de muito elevado…

Agora imaginemos a mãe, partícipe das qualidades de Nossa Senhora, “Mater Misericordiae”, temperando pela presença dela o que pode haver no pai de, digamos, grandeza assombrosa. Ela tem a chave do coração dele, sabe lhe dizer a palavra necessária para criar o melhor relacionamento possível entre ele e os filhos. E ela o faz com uma abundância de misericórdia, uma majestade, uma perfeição de sorriso que torna uma humilde trabalhadora em rainha da casa, assim como pode tornar uma rainha em mãe trabalhadora, afável e condescendente com os seus filhos.

Pensemos depois nos filhos compenetrados desse ambiente. Eles também, a seu modo, verdadeiros anjos nesta imagem da corte celeste que é a família. Pois do mais velho até o último, estão dispostos numa hierarquia de irmãos parecida com a ordem dos anjos.

Compreende-se que nada pode ser aprazível como esta casa. E se alguém me dissesse: “Dr. Plinio, na Ilha de Marajó, perto de Belém do Pará, existe uma família que é igual a essa descrita pelo senhor” — eu iria visitá-la, sem hesitações. Se me oferecessem a alternativa de viajar à Europa para rever a Sainte Chapelle, a catedral de Toledo e quantas outras maravilhas, ou de me encontrar com esta família no norte, eu preferiria conhecê-la, ainda que ela vivesse nos pântanos da Ilha de Marajó, no meio dos bois.

Eu iria e teria visto o que queria! Ali está a casa-santuário, a casa-sacrário, que é a família católica perfeita! Agora, imaginemos uma cidade onde toda a população que anda pelas ruas é assim, onde as pessoas se vêem e se cumprimentam com atenção, respondendo aos acenos discretamente, com pequenos sorrisos e amabilidades, e depois continuam seu caminho, deixando pela atmosfera um rastro de perfumes espirituais.

Do interior de uma casa com as janelas abertas ouve-se uma música segundo Deus, justa, temperante, prudente e forte. Mais adiante, percebe-se uma conversa, eventualmente uma risada cristalina, e se sente um aroma de pombo bem preparado.

Todas essas coisas produzem sobre nós algo do efeito que a ação dos anjos exercerá sobre as almas e os corpos quando estiverem no Céu empíreo.

Em suma, toda essa sociedade assim formada seria já uma espécie de realidade precursora do Paraíso celestial.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (agosto de 2003)

O CARÁTER MILITANTE DA IGREJA

A História, estudada de modo científico e imparcial, derruba os preconceitos levantados durante dois milênios contra a Igreja. Este é o ensinamento de Leão XIII, analisado por Dr. Plinio num trabalho inédito, cuja publicação continuamos aqui. No trecho hoje transcrito, ele comenta a guerra movida contra a Igreja pelo demônio e o mundo, e o caráter militante do catolicismo.

 

Mostramos os objetivos e os anelos de Leão XIII com o desenvolvimento da historiografia católica, no tocante a seu aspecto apologético. Num sentido mais abrangente, o Pontífice considera a História como “magistra vitae et lux veritatis” (“mestra da vida e luz da verdade”), como afirma no Breve “Saepenumero Considerantes”.

Nesse mesmo documento, dá ele algumas vistas históricas de conjunto, salientando como orientam bem os espíritos. Se, como vimos, esse Breve se voltava de modo especial para a Itália, a “Annum Ingressi” se ocupa em mostrar não apenas a história italiana, mas a de toda a civilização cristã como “magistra vitae” – mestra da vida. O Breve “Saepenumero” é, pois, desse ponto de vista, apenas um importante passo no caminho em que a Annum Ingressi será o termo final.

Posto em evidência o pensamento de Leão XIII sobre a legitimidade, a necessidade e a nobreza da História como instrumento da Igreja, como mestra da vida, dando ao homem uma explicação do  passado e uma base para a solução dos problemas do presente, consideremos o panorama histórico exposto pela “Annum Ingressi”.

Divisão geral da Carta Apostólica

Concluída a parte introdutória da Carta Apostólica, Leão XIII passa à demonstração de sua tese: “Segundo uma lei da Providência, confirmada pela História, não é possível calcar aos pés os grandes  princípios religiosos, sem solapar conseqüentemente as bases da ordem e da prosperidade social”.

O Pontífice expõe, então, as grandes verdades filosóficas e teológicas nas quais se funda a concepção cristã da História. Por elas se explica a luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas, a qual, desde os primeiros até os últimos dias da humanidade, sem jamais cessar, enche os anos, os séculos e os milênios.

Em seguida, mostra como se realizou esta luta nos acontecimentos, traçando um grande quadro de conjunto da História da Igreja e da Cristandade, à luz da Filosofia e da Teologia.

Narra a crise da civilização ocidental cristã, e mostra que a ruptura crescente dos europeus com a Igreja é a causa da imensa crise em que a Europa se debateu no século XIX. É a demonstração da “lei da Providência na História”, enunciada na parte introdutória.

Leão XIII define, depois, a missão imposta por Jesus Cristo à Igreja, isto é, a salvação das almas. Para cumprir tal missão, é inevitável que a Igreja entre em choque com as paixões humanas desregradas, e sofra a guerra, essencialmente injusta, movida contra ela pelos adversários de sempre, quer dizer, o demônio e o mundo. É a continuação da guerra feita a Jesus Cristo.

Distinguindo a Igreja militante

Afirmando que “a Santa Igreja de Cristo teve de combater, em todos os tempos, contradições e perseguições pela verdade e pela justiça”, Leão XIII continua a exposição, enunciando uma verdade  encontrada com muita freqüência nos documentos do magistério eclesiástico, que tem suas raízes na Sagrada Escritura e é do conhecimento corrente dos fiéis.

Sim, pois o Catecismo [de São Pio X] ensina a distinguir a Igreja Militante, existente na terra, da Igreja Padecente, formada pelas almas do Purgatório, e da Igreja Gloriosa, constituída pelas almas dos justos que já se acham no Céu. Para compreendermos o nexo entre esta verdade e os horizontes desvendados na “Annum Ingressi”, devemos considerar os modos pelos quais a Igreja, enquanto sociedade visível, dotada de fins definidos e de órgãos próprios, realiza seu caráter militante.

A revolta das paixões desregradas

Antes de tudo, notamos que ela o realiza na pessoa de cada um de seus membros. Durante a vida terrena, o homem se encontra em estado de prova, e de luta. Com efeito, Deus o criou, a cada um, para a bem-aventurança eterna no Céu. Mas, a fim de preparar-se para essa felicidade, bem como para merecê-la, o homem deve praticar nesta vida a Lei divina, acrescida de todos os preceitos eclesiásticos.

Contra tal observância levanta-se um primeiro obstáculo nas paixões desregradas: o orgulho, a inveja, a avareza, a luxúria, a gula, a cólera e a preguiça. Daí São Paulo escrever: “Encontro, pois, em mim esta Lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal. Deleito-me na Lei de Deus, no íntimo do meu ser. Sinto, porém, nos meus membros outra lei, que luta contra a lei do meu espírito e me prende à lei do pecado, que está nos meus membros. Homem infeliz que sou! Quem me livrará deste corpo que me acarreta a morte?…” (Rm 7,21-24).

Dois odientos inimigos: o demônio e o mundo

Outros obstáculos provêm de dois lados: as tentações do mundo e as seduções do demônio: “Sede sóbrios e vigiai”, diz São Pedro. “Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (1Pd 5,8).

Para vencer tantos adversários interiores e exteriores, deve o homem lutar rudemente, e esta luta é de tal maneira o sentido profundo de sua vida, que São Paulo define toda a existência humana como uma prova. Tudo se resume na exclamação de Jó:

“Militia est vita hominis super terram”— “a vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7,1).

Cada membro da Igreja é, pois, militante por definição, na esfera mais circunscrita e mais íntima de sua existência individual, isto é, na luta travada dentro de si mesmo — ignorada por todos e presenciada só por Deus, “cujo olhar sonda o coração e os rins” (Sl 7,10) — e por suas ações exteriores, para vencer os obstáculos que lhe detêm o passo no caminho para o Céu.

Mas o caráter militante da vida de cada fiel não poderia ser considerado apenas neste âmbito, e como mero esforço para a salvação individual. Ação de todo católico na escala social O homem é naturalmente sociável.

Como tal, vive ele em contato contínuo com outros indivíduos ou grupos sociais, e com a grande coletividade, que é a sociedade humana, da qual é membro. Esse contato, ele o realiza na família, na profissão, nos lazeres, em mil diferentes ocasiões. Assim, forma relações que lhe impõem o grave dever de estado de velar pela salvação eterna do próximo. Esse é um segundo modo pelo qual todo fiel realiza em si o caráter militante da Igreja.

Com efeito, velar pela salvação do próximo implica não só favorecer tudo quanto possa concorrer para o levar ao bem, como ainda em contrariar e combater todas as influências que o podem arrastar para o mal. Os pais, os patrões, os superiores, por exemplo, têm grave dever de velar pela salvação de seus filhos, empregados ou súditos. Se não fizerem uso, para esse efeito, da influência que a justo título sua situação lhes dá, sujeitam-se à merecida punição dos que não fazem frutificar os talentos confiados a eles por seu amo (Mt 25,14-30).

“Mutatis mutandis” pode-se dizer o mesmo das obrigações entre irmãos, parentes, colegas, etc. E até da obrigação dos filhos, alunos e súditos, de velar pela salvação de seus pais, mestres, patrões e superiores.

Dever de fazer apostolado

Há um terceiro aspecto da realização do caráter militante da Igreja em seus fiéis. Independente das obrigações individuais, e dos deveres de estado decorrentes, para o fiel, da situação que eventualmente ocupe na sociedade temporal, é ele obrigado a fazer apostolado.

Esta obrigação lhe vem do simples fato de ser católico, e pode ter por objetivo a salvação de pessoas a que está vinculado por pertencerem à mesma Igreja, e até pelo fato ainda muito mais genérico e serem criaturas humanas. Em outros termos, enquanto membro de uma Igreja militante, o fiel é obrigado a militar por ela. Pio XI e Pio XII insistem muito sobre esse dever do  apostolado, que toca a cada filho da Igreja, abrangendo uma esfera de ação certamente mais vasta que a dos deveres de estado decorrentes da situação de cada qual na sociedade temporal.

Não nos cabe entrar, aqui, no problema por vezes complexo de saber até onde vai essa obrigação. Mas, se um católico fizesse apostolado apenas no cumprimento de seus deveres de estado na sociedade temporal, sem jamais atuar fora desse âmbito, não poderia sentir-se bem com sua consciência.

Faria abstração de que é membro não só da sociedade temporal, mas da Igreja, sociedade espiritual, o que lhe impõe também deveres de estado, um dos quais é tomar parte na luta pela conquista de toda a humanidade.

Obrigações dos grupos sociais

A sociedade temporal se compõe de grupos sociais: famílias, corporações, instituições, classes, municípios, regiões, estados, províncias, etc. Cada um desses elementos realiza certa parcela das  funções da sociedade temporal. Nisto consiste o fim peculiar de cada qual, e deste fim lhe vem sua forma, atribuições específicas, direitos e deveres. Em uma palavra, sua situação dentro do conjunto.

A par do fim temporal, têm os grupos sociais a obrigação de militar pela Igreja?

Sem nos referirmos a associações de fim especificamente religioso, tais como Ação Católica, Congregações Marianas, etc., consideramos o caso daquelas com um fim especificamente temporal. Um clube de colecionadores de selos, por exemplo, tem a obrigação de se declarar católico e fazer apostolado? Desde que seja composto de católicos, não poderia ser laico. (Abstemo-nos de tratar dos grupos sociais religiosamente ecléticos, questão complexa, que exigiria um grande desenvolvimento.)

Os modos pelos quais uma associação pode mostrar-se oficialmente católica são sugeridos pelas tradições de nosso passado cristão. Poderia, por exemplo: ter a imagem de algum Santo em sua sede; promover orações coletivas antes e depois das reuniões, pedindo a proteção divina para suas atividades; ter um padroeiro em cuja festa promova cerimônias religiosas; sufragar as almas dos sócios falecidos, etc.

Não queremos dizer que toda associação de católicos seja obrigada a essas atitudes, sob pena de ser laica. Trata-se apenas de exemplos. Porém, é necessário conformar-se, em tudo, com os ditames da Fé e da Moral ensinadas pela Igreja, e isto não só nas relações da sociedade com seus sócios e com terceiros, como ainda no modo de realizar suas atividades específicas. Estas devem se desenvolver segundo o espírito da Igreja, ser lícitas e, na medida em que sua natureza comporte, ortodoxas. E devem aproximar os homens de Deus.

Não há sociedade, por mais que seu campo pareça alheio a Igreja, à qual não se possam de algum modo aplicar estas normas. Não exemplifiquemos com entidades em que tal possibilidade é obvia,  como a família ou a escola. Tomemos de novo uma sociedade filatélica. Os estudos de filatelia envolvem referências a episódios históricos, personalidades, costumes e instituições. Ainda quando sumárias, tais referências são suscetíveis de exprimir oposições, preferências, atitudes ideológicas. Os selos falam pelo que contêm e pelo que calam.

Houve tempo no Brasil em que o laicismo chegou a banir os temas religiosos dos selos. Um filatelista católico julgará isto importante e o mencionar á com o devido destaque.

Além disso, é certo que o católico pode encontrar, na filatelia, meios para se elevar até Deus. Essa associação, portanto, agirá bem se promover cursos, conferências, etc., que facilitem a seus associados a “elevatio mentis ad Deum” nesse campo.

As sociedades que assim agem fazem apostolado

Bem se compreende a utilidade de uma associação assim para a formação de seus membros. Trata-se de verdadeiro apostolado, que poderia até transpor o âmbito do quadro social, levando ao conhecimento do público tudo quanto no campo da filatelia o possa elevar a Deus. Essa associação, agindo assim, participa eficazmente, em seu campo e a seu modo, do caráter militante da Igreja.

Em resumo, as sociedades e outros grupos sociais, como pessoas coletivas, têm em relação à Igreja obrigações e possibilidades de ação idênticas, “mutatis mutandis”, às dos fiéis.

Imagine-se o que não seria de um povo no qual todos os grupos — famílias, escolas, entidades culturais, recreativas, profissionais, econômicas, cinemas, rádios, livros, jornais, revistas, costumes regionais, sede social — fossem imbuídos de catolicismo na sua essência e ação! É indubitável que os obstáculos à salvação teriam caído ao nível mínimo, e a missão da Igreja se realizaria em condições ideais. E um povo tão voltado para as coisas do Céu não deixaria perecer seus interesses terrenos legítimos. É uma questão sobre a qual exporemos adiante o pensamento de Leão XIII.

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 53 (Agosto de 2002)

REALEZA TRIIUNFANTE

A realeza de Nossa Senhora, fato incontestável em todas as épocas da Igreja, veio sendo explicitada cada vez mais a partir de São Luís Grignion de Montfort, até aquele 13 de julho de 1917, quando Maria anunciou em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” É uma vitória conquistada pela Virgem, é o seu calcanhar que mais uma vez esmagará a cabeça da serpente, quebrará o  domínio do demônio e Ela, como triunfadora, implantará seu Reino sobre as vastidões da Terra.

Plinio Corrêa de Oliveira (“Coroação da Virgem”, Basílica de Santo Antônio de Pádua – Itália)